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ESCOLA DE GUERRA
NAATOR

Autor
CLARK DARLTON

Tradução
MARIA MADALENA WÜRTH TEIXEIRA

Digitalização e Revisão
ARLINDO_SAN
Seus disfarces são perfeitos — porém um cadáver
pode pôr tudo a perder...

A descoberta da espaçonave arcônida acidentada


na Lua, foi ponto de partida para a unificação política
da Humanidade. Hoje, a Terra tornou-se centro de um
império... o Império Solar!
O novo império — minúsculo em comparação com
as numerosas outras potências cósmicas — subsistiu
unicamente devido às inteligentes jogadas de Perry
Rhodan e de seus colaboradores. No grande jogo
galáctico, impediram que a Terra desaparecesse num
inferno de destruição atômica, ou fosse degradada à
condição de colônia de Árcon.
E a sorte costuma ser fiel a quem se mostra
capaz...
Confiando nesta sorte, Perry Rhodan traça o
ousado plano de penetrar, com um grupo de
combatentes terranos, até a central de seu maior
oponente, o robô regente!
Porém antes que os “Recrutas de Árcon” —
designação sob a qual os especialistas terranos foram
alistados, após terem se radicado no planeta dos zalitas
— possam efetivamente se aproximar do cérebro-robô, a
fim de executar sua ação destruidora, espera-os a
Escola de Guerra Naator.

======= Personagens Principais: = = = = = = =


Perry Rhodan — Administrador do Império Solar.
Jeremy Toffner — Agente cósmico da Terra.
Roger Osega — Valente sargento terrano.
Rhog — Um zalita que mata o homem errado.
Bóris — Médico ara.
Vários membros do Exército de Mutantes.
1

O gigantesco sol vermelho estava alto no céu, brilhando sobre a paisagem desértica.
Os raros arbustos davam pouca sombra. O solo arenoso elevava-se gradativamente,
passando a um trecho pedregoso, de onde se erguia abruptamente a massa montanhosa.
Vista do leste, era difícil perceber-se alguma brecha na extensa cordilheira; no entanto,
havia vales, pelos quais transitaram em tempos pacíficos as caravanas comerciais.
Caravanas modernas, evidentemente, com tratores de esteira, e pesados transportes
de carga.
Porém em Zalit, quarto planeta do sol Voga, não reinava paz. Também não havia
guerra. Mas a simples proximidade do sistema Árcon bastava como ameaça. E três anos-
luz não eram lá grande distância...
O reino estelar dos arcônidas, governado por um imenso cérebro-robô, necessitava
de soldados. Ia buscá-los nos mundos coloniais, que não ousavam opor-se à exigência. E
Árcon reforçava sua já poderosa frota bélica, a fim de atacar um planeta distante e
desconhecido, a mais de trinta mil anos-luz. Mas o nome deste planeta não era
desconhecido: Terra!
Inúmeros esconderijos espalhados pela superfície de Zalit abrigavam os homens
válidos, evadidos dos grupos de busca arcônidas. Ali viviam e esperavam. Ignoravam
quando lhes seria possível retornar aos lares, mas tinham tempo. Amigos forneciam os
alimentos, e o desconforto da prisão voluntária lhes parecia mais aceitável do que os
campos de treinamento arcônidas, em algum mundo ignoto.
Não estavam interessados na guerra dos arcônidas.
Nem ousavam rebelar-se abertamente, conscientes de que sua débil frota espacial
não tinha chance alguma contra as supernaves de Árcon. Afinal, como combater contra os
robôs que as tripulavam? Além disso, não podiam confiar no Zarlt. Privado de outra
opção, o regente já idoso procurava entender-se com os arcônidas.
No cume mais elevado, um jovem estava de sentinela. Tinha o habitual cabelo cor
de cobre dos zalitas, e a pele vermelha. Suas roupas folgadas pareciam grandes demais
para ele. Dali avistava amplo trecho do deserto; à distância, a quinhentos quilômetros,
ficava Tagnor, a capital do planeta.
Mas Tagnor estava ocupada pelos arcônidas com seus robôs. No espaçoporto
haviam instalado o centro de mobilização dos conscritos para o serviço militar. Dali, os
recrutas seriam levados para Árcon, onde era feito o treinamento final.
Em Zalit, o almirante arcônida Calus representava seu povo. Homem capaz e
inteligente, mas ao mesmo tempo cruel e implacável, quando se tratava de executar as
ordens do cérebro-robô.
Era sobre este arcônida que se concentrava o ódio dos zalitas.
O sentinela solitário no alto da montanha desviou o olhar do horizonte leste, onde
ficava sua cidade natal Tagnor. Perscrutou o deserto próximo, sem constatar qualquer
movimento suspeito. Alguns animais pastavam ao pé da montanha, onde crescia um
pouco de capim.
Encontrava-se num platô circundado por um muro baixo. Uma saliência rochosa
acima dele oferecia boa cobertura. Não raramente, planadores arcônidas passavam em
vôo rasante por ali, à procura de possíveis desertores.
O zalita sorriu sarcasticamente. Seu grupo tivera muita sorte até então. Compunha-
se de cerca de duzentos homens em idade militar. Reunidos pelo acaso, tinham decidido
permanecer juntos até os arcônidas abandonarem Zalit.
Estremeceu ao ouvir um ruído na trilha rochosa, mas logo se tranqüilizou. Devia ser
o revezamento. Chefe regular não existia no grupo; coesão e atividades eram ditadas pelo
senso comum. No entanto, Cagrib, que vinha substituí-lo, teria sido o candidato mais
elegível ao posto de chefe, caso pensassem em escolher um.
— Satisfeito por me ver? — perguntou Cagrib, surgindo por detrás dá rocha. Com
um olhar certificou-se de que tudo estava em ordem. — Espero que o tempo não lhe
tenha parecido longo demais, Rhog.
— Não a céu aberto — declarou o solitário vigia, sacudindo a cabeça; gesto que em
Zalit significava o mesmo que na longínqua Terra. — Enquanto fizer bom tempo...
— Temos novas notícias — interrompeu o outro. — Calus acaba de fazer novo
pronunciamento.
O almirante dos arcônidas falava quase diariamente, através de todas as estações de
televisão de Zalit, anunciando novas e drásticas medidas destinadas a atingir os objetivos
desejados.
— Dizem que agora até homens maduros devem se apresentar. Ninguém está mais a
salvo deles.
Rhog disse, com amargura:
— Nós estamos seguros. Mas será que apenas isto nos agrada? Contentar-se em ver
nosso povo dominado, e os jovens serem arrastados para a escravidão? Por que não
fazemos alguma coisa?
— O quê? — perguntou Cagrib, desanimado. — Acha que assassinar o tal Calus
resolveria? Mencionou isso certa vez. Mas certamente mandariam outro, ainda mais cruel
e impiedoso. Que ganharíamos com a troca?
Rhog debruçou-se sobre o muro.
— Não sei, realmente não sei... Mas revolto-me com a inatividade forçada. Algo
precisa ser feito, nem que seja apenas para provar a nossos compatriotas que não estão
sós.
Cagrib fitou o céu luminoso. Lá longe, no horizonte, formavam-se algumas nuvens,
prenunciando chuva.
— Calus, então...? É, talvez devêssemos eliminá-lo, realmente. Vou falar com os
outros a respeito. Não será difícil enviar um dos nossos a Tagnor...
— Eu vou! — ofereceu-se Rhog, prontamente.
Porém Cagrib recusou.
— Não, Rhog, você é esquentado demais. Seria preso, e quem passa pelo
psicodetector dos arcônidas é incapaz de manter-se calado. Aguarde, precisamos pensar
nisso com calma.
Rhog acenou, e encaminhou-se para a trilha que conduzia ao esconderijo nas
cavernas. Sabia que uma revolta estava se iniciando. Finalmente, cessara o período de
espera ociosa. Iam começar a agir!
No entanto, nem suspeitava de que o grupo se preparava para cometer a espécie de
erro que poderia vir a ser responsável por uma ulterior catástrofe.
***
E o grupo tornou a errar quando, após longa confabulação, indicou justamente Rhog
para executar o planejado atentado. Era quem melhor conhecia Tagnor, e saberia onde
esconder-se. Afirmava, além disso, dispor de boas relações no palácio do Zarlt, onde
amigos seus faziam parte da guarda do regente. Através deles, poderia obter valiosas
informações acerca da movimentação diária do almirante.
Porém o erro capital residia no fato de quererem eliminar o maior amigo de Zalit.
Coisa que os renitentes ao serviço militar não podiam saber, evidentemente;
guiavam-se apenas pela lógica, mas na presente situação o pensamento lógico não era
suficiente.
Precisaram de um dia inteiro para modificar a aparência externa de Rhog. Se bem
que velhice não garantiria zalita algum das garras da comissão de recrutamento
arcônida... No entanto, um homem jovem despertaria muito mais suspeita. Sem mudar o
nome, alteraram o passe de Rhog, registrando nele idade e sinais característicos muito
mais adequados a seu avô do que a ele próprio.
A viagem para Tagnor representava dificuldade adicional. Inviável usar o trem
pneumático subterrâneo, sujeito a controle permanente: Rhog seria fatalmente
descoberto. E os rebeldes não dispunham de um único veículo. Portanto, só restava o
caminho das caravanas, duzentos quilômetros ao sul. Ali, Rhog teria possibilidade de
arranjar carona.
— Vai ter que andar! — constatou Cagrib, objetivamente, sacudindo a cabeça. —
Será que agüenta o esforço? Infelizmente não podemos arriscar nosso planador; só temos
este, e representa a única ligação com as outras cidades.
— Podiam deixar-me perto de Tagnor — sugeriu Rhog.
— E perder o avião? — Cagrib sacudiu novamente a cabeça. — Além disso, diriam
com sua pista mais depressa. Não, tara de seguir mesmo pelo caminho mais árduo. No
meio de uma caravana, poderá entrar sem ser notado na cidade. Não vejo outra
possibilidade.
Rhog conformou-se. Tinha que conformar-se, ou corria o risco de lhe tirarem o
encargo. E ele fazia questão de ser o libertador de Zalit e de seu povo; eliminaria o tirano
com suas próprias mãos.
Três dias depois do breve diálogo no cume da montanha, Rhog pôs-se a caminho.
Um viajante solitário, com escassas provisões. Rumou para o sul, onde ficava o vale entre
as montanhas, ponto de passagem obrigatório das caravanas comerciais. Num raio de
duzentos quilômetros, era a única passagem existente.
À direita, a quinhentos quilômetros, ficava Tagnor. À esquerda, por trás dos picos
das montanhas, e além do deserto, ficava Larg. Rhog possuía amigos nesta cidade, porém
ignorava o atual paradeiro destes confrades. Talvez já estivessem a caminho de Árcon...
Ajuda...? Não, não podia contar com ajuda, e era melhor não esperar nem contar com
nada neste sentido. Dependia exclusivamente de si mesmo.
O sol avermelhado surgiu por trás das montanhas, e avançou rapidamente pelo
firmamento. A sacola de mantimentos pesava. Porém mais ainda pesava a pequena arma
em seu bolso. Preferira não indagar a Cagrib como fora parar em seu poder. Fabricação
arcônida, provavelmente. O minúsculo depósito energético no cabo bastava para dois ou
três mortais disparos. Depois disso, a pistola de raio filiforme se tornava imprestável,
caso faltasse cartucho de reposição. E não havia nenhum!
À direita, o deserto se estendia até o horizonte. Parecia interminável. E, no entanto,
além dele ficava a maior cidade de Zalit, com trinta milhões de habitantes, e o mais
amplo espaçoporto do planeta.
Rhog contornava de perto a montanha, a fim de acobertar-se instantaneamente no
caso do aparecimento de uma patrulha aérea arcônida. Com alguns passos, poderia sumir
entre as pedras. Teria sido melhor caminhar durante a noite; dificilmente poderia perder-
se caso seguisse sempre ao longo da cordilheira. Mas à noite também circulavam por aí
os sanguinários haracks, feras carnívoras muito usadas na arena de lutas. Vira, certa vez,
um daqueles monstruosos felinos despedaçar um gladiador. Desde então, passou a
detestar a arena.
Chegou o meio do dia, depois a tarde.
Rhog escolheu uma das numerosas cavernas para pernoitar. Segundo seus cálculos,
percorrera bem quarenta quilômetros naquele dia. Mais quatro — ou três, quem sabe — e
alcançaria o objetivo. Então lhe bastaria ir andando pela estrada das caravanas, sempre
para o leste, e não tardariam a recolhê-lo. Ninguém lhe perguntaria o que ia fazer em
Tagnor. E não precisava recear ataques arcônidas ali, em pleno deserto.
Adormeceu, mas acordava, agitado, diversas vezes. Julgava ouvir ruídos. Por fim o
céu clareou diante da boca da caverna. Rhog preparou uma refeição simples, antes de
reencetar a caminhada. Fascinava-o a idéia de transformar-se no herói de seu povo,
livrando-o do impiedoso almirante arcônida. Mesmo que lhe custasse a própria vida...
Percorreu mais de sessenta quilômetros durante o dia, e sentiu que necessitaria de
um período de descanso mais prolongado. Senão sofreria uma estafa. Conseqüências da
inatividade: faltava agora o preparo físico.
Quando se dispôs a procurar uma caverna, já havia escurecido. Mas o trecho era
bastante desfavorável, e não aparecia nenhuma. Só rocha a pique, elevando-se a centenas
de metros de altura.
Rhog foi tateando a parede, na esperança de dar com alguma cavidade protetora que
lhe permitisse dormir, sem correr o risco de ser devorado pelos haracks. À sua direita, os
derradeiros reflexos do sol-posto se esvaíam no horizonte. As primeiras estrelas
brilhavam debilmente, e não havia lua.
Rhog estacou.
Aquilo não fora um ruído? Certamente não se tratava de nenhum engano. Um
rugido abafado, garras arranhando a pedra...? Imóvel, de costas contra a pedra, ficou à
escuta. A arma deslizou para sua mão quase automaticamente.
“Antes desperdiçar uma das preciosas cargas energéticas do que ser vitimado por
alguma fera carniceira”, pensou.
Reinava total silêncio, e a escuridão aumentava. Dentro em pouco, finda a passagem
do dia para a noite, a luminosidade aumentaria. Voga, o sol de Zalit, ficava quase no
centro da Via-láctea. Incontáveis estrelas constelavam o céu noturno, despendendo luz
suficiente para distinguir sombras vagas.
Não se ouvia o menor som. Portanto, devia realmente ter-se enganado.
Rhog seguiu adiante. A mão esquerda corria de leve sobre o paredão, incrivelmente
parelho. Nem sinal de caverna. Devia ter procurado abrigo para a noite mais cedo. Sabe-
se lá por quanto tempo ainda teria que continuar procurando agora?!
Quando a mão subitamente deixou de encontrar resistência, e tateou no vazio, quase
caiu. Transferiu o peso do corpo para a perna direita, conseguindo equilibrar-se.
O paredão sumira, para recomeçar cinco metros adiante, e prosseguir a perder de
vista. Mas ali havia uma abertura...
Rhog já nem esperava mais achar alguma caverna, ou pelo menos uma pequena
gruta. Ajeitou a mochila, e introduziu-se na estreita fenda. Logo percebeu que não era tão
estreita assim, e mais extensa do que esperara. O afastamento inicial, que era de quatro
metros entre as paredes laterais, crescia cada vez mais. Dali a instantes, não se via mais
parede alguma, apesar da claridade crescente.
Reconheceu então a vasta planície enclausurada entre as montanhas, rodeadas de
altos paredões rochosos. Erguendo a cabeça, viu o recorte circular do céu, recamado de
milhares de estrelas.
O vale media, aproximadamente, quinhentos metros de diâmetro.
E a pouca distância dele brilhava uma fogueira!
Devia arder dentro de uma caverna, pois podia distinguir apenas vultos imprecisos.
Rebeldes? Zalitas que se recusavam servir na guerra?
Rhog sentiu-se invadido por uma súbita esperança. Esquecendo toda a cautela,
encaminhou-se para o fogo crepitante. Sem dúvida, aquela turma achara ótimo
esconderijo! Ele próprio só dera com a entrada do vale por puro acaso.
A sua direita, sombras se destacavam das rochas. Pareceram-lhe familiares.
Regulares demais para serem confundidas com simples pedras.
E de repente compreendeu de que se tratava.
Veículos que transportavam mercadoria através do deserto, com evidente economia
sobre as dispendiosas tarifas aéreas!
Fora parar no acampamento de uma caravana.
“Uma caverna aqui, tão ao norte? O grande vale entre a cordilheira ainda fica a
cem quilômetros para o sul”, refletia Rhog. “Por que uma caravana se afastaria tanto
dele apenas para pernoitar?”
Havia algo de estranho com aquela caravana!
Porém precisava acautelar-se apenas contra os arcônidas, e nunca contra as
autoridades de Zalit. Se bem que, atualmente, nem estas mereciam confiança total.
Tinha de descobrir do que se tratava, e, para isso, só havia um meio.
Com a mão direita crispada em torno do cabo da pistola, esgueirou-se na direção da
fogueira, ainda semi-encoberta pelas saliências rochosas.
Uma ordem enérgica às suas costas, dada em voz alta, fê-lo estremecer e parar.
— Quieto, e mãos para cima, meu amigo! É perigoso demais aproximar-se
sorrateiramente da fogueira de um acampamento em plena noite, sem primeiro se
anunciar.
Lentamente, com muito cuidado, Rhog retirou a mão direita vazia do bolso, e
ergueu-a junto com a esquerda.
Alguém se aproximou dele pelas costas, tirando-lhe a pistola.
— Muito bem, amigo. E agora gostaríamos de saber quem é que anda passeando
pelo deserto durante a noite. Trate de ir preparando uma resposta plausível. Ande, venha
comigo!
Aos tropeções, Rhog caminhou para a caverna onde brilhava o fogo.
***
A cidade de Tagnor assemelhava-se a um campo de guerra. Por todo lado viam-se
patrulhas-robôs arcônidas. Quem não podia apresentar o certificado emitido pelas
comissões de alistamento era inevitavelmente detido. Poucos homens circulavam pelas
ruas. A maioria de transeuntes era composta de altas e esbeltas mulheres zalitas.
À direita da larga rua que levava ao palácio em forma de funil do Zarlt, ficava a
arena. Estava deserta e abandonada. Há muito tempo não se realizavam espetáculos nela.
No entanto, Garak esforçava-se visivelmente para arranjar animais selvagens e
gladiadores para os jogos.
Acabava de regressar de Larg, onde tratara de alguns assuntos que certamente
interessariam bastante o Almirante Calus. Inteiramente satisfeito consigo mesmo e com
Zalit, Garak dirigiu-se para seu esconderijo, nas catacumbas da arena. Examinou os
arredores cautelosamente antes de desaparecer no largo corredor em declive, entrada para
seu mundo subterrâneo.
Estava escuro, e teve que acender sua lanterna portátil, a fim de não errar a entrada.
Finalmente viu-se diante da porta secreta. Indício algum na rocha lisa revelava sua
existência. Porém, sob a pressão da mão espalmada, um painel de pedra deslizou para o
lado. Uma onda de luz envolveu Garak, enquanto a porta tornava a cerrar-se às suas
costas.
Encontrava-se num vasto recinto escavado na pedra, subdividido em nichos por
muretas baixas. Diversos zalitas aguardavam-no com expressão esperançosa.
— E então, Toffner...? Que foi que conseguiu?
O homem não falava o habitual idioma zalita, ligeira variação do arcônida, e sim o
inglês. De repente Garak passou a chamar-se Toffner. E Toffner era agente cósmico da
Terra.
— Tudo bem até aqui, major. Nosso amigo em Larg, Hhokga, organizou uma
caravana que cruzara o deserto para chegar até a capital. Com nossos passes, teve
facilidade em recrutar voluntários. A caravana partiu anteontem, e deve alcançar a
caverna hoje. Teve de seguir pelo vale e, depois cem quilômetros para o norte, desviar-se.
Espera por nós no pequeno vale entre as montanhas.
O Major Rosberg, especialista em transmissores de matéria do serviço de defesa do
Império Solar, acenou, satisfeito.
— Ótimo! Minha mensagem hiper-radiofônica para a Califórnia seguiu ontem. O
cruzador entregará o material pedido amanhã de manhã, hora da Terra, que será,
casualmente, idêntica à hora de Zalit.
Com estas poucas palavras, o major sintetizava um amplo programa, não desprovido
de riscos. Apesar de a Califórnia emergir da transição apenas por um minuto — prazo
mais do que suficiente para ligar seus cinco transmissores de matéria e despachar o
material — este único minuto podia ser catastrófico. O espaço em torno de Zalit estava
bloqueado pelas naves arcônidas.
No fundo do recinto subterrâneo, “algo” se moveu e chegou para perto. Este “algo”
media um metro de altura, possuía pêlo marrom, tinha a aparência de um enorme rato,
além de uma larga cauda de castor. O ente postou-se diante dos dois homens, piando com
voz aguda:
— Então deve estar na hora de ligar a estação receptora do transmissor na caverna,
não é?
O Major Rosberg e Toffner acenaram simultaneamente.
— Certo, Gucky — confirmou Rosberg ao estranho ser que falava tão corretamente
o inglês. — Porém podemos esperar até amanhã cedo. Então você poderá saltar em
companhia dos três homens.
Referia-se às qualidades teleportadoras de Gucky. O rato-castor era ainda telepata e
telecineta. A rigor, vinha a ser o mais versátil mutante do Império Solar, fato do qual se
envaidecia desmedidamente.
Gucky empinou as enormes orelhas, exibiu o dente roedor num sorriso amistoso, e
voltou com seu andar bamboleante para o canto do recinto subterrâneo. Toffner
acompanhou-o com um olhar divertido.
— Perderíamos um bocado de tempo se não tivéssemos Gucky — constatou. — E
tudo seria muito mais arriscado.
— Rhodan devia saber por que deixou Gucky conosco — comentou Rosberg,
aproximando-se de uma mesa, com Toffner. Sentaram-se no banco tosco. — Betty Toufry
acha que nos próximos dias os zalitas recrutados serão transportados para Árcon. Espero
que desta vez eles possam ir também.
Falava de Rhodan e de seus cento e cinqüenta homens. Disfarçados de zalitas,
encontravam-se no centro de recrutamento dos arcônidas. Tinham conseguido apoderar-
se dos postos-chave. E agora aguardavam impacientemente o momento de serem levados
para Árcon com os demais zalitas — estes, aliás, muito a contragosto. O transporte
iminente seria uma verdadeira Tróia para Árcon, pois os terranos seriam os guerreiros
ocultos no ventre do cavalo de pau.
— Por que não iriam?
— Hoje levaram cinqüenta mil, Toffner. Rhodan e nossa gente não estavam entre
eles. Quantos zalitas você pensa que os arcônidas já recrutaram?
Como Toffner calasse, Rosberg mudou de assunto, e perguntou:
— Que diz Hhokga de sua sugestão?
— Procurei-o assim que cheguei a Larg. Primeiro mostrou-se cético, porém
convenceu-se diante de nossos excelentes passes, que trazem até a assinatura de Calus. A
caravana chega à caverna hoje; amanhã já poderá tomar o caminho de Tagnor. Podemos
contar com sua chegada para daqui a três dias.
— É o momento crítico! — disse o Major Rosberg. — Temos de estar com ela,
antes que seja detida por robôs na entrada da cidade. Talvez lancemos mão de um oficial
arcônida, para auxiliar-nos. Temos os meios necessários para administrar-lhe um
hipnobloqueio. Então ele fará apenas o que lhe ordenarmos. Podíamos até escolher aquele
indivíduo pré-preparado que encontrou aí fora no corredor há alguns dias. Procure
localizá-lo em Tagnor amanhã, e traga-o para cá. Com a ajuda dele, introduziremos a
caravana na cidade, sem qualquer dificuldade. Sob a proteção da noite, vai ser brincadeira
trazê-la para as catacumbas.
Toffner replicou, pensativo:
— Vivi três anos em Zalit, como único terrano; apesar de sentir-me meio isolado,
estava em relativa segurança. Agora não estou mais só. Mas não pense que me sinto mais
seguro.
— O cérebro-robô, regente do império arcônida, trama o aniquilamento da Terra,
Toffner. Rhodan pretende adiantar-se a ele, executando um ataque de surpresa. É a única
oportunidade que tem para salvar a Terra.
— Sei disso... — concordou Toffner. Porém, durante o resto do dia, conservou-se
bastante calado.
***
Na caverna ardia realmente uma fogueira.
À luz bruxuleante, Rhog distinguiu nove zalitas. Alguns deles repousavam sobre
cobertores junto à parede, e ergueram-se ao vê-lo tropeçar na entrada e parar. Outros,
sentados diante do fogo, fitaram-no com curiosidade.
— Vejam só o que achei aí fora, no escuro! — disse o homem que trazia Rhog para
dentro da caverna. — Quer fazer-me crer que encontrou o vale por acaso. E está armado,
ainda por cima, com uma pistola arcônida. Bastante suspeito, não acham?
Um zalita barbado levantou-se, acercando-se vagarosamente do prisioneiro.
— Quem é você? — indagou.
Rhog olhou em torno cautelosamente antes de responder. Não conseguia
compreender em que espécie de situação se metera por acaso. Aquela gente
evidentemente não integrava nenhuma caravana normal. No centro da ampla caverna via-
se um objeto estranho, composto de duas partes: um bloco metálico aparentemente
pesado e maciço, e uma gaiola. Parecia realmente uma gaiola, mas Rhog compreendeu
logo que devia tratar-se de outra coisa. Bastava olhar os brilhantes condutores de energia
entre bloco e gaiola para chegar a tal conclusão.
— Sou Rhog, de Larg — disse, por fim. — Meu veículo sofreu uma pane, e andei
vinte quilômetros até achar este vale. Não compreendo...
— Larg? Nós viemos de Larg, e forçosamente o encontraríamos no caminho.
— Podemos ter-nos desencontrado.
— Hum, é possível.
O barbudo parecia refletir. Depois estendeu a mão.
— Tem documentos?
Rhog hesitou. Estranho pedirem-lhe os documentos... Mas deviam ter suas razões, e
ele não fazia questão de despertar mais interesse e desconfiança. Enfiando a mão no
bolso, tirou o passe. O barbudo apanhou-o, e examinou detidamente o papel. Segurou-o
contra a luz do fogo, sacudiu repetidamente a cabeça, e devolveu-o a Rhog.
— Por que alteraram a data do nascimento, Rhog?
Rhog assustou-se. Agora tudo estava perdido, caso a caravana tivesse ligação com
os arcônidas. E mentir seria inútil. No entanto, nada o obrigava a revelar a finalidade de
sua ida a Tagnor.
— Para evitar o recrutamento — replicou ele, com a maior serenidade que
conseguiu aparentar. — Passando por velho, me deixam em paz.
— Bem possível — concordou o barbudo, tornando a sentar-se próximo do fogo. —
Venha cá, vamos conversar mais um pouco.
O homem que aprisionara Rhog saiu da caverna, a fim de prosseguir em sua ronda.
Rhog tomou lugar ao lado do barbudo. Os demais zalitas deitaram-se outra vez,
como se o assunto não lhes dissesse respeito. Apenas três homens permaneceram com
ele, em torno da fogueira. Fitando as chamas crepitantes, pareciam esperar que o barbudo
tomasse a iniciativa. Talvez fosse o chefe do grupo.
— Fale a verdade, faça o favor! — disse o barbudo, em voz seca e autoritária.
Rhog percebeu que não lhe restava outra escolha, caso não quisesse complicar
desnecessariamente sua situação.
— Posso confiar em vocês?
— Dou-lhe minha palavra — declarou seu interlocutor.
Rhog fitou-o nos olhos, e sentiu que podia acreditar no barbudo. Não, não se tratava
de nenhum delator.
— Estou fugindo dos arcônidas. E só!
— Conforme pensei, amigo. No entanto, pergunto-me por que vai de Larg para
Tagnor. Ali o perigo é muito maior.
— Em Tagnor possuo amigos; em Larg, não. Posso esconder-me em casa deles.
Algum dia os arcônidas terão soldados suficientes, e deixarão Zalit novamente. Posso
fazer uma pergunta também?
O barbudo concordou com um aceno.
— Quem são vocês? Apenas uma caravana comum? Por que não receiam ser detidos
pelos arcônidas, e serem forçados a servir na frota espacial?
— Quem diz que não corremos este risco?
— Dirigem-se a Tagnor?
— Sim, vamos para Tagnor.
— Pois então, correm tal risco! — constatou Rhog. — Ou julgam que os arcônidas
deixarão de perceber um tão numeroso grupo de homens sadios?
O barbudo refletiu por instantes, e concordou:
— Claro que perceberão, porém temos ótimos documentos. Melhores do que o seu,
por exemplo. Atestam que já passamos pela comissão de recrutamento, e fomos
considerados inaptos. Nada pode nos acontecer.
Rhog inclinou-se para a frente, interessado.
— Quer dizer que pertencem igualmente a um movimento de resistência? — em
seus olhos brilhou uma centelha de ânimo. Não estava mais sozinho. — Vocês estão
acobertados por uma organização que está em condições de fornecer papéis falsos?
O barbudo sacudiu a cabeça, remexeu no bolso e tirou um documento repetidamente
carimbado.
— Esta assinatura aqui... — e apontou para um nome abaixo do carimbo principal
— ...não é falsa. É do Almirante Calus, feita por seu próprio punho.
— Não compreendo... — disse Rhog, totalmente confuso.
— Nem precisa compreender — tranqüilizou-o o zalita barbudo. — O importante é
que seguirá para Tagnor em nossa companhia, amanhã. No entanto, ainda depende de três
homens que se reunirão conosco aqui, amanhã. Caso não oponham objeções, poderá
viajar com a caravana.
— Três homens? Quem são eles...?
— Não devia fazer tantas perguntas — censurou delicadamente o barbudo. — Quem
muito pergunta, muita mentira escuta. E agora procure um canto para dormir. O dia de
amanhã será cansativo. Temos que carregar nossos veículos, e você poderá ajudar.
Rhog examinou a caverna. A não ser a esquisita armação, semelhante a uma gaiola,
nada via para ser carregado. E lá fora no escuro vira apenas veículos. Se estavam vazios e
descarregados, onde estaria a carga a transportar?
Algo não fazia sentido em tudo aquilo. Mas o quê? E por que devia preocupar-se
com isso?
O barbudo parecia adivinhar suas dúvidas, e sorriu.
— Não quebre a cabeça, meu amigo. Vai precisar dela ainda, especialmente amanhã.
Pois para ficar espantado, a gente precisa ter cabeça.
Rhog reconheceu a irrespondível lógica daquele argumento, e procurou um lugar
para dormir no chão rochoso.
Fosse qual fosse a aventura que o esperava, pelo menos estava seguro na caverna, e
nenhum harack viria despedaçá-lo.
***
Aproximadamente à mesma hora, seis homens sentados em torno de uma mesa, num
recinto bem iluminado, conversavam em voz baixa. As palavras murmuradas se tornavam
inaudíveis a uma pessoa que estivesse a dois metros. A cautela era justificada, pois o
recinto fazia parte de um edifício situado no espaçoporto de Tagnor. E ambos se
encontravam em mãos arcônidas.
Todos tinham aparência de zalitas. No entanto eram terranos.
Os cabelos de Perry Rhodan apresentavam reflexos acobreados à luz da lâmpada.
Sua pele era a de um índio. Os bioquímicos de seu comando especial haviam executado
tarefa de mestre. Rhodan e seus companheiros viraram autênticos representantes da
linhagem arcônida, pois os zalitas descendiam de antigos colonizadores do Império. E
era, primordialmente, graças aos conhecimentos de seus bioquímicos que Rhodan podia
misturar-se agora com os zalitas.
À sua direita, achava-se Reginald Bell; a despeito do físico um tanto atarracado, e
da estatura baixa, passava por verdadeiro zalita. À esquerda, encontrava-se o Capitão
Hubert Gorlat. Era agora um capitão zalita, que se apresentara voluntariamente para
servir na frota do regente-robô.
Os outros três homens eram o teleportador africano Ras Tschubai, o telepata John
Marshall e o professor Eric Manoli.
Rhodan dizia no momento:
— ...não pode demorar muito. O regente faz muita questão de que os soldados sejam
treinados, e não os deixaria ficar ociosos em Zalit. No próximo transporte, no máximo na
segunda leva, iremos com certeza.
— É chato Calus não poder fazer nada — comentou Bell, piscando com os olhos. —
Em todas as nossas ações, ele nos ajudou.
Rhodan lançou-lhe um olhar de censura. Totalmente sem razão, aliás, pois se um
único de seus numerosos segredos fosse revelado, estariam perdidos. Porém o segredo
sobre a personalidade de Calus era o maior e o mais valioso que possuíam.
— Osega não pode despertar suspeitas — sussurrou Rhodan. — É nossa figura-
chave nesta partida de xadrez galáctico. O rei, por assim dizer, se sofrer xeque-mate, fará
nossa missão fracassar.
— Estamos sem contato com ele desde ontem — objetou Gorlat. — Sua fala de hoje
na televisão foi áspera. Calou fundo nos ânimos.
— Osega representa muito bem o papel de almirante arcônida! — concordou
Rhodan. — O verdadeiro Calus deve estar suando sangue debaixo da arena, neste tempo.
Aposto que jamais lhe passou pela cabeça a idéia de ser substituído por um sósia.
— Não passaria pela cabeça de ninguém — disse Bell. — Nem zalitas, nem
arcônidas. O que é ótimo...
— Algum dia os zalitas vão compreender uma porção de coisas, depois de saberem
disso — declarou Gorlat. — Acho que é hora de ir, Ras.
Rhodan olhou para o relógio e acenou.
— De fato, chegou a hora combinada. Pode ir visitar Calus agora, Ras. Gostaria de
saber quando seremos transportados. A comunicação não pode ficar interrompida. Ele
deve estar só em seu quarto agora, no palácio do Zarlt. Bem... você está mais do que
familiarizado com o local.
O teleportador ergueu-se.
— Mais alguma instrução, Sir? — perguntou a Rhodan.
— Não, nenhuma. Ou melhor, talvez possa perguntar a Osega se o regente continua
mantendo sigilo acerca de seus planos. Afinal, devia abrir-se ao menos com os oficiais
dirigentes de sua frota. Isso é tudo.
Ras Tschubai acenou, procurou um canto da peça, e concentrou-se no salto. Os
demais observavam-no atentamente. Sempre se sentiam fascinados pelo espetáculo
proporcionado pelo salto de um teleportador. Para Ras, o processo nada tinha de
impossível, porque conhecia bem seu alvo. Imaginou o quarto de Calus, visualizando-o
com tal nitidez que parecia ao alcance da mão, enquanto se desmaterializava. E quase no
mesmo instante, a visão se tornou realidade. Paredes, mesa, cama, o próprio Calus
materializaram-se diante dele. Chegara, e no preciso segundo em que desaparecia do raio
de visão de Rhodan.
Calus estremeceu ligeiramente, mas depois sorriu. Os bioquímicos tinham
transformado o sargento terrano Roger Osega em autêntico arcônida. Pessoa alguma o
reconheceria debaixo daquela máscara. O verdadeiro Calus passara por um susto mortal
na ocasião em que defrontara-se com seu sósia, antes de ser seqüestrado e encerrado nas
catacumbas.
— É pontual, Ras — disse Osega, consultando o relógio. — No entanto, podia ter
poupado o esforço. Nada de novo.
— O transporte? Quando vai?
— Mas que ânsia de chegar a Árcon! E nem sabem o que os espera lá. Talvez
venham a lamentar esta pressa algum dia.
— Ora, deixe de dizer tolices! — respondeu o africano, em tom rude. — O
empreendimento está em andamento, e nada seria capaz de detê-lo agora. Sabe disso tão
bem quanto eu. Que temos de novo, além disso? O chefe gostaria de saber se o regente
deixou escapar alguma informação.
— Não, nenhuma, Ras. Nos próximos dias devem chegar numerosas naves
cargueiras, a fim de conduzir os recrutas para Árcon. As listas virão com elas. Não tenho
influência sobre as relações. Nosso grupo deve seguir ainda esta semana, pelo que sei.
— Obrigado — replicou Ras, sorrindo satisfeito. — Alguma coisa, pelo menos.
Aliás, os passes com sua assinatura obram milagres; oh, desculpe! Afinal, a assinatura é
do verdadeiro Calus. Ele trabalha espontaneamente, sem se opor a nada. O Dr. Linkmann
deve ter-lhe administrado um medicamento bem eficiente. Calus assinaria até sua própria
sentença de morte no atual estado.
— Sem dúvida! — concordou Osega. — E eu seria o único Calus.
O africano caiu na gargalhada.
— Que bem lhe fica a dignidade de almirante, sargento! — caçoou. — Dá licença
de retirar-me? Até amanhã, à mesma hora. Passe bem, Almirante Calus, nobre arcônida
por obra e graça do cérebro-robô...
E o falso Calus, que ajudava a aplainar o caminho de Rhodan para Árcon, estava
novamente sozinho. Era um cordeiro em pele de lobo... pelo menos para os zalitas, que
nem suspeitavam de que seu maior inimigo era na realidade seu melhor amigo.
2

O novo dia raiava ao leste. Imenso e rubro, o sol subiu no horizonte, tomando conta
do céu claro. Dentro da caverna, o fogo se extinguira, exigindo que o vigia reavivasse as
brasas. Logo após, a água ferveu na caçarola, e o estimulante odor do kagarak invadiu o
ambiente.
Rhog só acordou quando foi sacudido.
— De pé, meu amigo! — disse o barbudo, indicando o fogo. — Desjejum!
Rhog sentiu alívio. Sabia que estava em segurança, e que chegaria são e salvo a
Tagnor. Só faltava lhe devolverem a pistola de raios. Sem arma, não haveria meio de
realizar seu plano.
No decorrer do desjejum, Rhog não percebeu sinal algum da partida iminente.
Onde estariam as mercadorias que deviam carregar? Haveria assim tanto tempo
disponível, pra não apressarem a refeição?
Pensou nos três homens ainda por chegar. De onde viriam, ali no meio do deserto
entre as duas cidades?
Partilharam a comida com ele, para que não precisasse sacrificar suas parcas
provisões. Aliás, todos o tratavam com extrema amabilidade. Atitude que não se
modificou quando o barbudo lhe fez o convite de acompanhá-lo numa volta pelo
acampamento, após terem comido. Os demais homens permaneceram na caverna.
Dirigiram-se para os veículos estacionados, cobertos com lonas. Pelas marcas no
chão, Rhog reconheceu que estavam ali há menos de um dia. Portanto, as declarações do
barbudo eram corretas. Porém os três homens anunciados continuavam a despertar o
interesse de Rhog.
— Quando chegam os três homens de que falou? — perguntou. — Virão num
planador?
O barbudo olhou para o relógio.
— Compreendo sua curiosidade, mas não posso dizer-lhe nada. E, para ser franco,
sei tanto quanto você. Mandaram-me apenas aguardar os três homens aqui nesta caverna.
Viu, sem dúvida, a esquisita máquina guardada lá dentro, não? Sabe o que é aquilo?
— Não tenho a menor idéia — disse Rhog, esperando ver sua curiosidade ser
satisfeita, finalmente. Porém sofreu nova decepção.
— Também não sei, Rhog. Avisaram-nos de que ela estaria aqui. E que traria os três
homens, e as mercadorias que deverão ser levadas a Tagnor.
— Virão pela máquina? — perguntou Rhog, incrédulo. — Como é que alguém pode
viajar numa máquina firmemente presa no piso da caverna?
O barbudo sorriu.
— Pagaram-me bem para fazer o transporte, e além disso me forneceram
documentos de vital importância para a sobrevivência. Por isso não faço tantas perguntas
como você. Quando retornar a Larg, poderei aguardar sossegadamente a retirada dos
arcônidas. Portanto, para que preocupar-me com a tal máquina?
Rhog percebeu que o empreendimento era patrocinado por uma organização bem
maior do que supusera de início. Devia considerar-se feliz por ter topado com o grupo.
Porém decidiu não revelar a ninguém seus planos pessoais.
— Minha arma? — indagou. — Será devolvida quando atingirmos Tagnor?
O barbudo olhou-o de esguelha.
— Para que precisa dela?
— Para defender-me, mais nada. Meus papéis não são tão bons quanto os de vocês.
Quero morrer lutando, caso os arcônidas me peguem, e não ser fuzilado por eles como
prisioneiro indefeso. Pode compreender isso?
— Sim, posso compreendê-lo — concordou o barbudo, enfiando a mão no bolso.
Retirou-a com a pequena pistola de raios e passou-a a Rhog. — Aqui está ela. Mas nada
de tolices, entendido? Como vê, confio em você.
— Não somos todos zalitas, e, como tal, aliados?
O barbudo acenou. Tinham se distanciado quase duzentos metros da entrada da
caverna, e estavam bem perto da estreita fenda que levava ao deserto. Rhog pensou
consigo mesmo que os tratores de esteira teriam dificuldade em passar por ela.
Um grito prolongado ecoou pelas paredes rochosas. O barbudo estacou
abruptamente, e olhou para trás. Diante da caverna, um homem lhes acenava
freneticamente com os braços. O gesto era óbvio.
— Vamos, Rhog. Creio que nossos amigos chegaram.
Rhog seguiu-o sem uma palavra. Não entendia coisa alguma. Como é que os três
homens tinham ido parar na caverna sem passar por eles?
Três zalitas desconhecidos já estavam à espera do chefe da caravana. A despeito da
aparência zalita, eram originários da Terra, e pertenciam a um dos comandos especiais de
Rhodan. Gucky os teleportara individualmente até ali. Tinham surgido repentinamente no
meio dos homens abrigados na caverna, deixando-os aterrorizados. Um por um,
materializaram-se do nada. Ninguém chegou a ver Gucky, que tornava a saltar de volta
para Tagnor, logo após ter depositado a respectiva “carga”.
O barbudo estendeu-lhe a mão.
— Vim a mando de Hhokga, a fim de escoltá-los para Tagnor — disse ele, dando a
senha combinada. — Onde estão os aparelhos que devemos transportar?
O sargento Miller retribuiu o aperto de mão.
— Sou Thar, amigo. Estes são meus companheiros, Regul e Prezl — apontou para
os cadetes Rodolfo e Kranolte. — Dentro de meia hora, segundo espero, podemos dar
início ao carregamento.
O barbudo fitou-o espantado. Miller acenou.
— Sim, ouviu bem, mas parece desconhecer o que seja um transmissor de matéria.
No entanto, são bastante comuns em vários mundos. Lá na caverna encontra-se um
exemplar deles, pronto para receber. A função deveria ter início dentro de alguns
minutos...
Não existiam transmissores de matéria em Zalit, mas sabia-se de sua existência. O
barbudo começou a compreender que gente poderosa se encontrava por trás de Hhokga.
Transmissores de matéria...!
Alguém saiu correndo da caverna, aos gritos:
— Bruxaria! O demônio está solto...! A máquina...!
O sargento Miller sorriu e olhou para o relógio.
— Danados de pontuais, nossos amigos. No minuto cravado!
Passando pelo barbudo, encaminhou-se para a caverna. Seus dois companheiros
seguiram-no.
Rhog apalpou o metal duro da arma no bolso. Transmissores de matéria ou não —
sabia o que devia fazer. Daqui a três dias chegaria sua vez...
***
O General Deringhouse verificou que tudo estava em ordem.
Hora certa, coordenadas de salto, velocidade — tudo conforme o computador
calculara. Faltava apenas acionar a derradeira alavanca. E esta tarefa fora reservada a
Deringhouse.
A Califórnia captara as mensagens radiofônicas de Zalit. O material pedido já se
encontrava nas cabinas dos cinco transmissores dispostos no porão de carga da
Califórnia. Também ali um aperto de botão seria o suficiente — assim que
materializassem sobre Zalit.
O cruzador ligeiro saltou e desapareceu do Universo normal; porém todo o processo
de saltar através do hiperespaço durou apenas frações de segundo. Quando o General
Deringhouse tornou a avistar o espaço que o rodeava, muitos anos-luz o distanciavam do
ponto onde estivera há alguns segundos.
A frota de bloqueio dos arcônidas não dormia, mas faltou-lhe agilidade para obstar
Deringhouse no cumprimento da tarefa. Ainda enquanto a nave esférica entrava, em
alucinante velocidade, nas camadas superiores da atmosfera de Zalit, os cinco
transmissores começaram a trabalhar. De um segundo para outro, as mercadorias
acumuladas em seu interior desapareceram. Simultaneamente, a Califórnia tornou a
disparar espaço a fora, em direção do ponto de transição previamente determinado pelo
computador.
Quando as naves arcônidas perseguidoras abriram fogo, os robôs miravam apenas
contra o vazio. A Califórnia desmaterializara, com os neutralizadores de freqüência
ligados. Sem ter deixado qualquer pista, nunca poderia ser detectada.
O regente de Árcon recebeu apenas a lacônica comunicação de que uma nave de
identidade ignorada havia sido avistada e perseguida.
Na caverna de Zalit, entretanto, o equipamento remetido chegou ao receptor em
perfeitas condições. O processo fez o zalita pensar em bruxaria e artes do diabo!
De pé na entrada da caverna, Rhog contemplava o espetáculo boquiaberto.
A porta aberta da cabina despejava caixas e pacotes, como se mãos invisíveis as
empurrassem para fora. Os três homens desconhecidos apreciavam sem fazer nada. Um
deles exibia um largo sorriso. O barbudo preferiu calar-se.
Por fim, o porta-voz do grupo recém-chegado voltou-se.
— Podem começar a carregar. Estejam de volta dentro de exatamente uma semana,
ou enviem outros homens. Vamos precisar de uma segunda caravana.
O barbudo fez sinal a seus homens. Eles puseram mãos à obra.
— Daqui a uma semana?
Miller acenou.
— Sim, segunda etapa, meu caro. Serão bem pagos pelo trabalho.
Enquanto o barbudo dirigia o embarque, os três terranos se retiraram para um canto
da caverna.
— Não adianta — disse Miller aos dois subordinados. — A caravana não vai dar
conta do recado. Temos de ficar aqui, e nos revezar na guarda. É melhor do que ir com
Rhodan para Árcon.
— Pois eu preferiria a aventura — declarou o cadete Kranolte, sentando com um
gemido sobre uma pedra. Esta evidentemente já fora usada com finalidade idêntica por
outros. — Ficar empoleirado aqui como a galinha cega do provérbio.
— Cada qual em seu lugar — disse o cadete Rodolfo, maliciosamente. — Talvez
você acerte com o famoso grão.
— Que tal de grão é este? — perguntou Kranolte, desconfiado. Não era muito
versado em provérbios. — E o que faria eu com ele?
O sargento Miller sabia que tinha se desencadeado um daqueles intermináveis
debates, durante os quais muito se falava mas pouco se dizia. Antes que pudesse
interrompê-los, Rodolfo disse:
— Uma galinha sem grão? Mas Kranolte...!
— Faça o favor de usar meu nome de guerra. Chamo-me Prezl!
— Não me soa mais atraente do que o verdadeiro — observou Rodolfo,
sarcasticamente.
— Calem a boca! — gritou Miller, encerrando a discussão. — Depois teremos uma
semana inteirinha para bater papo.
Aguardem pelo menos até nossos amigos partirem com a caravana.
Repentinamente Rodolfo lembrou-se de algo.
— Perceberam, aliás, que o grupo conta com onze zalitas, e não dez, conforme nos
disse Toffner? Quem será o décimo primeiro?
— Sabe contar muito bem, Rodolfo — louvou Miller. — Mas dez ou onze, que bem
nos importa? Algum homem desejoso de viajar até Tagnor com a caravana... Hhokga
deve ter tido a cautela de admitir apenas gente de confiança no grupo. Acho que não
devemos preocupar-nos com isso.
No fundo, ele tinha razão. Mas se o sargento Miller tivesse podido adivinhar a
desgraça resultante de seu descaso, não falaria com tanta tranqüilidade.
Porém nas circunstâncias dadas, a caravana se pôs em marcha três horas depois,
deixando os três terranos na caverna. Ainda havia nela boa quantidade de material.
E Rhog seguiu com a caravana para Tagnor.
***
Dois dias mais tarde, enquanto a caravana ainda fazia a travessia do deserto, uma
frota de carga aterrissou no espaçoporto de Tagnor. Seu comandante trazia o encargo de
levar para Árcon todos os “voluntários” ainda à espera em Zalit. A hora decisiva chegara
para Rhodan.
Em colaboração com seu pessoal, conseguira ocupar ultimamente muitas posições-
chave. Os mutantes haviam desempenhado papel destacado nesta excelente operação. A
maioria dos oficiais arcônidas sofrera hipnobloqueio, e já não representavam perigo.
Além disso, o bloqueio fora condicionado de maneira a desaparecer espontaneamente
assim que o grupo de terranos pousasse em algum planeta do sol Árcon.
No entanto, fora impossível prever que novos oficiais, com ordens diversas, viessem
com a frota de carga. Não haveria tempo para influenciar igualmente estes arcônidas.
Tinham sido destacados pelo regente, e vinham munidos com suas instruções. Não havia
meio de rebelar-se contra estas instruções, sem despertar suspeitas. O próprio Almirante
Calus era impotente no caso. E, nestas condições, de pouco valia a Rhodan o fato de que
Calus era na verdade o sargento Osega.
A julgar pelos preparativos em andamento, era de supor que o transporte dos zalitas
seria iniciado naquele mesmo dia. Os oficiais recém-chegados, arcônidas dos mais ativos,
começaram imediatamente a fazer a distribuição dos recrutas, não admitindo que
ninguém influísse em suas decisões. Porém, com muita habilidade, Rhodan conseguiu
que seus cento e cinqüenta homens ficassem num só bloco, e fossem alojados num
cargueiro esférico. No entanto, não pôde evitar que mais três mil zalitas autênticos
viajassem na mesma nave. Portanto, continuava a possibilidade de serem descobertos.
Até o embarque, ainda lhes restavam algumas horas. O equipamento tinha sido
completado, e os recrutas aguardavam nos alojamentos a ordem de ir para bordo do
cargueiro.
Os ânimos estavam um tanto deprimidos. Diante deles estava a grande incerteza.
Ninguém saberia dizer se por acaso o cérebro-robô já tomara conhecimento do ardil
planejado, e os atraía para uma armadilha fatal. Certo, as máscaras eram perfeitas. Por
obra de seus bioquímicos, Rhodan e seus homens eram agora zalitas genuínos; seus
papéis estavam em ordem, e falavam sem o menor sotaque. No entanto, um acidente
qualquer poderia delatá-los.
Rhodan acenou para o Capitão Hubert Gorlat.
— Tome o meu lugar, capitão. Ainda pretendo fazer uma breve visita a Rosberg, em
companhia de Ras. Marshall, mantenha-se em contato telepático constante comigo.
Avise-me assim que a coisa começar por aqui, e voltarei instantaneamente.
O teleportador africano segurou a mão de Rhodan, a fim de estabelecer o contato
físico indispensável a um salto daquela natureza. Com um gesto, John Marshall deu a
entender que compreendera a ordem de Rhodan. Gorlat evidenciava na fisionomia sua
preocupação. Apesar de ser pouco provável, a aparição de algum arcônida no recinto
onde esperavam, não era de todo impossível. Suspirou aliviado ao ver Ras Tschubai
desaparecer com Rhodan.
Sob a arena, no esconderijo subterrâneo das catacumbas, a visita de Rhodan
provocou grande alegria, apesar de representar a despedida definitiva. Gucky tentou mais
uma vez, inutilmente, fazer o amigo mudar de opinião. Queria, por força, acompanhá-lo.
Mas Rhodan foi inflexível.
— Fora de cogitação, Gucky! Nem mesmo como animal doméstico! Os zalitas têm
permissão apenas para levar alguns artigos de uso pessoal. Lembre-se também de que
você não é totalmente desconhecido para alguns arcônidas. Caso tivesse desistido, em
ocasiões passadas, de querer estar sempre em primeiro plano, o reconhecimento seria
menos provável. Mas assim... Além disso, seus serviços vão ser muito necessários aqui.
Que seria do Major Rosberg sem você?
— Realmente, não podemos passar sem um teleportador — confirmou o major,
gravemente. — Jamais poderíamos ter enviado o sargento Miller e seus dois
acompanhantes para a caverna, se não contássemos com Gucky.
— Viu? — disse Rhodan, sorrindo encorajadoramente para o rato-castor.
Depois mudou de assunto.
— Ficaremos fora de contato, daqui por diante. Os arcônidas não nos proibiram o
uso de nossos relógios, portanto levarei comigo o minúsculo transmissor de impulsos
embutido na pulseira. Em caso de extrema necessidade, poderemos comunicar-nos por
meio dele. Devido ao risco de uma possível detecção, devemos evitar ao máximo tal
contato; porém é tranqüilizador para ambas as partes saber que existe a possibilidade de
uma troca de mensagens. A freqüência é a habitual. Bem, a rigor, é tudo o que eu tinha a
dizer. Como foi a ação da Califórnia?
— Conseguiram depositar o material pedido na caverna anteontem, e escapar
incólumes. Toffner organizou a caravana, que deve chegar aqui amanhã. Enviaremos um
oficial ao encontro dela, para que possa entrar na cidade sem controles adicionais. Pode
ficar tranqüilo, pois, Sir.
— É o que desejo — replicou Rhodan. — Creio que seguiremos para Árcon ainda
hoje. Boa sorte, Major Rosberg. Confio no senhor!
— Boa sorte, igualmente, Sir! Que todos retornem a salvo.
— Não esqueça de dar lembranças minhas ao cérebro-robô. E ele que se dê por
satisfeito por eu não poder ter ido junto com vocês! — na voz de Gucky percebia-se
nitidamente sua irritação. Parecia responsabilizar pessoalmente o regente por ter que ficar
em Zalit. — Pouco a pouco vou me habituando a servir na retaguarda.
— Sabe lá quanta coisa ainda pode vir a acontecer na retaguarda — replicou
Rhodan, displicentemente, sem suspeitar que suas palavras eram proféticas. — Saltemos,
Ras. O pessoal nos espera.
Acenou mais uma vez para os presentes, antes de segurar a mão do teleportador, e
dar o sinal para a partida.
Gucky ficou olhando demoradamente para o ponto no qual os dois homens
desmaterializaram-se. Depois voltou-se bruscamente, e foi para seu canto. No que lhe
dizia respeito, a operação “Destruir Árcon” estava encerrada.
***
Mas ela mal começara! Oficiais e robôs arcônidas — ainda não reprogramados
secretamente por especialistas de Rhodan — comboiaram os zalitas para as naves que os
transportariam para Árcon. Os homens do grupo suicida não se sentiam nada bem em seu
disfarce zalita, apesar de não precisarem recear uma descoberta iminente.
Antes de entrar na nave, cumpria exibir mais uma vez os passes. Os nomes eram
conferidos numa lista. Medida esta que mal poderia preocupar Rhodan e sua gente. Os
passes eram trabalhos precisos de técnicos terranos.
Porém permanecer juntos dali por diante seria mais difícil. Cada alojamento
comportava cem homens. Então, o grupo dos 150 foi dividido. Acompanhado por 49
terranos, Rhodan entrou num compartimento. Durante as próximas horas, não haveria
possibilidade de conversarem livremente. Podia existir algum espião ou delator entre
eles, pronto a levar aos arcônidas qualquer palavrinha suspeita, a fim de amenizar a
própria sina...
Atlan teve mais sorte. Ficou no compartimento vizinho, com noventa e nove
terranos. Com isso, podiam conversar em voz baixa, sem o perigo de serem escutados.
Como John Marshall fazia parte do grupo, estava sempre a par do que se passava com
Rhodan; este, por sua vez, possuía capacidade telepática suficiente para compreender o
sentido das mensagens de Marshall.
Portanto, a separação não implicava em interrupção das comunicações.
No entanto, nenhum deles podia constatar o que se passava lá fora. O que, porém,
não lhes parecia tão importante no momento.
Três horas após, passos apressados no corredor denotavam o início dos preparativos
para a decolagem. John Marshall informou telepaticamente a Rhodan que o comandante
da nave tivera uma derradeira entrevista com o Almirante Calus, transmitindo-lhe a
ordem do regente de recrutar nas semanas vindouras novo contingentes de zalitas — à
força, caso fosse necessário. E Calus divulgaria as novas disposições em seu discurso
diário.
Dez minutos depois, levantavam vôo.
A pressão foi devidamente compensada, e não sentiram o efeito da tremenda
aceleração. Rhodan verificou que os zalitas aparentavam estar conformados com seu
irremediável destino. Isolados ou em grupos, recostavam-se nas paredes, com olhar
ausente. Certamente já se viam a bordo de alguma nave de guerra, rumando
vertiginosamente ao encontro de um feroz inimigo que os esperava em lugar ignorado.
De boa vontade, Rhodan lhes diria palavras de conforto, porém seria por demais
perigoso. Ninguém devia saber que era terrano — membro justamente da raça que Árcon
pretendia combater.
A transição durou apenas segundos, e retomaram a velocidade normal. Da central de
comando já se devia avistar o sistema Árcon, centro de um poderoso reino estelar que se
precipitava ao encontro de seu imutável destino. Os três planetas principais contornavam
seu sol em órbita idêntica, formando um triângulo eqüilátero. Rhodan acreditava
firmemente que pousariam num destes planetas, se bem que não no principal. Pois era
nele que se encontrava o cérebro-robô, regente de Árcon, objeto da arriscada ação dos
terranos.
Três horas depois da partida de Zalit, nova movimentação na nave demonstrou que
se aproximavam do local de chegada. Deviam ter saído da transição, já no interior da
linha fortificada; não havia outra maneira de justificar o breve espaço de tempo
percorrido à velocidade da luz.
A porta do compartimento foi aberta com um empurrão. Um robô anunciou com voz
fria e metálica:
— Deixarão a nave dentro de trinta minutos. Reúnam seus pertences, e aguardem a
ordem do alto-falante.
Depois a porta foi novamente fechada. Rhodan estava sentado num canto.
— John Marshall? Tudo bem com vocês?
A resposta foi imediata, e igualmente silenciosa:
— Tudo bem. Procuraremos ficar juntos depois do desembarque.
— Claro! — emitiu Rhodan.
No íntimo, sentia-se bem mais intranqüilo do que aparentava exteriormente. A
tensão chegava ao auge agora. Certamente passariam por mais um controle, antes de pisar
em Árcon. Rhodan ignorava que métodos seriam usados neste controle, Seria de natureza
pessoal ou técnica? Ou médica...? Nesta hipótese, corriam grave perigo.
O cargueiro pousou com um leve solavanco. Quase ao mesmo tempo, o alto-falante
ordenava estridentemente que permanecessem nos alojamentos, e obedecessem à risca às
determinações dos robôs.
Rhodan sentiu-se invadido por estranha sensação. Não a conhecia, porém tratava-se
de uma reação completamente normal. Via-se diante do desconhecido, sem ter influência
alguma sobre os acontecimentos. Não tinha poder decisório algum sobre as decorrências
dos próximos minutos; não poderia impedi-las, nem acelerá-las. Outros se encontravam
no comando da situação. Por minutos ou horas, Rhodan se via isento de qualquer
responsabilidade...
E era uma sensação que ele desconhecia!
Sobressaltou-se quando um robô irrompeu pela porta, ordenando:
— Para fora, todos! Em fila, um por um!
Rhodan esperou a vez tranqüilamente. Primeiro os zalitas verdadeiros deixaram o
alojamento, alinhando-se no corredor em filas de cinco. O robô começou a contar.
Quando Rhodan saiu, ainda chegou a ver os outros cem integrantes do comando marchar
em frente. Seu grupo foi o próximo a ser movimentado. Seguiram por extensos
corredores até um amplo compartimento de carga. Os diversos grupos foram entregues a
si mesmos, e Rhodan conseguiu reunir novamente seus homens. Formaram um bloco
cerrado, firmemente dispostos a não se deixarem separar mais.
Vagarosamente o portão de carga abriu. Ar frio, não muito agradável, invadiu o
recinto. Divisaram uma série de construções baixas, sob um céu azul-escuro, quase
violeta.
Alguém tossiu.
Junto de Rhodan, Gorlat sussurrou em idioma zalita:
— Este ar é muito seco... e pobre em oxigênio. Confere com o que sabe sobre os três
planetas principais de Árcon?
Rhodan não respondeu. Refletia febrilmente. Nos três planetas de Árcon, a
atmosfera era semelhante à da Terra. No entanto, o que respirava no momento mais
parecia uma versão melhorada da atmosfera marciana.
Será...?
Seus pensamentos foram bruscamente Interrompidos. Da porta, um robô berrava:
— Em fila de cinco, marchem!
Rhodan não viu motivo para maiores hesitações. Fazendo sinal para seus homens, o
grupo foi o primeiro a desembarcar.
Uma larga rampa levava à superfície do planeta. À direita e à esquerda da porta,
robôs faziam a contagem.
Rhodan avistou então um sol no firmamento, no setor direito. Devia tratar-se de
Árcon, sem sombra de dúvida. Porém era menor do que a estrela da qual se recordava.
Suas derradeiras dúvidas se dissiparam ao ver imensa esfera, de brilho opaco, um pouco à
esquerda dos prédios — um planeta!
Como uma mão gélida, a decepção apossou-se de seu coração.
Não tinham aterrissado em nenhum dos três planetas.
Aliás, não haviam pousado em planeta algum, e sim numa lua com atmosfera no
limite do respirável.
“O cérebro-robô”, pensou Rhodan consternado, “se acautelou contra qualquer
risco.”
Antes de admitir alguém no solo arcônida, examinava-o de ponta a ponta. Restava
saber se os terranos resistiriam a esta nova prova. E tudo dependia do resultado dela.
***
Laboriosamente a caravana enfrentava a tempestade. O vento surgira
repentinamente, soprando do oeste. Impelia a areia seca à sua frente, formando novas
dunas. Os onze zalitas haviam amarrado panos no rosto, a fim de protegerem-se da poeira
que penetrava pelas menores frestas das cabinas dos veículos.
Rhog viajava com o barbudo, que dirigia um dos carros.
— Espero que não nos desviemos da estrada, Murgo.
— Ora, que diferença faria? — replicou o chefe da caravana. — De qualquer forma,
ela mal se diferencia do deserto. Além disso, temos ótimos instrumentos de orientação.
Rumando sempre para o oeste, acabaremos infalivelmente em Tagnor.
Depois de uma pausa, Rhog disse:
— Quanto falta ainda?
O barbudo fitou-o com ar inquisitivo.
— Por que tem tanta pressa em chegar à capital? Aqui no deserto, você não corre
perigo, mas em Tagnor sim. Não compreendo sua afobação, meu amigo.
Rhog prometeu a si mesmo ser mais prudente, a fim de não despertar suspeitas.
Tanto fazia Calus morrer um dia mais cedo, ou mais tarde.
— O temporal me preocupa — alegou ele, tentando simultaneamente explicar sua
inquietude. — Se ficarmos presos aqui na areia...
— Totalmente impossível! — Murgo apontou, rindo, para as esteiras do veículo
imediatamente atrás. Como as cabinas eram envidraçadas por todos os lados, tinha-se
ampla visão circular. — Nem as mais altas dunas representam obstáculo para nós. E saiba
que nenhum avião de patrulha arcônida levanta vôo com este tempo, fato que deveria
contribuir bastante para sentir-se mais calmo. Viajaremos sem perturbações.
Rhog concordou com as suposições de Murgo. Pensou nos companheiros que
deixara lá nas montanhas.
Que estariam fazendo naquele momento? Esperando? Aguardando a sensacional
notícia que talvez não viesse nunca? Para Rhog, era fácil imaginar que os arcônidas
mantivessem em segredo a morte de Calus, caso conviesse a seus planos.
Percebeu que Calus teria que ser assassinado em público, para todo mundo saber do
fato. O que implicava em aumento do risco para ele próprio. A ponto, até, de cortar-lhe
qualquer possibilidade de fuga.
— Em que pensa? — perguntou Murgo. — Se pinta imagens róseas do futuro, saiba,
Rhog, que não temos grandes chances. Para os arcônidas, nossa sorte é indiferente.
Necessitam de soldados, e tomam-nos. Uma grande guerra está para ser desencadeada,
ignoro contra quem. Porém o inimigo que ameaça Árcon deve ser poderoso. Até o
presente, mesmo sem nossa ajuda, o regente foi capaz de enfrentar qualquer adversário.
De repente, seus exércitos-robôs já não lhe bastam. Passou a usar gente.
— Talvez possamos encarar isso como fato reconfortante, Murgo. Existe alguém
mais forte do que os robôs de Árcon. Devíamos pensar nisso, quando nos preocupamos
com o futuro. Há esperança.
— Para nosso povo, sim! Mas para nós mesmos? Pessoalmente, o que podemos
esperar? Mais dia, menos dia, seremos descobertos e recrutados. E Zalit não ficará
semidespovoado antes que o reino arcônida desabe?
Rhog sorriu.
— As montanhas e ermos de Zalit ocultam muitos homens, todos eles dispostos a
reconstruir algum dia seu mundo. Os arcônidas não permanecerão entre nós por muito
tempo mais.
Murgo seguiu com os olhos um turbilhonante pé-de-vento, carregado de areia, que
dançava diante deles.
— E por que acha isso, Rhog? Tem alguma razão especial para supor que Árcon
desistirá em breve de nossa ajuda?
— Não, claro que não. É apenas uma esperança que alimento.
Murgo fixou o olhar em frente, para as nuvens de areia.
— Pois é... — disse apenas, calando-se depois.
Para Rhog, estava ótimo. O monótono zumbido dos motores parecia querer ajudá-lo
a disfarçar seus pensamentos. Estava preocupado. Seu intento, aparentemente tão simples
lá na caverna rochosa, transformava-se gradualmente em problema insolúvel. O
Almirante Calus devia cercar-se de uma guarda poderosa, e talvez fosse impossível
aproximar-se dele. Robôs deviam guardar a vida de seu senhor, não permitindo que
ninguém rompesse a cadeia protetora.
Porém durante a tarde, quando Murgo ligou o televisor para escutar a fala diária do
almirante arcônida, Rhog teve uma idéia. Olhando para o lado, fitou na pequena tela a
fisionomia cruel e altiva de Calus.
E com seu ódio cresceu a certeza de ter achado um meio de eliminar o tirano.
***
O frio era cortante.
Formados diante das naves pousadas, os homens aguardavam as ordens dos robôs de
guarda. Agora os arcônidas tinham deixado de lado qualquer consideração, dando a
entender claramente aos zalitas que deviam considerar-se prisioneiros. Nenhum dos
oficiais arcônidas postados em Zalit viera junto. Além do ambiente opressivo, Rhodan e
seus homens se defrontavam também com adversários completamente desconhecidos.
Rhodan estava entre Atlan e Bell. Na ala esquerda da fileira de cinco, encontrava-se
Gorlat; John Marshall ocupava a extremidade direita.
— Onde estamos? — perguntou Rhodan, que desejava ver confirmada sua
suposição. Duas opiniões iguais talvez representassem a verdade. — Bell, você conhece o
sistema tão bem quanto eu. O tamanho de Árcon...
— Eu diria... quinto planeta — replicou Bell, em voz igualmente abafada. — Numa
lua do quinto planeta. De acordo com nossas informações, o planeta se chama...
— Sei qual é — cortou Rhodan. — E pousamos em sua lua. O número cinco é um
mundo gigante. Sua lua chama-se Naator. É quase do tamanho da Terra, atmosfera
rarefeita, ambiente desértico, montanhas... Em suma, lugar nada hospitaleiro. Mas claro!
Daqui ninguém sai sem naves ou sem consentimento do regente. Bela armadilha!
— Eu não diria isso, Perry. Trampolim para Árcon soa muito melhor. Se pelo menos
não fizesse tanto frio!
Atlan observou, baixinho:
— Ali adiante estão os alojamentos. Se não me engano, Naator vem a ser uma
espécie de campo de treinamento para soldados. Árcon possui uma academia de guerra
cósmica para suas raças colonizadas. As turmas são treinadas aqui. Acho que acertamos
em cheio, vindo para Naator.
— O quinto planeta não é habitado? — perguntou Bell.
Rhodan acenou imperceptivelmente.
— Os naats são ciclopes dotados de três olhos. De natureza completamente
inofensiva, e submissos a Árcon. Os aras usam-nos como cobaias em suas experiências
médicas.
Os aras — descendentes dos primitivos colonizadores arcônidas — eram uma raça
bastante peculiar. Viviam da arte de curar os outros. E viviam excepcionalmente bem
desta arte. Houvera até certa época em que provocaram a contaminação de planetas
inteiros, a fim de tirar proveito das curas posteriormente efetuadas. Os aras eram magros,
inteligentes e de disposição nada amistosa.
— Os naats possuem inteligência?
— Escassa, Bell. Da parte deles, dificilmente temos o que temer. Apesar de terem
engajado alguns deles como oficiais de bordo.
No gigantesco espaçoporto estavam formados agora mais de cinqüenta mil zalitas,
vigiados por patrulhas de robôs. O diminuto e distante sol Árcon fornecia luz escassa, e
nenhum calor. Do lado do deserto sopravam ventos gélidos; secos e cortantes, que
atravessavam pele e ossos. Rhodan felicitou-se pela circunstância de estar entalado na
massa humana. Os zalitas das fileiras externas já deviam estar semicongelados.
Repentinamente se ouviu um murmúrio percorrendo a multidão. Na parede
longitudinal do prédio maior, flamejou uma imensa tela de imagem. Um rosto surgiu — a
face de um arcônida em uniforme de almirante. Ao mesmo tempo, uma bateria de alto-
falantes entrou em ação, difundindo sonoramente a voz do arcônida, em volume bastante
alto para ser ouvido por todos os presentes.
— Zalitas!
Por instantes, Rhodan deteve-se em considerações acerca do comodismo dos
arcônidas. Confortavelmente instalado em seu gabinete aquecido, o almirante se dirigia
aos recrutas recém-chegados. Talvez fosse uma de suas obrigações diárias, e se
transformara em hábito rotineiro. Mas pelo menos não sentia frio, sentado à sua mesa,
diante do microfone e das câmaras de imagem.
— Zalitas! Bem-vindos a Naator, em nome do regente! Encontram-se no campo de
seleção das forças imperiais. Aqui serão treinados, e posteriormente encaminhados à
frota. Vocês são soldados de Árcon, zalitas! Prestaram juramento ao regente, com o que
se comprometeram a lutar por ele, e até a morrer, se for necessário! Vocês lutam por
Árcon, mas também por Zalit, sua pátria! Um poderoso adversário ameaça nossa
existência. Quando tiver sido derrotado, vocês serão reconduzidos a Zalit. Até lá, porém,
deverão pensar exclusivamente em seu dever. Obedeçam às ordens dos oficiais e dos
robôs, até serem investidos em comandos próprios. É tudo que tenho a dizer-lhes hoje.
Sou o Almirante Senekho, dirigente de Naator. E agora serão encaminhados aos
alojamentos.
Outra fisionomia apareceu na tela.
— Os alojamentos ficam a oeste do campo de pouso. Cada prédio em forma de funil
comporta mil homens. Para cada milhar, haverá um robô encarregado da supervisão.
Guardem seu número de série, pois, daqui por diante, toda e qualquer pergunta deverá ser
feita a ele. Será a autoridade máxima para cada grupo de mil soldados.
Realmente, maneira simples mas eficiente de organizar as coisas. Apesar disso,
ainda se passaram duas horas antes que Rhodan e seu grupo pudessem se pôr em marcha,
junto com oitocentos e cinqüenta zalitas. Eram comandados pelo robô 574.
À direita e à esquerda das largas ruas, Rhodan percebeu a existência de controle de
radar, a intervalos regulares. Impossível, portanto, alguém pensar em fugir
sorrateiramente, na ilusão de achar refúgio nas proximidades. E, por certo, toda a área do
campo de treinamento estaria rodeada de aparelhamento de controle ainda mais eficiente.
No entanto, medida inteiramente desnecessária, pois no árido deserto de Naator, qualquer
fugitivo pereceria em pouco tempo.
Avistavam agora os prédios em forma de funil. Mal se destacavam do cenário
imerso em perpétua meia-luz.
O sol de Árcon desapareceu no horizonte, sem que a escuridão se acentuasse. O céu
continuava roxo-escuro. Milhões de estrelas forneciam luz suficiente para a produção de
leves sombras. Árcon ficava no centro de uma massa circular de estrelas, e o
deslumbramento dos astros ultrapassava tudo que a mente humana pudesse conceber.
O prédio possuía sete pavimentes. Cada um comportava cento e cinqüenta zalitas,
distribuídos em quartos para vinte e cinco homens cada. Apenas no pavimento térreo, a
lotação se reduzia a cem pessoas. Constituíam o grupo de guarda, substituído a cada três
dias.
O robô repartiu o pessoal, e anunciou a distribuição de gêneros alimentícios. Cada
pavimento devia destacar dez zalitas para receber as provisões.
Rhodan examinou o singelo alojamento. Uma série de camas comuns, cada qual
ladeada por um pequeno armário. As janelas externas eram amplas e desprovidas de
grades; havia defesas mais eficientes do que as primitivas grades. Encontravam-se no
terceiro pavimento, com visão panorâmica das instalações do espaçoporto. Em torno
destas ficavam os prédios baixos das academias.
Rhodan acautelava-se ao falar. Era de supor que nenhum dos arcônidas postados em
Naator ouvira inglês em toda a sua vida, porém havia bons aparelhos de decodificação.
No entanto achava melhor dizer as coisas importantes em inglês, e não na língua zalita.
— Tenente Wroma, tome nove homens, e apresente-se como aprovisionador. Preste
atenção na conversa dos demais zalitas. Precisamos saber como se portam na presente
situação.
O africano prestou continência e afastou-se.
Bell sentara-se sobre uma das camas.
— Como nos meus tempos de cadete! — constatou, suspirando, e testando o
colchão com a mão espalmada. — Vou ter que passar por tudo isso novamente? E tendo,
ainda por cima, um robô como sargento!
Atlan aproximou-se dele, e colocou-lhe a mão sobre o ombro.
— Para que tanta reclamação, gorducho? Eu sou almirante, e tenho que fazer papel
de recruta. Para ser sincero, começo a achar graça na brincadeira.
Bell resmungou algo ininteligível, e dedicou-se à inspeção dos cobertores. Mas
dificilmente sentiriam frio no recinto aquecido. Parecia ser o único conforto que lhes
havia sido concedido.
— Ora, não ficaremos aqui eternamente — consolou Gorlat. — Consideremos
Naator como uma espécie de pausa para descanso.
Bell deu uma risada.
— Chama a isso de descanso! Pois eu só vou descansar depois de termos acabado
com o gás do cérebro-robô. Mas, para isso, temos de chegar ao planeta principal!
Com um gesto, Rhodan ordenou silêncio.
— Precisamos ser cautelosos. Falem apenas o essencial, e em voz baixa. Depois de
comer, dormiremos. Temo que amanhã seja um dia extenuante. E não se esqueçam jamais
de nosso único objetivo: Árcon! É lá que temos uma tarefa a desempenhar. Isto aqui... —
indicou as camas, os armários e as janelas — ...isto não passa de um episódio. Será
superado, mais cedo, ou mais tarde.
No silêncio, a voz de Marshall se ergueu:
— Finalmente obtive contato, Sir!
Todos o fitaram esperançosamente.
— Sim, contato telepático com o Almirante Senekho. Logo saberemos o que nos
espera.
— E eu — sussurrou o mutante-localizador japonês — vou distrair-me um pouco
com as emissões radiofônicas deles.
— Exato, Tanaka, faça isso. Toda informação pode ser preciosa para nós.
Rhodan sentou-se sobre sua cama.
— De momento, só estou ansioso por ver o que nos servirão no jantar. Soldados
famintos não são bons lutadores.
— Nem bem alimentado sirvo para lutar — resmungou Bell, mal-humorado.
Não parecia nada satisfeito com o ofício de recruta.
Porém Rhodan estava satisfeito.
Dois passos foram dados. Os demais passos em direção a Árcon viriam depois.
3

O primeiro dia em Naator não trouxe novidades. Da janela, Rhodan viu diversas
colunas de zalitas serem conduzidas aos prédios administrativos, retornando
posteriormente. Porém, segundo seus cálculos, apenas três mil recrutas foram atendidos
naquele dia.
À noite, o robô 574 veio avisar que o grupo seria registrado no dia seguinte.
John Marshall, o telepata, passara diversas horas sentado sobre sua cama, de olhos
fechados. Ninguém o perturbava, pois sabiam que o australiano tentava “entrar em
contato” com as personalidades importantes de Naator, a fim de colher informações.
De repente, Marshall abriu os olhos, e fitou Rhodan. O convite mudo era óbvio.
Também Gorlat e Bell se aproximaram. Atlan estava ausente no momento.
— Que foi, Marshall? Descobriu algo?
O telepata acenou.
— Os primeiros três milhares de zalitas foram submetidos à inspeção médica hoje.
Não, não conforme julgam. Em Zalit, era apenas uma farsa, a fim de dar os recrutas como
válidos. Aqui em Naator, a inspeção é rigorosa. Pude localizar os membros da junta
médica, e ler seus pensamentos. Não deixam passar nada!
— Não deixam passar nada? — repetiu Bell, apavorado.
Notou a repentina seriedade no rosto de Rhodan. Nem mesmo a arte dos
maquiladores os livraria agora da descoberta.
Marshall prosseguiu:
— Ainda não é tudo. Descobri que a inspeção não visa apenas determinar o estado
de saúde dos recrutas; sua finalidade primordial é detectar a possível infiltração de
espiões disfarçados entre os homens alistados, impedindo que cheguem a Árcon. Contam
com a possibilidade de haver agentes terranos entre os zalitas, transformados por meio de
operações plásticas em representantes de outras raças.
Rhodan aparentava nervosismo.
— Quer dizer que suspeitam exatamente do que ocorreu na realidade...
surpreendente! E agora?
— Infelizmente tem mais — continuou Marshall suas desanimadoras informações.
— Os médicos examinadores são aras, sem exceção.
Desta vez, todos ficaram calados.
Justamente os aras tinham que estar envolvidos no caso! Conheciam os terranos, e
os detestavam. Fora Rhodan que lhes estragara a negociata com a doença. Conheciam a
estrutura óssea dos terranos; a primeira radiografia revelaria toda a farsa.
Rhodan perguntou mais uma vez:
— E agora, meus amigos? Sabem de alguma saída? Duvido que possamos subtrair-
nos à inspeção, pois logo despertaríamos suspeitas. Portanto, temos de enfrentar os aras, e
passar no exame. Falando francamente, sinto-me desorientado.
— Bem, sugiro que estudemos todas as possibilidades — disse Gorlat. — Se cada
um expuser suas idéias, talvez consigamos elaborar um plano viável. Nossa intenção seria
a de iludir os médicos aras. Portanto, o mais indicado é colocar Noir em ação.
— Noir é um hipno extraordinário, mas não poderia influenciar em tão curto espaço
de tempo uma dúzia ou mais de aras, submetendo-os a bloqueio hipnótico.
Bell sacudia a cabeça, desanimado.
— Ras Tschubai poderia saltar até lá, e pô-los fora de ação.
— Isso não! — discordou Rhodan. — Seria a maior das tolices. No entanto, você
me deu uma boa idéia, Bell. Ras poderia procurar os aras junto com Noir. Nestas
circunstâncias, o bloqueio poderá ser feito rapidamente.
— Oba, funcionou meu palpite de trocarmos idéias! — exclamou Gorlat, radiante.
— De duas sugestões inaproveitáveis acabou surgindo uma bastante usável. Mais alguns
detalhes, e nosso plano de guerra está pronto. Que tal desviar um pouco o tal de
Almirante Senekho de suas funções regulamentares? Caso esteja bastante ocupado, terá
menos tempo para preocupar-se com os zalitas... e conosco.
— E de que maneira pensa fazer isso? Gorlat sorriu astutamente.
— Son Okura enxerga tão bem à noite quanto de dia. Caso vá com Ras Tschubai,
serão como duas sombras: rápidos, invisíveis e perigosos. Poderiam executar alguns atos
de sabotagem, que certamente seriam imputados aos naats.
— Um momento! — interrompeu Rhodan, com ar preocupado. — Receio que
estejamos indo longe demais. Nossa missão não é produzir inquietude em Naator, e sim
alcançar Árcon. Apesar disso, preciso reconhecer que, às vezes, um pequeno rodeio nos
leva mais depressa ao objetivo. Nossa tarefa mais imediata é pressionar os aras, sem que
eles e os zalitas percebam.
— Não seria possível fazê-lo numa única noite, pois sou incapaz de localizar todos
eles ao mesmo tempo — observou Marshall, derrubando todas as especulações até então
feitas. — Portanto, seria bom que pudéssemos ganhar tempo. Talvez Gorlat esteja certo
com sua sugestão de ocupar Senekho.
Quando Atlan regressou, duas horas depois, o plano estava combinado, organizado e
definitivamente traçado.
Faltava apenas dar ciência dele a Atlan.
Son Okura era de constituição frágil, e tinha alguma dificuldade em andar. Fatores
que precisaram ser levados em consideração quando transformaram-no em zalita; porém
o resultado foi tão satisfatório que ninguém seria capaz de diferenciá-lo de um genuíno
habitante de Tagnor. Era um perceptor de freqüência, capaz de reconhecer qualquer
objeto mesmo na escuridão. Até raios infravermelhos eram visíveis para seus olhos.
Mesmo horas após seu desaparecimento, percebia a aura de calor emitida por um corpo.
Sob o aspecto físico, o teleportador Ras Tschubai vinha a ser o exato oposto de
Okura. Sua estatura lembrava a dos naats, mas naturalmente o africano tinha apenas dois
olhos, e não três.
Os dois mutantes formaram o primeiro comando de ação da noite incipiente.
Ras sabia que era arriscado saltar ao acaso, sem saber para onde ia. Preocupar-se-ia
menos caso estivesse sozinho, mas levava o japonês... Claro que, apesar da sobrecarga,
era capaz de desmaterializar-se instantaneamente, caso algum perigo ameaçador o
obrigasse a desaparecer o mais rápido possível. Porém Rhodan recomendara
insistentemente que fosse cauteloso, e não chamasse a atenção. Pessoa alguma deveria
suspeitar da presença do teleportador em Naator.
— Pronto! — disse Son Okura, segurando a mão do africano.
Ras Tschubai concentrou-se para um salto curto, que os deixaria nas proximidades
dos prédios administrativos, e lojas. Desconhecia seu alvo, o que no entanto não
representava dificuldade. Visualizava-o.
Quando se materializaram, Ras Tschubai não viu absolutamente nada de início. As
estrelas brilhavam com a intensidade habitual, mas eram ofuscadas pela iluminação vinda
de dentro das casas.
— Boa pontaria — disse Okura, cujos olhos tinham se ajustado imediatamente. —
Estamos bem perto das primeiras construções. À direita, há um sentinela patrulhando.
Um zalita. Portanto, eles já foram designados para o serviço de guarda.
— Vamos saltar para a área diretamente à nossa frente. Sabe o que procuramos?
Okura acenou, porém Ras não via. Saltou.
Desta vez, estava realmente escuro, e não havia estrelas.
— Onde estamos? — perguntou o teleportador.
— Num depósito de equipamento militar. Uniformes, até onde posso verificar. Mais
atrás, trajes espaciais leves. Tudo caprichosamente empilhado em prateleiras.
— Bem, se o frio apertar, saberemos como nos defender. Mas hoje procuramos outra
coisa, Okura. Vamos andando.
O japonês guiou Ras através das trevas, com impressionante segurança. O africano
confiava incondicionalmente no detectador humano de freqüência. Não tinha o menor
receio de tropeçar em algum objeto, ou dar com a cabeça contra a parede.
— Uma porta! Ah, não está trancada.
Seguiram adiante.
— Um corredor. Portas por todo lado. Qual delas nos serve?
Okura não respondeu. Ouvira um ruído lá adiante. Passos! Alguém caminhava na
direção deles. Porém o andar revelava o cansaço do caminhante. Os pés arrastavam no
chão.
— Um sentinela! — cochichou Ras. — Não se trata de um robô; talvez seja zalita.
Ande, a próxima porta!
Foi um acaso, conforme asseguraram repetidas vezes mais tarde; porém todos
interpretaram suas afirmativas como manifestação de modéstia. Pois quando penetraram
no recinto, Okura deixou escapar uma exclamação de surpresa, e Ras compreendeu que
desta vez não haviam dado com nenhuma rouparia.
— Armas! — sussurrou Okura. — Granadas de mão, pistolas portáteis de raios,
pequenas bombas de tempo... um paraíso para rebeldes!
— E consta-me que existe um bocado deles em Naator — murmurou Ras, satisfeito.
— Por que deixariam esta porta sem chave?
— A entrada principal é impenetrável, Ras. Defendida por um campo energético.
Ninguém pode sair deste prédio. O próprio sentinela está trancafiado.
Bem, isso explicava tudo. Picaram escutando os passos do sentinela.
— Que diabo! — praguejou Ras. — Por que não consigo enxergar nada?
— Porque está escuro — respondeu Okura, lacônico. — Seu coração pularia de
alegria, se pudesse ver o que vejo. Exatamente o que precisamos para executar nosso
plano. Tivemos uma sorte danada!
— Ótimo!' Neste caso, apressemo-nos. Levaremos um bom sortimento para nosso
quarto, onde estabeleceremos a base de operações. Com três ou quatro pulos estará feito.
Uma hora depois, Ras teleportou-se com Okura e André Noir, o hipno, para o
hospital, prometendo vir buscá-los novamente duas horas mais tarde. Depois desapareceu
diante dos olhos dos outros mutantes, carregando uma respeitável quantidade de
pequenas bombas de tempo, algumas granadas de mão e um radiador energético.
Poderiam reservar agora para a ação em Árcon todas as armas e recursos de sabotagem
discretamente embutidos em seus uniformes, ou entre a reduzida bagagem.
Noir não era muito alto, e fazia um terrano bastante simpático. Mas como zalita,
transformara-se num indivíduo de ar ameaçador e pouco digno de confiança. No entanto,
sua especialidade de “dobrar” mentes estranhas à sua vontade não sofrerá com o disfarce.
— Os aras alojam-se mais adiante — sussurrou ele, apontando para o corredor
imerso em meia-luz. — Posso sentir suas ondas de pensamento. Estão dormindo.
— Seria capaz de descobrir o médico-chefe, André?
— Dificilmente, Son. Dormem, e, em sonhos, qualquer deles pode se considerar
chefe.
Rindo, o japonês se pôs a caminho.
— Então teremos que controlar um por um. Vamos lá, a primeira porta!
Como também o hospital — caso pudesse ser designado por este nome — estivesse
hermeticamente isolado do mundo exterior por uma cortina energética, as portas internas
não possuíam chave. Quando os dois homens penetraram no quarto, apenas o japonês
podia ver o que havia nele.
No canto, abaixo da janela, via-se uma cama, ocupada por um vulto deitado; ao
lado, um armário. Dependuradas no encosto de uma cadeira, peças de roupa; entre elas,
um jaleco branco, traje profissional característico dos aras em atividade.
Gradualmente, os olhos de Noir se ajustaram à escassa luz. As estrelas brilhavam
livremente através da janela desprovida de cortinas. O homem deitado tinha estatura bem
acima da média, e era impressionantemente magro. O rosto encovado dava-lhe ar
doentio. Porém Noir sabia que as aparências enganavam; aquele homem era
perfeitamente são.
Noir acionou seus poderes. Cautelosamente, penetrou na consciência adormecida do
ara, apossando-se dela. Em vista da ausência de resistência do paciente, conseguiu seu
intento rapidamente, com a maior facilidade. Depois despertou o ara.
— Como se chama?
O hipno falara em voz baixa e insinuante. Os olhos arregalados do médico fixaram-
se nele por um instante, depois tornaram-se mortiços e indiferentes.
— Renol.
— Faz parte da junta médica que examina os recrutas? Quem é o médico-chefe?
— Sim, examinamos os recrutas. Bóris é o chefe. Mora alguns quartos depois do
meu.
Noir exultou. A coisa ia melhor do que esperara.
— Levante, agora, e siga-me. Saberá achar uma evasiva, caso encontremos alguém.
Deve obedecer a todas as minhas ordens. Receberá instruções adicionais conforme as
circunstâncias forem exigindo. Mostre-nos as salas de exame.
Mecanicamente, o ara levantou da cama e enfiou as roupas. Apesar de lentos, seus
movimentos eram regulares e inteiramente normais. Nem de longe suspeitava do perigo
que corria. E no dia seguinte teria esquecido tudo.
Saíram do quarto, com Renol na frente. Atravessaram uma sala de operações, e
foram dar num amplo recinto subdividido em nichos, por delgadas paredes. Neles se
viam estranhos aparelhos, cuja finalidade Noir não compreendeu de imediato. Ordenou
ao ara que fornecesse as devidas explicações.
Noir assustou-se ao perceber de que armadilha se haviam livrado. Com a ajuda dos
instrumentos e máquinas instalados naquela sala, terrano algum teria passado pelo
controle sem ser descoberto. Aliás, o aparelhamento desmascararia qualquer indivíduo
não pertencente à raça zalita.
O hipno demonstrou particular interesse pelo medidor de Q.I. Externamente, o
aparelho constava de uma poltrona com capacete, alguns fios, e do avaliador positrônico.
Bastava o examinando sentar, e tudo se processava automaticamente. Os resultados eram
arquivados num fichário.
Noir sabia que o quociente intelectual dos terranos era sempre superior ao dos
zalitas. Submetidos à inspeção de rotina, tal particularidade se revelaria fatal para o
comando especial. Seriam denunciados pelos elevados índices alcançados.
— Quem opera este medidor de Q.I., Renol?
— Bóris em pessoa — foi a resposta.
Gastaram muito tempo na ronda; quando reconduziram Renol ao seu quarto, duas
horas depois, Ras ainda não regressara.
Aguardaram por mais meia hora.
Como Ras continuava ausente, começaram a ficar inquietos. Sem o teleportador,
estariam presos no interior do hospital, a não ser que Renol possuísse chave para desligar
a cortina energética. Probabilidade das mais improváveis. Noir descobrira que as
barreiras de energia eram comandadas por uma central, e só podiam ser desligadas por
ordem de Senekho.
Mais dez minutos se passaram.
— Espere aqui, Son. Vou aproveitar o tempo para “tratar” do tal de Bóris. Com o
médico-chefe do nosso lado, muitas dificuldades poderão ser contornadas. Sei onde fica o
quarto dele.
Noir enxergava o suficiente para poder orientar-se sem ajuda do japonês.
Encontrando a porta encostada, entrou na peça semi-imersa em sombra. Reconheceu o
vulto de uma cama ao fundo. A janela estava escancarada.
Algo alertou Noir.
Antes que pudesse constatar que se tratava dos pensamentos do ara, este exclamou,
ameaçadoramente:
— Seja lá o que pretende, e seja lá quem for, não se mexa! Estou com uma pistola
energética apontada para você. Volte-se cuidadosamente, e acenda a luz. O comutador
fica à direita da porta.
Sem alternativa no momento, Noir obedeceu. A mente do ara estava ativa demais
por ora, para ser influenciada com facilidade. Mais tarde, talvez...
A luz invadiu o quarto. Noir percebeu que o ara não mentira. Apesar de continuar
estendido ao comprido na cama, debaixo do cobertor, distinguia claramente os contornos
de um possante radiador. A boca apontava diretamente para o hipno, de acordo com a
ameaça feita.
— Responda, meu caro! — disse o ara, suavemente; porém a voz calma denotava
absoluta autoconfiança. — O que me confere a honra desta visita noturna?
— Posso fazer uma pergunta, primeiro? — falou Noir, procurando ganhar tempo. —
Como sabia que eu vinha vindo?
O ara riu, complacentemente.
— Sou médico-chefe em Naator — replicou ele benevolamente, e o tom de sua voz
revelava a razão da benevolência. Era simplesmente vaidoso. — O Almirante Senekho
concede-me total confiança, e os arcônidas são desconfiados. Não confiam em ninguém.
Nem mesmo em seus amigos, os aras. Portanto, fui encarregado de vigiar meus médicos.
Há sistemas de escuta entre meu quarto e os deles. Quando você foi procurar Renol,
acordei. Desta forma, fiquei sabendo que Renol é um delator. Como revelou meu nome,
eu devia preparar-me para sua visita ainda no decorrer desta noite.
De repente, o tom de voz se tornou ríspido e exigente.
— Agora chega de evasivas! Quem é você, e o que quer aqui?
— Quem sou...? Ora, ainda não me identificou?
— Mas claro! Já vi que é zalita! Como entrou aqui? As cortinas energéticas...
Com grande precaução, Noir tentou penetrar na consciência de seu oponente. Mas
era difícil, quase impossível. O ara estava em guarda. E qualquer provocação poderia
levá-lo a apertar o gatilho.
— Consegui esconder-me no decorrer da inspeção de hoje, com a intenção de
esperar pela noite. Para ser sincero, recuso servir na frota do regente. Pretendia falsificar
o resultado dos exames, para ser mandado de volta a Zalit.
Talvez o choque dessas revelações provocasse certo descuido por parte do ara. Noir
sentiu um espasmo na região do estômago. Era exatamente para onde apontava o radiador
de Bóris, ainda oculto sob o cobertor.
E se não fosse radiador nenhum...?
— Tentou o impossível — disse o médico-chefe, ironicamente. — Os autômatos não
se deixam enganar. Vou chamar a guarda, e mandar entregá-lo aos robôs.
Lançando o cobertor para o lado, levantou da cama. Noir viu que se enganara em
sua suposição. A mão de Bóris empunhava realmente uma pistola. Não se tratava de blefe
do ara.
— Caso ainda tenha algo a me dizer, fale agora. Mais tarde não terá oportunidade
para isso.
Noir percebeu que sua posição não era nada boa. Lá fora, no corredor, Son Okura
esperava por Ras. Porém o teleportador não aparecia; possivelmente também fora
apanhado em alguma armadilha. Caso fossem submetidos a interrogatório, com aplicação
dos psicodetectores, o plano de Rhodan iria por água abaixo. Com a vontade paralisada,
revelariam tudo.
— Não vai chamar guarda nenhuma! — disse Noir, em tom incisivo. — Pois eu não
vou deixar!
Tentou mais uma vez dominar o cérebro do ara, porém ele reagia, sem saber,
opondo-se com todas as forças disponíveis. Noir sabia que apenas uma operação
relâmpago teria êxito. Alguma surpresa que assustasse suficientemente o ara, provocando
um momentâneo descuido.
— Ou acha que vim para cá sem arma?
— Não vejo nenhuma — replicou Bóris.
— Existem armas invisíveis. Caso pudesse estar, neste preciso instante, na grande
sala de exames, saberia a que me refiro. Não é lá que estão arquivados os resultados de
suas análises?
O médico-chefe enfiou seu jaleco. Não parecia nem um pouco impressionado, nem
preocupado com as ameaças de Noir.
— Pois vamos até lá verificar — sugeriu ele, forçando o hipno a voltar-se.
Simultaneamente, apertou-lhe a boca da arma nas costas. — E ai de você se mexeu em
alguma coisa! Ficaria bem satisfeito se o entregasse aos guardas... coisa que não farei.
Você vai morrer, e morrerá lamentando jamais ter nascido.
Noir hesitou.
— Ande logo, zalita!
E Noir saiu para o corredor.
***
A carga privou Ras Tschubai da liberdade de movimentos que gostaria de ter.
Materializou-se, e permaneceu em total imobilidade até os olhos se habituarem à
escuridão. Sentiu uma vibração sob os pés, e escutava sussurros regulares, acompanhados
de leves pancadas.
Encontrava-se num imenso recinto subterrâneo segundo seus cálculos. E havia
outras instalações abaixo daquela, conforme revelava o murmúrio dos geradores. Era ali
que se localizava a central energética do campo. Na certa, rigorosamente protegida por
fora contra a entrada de qualquer indesejável ou sabotador, que de maneira alguma teria
acesso ao recinto. Mas Ras estava decidido a provocar uma boa perturbação entre os
arcônidas. Eles que quebrassem a cabeça para saber se suas medidas de segurança
continuavam funcionando, ou se já eram insuficientes.
As lâmpadas embutidas nas paredes davam pouca luz. Ras mal conseguia distinguir
os possantes blocos metálicos, por entre os quais serpenteavam estreitas passagens.
Reluzentes isoladores suportavam e distribuíam a fiação, que se perdia mais adiante nas
sombras.
Ras avançou cautelosamente por entre o caos de maquinaria, selecionando a que lhe
parecia mais importante. Apresentava uma concavidade lateral apropriada ao seu intento.
Tirou do bolso um objeto ovalado, apalpando-o de leve até dar com o pino de tempo.
Apertou-o três vezes. Portanto, a detonação se efetuaria dentro de cerca de três horas.
Depositou a bomba próximo à máquina, esperando que a explosão causasse danos
suficientes para paralisá-la. Ao mesmo tempo, desejava que os estragos não fossem de
vulto a despertar as suspeitas dos arcônidas, ou dos robôs, pois a capacidade dos naats era
limitada. Dois atos de sabotagem naquele setor seriam o bastante. E caso houvesse outra
detonação bem longe dali, ao mesmo tempo, não se lembrariam de vir procurar o autor do
atentado justamente naquele recinto.
Ras colocou a segunda bomba, e teleportou-se para o ar livre.
Materializou-se diretamente diante das rígidas lentes dos olhos de um pesado robô
guerreiro, cujas armas energéticas se ergueram instantaneamente, apontando para o
africano.
***
Postado junto à parede, Son Okura viu abrir-se a porta por trás da qual desaparecera
Noir. Aprontou-se para receber o amigo que saía para o corredor com uma exclamação de
alívio, quando percebeu o cano da arma energética pressionada contra o dorso do hipno.
O japonês ocultou-se no pequeno nicho formado pelo vão de uma porta. Não sem
tempo, pois no mesmo instante as luzes foram acesas. Agora também o ara que ameaçava
Noir se tornou visível. Para Okura, era mistério saber como escapara à sugestiva
influência do hipno. De qualquer maneira, não poderia perder ambos de vista daí por
diante.
E Ras Tschubai? Se voltasse agora, para levá-los de volta?
Okura não teve muito tempo para preocupar-se com isso. Precisava apressar-se, a
fim de não deixar Noir desamparado. Esgueirou-se atrás do hipno e do ara. Conhecia o
caminho.
A grande sala de exames!
Só que desta vez, os prenúncios estavam invertidos. Os trunfos se encontravam em
mãos erradas. Era preciso agir com cautela, caso quisessem recuperá-los.
A mão de Okura deslizou para o bolso. Sorte sua, Ras ter-lhe cedido um dos mini-
radiadores. Apesar de contarem apenas com três cargas, derrubariam bem uma dúzia de
adversários em caso de necessidade.
Por enquanto, tinha que enfrentar apenas um.
Este um, no entanto, atormentava seriamente o pobre Noir. A desagradável pressão
da arma nas costas em nada contribuía para seu bom humor. Procurava incessantemente
achar algum ponto fraco na consciência do ara, porém Bóris demonstrava incomum
resistência, como se tivesse passado por um condicionamento hipnótico especial.
Hipótese que não devia ser excluída, visto que se tratava do dirigente do departamento
médico em Naator.
Passaram pela sala de operações, entrando no recinto equipado com inúmera
aparelhagem, distribuída pelos diversos nichos.
“Parece uma moderna câmara de tortura”, pensou Noir.
Finalmente o médico estacou, intimando Noir a explicar-se. Parecia ter chegado à
conclusão de que não lidava apenas com um mero simulante. Teria sido alertado por
alguma coisa?
— Vamos, malandro, fale! Quais são suas reais intenções? Pretendia assassinar-me?
Em caso afirmativo, por quê? Que proveito lhe traria?
Noir fez uma derradeira investida. Recorreu a todas as suas forças para romper o
bloqueio em torno do cérebro de Bóris. Porém inutilmente.
O ara já se encontrava sob a influência de um hipnobloqueio! De um bloqueio
arcônida, no entanto. Unicamente um choque seria capaz de desfazê-lo.
— Cuidado, Noir! Jogue-se no chão!
A voz parecia vir do nada. Bóris estremeceu, pois desconhecia aquela língua. Mas
devia ser a razão menor de seu susto. Mais inquietante era a hipótese de ver-se diante de
dois sabotadores. Voltou-se bruscamente, esquecendo Noir por um segundo.
Reconhecendo a voz de Okura, Noir apressou-se a seguir o conselho dado. Lançou-
se para o lado, rolando pelo chão para o nicho mais próximo. Quando o delgado raio
energético relampejou da porta através da sala, acertando na lâmpada, ofuscado, cerrou os
olhos, Bóris acendera apenas aquela, e bruscamente tudo ficou imerso em trevas.
— Jogue fora a arma! — gritou Okura, mudando imediatamente de posição.
O tiro energético de Bóris errou o alvo por três metros, no mínimo.
— Não adianta, Bóris! Estou vendo você! Vejo, sim! Não é tapeação! Por que
fechou os olhos agora? Para poder me ouvir melhor?
Noir ouviu o ara gemer.
— Mas como é possível? Assim, completamente no escuro...? Está mentindo!
— Acha? Agora, por exemplo, está apontando sua arma em direção oposta... o
armário ao lado da porta provoca uma ilusão sonora, alterando o rumo das ondas de som!
Ah, agora leva o cano para a esquerda. Errado também! Mas, agora, talvez acredite que o
vejo.
— Quem é você? — perguntou Bóris, aparentemente esquecido de Noir.
Foi seu erro capital.
Noir percebeu o relaxamento da resistência, e intensificou a pressão. O cérebro do
ara estava literalmente aberto diante dele, e bastava servir-se. Okura representava para
Bóris um problema insolúvel. Nem mesmo o hipnobloqueio arcônida resistiu diante do
ímpeto final de Noir. O ara dobrou-se ao jugo mental do hipno.
***
Ras Tschubai reagiu instantaneamente, e teleportou-se para a escuridão. Quando
pôde enxergar novamente, o robô estava parado a menos de trinta metros, olhando
fixamente para o local onde acabara de avistar um zalita.
“Se eu inutilizar um destes robôs guerreiros no meio do acampamento”, refletiu
apressadamente Ras, “deixá-los-ei bem intrigados. Além disso, a máquina precisa ser
destruída. De maneira nenhuma poderá ir contar-lhes o que viu...”
Enfiando a mão no amplo bolso do uniforme zalita, Ras retirou uma pequena
granada. Sabia que poderia ser regulada para explodir dentro de dois segundos. Bastava
apertar o botão, e procurar um esconderijo o mais depressa possível.
O robô voltou-se pesadamente. Talvez por ter escutado algum ruído. Quando a noite
foi rasgada pelo luminoso facho de um holofote, Ras agachou-se. A luz emanava da testa
do colosso. Ao mesmo tempo, o cinturão armado começou a girar vagarosamente.
Ras segurou a granada na mão direita, calcou o botão e lançou-a contra o robô.
Em certas circunstâncias, dois segundos podem representar longo espaço de tempo.
Para Ras, duraram uma eternidade. Desistira de teleportar-se para lugar seguro, pois não
sabia se conseguiria fazê-lo naquela situação. Ainda enquanto jogava a granada, pulou
para o lado, num salto gigantesco, em direção de uma vala que oferecia proteção.
Enquanto caía, as armas do robô foram descarregadas. Sibilando, os fulgurantes
raios energéticos varreram o chão pouco acima dele; Ras chegou a ter a impressão de que
sentia o calor emanado pelos mortais disparos. Felizmente o robô mirara alto demais. Sua
salva de energia perdeu-se além dos limites do espaçoporto.
Ras viu nitidamente a granada cair aos pés do robô. Agachou-se o melhor possível
dentro da vala, cuja utilidade original ignorava. De qualquer forma, era artificial, e talvez
servisse para a drenagem de água.
A chispa de ignição coincidiu com o estrondo da carga explosiva em erupção. A
onda de choque atingiu o dorso curvado de Ras. Seguiu-se tremendo impacto, sacudindo
o chão.
Depois reinou um silêncio mortal. Cautelosamente, o teleportador se ergueu. Depois
daquele estardalhaço, o local não tardaria a fervilhar de gente. Além disso, os robôs
guerreiros mantinham contato radiofônico entre si.
O lugar do colosso era ocupado agora por enorme cratera. Peças metálicas juncavam
o chão nas redondezas, como se algum avião tivesse se despedaçado no local. Do robô
propriamente, pouco restava.
Em algum ponto elevou-se o lamentoso uivo de uma sirene. As pisadas vigorosas de
possantes pernas metálicas faziam vibrar o concreto. Um alto-falante berrava ordens
estridentes, holofotes foram acesos, banhando a área em deslumbrante claridade.
Ras Tschubai compreendeu que precisava sumir. Ninguém devia vê-lo teleportando-
se. Representaria sério perigo para todos eles. Caso chegasse aos ouvidos do regente o
menor boato acerca de truques paranormais, suas suspeitas se dirigiriam imediatamente
contra Rhodan e seu Exército de Mutantes.
A primeira onda de robôs guerreiros espalhou-se pelo campo, avançando em direção
da cratera, quando Ras desmaterializou-se, e saltou de volta para o hospital.
Ainda chegou a ver Son Okura esgueirar-se pelo corredor, agora iluminado, dando
mostras da maior cautela.
Sem refletir, seguiu atrás dele.
4

Uma sirene acordou os ocupantes do edifício-funil. Pouco depois, o robô 574


distribuía as ordens do dia. No quarto de Rhodan, todos escutavam atentos, e ansiosos por
descobrir se a ação dos mutantes no decorrer da noite já produzira frutos.
O robô começou com as determinações de rotina, que certamente eram idênticas
todos os dias. Depois a voz metálica comunicou:
— A inspeção médica prevista para hoje foi adiada para amanhã. Ninguém deve
deixar o prédio. Por volta de meio-dia, será dada a primeira aula teórica de armamento.
Ras Tschubai parecia satisfeito. Quando o alto-falante emudeceu, olhou para
Rhodan com ar triunfante.
— Viu como eu tinha razão, Sir? A destruição do robô guerreiro e as duas
detonações na central de energia deram-lhes o que fazer.
— Porém um único dia de adiamento não basta — replicou Rhodan. — Noir
conseguiu controlar só dois aras; enquanto todos não forem dominados, estaremos
sujeitos à descoberta.
— Conheço os locais agora — objetou o hipno. — Se saltar para o hospital esta
noite, em companhia de Ras, creio que darei conta do recado.
— É o que espero — disse Rhodan, não muito otimista. — Seria bom estarmos a par
do que se passa.
Voltou-se para Atlan, calmamente sentado sobre seu leito.
— Por favor vá buscar Tanaka Seiko. No Exército de Mutantes, Seiko era o
localizador. Seu cérebro tinha a capacidade de detectar ondas de rádio, determinando a
posição do transmissor; além disso, podia “ouvi-las”. Em outras palavras: o mutante
dispensava receptor para captar mensagens radiofônicas.
Atlan ergueu-se e deixou o recinto.
Bell acercou-se de Rhodan.
— Será que espera transmissões não codificadas?
Rhodan acenou.
— Exatamente. Os robôs certamente se comunicam um com o outro sem usar
código. Mesmo que empregassem um, teríamos pouca dificuldade em decifrá-lo. Seja
como for, precisamos estar informados, a fim de poder agir convenientemente. Nunca
esqueça que estamos metidos numa verdadeira armadilha. Caso os arcônidas nos
apanhem, não só nós estaremos perdidos, mas a Terra estaria praticamente aniquilada. A
ameaça representada pelos druufs da outra dimensão temporal está um tanto afastada,
apesar de continuar existindo. O regente tem tempo para dedicar-se à Terra. E, conforme
constatamos, cuida disso com toda a determinação de um cérebro positrônico!
Precisamos agir da mesma maneira. Só então teremos uma chance.
Atlan voltou, trazendo o japonês. Tanaka Seiko era esbelto. Uma cicatriz vermelha
desfigurava sua face esquerda: era um disfarce que o fazia passar por zalita, e não
japonês. Haviam conseguido “corrigir” os olhos oblíquos. A epiderme vermelha lhe dava
aparência de índio.
— Sinto-me realmente faminto, agora — disse Atlan, retomando o lugar em cima da
cama.
Parecia não conhecer problema mais importante no momento; no entanto, quem o
conhecesse de perto, sabia que estava tão envolvido nos acontecimentos quanto os
demais. É que o imortal arcônida tinha marcada predileção por gozações, e gostava de
emitir comentários jocosos sobre assuntos da maior gravidade.
Rhodan voltou-se para Seiko.
— Estamos interessados em saber o que os arcônidas pretendem fazer. Antes de
qualquer coisa, queremos saber a quem imputaram a culpa pelas explosões na central
energética. Disso dependerão nossas próximas providências.
— Muito bem, Sir — concordou Seiko, modestamente, olhando em torno. — Onde
posso me instalar?
Bell indicou a cama debaixo da janela.
— Pode usar meu beliche, Tanaka. Ficará à vontade nele, ninguém o perturbará. E
assim que ouvir alguma coisa, avise-nos.
— Ora, estou sempre ouvindo coisas — assegurou o mutante, sorrindo. — De
momento, o Almirante Senekho declarou estado de alarme para todos os robôs de guarda
e combatentes. Todo naat encontrado no interior dos setores delimitados deverá ser
preso...
— Exatamente o que desejávamos saber! — interrompeu Rhodan. Pitou Ras
Tschubai. — Parece ter acertado com sua suposição. Senekho crê que foram os naats.
Lamento pelos pobres ciclopes, porém não podemos poupar ninguém. Continue, Seiko!
Que é que o almirante pretende fazer?
O japonês voltou a sorrir.
— Não me apresse, Sir. Necessito de tempo para selecionar e coordenar as
transmissões captadas. Dentro de uma hora, aproximadamente, poderei dizer-lhe mais...
Deram-lhe prazo até o meio-dia. Então o quadro se configurara:
O Almirante Senekho estava firmemente convencido da culpabilidade dos naats nos
atentados realizados. Há menos de um ano — tempo da Terra — haviam sido forçados a
conter uma rebelião no quinto planeta. Os ciclopes reagiam contra o costume de fornecer
exemplares de sua raça para experiências científicas nos laboratórios dos aras.
Também na lua Naator viviam naats. Eram empregados como mão-de-obra barata,
ou como atendentes pessoais dos oficiais-instrutores arcônidas destacados para servir em
Naator.
Senekho expedira ordem de expulsar imediatamente todos os ciclopes das zonas
reservadas. Alegava que o afastamento dos naats das instalações mais importantes
evitaria futuros atentados. De onde se depreendia claramente que considerava os nativos
culpados.
— O dia de hoje — informou Tanaka — será dedicado à execução das novas
regulamentações. A partir de amanhã, voltarão ao regime normal.
O que significava que Rhodan tinha vinte horas para estabelecer novos arranjos —
ou submeter a totalidade dos aras a controle hipnótico, pois estes representavam perigo
permanente.
Após o almoço, todos os mil recrutas foram reunidos no enorme salão do primeiro
pavimento. O robô dava a aula. Discorreu sobre assuntos já fartamente conhecidos —
pelo menos para os integrantes do comando de Rhodan. Falou dos começos do Império,
sua ascensão, e seu poderio atual, sem se deter nas dificuldades existentes. Por fim, frisou
que Árcon alcançara tão destacada posição apenas por dispor de excelentes armas e
soldados. E aperfeiçoar ainda mais ambos era a meta principal da academia militar em
Naator, na qual os “voluntários” eram saudados cordialmente, em nome do regente.
Bell estava parado ao lado de Rhodan. Não havia assentos.
— Poxa, bem que eu gostaria de tapar a boca deste sujeito! — sussurrou ele. —
Jamais ouvi tanta mentira de uma só vez. Nem mesmo de Gucky!
— Mentir faz parte da propaganda — replicou Rhodan, em voz igualmente baixa.
— Mas fique quieto, agora! Alguns dos zalitas já estão nos olhando.
As horas correram. A longa permanência em pé começava a produzir desconforto
entre os homens, mas o robô naturalmente não era afetado. Prosseguiu em sua ladainha.
Minutos depois, deu o sinal de encerramento da aula.
Os recrutas retornaram aos alojamentos, e o jantar foi servido.
Após o jantar, Rhodan chamou os dois teleportadores Ras Tschubai e Tako Kakuta
para junto de si. O japonês ainda não tinha entrado em ação até o presente, mas agora as
circunstâncias exigiam que também desse sua contribuição para o êxito do plano.
Rhodan fitava Ras, enquanto dizia:
— Vocês têm diante de si uma noite trabalhosa. O Almirante Senekho proibiu a
entrada de qualquer naat nas zonas reservadas. Entretanto temos de continuar jogando a
culpa dos atentados sobre os ciclopes. Logo, vocês terão que estender sua atividade a
alvos fora dos limites da academia. Por todos os cantos da lua precisam explodir bombas
no decorrer desta noite, provocando destruição. Todo o sistema de vigilância dos
arcônidas deve concentrar-se na prisão dos sabotadores. Creio que assim ganharemos o
tempo necessário para Noir submeter todos os aras ao seu controle. Esta medida é
essencial para não sermos descobertos. O repentino levante dos naats dará o que fazer aos
arcônidas. Quero que relaxem a vigilância sobre nós, e procurem o inimigo em outro
lugar.
— Conseguiremos — assegurou Ras, alisando significativamente sua colcha,
debaixo da qual se ocultava um bem sortido arsenal. — Com estas coisinhas aqui,
faremos metade da lua voar pelos ares.
Rhodan recomendou:
— Cuidado para não exagerar, Ras! Claro que os naats teriam possibilidade de
arranjar bombas e granadas de mão: Porém lembre-se de que os naats são pouco
inteligentes, apesar de o regente lhes ter confiado até funções na frota espacial, antes da
rebelião. Providenciem pois a detonação de algumas bombas em locais inteiramente
absurdos, onde não possam causar mal algum. As suspeitas de Senekho devem recair
apenas sobre os naats, e sobre ninguém mais. Fato que se dará naturalmente caso ocorram
atos de sabotagem no outro lado da lua, portanto, em plena luz do dia. Pessoa alguma
poderia estar em dois lugares ao mesmo tempo.
— Salvo teleportadores... — lembrou Ras.
Também André Noir recebeu as últimas instruções e conselhos. Acompanhado de
Son Okura, seria levado ao hospital por Ras, que tornaria a ir buscá-lo antes do
amanhecer. Durante este período, o hipno e o perceptor de freqüência estariam por conta
própria. Porém já não correriam tanto perigo, visto que o médico-chefe Bóris e seu
subordinado Renol haviam sido submetidos com êxito ao tratamento hipnótico, e os
transformaram em aliados.
Meia hora mais tarde, Ras saltou com Noir e Okura. Regressou em meio minuto,
tomando a mão de seu colega Tako Kakuta. Empreenderiam o primeiro salto em
conjunto.
Cada qual levava numa sacola duas dúzias de granadas e bombas de tempo. E, antes
do sol raiar, todas explodiriam em diversos pontos da lua Naator...
***
Graças, primordialmente a Tanaka Seiko, Rhodan manteve-se informado acerca do
sucesso da ação, e das contramedidas dos arcônidas. O localizador passou a noite inteira
escutando as mensagens radiofônicas.
O Almirante Senekho foi acordado ainda no decorrer da noite. Quando uma bomba
explodiu a vinte quilômetros, no meio de um depósito de peças de reposição, o alarme
invadiu estridentemente a academia. A região foi imediatamente cercada, e prenderam os
poucos naats residentes nas imediações daquela zona militar. Porém tornaram a ser
liberados dez minutos após, quando houve segunda explosão.
Senekho viu confirmada sua suposição de que a resistência passiva dos nativos se
intensificava gradualmente. E libertou os naats julgando que assim acharia a pista dos
cabeças do movimento.
Simultaneamente chegaram-lhe alarmantes comunicados do lado oposto da lua.
Dois pesados robôs guerreiros tinham sido abatidos numa tocaia. Fato jamais verificado
anteriormente em Naator. Aquilo era rebelião declarada!
Senekho entrou em contato imediato com o regente, exigindo maior liberdade de
ação em relação aos nativos. O cérebro-robô deu ordem para prender qualquer naat
suspeito.
Ainda na mesma noite, os robôs invadiram as residências dos desavisados ciclopes,
levando-os para campos de concentração. A ação, desencadeada de maneira fulminante,
teve o maior êxito; pouquíssimos naats conseguiram escapar, refugiando-se nos
inacessíveis ermos de Naator.
A onda de sabotagem prosseguia, a despeito das prisões efetuadas. Por toda a parte
explodiam bombas de tempo, colocadas com maior ou menor habilidade, causando
sensíveis estragos. Diversas estações-relé para transmissão de energia pararam de
funcionar. Entre os robôs, as destruições vitimaram dois tanques, e sete guerreiros.
O Almirante Senekho perdeu a compostura, e esbravejava. Em contato constante
com a estação radiofônica da academia, recebia as sucessivas mensagens funestas, e
distribuía ordens. Nos intervalos, informava Árcon, pedindo instruções. Os verdadeiros
rebeldes tinham se safado, a despeito da internação da maioria dos naats.
Senekho desejava que os novos recrutas, os zalitas alistados, nada chegassem a
saber a respeito dos atentados.
Porém, tal desejo foi por água abaixo, pois o regente enviou a seguinte mensagem:
Exames médicos e instrução das tropas suspensos por três dias!
***
Notícia recebida com o maior alívio pelo grupo de Rhodan, quando Tanaka Seiko a
captou e transmitiu-a.
O plano fora coroado de êxito. O objetivo havia sido alcançado.
Pouco depois, Ras trazia de volta o hipno André Noir e Son Okura. Os dois
mutantes tinham conseguido submeter a controle hipnótico mais cinco aras. Os médicos
restantes seriam tratados na próxima noite. E a terceira noite seria reservada aos
instrumentos médicos de controle. A preocupação principal de Rhodan era “viciar” o
medidor de Q.I.; seus técnicos cuidariam disso. Não bastava que o aparelho fosse operado
pelo médico-chefe sujeito a bloqueio hipnótico.
Três dias e três noites se passaram. Os atos de sabotagem cessaram.
Quando o robô 574 ordenou a formação, em filas de cinco, diante do edifício-funil,
a fim de reiniciarem o treinamento interrompido no academia, Rhodan e seu grupo de
terranos estavam preparados.
Haviam tomado todas as providências para impedir que fossem descobertos pelos
aras. Calmos e tranqüilos, marcharam para o hospital na primeira turma. Um oficial
arcônida assumiu o comando no portão de entrada, mandando o robô 574 de volta.
Apesar de não prevista no programa, a intervenção daquele arcônida já não representava
perigo. John Marshall sondou-lhe os pensamentos, constatando que não suspeitava de
nada.
Foram admitidos em grupos de dez, com intervalos de um minuto. O aprimoramento
técnico permitia tão breve interstício, e a inspeção se processava rapidamente. Aras
subordinados conduziam cada grupo de uma sala de exames para outra.
Noir podia considerar-se satisfeito com sua obra. Bastava dar a palavra-senha ao
respectivo médico ao entrar no nicho, e podia estar certo de que o ara agiria de acordo
com o desejo dos terranos.
Rhodan integrava o primeiro grupo, assim como Noir, Atlan, Marshall e Gorlat.
Caso desse tudo certo com eles, teriam a garantia de que os exames dos catorze grupos
seguintes se processariam sem problemas.
— Salve o regente! — disse André Noir, ao entrarem duas horas após na grande sala
onde pontificava Bóris.
Erguendo o olhar, o médico-chefe deu com os olhos do hipno. Seus olhos brilharam
de forma estranha, depois estarreceram. Mas apenas por alguns segundos.
— Salve o regente! — replicou ele, fazendo sinal para seus assistentes.
Gesto completamente supérfluo, pois Noir controlara igualmente os assistentes. Os
procedimentos que teriam início agora não passariam de uma farsa, em proveito de
eventuais câmaras fotográficas ou microfones existentes.
O medidor de Q.I. funcionou “com perfeição”. Unicamente o quociente intelectual
de Atlan — agora Capitão Ighur — superava um pouco o de Rhodan e dos demais
terranos. Com isso, ele se colocava bem acima da média dos zalitas, circunstância que
mal despertaria suspeitas. Mesmo que houvesse dúvidas, Atlan nada tinha a recear na
eventualidade de um segundo exame. Como arcônida, possuía todas as características de
um zalita, inclusive a estrutura óssea.
As fichas foram encaminhadas ao arquivo. Seriam devidamente estudadas pelos
arcônidas, e aproveitadas de acordo com os resultados obtidos.
Quando o primeiro grupo deixou o hospital, e marchou de volta para os alojamentos,
a tarde já chegava ao fim. Um minuto após veio a segunda turma de dez homens.
— Salve o regente! — exclamou também Reginald Bell, quando seu grupo concluiu
a prova com Bóris.
Ainda enquanto deixava o recinto com seus nove companheiros, e eram conduzidos
por um ara para a saída, o código funcionou. O hipnobloqueio colocado por Noir no
cérebro de Bóris neutralizou-se, devolvendo-lhe o raciocínio normal... mas junto com as
falsas recordações.
O mesmo se deu com os demais médicos.
Chegara o intervalo para o almoço. Tinham examinado mil recrutas. Com mais
vagar e cautela do que de hábito, por ordem expressa do almirante. Em vez de mil e
quinhentos, apenas mil numa manhã.
Nenhuma ocorrência especial. E que ocorrências podiam aparecer, afinal...?
O ara Bóris parecia apático ao deixar o recinto, a fim de dirigir-se ao seu quarto.
Após a breve pausa do meio-dia, o trabalho recomeçaria. Monótono e sem novidades,
como sempre.
Quando Bell lhe informou que o derradeiro grupo passara pelos exames sem
dificuldade, Rhodan tranqüilizou-se. A parte mais árdua da “invasão furtiva” fora
superada. Dificilmente precisavam recear a descoberta agora.
Até agora, os cálculos de Rhodan tinham sido corretos, porém deixara de levar em
consideração determinado ponto.
Ao ouvir o ligeiro zumbido do minúsculo hiper-receptor oculto em seu relógio,
lembrou-se do tal ponto.
Ligou o aparelho com um aperto de dedo, e emitiu o sinal de que estava pronto para
receber. Podia comunicar-se agora com o Major Rosberg.
— Aqui posto avançado V-4, Sir. Aconteceu uma coisa horrível, Sir.
A voz de Rhodan tremia ao dizer:
— Conte, major...
E o Major Rosberg contou...
5

Quando se aproximaram de Tagnor, a tempestade de areia amainara.


Sobre o deserto brilhava novamente o céu limpo. O sol vermelho Voga descia
inapelavelmente para a linha do horizonte, porém Murgo afirmara que alcançariam a
capital antes de escurecer. Aviões isolados passavam a grande altura, sem baixar ou tentar
uma aterrissagem.
— Talvez nem estejamos sendo controlados — disse Rhog, otimista.
Mas o barbudo chefe da caravana sacudiu a cabeça.
— Não podemos contar com isso — discordou. — Pessoa alguma pode entrar ou
sair de Tagnor sem ser detida. A linha de controle ainda se encontra à nossa frente.
Prosseguiram em silêncio. Tagnor ficava além do horizonte. A não ser que tivesse a
consciência limpa, ninguém ousaria entrar em Tagnor. Porém, dos onze zalitas
componentes da caravana, nenhum tinha a consciência limpa.
Os contornos da cidade começaram a delinear-se ao longe. O espaçoporto com as
demais instalações à esquerda; as silhuetas de naves esféricas e esbeltos cargueiros zalitas
destacavam-se do deserto. Junto a eles, alguns cruzadores.
— Chegamos ao ponto crítico — observou Murgo, apontando para a frente.
Na claridade decrescente, Rhog reconheceu os tanques dos robôs. Estavam
dispostos a intervalos de cem metros. Totalmente impossível romper aquela barreira!
Com uma das mãos, Rhog segurou o punho de sua arma, que não lhe valeria de
muito. Com a outra, apalpou o passe falsificado. Os robôs perceberiam a alteração feita?
Murgo deteve seu veículo ao ver dois robôs encaminhar-se para eles. Desceu
desajeitadamente da cabina, e foi ao encontro dos emissários de Árcon. Rhog não
entendeu uma só palavra do diálogo, mas sabia que Murgo tentava explicar aos robôs a
finalidade da caravana, supostamente vinda de Larg. Talvez conseguisse.
Porém, depois o coração de Rhog quase parou de bater. Sombras emergiam do
escuro, na retaguarda. Um oficial arcônida e quatro robôs guerreiros juntaram-se ao
grupo.
Um arcônida era mais difícil de ser iludido do que um robô.
Também Murgo sabia disso, e levou tremendo susto. Havia previsto o controle por
parte de robôs, mas jamais contara com o aparecimento de um arcônida. A situação se
complicava.
— Mande seus homens se aproximarem — disse o oficial, secamente. — E que
tragam todos os documentos de identificação.
Murgo sentiu a ameaça em potencial, porém dominou-se. Nada de muito sério
poderia acontecer a ele, e a seus nove homens, pois tinham os passes especiais do
almirante. E, a rigor, a sorte de Rhog lhe era indiferente, apesar de ser constrangedora a
presença de um homem com passe falsificado na caravana. No entanto...
— Apresse-se!
Murgo ficou nervoso, e correu para os veículos.
— Desembarquem! — gritou. — E tragam seus documentos.
“Bem, a exigência não é das mais severas”, pensou. “Só espero que o arcônida não
queira controlar a carga”.
Mesmo desconhecendo ele próprio o conteúdo dos volumes, era fácil concluir que
estes não deveriam conter apenas animais. Suposição mais do que correta, devido às
misteriosas operações na caverna.
O oficial examinou minuciosamente cada documento, dedicando evidente interesse
aos passes especiais. Rhog procurou eximir-se ao controle, porém os robôs estavam
atentos. Quando tentava afastar-se com os zalitas já vistoriados, foi detido.
— Ainda não mostrou seu passe — disse um deles, segurando-o pelo braço.
O oficial percebeu o incidente.
— Venha cá, zalita! Seu passe!
Rhog pressentiu que sua missão fracassaria!
Na sua pistola havia duas, no máximo três cargas. Poderia liquidar aquele arcônida;
mas de que lhe adiantaria? Os quatro robôs — na realidade, eram muitos mais —
acabariam imediatamente com ele. E matariam também todos os integrantes da caravana.
Sua mão soltou a coronha da arma. Tirou o passe do bolso, e estendeu-o ao
arcônida. Em vão procurou achar uma saída, e teve de reconhecer que não existia
nenhuma.
O oficial tomou o passe, e olhou-o atentamente. Por fim ergueu os olhos
avermelhados de albino, nos quais se lia surpresa. Como se a presença de Rhog não
estivesse em seu programa. O arcônida parecia até um tanto desorientado.
— O passe foi falsificado — disse ele, finalmente.
Na sua voz não havia nem triunfo, nem ódio. Também denotava desorientação.
— Preciso levá-lo comigo. A caravana pode seguir.
Murgo suspirou de alívio. Pelo visto, não o responsabilizavam pela presença de
Rhog. Porém queria prevenir-se, para não tornar a passar mais uma vez por situação
semelhante, e talvez pôr em perigo a carga.
— Poderia dar-me uma declaração? — pediu.
— Para quê?
— Para mostrar, caso me detenham novamente. A mim, pouparia novos
retardamentos, e os robôs de Árcon não seriam ocupados desnecessariamente, podendo
dedicar-se a tarefa mais útil.
O argumento era convincente.
O oficial acenou, e tirou um papel do bolso, estendendo-o a Murgo. O barbudo re-
lanceou o olhar por ele, e guardou-o. Acenou quase imperceptivelmente para o pobre
Rhog, e retornou a seu veículo. Os demais zalitas já ocupavam seus lugares junto aos
respectivos volantes.
Segundos após, a caravana franquearia a linha de controle, seguindo pela rua
principal para o centro da cidade.
Porém Rhog ficou para trás...
— Siga-me! — ordenou o arcônida, desistindo de revistar o zalita.
Rhog agradeceu mentalmente a displicência do arcônida. Talvez ainda conseguisse
evadir-se. E na cidade havia esconderijos em abundância.
Os dois robôs de guarda retornaram às posições originais. Sem hesitar, o oficial
tomou Rhog pelo braço e saiu andando. Os quatro robôs acompanharam-nos à retaguarda.
Rhog adivinhou que havia oito radiadores apontados para suas costas, sufocando pela raiz
qualquer esperança de fuga. Correr agora equivalia a suicídio.
As ruas de Tagnor estavam desertas. Raramente Rhog avistava algum zalita, pois
todos tratavam de esconder-se rapidamente ao avistar o grupo. Nenhum zalita livre
parecia ter a consciência tranqüila, mesmo quando possuía passe especial.
“Quem poderia recriminar-me, caso eu tentasse fugir?”, refletiu. “Tenho uma
missão a cumprir, e por ela arriscarei a vida.”
Tudo estaria perdido se o enviassem a Árcon.
A oportunidade de fuga chegou antes do que esperava...
A caminho do palácio do Zarlt — onde ficava, também, o quartel-general do
almirante arcônida — o grupo passou pela vasta arena de lutas. Rhog já a conhecia, e
sabia que, justamente naquele bairro, inúmeras ruelas transversais ofereciam ótimos
esconderijos.
Antes que pudesse tomar qualquer iniciativa, foi beneficiado pelo acaso.
Quando o oficial, Rhog e os robôs dobraram a esquina de uma rua lateral, dois
zalitas surgiram a vinte metros do oficial. Estacaram surpresos ao dar com a patrulha. Se
houvessem prosseguido calmamente em seu caminho, talvez não tivessem despertado
suspeitas. Rhog admirou-se, aliás, por ver o arcônida reagir, pois, em diversas ocasiões
anteriores, deixara passar sem qualquer observação indivíduos suspeitos. Mas desta vez
foi diferente...
Quando giraram sobre os calcanhares, disparando de volta pela rua escura, o
arcônida parou, voltou-se e disse:
— R-56 e R-763! Perseguir e prender os dois!
Dois dos robôs se puseram imediatamente em movimento, correndo atrás dos dois
suspeitos, desapareceram na rua lateral.
Aí Rhog agiu como um raio.
Levava exatamente vinte metros de vantagem; três a quatro segundos, portanto, se
andasse depressa...
Rhog saiu em disparada!
Dois metros antes da esquina salvadora, sentiu o calor esbraseante de um tiro
energético. Diante dele, bolhas fervilharam nas paredes. Dobrou a esquina, e mergulhou
na providencial escuridão. Ouviu lá atrás os pesados passos dos robôs, e a voz estridente
do oficial, que reboava pelo labirinto de ruas abandonadas.
Rhog precipitou-se através de um beco...
Quando os dois robôs alcançaram tal viela, não viram mais sinal do fugitivo. Seus
holofotes perscrutaram paredes e portas das casas.
O arcônida chegou, ofegante a ponto de mal conseguir respirar.
— Onde está ele? — perguntou aos robôs. — Não pode escapar-nos!
— Desapareceu!
— Revistem as casas... depressa! Enquanto algumas dúzias de zalitas eram
indelicadamente arrancados do repouso noturno, Rhog prosseguia na fuga. Esgueirou-se
por um porão, saiu pelos fundos dele e acabou num pátio, onde achou um esconderijo
seguro. Ali poderia aguardar tranqüilamente até o dia seguinte.
Depois de amanhã, segundo esperava, poderia pôr em execução o plano longamente
acalentado.
***
Naquela noite, foi Gucky quem saltou para o palácio do Zarlt, a fim de intercambiar
informações com o falso Almirante Calus. Também, desta vez, Calus estava sozinho.
Porém, por via das dúvidas, trancou a porta, para que nenhuma “visita” inesperada os
surpreendesse.
Eram os únicos minutos do dia em que Calus podia tirar a máscara, e voltar a ser o
sargento Osega... naturalmente apenas no que se referia à maneira de portar-se.
— Ah, é Você! — exclamou, quando viu o rato-castor surgir no meio do quarto, e
gingar em direção da cama, aconchegando-se sobre os travesseiros. — Não poderia
acomodar-se em outro lugar, a não ser sobre minha cama?
— Em primeiro lugar, sou tenente, enquanto você é sargento. Portanto, mereço um
pouco mais de respeito quando falar comigo — replicou Gucky, em tom de censura. —
Segundo, a cama pertence a Calus, e não a você. E por último, camas são o lugar onde me
sinto mais à vontade.
— Primeiro — retrucou Osega, imperturbavelmente — acho falta de consideração
tratar todos por você, sem diferenciar postos ou nome. Segundo, eu sou Calus, portanto
esta cama agora me pertence. Terceiro, não me oponho ao uso de minha cama, desde que
venha de patas limpas.
Gucky fungou, furioso.
— Trata-se da sobrevivência da Terra, e você se preocupa com algumas manchas em
sua cama...
— Sou eu quem tenho de dormir sobre as manchas de sujeira — lembrou Osega. —
Desembuche agora! Que há de novo?
Gucky suspirou.
— Esta mudança de disposição... coisa horrível! Novidades? Ah, sim, chegou a
caravana com os suprimentos enviados pela Califórnia. Tudo funcionou às mil
maravilhas! Nenhuma pane! Amanhã mesmo o pessoal retornará para buscar a segunda
leva.
— Poxa, graças a Deus! Não poderia trazer-me algumas conservas da nossa velha
Terra? Estou farto da comida artificial arcônida!
— Ora, que idéia! — protestou Gucky, indignado. — Já imaginou que alteração
produziria aqui o fato de encontrarem em sua cesta de papéis uma lata com a inscrição
“Legítimos cogumelos bávaros”?
— Ora, eu detesto cogumelos — objetou Osega.
Realmente, poderia ter pensado em desculpa melhor, pois Gucky chiou, furioso:
— Cogumelos ou sardinhas, tanto faz! Não vai ganhar coisa nenhuma! Ordens de
Rosberg! A menor suspeita contra você pode arruinar todos os nossos planos.
Depois piscou, e exibiu o dente roedor num sorriso.
— Mas nada me impede de fazer-lhe um pequeno favor pessoal, meu caro. Amanhã
lhe trago alguma coisa.
— Isto é o que se chama ser camarada! — louvou Osega, satisfeito, alisando o pêlo
de Gucky, depois de ter sentado na cama ao lado dele. — Como estarão se saindo Rhodan
e seu pessoal?
— Não tenho idéia, Osega. Só podemos pensar que tudo está correndo bem. Caso
tivesse havido alguma dificuldade, já nos teriam avisado. Cuidemos, portanto, para que
aqui em Zalit tudo se desenrole de acordo com os planos. Ah, agora me lembro de uma
coisa! Enviamos ao encontro da caravana um tenente arcônida devidamente
hipnobloqueado, acompanhado por quatro robôs também pré-programados. Segundo nos
informara Toffner, a caravana se compunha de dez homens; porém contava com onze
quando foi detida pelo oficial. Como um deles viajava com um passe muito mal
falsificado, o tenente prendeu-o, tencionando conduzi-lo com a maior pressa possível
para o interrogatório. Porém o homem escapuliu nos arredores das catacumbas: Bem, não
deve ter assim tanta importância, mas achei que devia saber. Caso ouça qualquer
comentário a respeito, reaja como se não soubesse de nada. Na certa se trata apenas de
algum zalita em fuga diante dos arcônidas.
— Coitado — disse Osega, sem adivinhar de quem se compadecia. — Não sei,
porém, se poderei fazer algo por ele, caso seja outra vez apanhado. Nada de
comprometer-se, é nossa regra de conduta suprema. Tem razão, não deve ter grande
importância.
Osega não sabia que estava cometendo o maior erro de sua vida.
— Algum recado para levar? — indagou Gucky.
— Não, nada de novo. Amanhã farei o costumeiro pronunciamento na televisão, e
tenciono frisar mais uma vez a importância da campanha em preparação. Por enquanto
Árcon não revelou indício algum acerca do inimigo contra o qual se dirigem os
preparativos de guerra. Todos pensam que lutará contra os druufs.
— Organizarão novos transportes?
Osega sacudiu a cabeça.
— Não, por estranho que pareça. Temos nos nossos alojamentos o número
necessário de voluntários, mas Árcon suspendeu os transportes repentinamente. Como se
tivesse ocorrido algo inexplicável. Não aqui, no entanto, porém no próprio sistema de
Árcon.
O rato-castor começou a rir. Seu dente roedor avançou, exibindo-se em todo seu
esplendor.
— Rhodan! — pipilou ele, eufórico. — Quem mais?
Osega demonstrou surpresa.
— Julga que é obra dele? Fantástico!
— Efeito colateral assaz satisfatório de nosso empreendimento, com o qual nem
contávamos. Agora os pobres zalitas ainda têm uma chance, apesar de já estarem nos
alojamentos.
Osega acenou.
— De fato. Talvez nunca sejam levados para Árcon. Lamentável que não possamos
comunicar-lhes o esperançoso fato. Terão que continuar a viver amedrontados.
— Nada de amolecer agora, “senhor”! — disse Gucky, empregando talvez pela
primeira vez em sua longa vida a palavra senhor, se bem que em tom irônico. — Não
pode cometer nenhum erro!
— Os zalitas tremerão diante de mim — assegurou Osega, estendendo a mão ao
rato-castor. — Até amanhã à noite. E não esqueça de cumprir sua promessa. Um naco de
presunto, seria fabuloso!
— Carnívoro! — disse Gucky, desdenhosamente, e desmaterializou-se.
Assustou-se, talvez, com o manifesto apetite de Osega por um pedaço de carne.
Dez minutos após, Osega dialogou com o oficial arcônida que efetuara o controle da
caravana. Foi informado de todos os detalhes da fuga do zalita suspeito, portador de um
passe falsificado. Despediu o tenente sem censurá-lo.
Depois foi dormir.
A manhã seguinte foi gasta em trabalhos de rotina, depois almoçou — o cardápio
constava de pratos sintéticos — e recebeu alguns oficiais do alojamento de recrutas. Nada
teve a dizer-lhes, pois Árcon não dera explicação para a suspensão dos transportes.
À tarde, mandou vir o carro e dirigiu-se à estação de televisão.
O cordão de robôs de guarda abriu-se, dando passagem ao almirante. Alguns zalitas
imunes ao recrutamento, devido às funções indispensáveis que exerciam, saudaram o
almirante no caminho, com acentuada subserviência.
Na sala de transmissões, tudo estava preparado. Diariamente, à mesma hora, Calus
apresentava seu programa de trinta minutos. Quando tomou lugar diante da mesa
semicircular, e começou a ordenar seus apontamentos, três câmaras apontavam para ele.
Da porta, o operador zalita de plantão lhe fez sinal.
— Zalitas! — começou Osega, de modo frio, mas plenamente consciente do quanto
detestava a encenação que era obrigado a fazer. — O regente está insatisfeito com vocês!
Por todos os cantos de Zalit escondem-se os refratários, e nossos apelos a eles ficam sem
resposta. Então, por ordem do regente, o controle passará a ser mais rígido, e haverá
menos exceções. Só em casos verdadeiramente excepcionais serão emitidas dispensas do
serviço militar. O regente ordenou ainda que, dentro de no máximo um mês, a totalidade
dos zalitas esteja registrada. Quem quer que seja encontrado após esta data sem passe
válido, deve esperar severa punição, provavelmente fuzilamento.
Osega fez uma pausa.
O ruído das três câmeras o deixava nervoso; apesar de dispensarem operador, pois
trabalhavam automaticamente, hoje havia um. Jamais o vira na central radiofônica.
Cautelosamente, Osega levou a mão à arma enfiada no cinturão. Contava sempre
com a possibilidade de algum zalita fanático cometer um atentado. Até ali dentro,
literalmente cercado por robôs de guarda.
No entanto, de que forma poderia algum sabotador chegar até ali? Proibiam
rigorosamente a entrada de qualquer elemento não pertencente à equipe técnica.
O zalita verificou o bom funcionamento das câmaras, acenou com a cabeça, e
desapareceu.
Osega suspirou, aliviado. Junto à porta, um robô imóvel montava guarda. Seus dois
braços armados apontavam para baixo. Mas em questão de segundos, os mortíferos raios
energéticos poderiam disparar em todas as direções.
— Gostaria de frisar mais uma vez — continuou Osega em sua arenga — que Árcon
faz questão cerrada de considerar os zalitas como aliados. Enfrentamos unidos um
poderoso adversário, que é preciso aniquilar. Talvez o alistamento forçado esteja sendo
feito com excessivo rigor, porém Árcon não tem outra escolha.
Neste ponto do discurso, Osega foi interrompido!
Um zalita precipitou-se pela porta guardada pelo robô. Esgueirando-se pelo lado,
avançou em direção de Osega. Por trás do falso almirante, ecoavam gritos e brados de
alarme.
O robô reagiu prontamente, mas não pôde fazer nada. Caso fizesse uso de suas
armas, o Almirante Calus correria perigo sem necessidade. Aproximou-se rapidamente
para a mesa na qual Calus estava sentado.
Porém Osega já estava de pé. Reconhecera o perigo.
O invasor zalita encontrava-se agora à sua frente, diante das câmaras. Milhões de
zalitas presenciariam a cena em seus televisores.
— Queremos que Árcon nos deixe em paz! — berrou Rhog, sacando bruscamente
sua arma. — Mande o robô sair daí, Almirante Calus!
Osega deu uma ordem ao robô, mas o colosso não obedeceu. Apesar de estar a três
metros deles, não se afastou. O sargento percebeu que precisava agir depressa, caso
quisesse sobreviver. Por outro lado, não devia comprometer o plano de Rhodan.
Poderia, naturalmente, dizer ao zalita que ele se enganava, que iria assassinar o
melhor amigo de sua pátria. Poderia dizer-lhe que o Almirante Calus fora aprisionado
pelos oponentes de Árcon há muito tempo. Porém milhões de zalitas escutariam
igualmente suas palavras... assim como os atentos arcônidas.
Ninguém providenciou a interrupção da transmissão. Menos que quaisquer outros,
os zalitas. Era uma preciosa oportunidade para mostrar-se superior aos arcônidas.
Tamanha derrota, bem diante das câmaras de televisão...
Osega via uma única saída: para continuar vivo, e ao mesmo tempo não revelar os
planos de Rhodan, precisava matar o zalita antes que este o alvejasse.
Porém ainda tentou outra solução.
— Espere, zalita — disse, com a maior calma possível. — Está cometendo um
engano fatal. Não quer escutar-me, antes de agir?
— Morra, servo do Império! — gritou Rhog, dramaticamente, e ergueu a arma. —
Todos vocês são servos, escravos do cérebro-robô!
Apertou o gatilho antes que Osega tivesse oportunidade para sacar a própria arma. O
sargento tombou antes de chegar a sentir dor, e morreu diante dos olhos de um planeta
inteiro. Escorregou desamparado ao longo da quina da mesa, e abateu-se no chão.
Mas também Rhog morreu. O robô, agora com toda a liberdade de ação, abriu fogo.
Atravessado por três ou quatro raios energéticos, caiu sem um gemido. Seus
companheiros, nas longínquas montanhas, presenciaram sua morte, junto com os demais
habitantes do planeta. Porém seu sacrifício representava enorme sucesso. Pois também
Calus havia perecido.
Os mortíferos raios do robô puseram as câmaras fora de ação. Por toda a parte em
Zalit, as telas escureceram, Mas todos sabiam: Calus está morto!
Algo iria acontecer!
E boa porção de zalitas sentiu-se invadida por repentino medo.
Entre eles, Cagrib e seus amigos, reunidos em silêncio, e cheios de dúvidas, diante
do televisor na caverna que lhes mostrara o holocausto de Rhog.
6

Quando a voz de Rosberg emudeceu no minúsculo receptor, Rhodan levou quase


dois minutos para dizer:
— Sinto a morte de Osega, Rosberg. Ele não precisava ter morrido.
— Mas não morreu em vão, Sir — replicou Rosberg.
De maneira alguma, a hipermensagem poderia ser captada. Os ondas radiofônicas
estavam bem concentradas. Mesmo assim, a cautela era recomendável. Caso alguma nave
atravessasse o facho, com o receptor casualmente ligado na mesma freqüência, sempre
seria possível...
— A vida de uma pessoa é preciosa demais para compensar qualquer utilidade que
trouxesse sua morte. Além disso, o desaparecimento de Osega representa muito mais
prejuízo e perigo para nós, do que proveito. Que acontecerá se examinarem o cadáver? E
Árcon enviará outro almirante para Zalit. Teremos que substituir também este?
Porém Rosberg se fixara apenas numa das perguntas...
— Meu Deus... se examinarem o cadáver! Os arcônidas perceberiam imediatamente
que este Calus era um farsante! Que devo fazer?
— Tire o cadáver da estação radiofônica, Rosberg! Mande Gucky ir buscá-lo.
— Seria impraticável. O morto já foi retirado. O Almirante Calus vai ter um enterro
oficial em Árcon.
— Ainda mais isso! — Rhodan refletia febrilmente. — Impeça-os! De qualquer
maneira! Mais alguma coisa?
Rosberg hesitou. Sua voz tinha um tom indeciso.
— Precisamos contar com um agravamento da situação em Zalit. O regente
anunciou uma expedição punitiva.
— Vai ter de resolver isso também, Rosberg. Não posso prestar-lhe ajuda no
momento. Avise-me, caso as coisas se tornem críticas. Até mais e boa sorte!
— Da mesma forma — veio a resposta, e a comunicação foi cortada.
— Se o regente reconhecer um terrano em Calus, estaremos fritos, Perry —
comentou Atlan, secamente. — Espero que Rosberg consiga fazer o enterro de Osega.
— Esperemos que sim — concordou Rhodan, gravemente.
Por maior que fosse o presente perigo, não tinha meios de contorná-lo de onde
estava. Era como uma espécie de destino, sobre o qual não se tinha influência alguma.
— Nossa atual preocupação é evitar a ocorrência de falhas aqui. Amanhã, conforme
informou Seiko, serão feitas as designações. Vamos ver que espécie de nave nos confiam.
— Sem instrução, nem formação? — perguntou Bell, admirado.
— O regente não perde tempo. Ordenou que todos os ex-oficiais espaciais zalitas
sejam nomeados comandantes provisórios. Receberão uma tripulação à qual deverão
ministrar adestramento prático. Durante os vôos de treinamento.
— Bastante ortodoxo — disse Atlan, impressionado. — Parecem ter pressa de atacar
a Terra. Estranho, levando em conta que o regente nem sabe onde procurá-la.
Calou bruscamente, fitou Rhodan, e acrescentou:
— Ou saberá...?
— Duvido — respondeu Rhodan. — Provavelmente trama novo ataque aos druufs.
Olhou para fora, através da janela. Além das construções achatadas ficava o
pedregoso deserto da lua, que representava um posto avançado de Árcon. Algumas
nuvens eram arrastadas pelo vento gelado, encobrindo passageiramente a luz das estrelas.
Um mundo inóspito, e, no entanto, em sua superfície se decidiria o ulterior destino da
Terra. Pelo menos no que se referia à primeira fase.
— Não, não creio, Atlan. Pois se o regente conhecesse a posição da Terra, já o
saberíamos por intermédio do Marechal Freyt, em Terrânia. O regente teria atacado
imediatamente.
— Preocupações e incertezas! — praguejou Bell, impaciente, rumando para sua
cama. — Vou é dormir, para acabar com estes irritantes pensamentos. Quem quer minha
ração para animais peçonhentos?
Fome todos eles tinham, porém ninguém se candidatou.
***
Por volta do meio-dia, tudo estava mais ou menos decidido.
De acordo com os resultados da inspeção, registrados nas fichas dos aras, o
Almirante Senekho distribuíra o pessoal. Os zalitas com quociente intelectual elevado
foram nomeados oficiais, receberam o posto de comandante e chefe de grupo; cada qual
teve igualmente uma tripulação. Felizmente Senekho se preocupara em conservar unidos
os vários grupos de treinamento. Unicamente devido a esta circunstância, Rhodan e seu
pessoal não foram separados.
— Então nossa “banheira” se chama Kon-Velete — comentou Bell, cansado, ao
retornarem para o alojamento, depois da exaustiva cerimônia de distribuição de cargos.
— E nosso comandante é um tal de Ighur, batizado na vida civil com o nome de Atlan.
Senekho nem se dignou levar em consideração os antigos postos militares. O Major
Sesete e o Major Roake são agora primeiro e segundo-oficial. E eu sou forçado a
obedecer às ordens de um capitão...
Rhodan sorriu.
— E que outra alternativa temos? Pelo menos estamos sendo coerentemente
comandados por um arcônida, que, além disso, vem a ser almirante legítimo. Que mais
poderíamos querer?
— Já é um consolo — admitiu Bell.
— A situação é muito mais complicada do que imaginamos. — objetou Atlan. — A
Kon-Velete é uma nave de guerra novinha em folha, da classe de nossa Stardust, e seu
diâmetro é de oitocentos metros. De certa forma, podemos falar em sorte por termos
recebido uma tripulação de apenas duzentos homens; no entanto, com isso o Almirante
Senekho nos impôs a estreita convivência com cinqüenta zalitas desconhecidos.
Rhodan sacudiu a cabeça.
— Se estivéssemos sozinhos na nave, teríamos que agir com igual cautela. Tenho
certeza de que câmaras ocultas informam continuamente o regente e seus oficiais acerca
do comportamento dos novos soldados. Em outras palavras: como zalitas, teremos de agir
demonstrando claramente que nos sentimos sob observação; como terranos, temos de
conscientizar-nos de que somos incessantemente vigiados. Portanto, cada segundo de
permanência na Kon-Velete passa a ser de total encenação. Até durante o sono. Espero
que ninguém tenha o costume de falar dormindo, arriscando-se a pronunciamentos
comprometedores.
— Preocupo-me muito mais com a situarão em Zalit — disse Gorlat, hesitante. —
Ignoramos o que se passa lá. Aqui ainda temos a possibilidade de viver os
acontecimentos, mas em Zalit...
Não concluiu a frase. Antes que Rhodan pudesse replicar, ouviram um estalido no
alto-falante. A voz do robô 574 disse:
— As tripulações já designadas devem ir para bordo das naves dentro de duas horas.
Vôo experimental em condições de batalha simulada. Ordens adicionais posteriormente.
O alto-falante emudeceu.
— É, eles estão realmente com pressa — comentou Atlan, de modo sarcástico.
***
Sob certos aspectos, a Kon-Velete era decepcionante. Apesar de tratar-se de uma
embarcação nova, recém-saída dos estaleiros de Árcon; mas fora planejada originalmente
para robôs. Instalações sanitárias improvisadas revelavam a rápida conversão para
tripulantes humanos. Os alojamentos sem conforto eram deprimentes.
Atlan sentia-se meio desorientado na central de comando. John Marshall, Gorlat,
Bell e Rhodan lhe faziam companhia, depois de terem providenciado a distribuição
adequada de todos os membros da tripulação, tanto terranos como zalitas.
A nave estava pronta para decolar.
John Marshall captou telepaticamente a mensagem radiofônica modulada de Atlan.
— Poderíamos comunicar-nos desta forma, em caso de necessidade? Pergunte a
Rhodan!
O telepata transmitiu silenciosamente o recado. Rhodan acenou. E depois pelo
receptor de capacete, Atlan recebeu a resposta:
— Sim, mas só em caso de absoluta emergência. A partir de agora, somos zalitas
dispostos a servir ao regente. Vamos procurar conquistar a confiança do cérebro-robô.
Atlan parecia tranqüilizado. Reconfortava-o saber que poderia buscar conselho em
caso de perigo.
Não puderam evitar que os dois oficiais zalitas Tenente Kecc, e Tenente Hopro,
ocupassem posições importantes. Precisavam evitar suspeitas. Ambos possuíam
quociente intelectual bastante elevado para justificar encargos de responsabilidade. Por
sugestão do Almirante Senekho, o Tenente Kecc fora até nomeado radioperador-chefe da
Kon-Velete, enquanto Hopro foi designado para a equipe técnica, entre zalitas e terranos.
— Estas camas são apropriadas para robôs, e não para gente de ossos quebráveis —
disse Bell em zalita.
“Um tantinho de crítica é mais do que insuspeito”, pensou.
— Ainda tiveram tempo de mudar a linha de produção em Árcon. Quando é que
zarpamos, afinal? — continuou logo depois.
— Lembre-se de que até agora as naves de Árcon costumavam ser tripuladas
exclusivamente por robôs — disse Rhodan, continuando a conversa destinada aos
ouvidos do regente. — Devemos nos considerar honrados, nós os zalitas, por nos
permitirem substituir os infalíveis robôs. Por sorte, temos também robôs especiais a
bordo para nos amparar, apesar de estarem sujeitos às ordens de nosso Capitão Ighur.
Um pouco afastado, Gorlat contemplava, aparentemente distraído, os controles da
central. Na tela ligada, via-se o espaço-porto de Naator. Sabia que existia mais de um
espaçoporto na lua do quinto planeta.
Nave alinhava-se ao lado de nave. Uma frota inteira estava pronta para o primeiro
exercício. Caso tudo corresse conforme o programa, não estaria longe o dia em que o
almirante recebesse a ordem decisiva de conduzir toda a frota para Árcon.
— A Kon-Velete diferencia-se enormemente de nossos cruzadores zalitas —
constatou Rhodan, com o maior fingimento. — Com tais naves, Árcon vencerá a guerra.
— Absolutamente correto, Major Sesete — concordou Bell no mesmo tom,
suprimindo até o costumeiro sorriso irônico. — Sinto-me orgulhoso por poder servir ao
regente sob o comando do Capitão Ighur.
Atlan decidiu participar também do improvisado jogo de palavras, porém a porta da
central foi aberta, deixando entrar um robô. Dirigindo-se para Atlan, disse, em sua voz
rascante e impessoal:
— O Almirante Senekho me encarregou de dar-lhe apoio em suas funções. Fui
comandante da Kon-Velete, e trouxe-a de Árcon para cá. Disponha de mim, capitão.
— Vou procurar cumprir minhas obrigações sem sua ajuda — replicou Atlan,
respeitosamente.
Era certamente a primeira vez em sua vida que demonstrava tanta consideração a
um robô, porém queria provar ao regente — caso ele estivesse escutando secretamente —
seu respeito por robôs.
— No entanto, ser-lhe-hei grato, evidentemente, se puder evitar que eu cometa
erros. Em caso positivo, espero que me alerte a tempo.
— É exatamente esta minha obrigação— replicou o robô.
Outra tela se iluminou. A fisionomia de Senekho apareceu nela. O comandante de
Naator disse:
— A frota decolará dentro de poucos minutos para um vôo de treinamento. Cada
comandante estará em contato direto comigo, recebendo de mim as instruções para o
curso. Hoje quero constatar unicamente se os diversos comandantes se entrosam bem
com as tripulações. Em caso contrário, faremos substituições. Tudo pronto para a
decolagem? Solicito confirmação por parte dos comandantes.
O radioperador-chefe entrou na central.
Era um zalita típico, alto e aparentemente muito prestativo.
— Comunicação estabelecida, Capitão Ighur. Pode falar com o Almirante Senekho.
Vou providenciar para que o rádio permaneça em funcionamento, e possa ser operado da
central.
— Obrigado, Tenente Kecc — replicou Atlan, tornando a voltar a atenção para a tela
que mostrava Senekho. — A Kon-Velete está pronta para decolar, almirante. Aguardamos
suas ordens.
7

Gucky não pudera acompanhar Rhodan para Naator porque, nem com a melhor boa
vontade, e apesar dos recursos disponíveis, seria possível disfarçá-lo de zalita. Porém não
se encontrava só na desgraça. Outro mutante se revelaria por sua figura: o “incendiário”
Ivã Ivanovitch Goratchim. Pois Ivã possuía duas cabeças. Não era, no entanto, sua
característica mais destacada. Era capaz de transformar em energia pura qualquer espécie
de matéria que contivesse um mínimo traço de cálcio ou carbono; e isto a grandes
distâncias, e geralmente sob a forma de uma tremenda explosão, de natureza atômica.
Ivã vinha a ser uma arma inimaginavelmente perigosa, quando empregado de
maneira adequada. O filho de cientistas russos fora descoberto outrora na Sibéria pelo
Supercrânio, um dos grandes adversários de Rhodan, há anos passados. Derrotado o
Supercrânio, Ivã passou a integrar o Exército de Mutantes.
O Major Rosberg começou a sentir-se mal com o silêncio. Olhou de relance para
Gucky e disse:
— Não vejo possibilidade de tirar o cadáver de Osega das garras dos peritos
arcônidas. Nem sabemos, presentemente, onde é que ele está. Só sei que vamos passar
um mau momento, caso constatem que Calus não é Calus.
Acocorado sobre uma cadeira, o rato-castor deixava Betty Toufry acariciar-lhe o
pêlo, como se não houvesse outra preocupação em todo o mundo. À sua frente,
sentavam-se Ishy Matsu e o mutante de duas cabeças.
— Em Tagnor vivem ainda cerca de vinte milhões de zalitas, sem contar os
forasteiros presentes, e os arcônidas. E todos estes vinte milhões pensam, se bem que se
ocupem apenas com assuntos tolos e supérfluos. Porém pensam, e isso é decisivo. Cada
pensamento representa uma pista, um impulso. E precisam ser investigados um por um.
Mas quanto tempo levaremos para examinar todos eles?
Rosberg sabia disso, e nem pensava em recriminar o rato-castor.
— Osega não existe mais, senão poderia informar-nos. Mais do que lógico que
participassem ao Almirante Calus onde se encontra o cadáver — ora, que bobagem estou
dizendo! Mas é para qualquer um perder o juízo!
Gucky riu sardonicamente.
— Dê-se por feliz por ter um para perder, Rosberg. Mesmo que soubéssemos onde
está o cadáver de Osega, como poderíamos resgatá-lo sem despertar suspeitas? Se algum
arcônida puser os olhos sobre mim...
— Aí é que está! — concordou Rosberg. — Vamos ter que desistir de seus serviços.
O cadáver precisa desaparecer, nem mais, nem menos. Mas de modo algum deve
desaparecer em circunstâncias misteriosas. Que problema mais complicado!
O Major Rosberg era militar, habituado à ação direta. Porém surripiar o cadáver de
Osega equivalia realmente a um verdadeiro caso policial. Tal ação não era adequada à sua
índole.
— Quem sabe Toffner consiga alguma coisa — consolou Betty Toufry,
interrompendo sua busca telepática. — Perdi-o momentaneamente, assim como seus dois
amigos. Rondam os arredores do palácio.
— Espero que sim — disse Rosberg. — Além disso, dificilmente descobririam tão
depressa a falsa identidade de Calus. O disfarce de Osega é excelente. E por que se
lembrariam de radiografar um morto?
— Não devemos raciocinar nestes termos — avisou um dos cientistas do
departamento bioquímico, destacado para ficar em Tagnor. — As probabilidades de
descoberta reduzem-se no máximo a cinco por cento, mas até isso já é demais.
Precisamos apossar-nos do cadáver de Osega! Aliás... — acrescentou, com um olhar de
relance para os nichos encortinados onde trabalhavam seus colegas — ...que faremos com
o verdadeiro Calus? Continua sendo prisioneiro nosso.
— Talvez Rhodan o solte algum dia, depois que isso tudo tiver acabado — opinou
Rosberg. — De momento, não nos serve de nada.
Betty, que tornara a aprofundar numa espécie de meditação, levantou
repentinamente a cabeça.
— Creio — disse ela com convicção — que achei uma pista.
Rosberg indagou:
— Toffner?
Ela acenou em silêncio, e voltou a escutar o confuso burburinho de milhões de
impulsos mentais, dos quais um único os interessava.
***
Os três zalitas possuíam os passes especiais assinados por Calus, isentando-os do
serviço militar. Mas até quando, naquelas circunstâncias, a assinatura do almirante teria
validade? Portanto, continuava sendo perigoso aproximar-se muito dos arcônidas. Porém
não lhes restava outra alternativa, caso quisessem prestar ajuda a quem os amparara
anteriormente.
Toffner não era zalita, naturalmente, fato do qual nem Kharr, nem Markh
suspeitavam. Arranjara passes para ambos, e eles fariam tudo que estivesse ao seu
alcance para demonstrar sua gratidão, assim como aos amigos de seu benfeitor.
Um robô encaminhou-se para eles, a passadas firmes; fazia parte do cinturão de
controle do palácio. Os arcônidas não gostavam de fiar-se nos soldados do Zarlt, a
despeito da aparente fidelidade deste ao regente.
— Que procuram aqui? — indagou em sua voz metálica.
Toffner exibiu o passe, e a licença especial.
— Sou Garak, o administrador da arena de lutas. Estes dois homens são meus
auxiliares. Tentamos organizar novos jogos, a fim de levantar o moral dos zalitas.
Solicitamos uma entrevista com o Zarlt.
— Por que não se alistaram na frota?
— Somos incapazes para o serviço militar, todos os três. Eis os documentos
comprobatórios.
O robô examinou conscienciosamente os papéis, mas parecia indeciso se concedia
ou não permissão para entrarem no palácio.
— Esperem! — ordenou e dirigiu-se para o portão.
De repente parou, sem mais um movimento. Toffner sabia que o fato nada tinha de
extraordinário. O robô estava simplesmente pedindo instruções a seus superiores, através
do rádio.
O robô voltou.
— Meus oficiais acham que o reinício dos jogos atrairá muitos homens para Tagnor.
A audiência com o Zarlt foi concedida. Entrem.
Toffner suspirou intimamente, porém ao mesmo tempo, sentiu-se tomado por
enorme preocupação. Realmente, veriam Zarlt, e falariam com ele; no entanto, a
verdadeira finalidade da entrevista era outra. Talvez viessem a saber algo acerca do
paradeiro do cadáver de Calus, se é que o Zarlt fora informado a respeito.
O robô acompanhou-os até a entrada, onde os entregou a dois soldados zalitas,
pertencentes à guarda pessoal do Zarlt. Apesar de não serem vistos com bons olhos,
continuavam sendo zalitas. E, afinal, não tinham outra escolha: precisavam obedecer ao
Zarlt e aos arcônidas, caso não quisessem partilhar o destino dos “voluntários”.
Tiveram que identificar-se por mais duas vezes, antes de penetrar no palácio
propriamente dito. Foram recebidos por um zalita vistosamente fardado.
— O Zarlt o espera, Garak. Sigam-me.
Kosoka era idoso, e fraco demais para opor-se à vontade dos arcônidas. Ainda
estava imbuído da milenar reverência pelos senhores do Império, apesar de o poder já ter
passado há muito tempo para um cérebro-robô. O Zarlt Kosoka era servidor do regente
— servidor digno de toda a confiança, por seu medo e cansaço.
Ele ocupava uma poltrona elevada na sala de audiências, e recebeu os visitantes com
ar indeciso.
— É por causa da arena? — perguntou ele, depois de Toffner, Markh e Kharr
fazerem suas reverências. — Não temos jogos há muito tempo. Por quê, Garak?
— Não há gladiadores, senhor, faltam também as expedições necessárias para
capturar animais selvagens. Aqui está Markh, o negociante de animais. Não pode ir
sozinho para o deserto, a fim de aprisionar haracks ferozes.
Kosoka acenou.
— Compreendo, Garak. Você veio fazer-me uma proposta. Fale!
Toffner percebeu que se desviavam cada vez mais do verdadeiro objetivo de sua
visita. Mas talvez fosse necessário.
— Existem muitos zalitas considerados incapazes durante as inspeções. Poderíamos
convocá-los para apoiar Markh numa expedição pelo deserto, pagando-os bem, claro.
— Markh não pode arranjar homens por si próprio?
Toffner admirou-se por encontrar rapidamente uma desculpa.
— Não, e bem que ele tentou, Zarlt. O pessoal anda desconfiado. Enxergam ciladas
arcônidas por trás de qualquer oferta. Mesmo quando possuem o atestado de isenção,
vivem atormentados pela incerteza. Só conseguiríamos homens, caso o Zarlt lhes
garantisse a segurança num pronunciamento público.
O homem idoso hesitou. No íntimo, concordava com os argumentos de Garak-
Toffner, porém não sabia se deveria aceitá-lo prontamente.
— Tenho que aguardar a chegada do sucessor de Calus — disse, numa evidente
tentativa de ganhar tempo. — O novo almirante deve chegar nos próximos dias. No
entanto, receio que... — involuntariamente sua voz ficou mais baixa — ...Árcon não
esteja lá muito satisfeito conosco no momento. O assassinato de Calus...
— Uma vergonhosa nódoa em nossa história — lamentou Toffner, falsamente. — O
Almirante Calus era grande amigo de Zalit e de seus habitantes. Pena seu assassino ter
morrido tão depressa; mereceria uma morte mais lenta.
Pelo menos haviam chegado ao assunto. Talvez pudesse arrancar do Zarlt algum
comentário revelador. No entanto, Toffner ignorava que havia sido localizado pela
telepata Betty Toufry, que agora escutava toda a conversa. Além disso, era capaz de
captar igualmente os pensamentos do Zarlt, e não apenas “ouvir” suas palavras.
— O Almirante Calus será substituído por um homem severo — disse Kosoka, sem
grande interesse. — Talvez até por alguém que proíba os jogos, e invalide os passes
especiais. Ouvi comentários a respeito.
— Mais um motivo para amaldiçoar o assassino. Eu venerava Calus, pois livrou-me
do serviço militar. Chegou a falar comigo certa vez, quando me encontrou na rua.
Gostaria de vê-lo mais uma vez, antes que seja levado para Árcon.
O Zarlt inclinou-se ligeiramente, e fitou Toffner.
— O cadáver...?
— Sim, o cadáver de Calus! Por que não prestar-lhe minha reverência, se representa
um homem que venero?
Kosoka voltou a recostar-se em seu assento.
— Infelizmente não vai ser possível, Garak. O cadáver do Almirante Calus já se
encontra a bordo da nave que o conduzirá a Árcon. Ser humano algum o acompanhará,
pois a nave é tripulada por robôs. O último vôo de Calus será este. O espírito dele pilotará
o cruzador-correio.
Toffner sentiu-se como se tivesse recebido um soco no rosto. Era o que queria saber,
e as coisas estavam pretas para ele próprio, e para os demais, caso o Zarlt falasse a
verdade.
Despediu-se com algumas frases tolas sobre a arena, prometendo voltar assim que o
novo almirante tivesse chegado.
Os três homens puderam deixar o palácio sem maiores dificuldades. Rumaram pelo
caminho mais curto para o esconderijo nas catacumbas. Para sua surpresa, constataram
que o pessoal já estava informado.
Em resposta à pergunta de Toffner, Betty Toufry explicou:
— O Zartl não mentiu, falou a verdade. O cadáver de Osega já se encontra numa
pequena nave-torpedo, tripulada por dez robôs. As coordenadas foram determinadas. A
nave deve decolar assim que o novo almirante chegue, e dê a ordem. Portanto, ainda
temos dois dias. Até lá...
A telepata silenciou, desalentada.
Toffner fitou o Major Rosberg.
— E agora, Sir? De jeito nenhum poderemos tirar Osega de uma nave arcônida.
Caso o retirarmos de lá, as suspeitas se voltarão para o Exército de Mutantes. Tal grupo é
conhecido demais para que sua intervenção não se revele flagrantemente. Não podemos
apelar para telecinese ou teleportação!
— Receio que tenha razão — concordou o major, mergulhando em profunda
reflexão.
***
Enquanto a mais de três anos-luz, o comandante Ighur empreendia, junto com seus
duzentos homens, o segundo vôo experimental, com total satisfação do almirante, a
situação, em Zalit, se agravava cada vez mais.
O sucessor de Calus chegara, e trazia terríveis ordens. Dali por diante, todo zalita
encontrado com uma arma devia ser fuzilado. Também devia esperar a pena de morte
quem não se apresentasse à comissão de recrutamento. Os papéis expedidos por Calus
foram declarados sem valor. O portador precisaria submeter-se a nova inspeção.
De um dia para outro, a situação se modificara.
Para Rosberg, não foi fácil aceitá-la. Afinal, o Calus por cuja morte
responsabilizavam e puniam os zalitas, ainda estava vivo. Hipnobloqueado, o apático e
desmemoriado almirante descansava em seu modesto leito, sem causar o menor
problema. Porém não podia ser libertado. Seu aparecimento provaria imediatamente ao
regente que seu mais perigoso adversário estava por perto. Em vez de melhorar, a
situação pioraria.
Os dois zalitas Markh e Kharr recusavam deixar o esconderijo. Não sabiam que seus
amigos eram terranos, porém adivinhavam que seus passes haviam perdido a validade.
Caso fossem detidos, iriam parar com toda a certeza no espaçoporto, no acampamento
dos conscritos. Toffner mostrou opinião contrária.
— Mesmo que a assinatura de Calus não valha mais nada, na certa não começarão a
prender ainda hoje todo portador de passe. O processo de reformulação vai durar
semanas. Não tenho o menor receio de ser visto em Tagnor. Se me intimarem a
comparecer diante da comissão de recrutamento, eu vou.
Com uma risada, concluiu:
— Sem dúvida terei permissão para ordenar meus assuntos privados antes da partida
para Árcon. O Zarlt me ajudará.
Betty Toufry, que estava de vigília, controlando telepaticamente os arcônidas, disse:
— A nave de Osega vai decolar ainda esta noite. Acabei de sabê-lo, escutando a
conversa de alguns oficiais.
Rosberg acenou.
— Discutimos tudo detalhadamente ontem, e o plano continua de pé. Cada
participante conhece sua tarefa. Você é o primeiro, Toffner. Como estação-de-relé, se me
permite designá-lo por este nome, sabe o que tem a fazer. Desejo-lhe boa sorte.
— Bem que vai precisar dela! — piou Gucky. — Se tiver azar, vou resgatá-lo.
“Andando” depressa, ninguém me verá.
— Fará o que eu ordenar! — declarou Rosberg, com rispidez fora do comum.
Ainda excitado, dirigiu-se a Toffner:
— Vá, agora. Não podemos perder mais um só minuto.
Toffner saiu sem se despedir. Conhecia sua tarefa, e a cumpriria.
Alcançou a primeira zona policiada, diante do aeroporto, sem ser detido. A sensação
de estar constantemente em contato com seus amigos, através de Betty Toufry,
tranqüilizava-o; apesar de unilateral, porque ele não era telepata. Mas eles estariam
sempre a par do que acontecia em torno dele.
— Agora vem o primeiro controle — sinalizou ele, quando os dois robôs de guarda
lhe barraram o caminho.
Exibindo seus papéis, declarou:
— Gostaria de falar com um oficial — sem demonstrar temor continuou,
atrevidamente: — Informações importantes.
— De que natureza? — quiseram saber os robôs.
— Isso não posso revelar. Saibam apenas que se trata de desertores. Sei onde se
escondem.
Aquilo causou efeito. Toffner recebeu permissão para entrar na área do espaço-
porto. O oficial mais próximo fora avisado, disseram-lhe; podia prosseguir sem receio de
ser detido novamente.
Passou livremente pelos controles seguintes. Poucos minutos depois viu-se diante de
um jovem tenente, cuja atitude arrogante o identificava como um arcônida autêntico.
— Quem é você? — perguntou o oficial.
Toffner deu as explicações exigidas, gastando muito tempo nisso. Impaciente, o
tenente insistiu:
— Disseram-me que trazia informações importantes para nós.
— Sim, creio que são importantes — replicou Toffner, hesitando. — É sobre os
desertores. Ontem encontrei um conhecido meu de Larg. Afirma saber onde se escondem
os zalitas que recusam servir nosso Império.
A despeito de sua arrogância, o tenente não era nada tolo.
— E por que quer delatar seus compatriotas?
— Não por motivos egoístas — assegurou Toffner, com fingida sinceridade. — E
parece-me que não se trata de delação quando se é fiel ao Império de Árcon.
Surpreso com o argumento, o oficial ficou sem resposta. Porém a arrogância inata
logo readquiriu a supremacia.
— Não pedi sua opinião. Diga o que sabe, e vá embora.
“Que sujeitinho!”, pensou Toffner, furioso, enquanto sorria com suavidade e
deferência.
Avistara uma pequena nave em forma de torpedo na orla do espaçoporto. Diante
dela, uma guarda de honra formada por robôs arcônidas.
Devia ser aquela! Mas queria ter certeza.
— Meu conhecido voltou a Larg, porém tornarei a vê-lo dentro de poucos dias.
Então saberei maiores detalhes. Não haveria sentido em iniciar as buscas já agora, e
afugentar os desertores. Eu só queria que estivesse informado.
O tenente parecia desapontado.
— Não sabe onde eles estão?
— Em algum lugar nas montanhas, ao norte do deserto, mas desconheço o local
exato — fez uma pausa, e apontou para a nave-torpedo. — Servi outrora num cruzador
comercial. Conheço tudo quanto é nave, até as arcônidas, mas nunca vi uma tão
pequenina. Alcança a velocidade da luz?
O oficial deixou-se desviar do assunto; ou talvez quisesse apenas estimular Toffner a
revelar finalmente seu segredo. Muito afável, disse:
— Velocidade da luz? Salta distâncias imensas através do hiperespaço, e conduzirá
o cadáver do nosso almirante para Árcon. Ainda lhe falta conhecer muitas das naves de
Árcon. Quando o reverei, Garak?
— Assim que meu amigo chegar de Larg.
— Pois bem. Se você não aparecer, mandarei procurá-lo. E sabe que somos capazes
de encontrar quem quer que seja.
Afirmação bastante exagerada, mas Garak não protestou. Enquanto isso, não tirava
os olhos da pequena nave. Pensava nela, pensava, pensava, pensava...
E era ótimo que pensasse.
Sob a arena, Betty Toufry via nitidamente a nave, tão intensa era a imagem
transmitida por Toffner. Gucky associou-se igualmente à mensagem telepática, e
aprontou-se para o salto.
Ontem, ainda, tal idéia teria sido impraticável, porém agora não restava outra
alternativa. Osega precisava ser retirado da nave.
Sem deixar pista alguma!
— Toffner despede-se agora, mas ainda parou no portão, olhando para trás.
Contempla a nave. E pensa nela. Posso saltar agora, Rosberg.
O major acenou.
— Salte, Gucky!
E o rato-castor desapareceu diante de seus olhos.
***
Toffner deixou o terreno perigoso sem ser detido, e perdeu a nave de vista. Porém já
não tinha importância. Betty conhecia sua posição.
E, na pequena nave, o almirante arcônida Calus repousava sobre um amplo leito, em
seu pomposo uniforme. Dois robôs montavam guarda de honra. Seus braços não eram
armados, porém carregavam espingardas de raios. No teto abobadado da pequena central
ardia uma lâmpada mortiça. Os controles automáticos estavam regulados. A qualquer
momento, a nave poderia decolar.
Gucky teve sorte. Rematerializou-se às costas dos dois robôs, que não o viram.
O rato-castor fitou a face pálida de Osega. Conhecera bem o sargento, e passara
bons momentos em sua companhia. E agora Osega estava morto, estendido no lugar do
homem que realmente deveria morrer.
Gucky reprimiu a raiva que o invadia. Não era hora de cismar sobre fatos que já não
podiam ser alterados. Osega tinha que ser levado para as catacumbas, a fim de ter um
enterro decente. Aqueles dois robôs testemunhariam o inacreditável, porém, se tudo
corresse conforme o acertado, não teriam oportunidade para passar adiante a informação.
Tudo era questão de segundos.
Cautelosamente, para economizar o precioso tempo, Gucky inclinou-se, e segurou o
braço de Osega. Estava frio e rígido. Ocorreu ao rato-castor que pela primeira vez em sua
vida tinha que transportar um cadáver.
O contato físico estava feito; Gucky concentrou-se no esconderijo sob a arena, e
desmaterializou-se.
O processo durara menos de dez segundos. Os dois robôs continuavam imóveis e
mudos, fazendo guarda de honra ao almirante. Talvez nem dessem por seu
desaparecimento, se naquele instante o comandante da nave, igualmente robô, não
entrasse na central. Recebera a ordem de partir.
Estacou atônito no umbral da porta. Seus olhos, fulgurantes lentes, fixaram-se no
leito em que Calus estivera deitado. Antes que pudesse interpelar os guardas, aconteceu a
desgraça.
O mutante de duas cabeças, Ivã Ivanovitch Goratchim, encontrara tempo suficiente,
após o retorno de Gucky, de concentrar-se em seu objetivo, seguindo as indicações de
Betty Toufry. Suas misteriosas ondas mentais puseram em andamento o processo de
desintegração atômica. Cálcio e carbono transformaram-se em energia, no espaço de um
único segundo.
Na orla do espaçoporto produziu-se uma explosão atômica. No lugar anteriormente
ocupado pela nave levantou-se repentinamente um cogumelo de fumaça, crescendo com
rapidez em direção do céu crepuscular de Zalit. Só então a cratera se tornou visível. Da
nave, dos dez robôs, e dó cadáver do Almirante Calus não restara o menor vestígio.
Toffner, ainda nas vizinhanças do espaçoporto, encaminhando-se apressadamente
para o esconderijo, viu e ouviu a explosão. Soube, então, que o plano funcionara. Em
breve, os arcônidas o procurariam, pois fora a última pessoa a ser vista no espaçoporto...
Alcançou as catacumbas sem incidentes, e considerou-se em segurança.
***
Prepararam um jazigo para Osega num nicho rochoso afastado, e sepultaram-no
com uma singela cerimônia. O Major Rosberg fez uma breve oração, relembrando o
morto que dera sua vida não só pela Terra, mas também pela raça alienígena dos zalitas.
Era uma ironia do destino, o sargento ter morrido pelas mãos do povo que desejava
libertar.
Ainda conversaram um pouco, antes de se recolherem.
— Osega era um sujeito bacana — disse Gucky, com tristeza.
— Precisamos informar Rhodan — sugeriu Betty Toufry. — Será um alívio para ele
saber que a ameaça foi afastada.
Rosberg acenou.
— Vou tratar disso mais tarde.
O silêncio caiu sobre o grupo de cinqüenta pessoas. Contingente audaz num posto
perigoso, a mais de trinta mil anos-luz da Terra, e a vinte metros sob a superfície de um
planeta. Logo os comandos de busca dos arcônidas entrariam em ação.
Porém sabiam que Rhodan já tinha nas mãos a chave para a fortaleza de Árcon.
Atlan já comandava uma nave do Império. O regente mal suspeitava que seu mais
perigoso adversário estava tão perto.
Não, a situação não era tão negra quanto lhes parecera inicialmente.
A explosão no espaçoporto, por desprezível que pudesse parece diante das explosões
de uma verdadeira guerra, abalara os alicerces de um reino estelar.
Árcon encontrava-se diante da hora decisiva de sua milenar existência.
Porém os arcônidas ainda não sabiam disso...

***
**
*

Os “Recrutas de Árcon” conseguiram contornar


ou anular todas as medidas de segurança do regente-
robô, graças aos poderes mentais dos mutantes.
Apesar disso, o destino do grupo de combate
chegou a ficar por um fio, pois o cadáver do sargento
terrano que passava por almirante arcônida, teria
revelado tudo, caso o levassem para Árcon...
Em A Chave do Poder, título do próximo
volume, o comando alcança Árcon e...

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