Você está na página 1de 59
ARTE CONTEMPORANEA EDUCACAO INFANTIL Criancas observando, descobrindo e criando Susana Rangel Vieira da Cunha Rodrigo Saballa de Carvalho Organizadores “op rent a DT Coordenasio Editorial: Jussara Hoffmann Capa’ e Projeto Grifico: Stor Fitrial Madigo Impressia: Grafica e Flitora Pallot “Imagem da capa: Obra “ESTRATEGIAS PARA MUDANCA.." de Téti Waldraff, 2000, Fotografia de Fabio Del Re. Dados Intemnacionais de Catalogacio na Publ [A786 Arte contempordnea ¢ Educasio Infant crangas obsarvando, descobrindo ‘crlando / Surana Rangel Vicia da Cunha, Rodrigo Sabella de Carvalho (orporizadores) Ive. - Porto Alege Mediaglo, 2017 Incl ibogeatin ISBN 97845-70650, 1. Arte contemportnea - Educasi de crianas. 2 Profesores- Forma¢lo. 4, Pritica de ensno, 4 Artes vais Cums, Susana Rangel Vieira ds, Carvalho, Rodrigo Saballa da cpu 7oms-0582 (Bibioteiriaresponsdvel: Sabrina Leal Araujo ~CRB 10/1507) Todos os disitos dest edigh reservados & @ biitora Meaiasio Dstribuidrse Livraria-EIRELL- EPP ‘Av Taquara, 386/908 Bairro Petropolis Porto Alegre RS CEP 9460-210 Fone (1) 3830 8105 wwweditoramediacso.combr FE [Nenhuna parte desta obra pode ser reproduzida ‘ou duplicada sem autoriaacao expressa do Editor. (© by Organizadores,2017 Printed In Brazil/Impresso no Brasil ‘que ole outros 3 A POTENCIA EDU(VO)CATIVA DAS ARTES VISUAIS Lutiere Dalla Valle Jéssica Maria Freisleben (...) @ inféncia é um outro: aquilo que, sempre além de qualquer tentativa de captura, inquieta a seguranca de nossos saberes, questiona 0 poder de Nossas préticas e abre um vazio em que se abisma o edificio bem construk- do de nossas instituicées de acolhimento. Pensar a infancia como um outro 6, justamente, pensar essa inquietagao, esse questionamento e esse vazio (LARROSA, 1999, p. 184) Pensar ¢ propor processos de aprendizagens com criangas e mediados Por imagens requer escolhas delicadas, uma vez que hd infinitas possibilide- des e abordagens nesse sentido, comecando pela tomada de decisées pré- ticas: quais imagens levar ao espaco educativo? Que processos sao preten- didos? © que se busca com determinados percursos propostos? E quais s3o as bases teérico-metodolégicas que visam a oferecer algum tipo de susten- taco? Decisdes complexas porque estao sempre atreladas ao ponto de vista de quem propée e, portanto, com o risco de um caréter tecnicista, informati- Vofilustrativo ou limitado &s questées pensadas pelos proponentes, podendo restringit-se a préticas prescritivas e destituidas de sentido. Em decorréncia dessas possibilidades, hé, por parte dos educadores, hoje, ume preocupacao em inventar novas experiéncias estéticas que articulem a percepcao, a mani- pulacao material, a invencao e a criagdo de objetos/artefatos pelas criancas. Editora Mediacao ARTE CONTEMPORANEA & EDVEAGhO INFANT Neste texto, propomos a abordagem edu(vo)cativa que pretende ex- Plorar as imagens em trés aspectos centrais: a) educativo: que diz respeito aquilo que se ensina, a construgao de visdes de mundo, de legitimacao e Concengées imagéticas; b) evocativo: que diz respeito as percepgdes que envolvem a meméria, aquilo que permanece como referencial apreendido anteriormente em conexzio com novos/outros saberes, o que traz & tona, emerge, faz surgir; @ ¢) cativo: de cativar, que busca estabelecer relacdes @ partir do cardter de seducao da imagem quo aprisiona, que afeta, que domina 0 campo da imaginagéo. Nesse sentido, algumas das experiéncias de aprendizagem em arte, © partir da producdo artistica contemporanea, com criancas em idade de alfabetizacdo escolar, tam sido relevante desafio dos nossos grupos de Pesquisa, ensino ¢ extens&o na universidade em didlogo com a escola. Sobretudo a partir do campo das artes visuais, terreno movedigo em que Pisamos, tendo em vista dois desafios principais: 0 primeiro deles no que tange a abordagem metodolégica utilizada que implica posigdes néo hierérquicas, mas horizontais e permeadas pela curiosidade pueril; e em ‘segundo, no que tange a articular saberes da esfera das artes visuais com @ apreensio da linguagem escrita, sem que uma se sobreponha @ outra, mas se complementem. Este texto traz 0 relato de uma experiéncia de trabalho compartilha- do entre docentes em formacao inicial no Curso de Licenciatura em Artes Visuais e um grupo de professoras alfabetizadoras de quatro turmas de primeiro ano do Ensino Fundamental. Configuramos processos educati- vos @ partir de distintas experiéncias: produgdo artistica (com vistas & experimentacao material ¢ suas possibilidades plasticas); interpretagao.e construcao de significados a partir da visitaco a exposigdes; e a realiza- 980 de oficinas, contato com artistas e diélogo com estudantes do Curso de Artes Visuais. De modo geral, a pratica abordada vem contribuindo com os pro- cessos de formagéo inicial a0 possibilitar a insergao desses docentes em formagao no ambiente escolar e, igualmente favorecem as criangas em Editora Mediacao termos da aquisi¢ao da linguagem escrita por meio de narrativas visuais e apreensiio de vocébulos relacionados as teméticas abordadas om exposi- 96es artisticas. Ainda em fase inicial, 0 projeto antecipa pistas relevantes Para se pensar e se propor processos de aprendizagem em que a arte seja Protagonista no periodo em que a alfabetizacao infantil tem por foco o desenvolvimento da compreensio linguistica Em um primeiro momento, buscamos conhecer como ocorre o pla- nejamento € o cronograma das aulas ministradas pelos professores regen- tes das turmas em relacéo aos processos de alfabetizacdo, isto 6, como eles compreendem essa etapa de aquisi¢do e construcéo cognitiva, de socializagao e compartilhamento de saberes, questées relativas ao disci- plinamento, subjetivaco e diversidade. Da mesma maneira, observamos como a produgao artistica se insere neste contexto articulada as demais proposigdes ao longo de suas aulas. A partir de alguns encontros, 0 desafio proposto foi pensar na arte como poténcia pedagégica, tendo como fio condutor © corpo humano. Em que medida se poderia propiciar experiéncias cognitivas e igualmente contribuir para os processos de alfabetizagao. As criancas de seis anos, com as quais desenvolvemos 0 projeto, desejavam, sobretudo, brincar, falar, cantar, descobrir, tocar, mexer, correr ~ 0 que nos requeria pensar © propor préticas pedagégicas pautadas pela vivéncia experiencia, pelo Contato, pelo afeto, pelo didlogo aberto, favorecendo o movimento curio so em torno de cada elaboracao. Embasados pela perspectiva educativa da cultura visual (HERNAN- DEZ, 2009), nosso ponto de partida foi o projeto “Arte contemporénea e educagdo da cultura visual: pedagogias culturais na alfabetizac&o infantil”, buscando tecer relagées entre a arte e a escrita, entre a experiéncia e a compreensao de diferentes linguagens artisticas, entre a formacio inicial @ a formago continuada dos docentes envolvidos. Projeto de ensino, pesquisa ¢ extenséo desenvolvido entre marco e novembro de 2016 com a part cipacio de académicas do Curso de Licenciotura em Artes Visusie da Universidade Federal de ante Maria © professoras das primsiros anos do Colegio Marista Santa Meta Editora Mediagéo ARTE CONTEMPONANEA & EDUCAGAO INFANTIL Infancia e prdticas pedagégicas Ao abordar a infancia em nossos processos edulvolcativos, cabe destacar brevemente quais so as bases tedricas que respaldam nossas Préticas, bem como mobilizam nosso pensamento. Buscamos em Philippe Aris (2006) um ponto de partida para articular conceitos acerca dessa etapa socialmente construlda, nominada ¢ legitimada mediante aspec- tos contingentes a cada periodo histérico, social e cultural. Do mesmo Modo, nos baseamos em Fernando Hernandez, sua abordagem da cultu- ra visual no que tange as questdes relatives ao olhar e as visualidades, aos modos de ver. Segundo Ariés, a ideia de inféncia como um perfodo peculiar das nossas vidas no corresponde a um estado natural inerente & condi¢ao humana e, sim, a uma construgao da humanidade atrelada as particula- ridades histéricas. As imagens selecionadas e analisadas por ele, assim como tantas outras, permitem conhecer a infancia e produzir signifi cados sobre ela. O autor examina ¢ desconstréi 0 conceito de infancia como um fenémeno natural da vida e vai demonstrando como a concep- 980 de inféncia consiste em uma construcao histérica, cultural, fabrica- da pela modernidade. © estudo histérico de Ariés destaca, entre outros aspectos, que, durante parte da Idade Média, as criangas eram consideradas meros seres biolégicos, sem estatuto social nem autonomia. Por sua inge- nuldade, gentileza e graga, consistiam uma fonte de distragdo e de relaxamento para 08 adultos. Durante algum tempo, a representagdo das criangas parecia mais com a de um adulto em miniatura, em es cala reduzida, mas com expressées e mdsculos semelhantes aos de um adulto, Artistas ndo hesitaram, em casos raros de nudez exposta, Fepresentar a musculatura vista nos adultos. A infancia desapareceu da iconografia junto com outros temas helenisticos, ¢ o longo perfodo romanico que prevaleceu até o fim do século XII recusou-se a mostrar tragos especificos da infancia. Editora Mediagao cheiras, sonage Diferentemente desses modelos, atualmente nos deparamos com infancias multifacetadas, oriundas de uma diversidade de vivéncias ja- mais vista anteriormente como processos de alienac&o frente & rapidez contempordnea da circulacao de informagées, a insergao desentreada da Participacao ¢ poder de decisées jamais vista anteriormente. Da mesma forma, 0 acesso instantaneo as informacées e aos aparatos tecnolégi cos, redes sociais de compartilhamento de imagens, audiovisuais, narra- tivas, etc. esto cada vez mais presentes e incorporados as experiéncias cotidianas das criancas. Diante dessas percep¢ées, a inser¢éo em temas tidos como apro- priados ao universo adulto, cada vez mais precocemente, séio introdu zidos € incorporados aos imaginarios infantis. Obviamente, néo existe neste texto 0 desejo de aprofundar essas percepgdes que emergem tanto do senso comum quanto de estudos oriundos do campo das ciéncias sociais. Contudo, devido a seu reflexo nas préticas desenvolvidas na es- cola, cabe mencioné-las como aspectos que igualmente reverberam no centro do nosso trabalho. Para David Buckingham (2007), essas criangas que interagem com a tecnologia fazem parte da geracao eletronica que se desenvolve dentro da l6gica da autonomia e liberdade de modificagao para a criagdo do mundo em que se encontram. Especificamente em nosso contexto de trabalho, deparamo-nos com criangas que tém acesso as midias digitais cotidie- namente, apresentando-nos um repertério imagético oriundo das mais variadas fontes - cinema, publicidade, programas de TV, séries, etc. -, 0 que, por um lado, implicou especial atengao de nossa parte aos elementos visuais recorrentes em suas falas, bem como produces visuais por clas elaboradas ~ em alguns casos, extremamente estereotipadas. As criangas com seus objetos e artefatos visuais demonstram suas escolhas sobre personagens infantis, e a sala de aula parece inva- dida por Barbies, princesas, super-heréis, Hello Kittis, Minions, dentre outros personagens, em suas capas dos cadernos, nas mochilas e lan- cheiras, nas estampas das roupas, nos brinquedos e nos préprios per- sonagens levados & escola. Da mesma forma, hé grande influéncia nas Editora Mediagio ARTE CONTEMPORANEA E EDUCAGAO INFANTIL brincadeiras - que em goral comegam a se caracterizar como brincadei- ras de meninos (super-herdis, lutas, duelos) ou de meninas (princesas, cuidados com animais e natureza, tarefas domésticas), territérios expli- citamente demarcados pela contraditéria relaco cromética azul/rosa, Apesar de constatarmos grande esforso por parte da escola e das Professoras em romper com essas percep¢des estereotipadas em relago 20 género, prevalecem as concepgées bindrias, principalmente a partir dos imaginatios criados, difundidos e legitimados por filmes e demais Produtos derivados dessas narrativas. Nesse enlace, nossa maior implicagao no Ambito do projeto foi bus- ear, nas imagens trazidas pelas criangas, a poténcia edu(volcativa rela- cionando suas imagens a imagens de obras produzidas por artistas con. tempordneos. Assim, nos aproximamos das criancas por meio de oficinas envolvendo experimentacao de materiais tradicionais (ldpis, canetas, tin- tas) @ materiais variados recolhidos pelas proprias criancas a partir de um Projeto de reciclagem. Nas salas de aula, criamos o que chamamos de canto comum (uma grande caixa de papeléo), no qual cada crianca espon- taneamente depositava materiais descartados em suas casas para servi como material para suas eriacées futuras, Outro intento de nossa parte consistiu em tencionar relagdes entre objetos oriundos da produgao cultural popular, de distribuigéo em grande escala, com obras artisticas confeccionadas justamente a partir desses materiais ~ porém ressignificadas, destituldas do significado de origem Para Se tornarem outra coisa, um objeto. Nosso intuito, além de provocar 2 curiosidade das criangas sobre os artefatos apresentados, foi desnatura- lizar a visdo da arte como apreensao técnica e/ou ilustrativa, ressaltando @ concep inventiva, autoral e autonoma. AS propostas visaram @ articulacao entre o tema central: estudos sobre 0 corpo humano ~ fio condutor trabalhado na escola nessa faixa otéria ~ @ as agdes artisticas propostas pelo grupo. Como primeira pro- Posi¢do, oportunizou-se uma vivéncia artistica por meio da visita expo. sig8o “A (Trans)Lucidez da Arte: (Des)Tino Humano’, realizada na Sala de Editora Mediacao ésseas, Exposicées da Universidade? - 0 que implicou 0 deslocamento das crian- as, percepgao de outros espacos, tempo e distanciamento. A exposicao contou com 15 desenhos feitos com ponta seca sobre papel vegetal, que remetem a formas humanas, internas e externas, abordando as relacdes micro e macro da representagao de tecidos celulares, 6rgdos, estruturas 6sseas, membros e partes do corpo. Apés a visitacdo, as criancas partici param de uma oficina artistica, que Ihes possibilitou @ experimentagéo do material ~ papel vegetal ~ que foi a base para as obras vistas na exposicao. Espaco expositivo e lugar de experimentacao Os espacos explorados pelo projeto foram espacos expositivos e de produgao artistica na Universidade Federal de Santa Maria e igualmente no Colégio Marista Senta Maria. Aproveitando as possibilidades que a arte contemporanea permite, a dinamica da exposigao tentou propor algo além da observacao, permitindo 0 contato do visitante por meio do to- que. Um toque suave, como um carinho ou uma brisa, sugestao dada as criangas, para que pudessem sentir as texturas, as ranhuras e as fissuras feitas no papel vegetal que tornaram possivel visualizer os desenhos, perceber a transparéncia do papel e a translucidez que deu nome & expo- sigdo, testar novas possibilidades com papéis coloridos colocados atrés das figuras suspensas, descobrir formas conhecidas em meio a riqueza de detalhes das obras expostas, ver, olhar, buscar 0 desconhecido, indo além do que é familiar, partindo do real sem limites @ imaginac&o. O obje- tivo foi justamente arriscar palpites e interpretagées das criancas. TVALLE, Lutiere Dalla. Exposicko “A (TransiLucide de Arte: (Des!Tino Human”. Exposiefo Indy ‘dual de Desenhos ocorrde de 11.2 25 de abil de 2016 na Sala de Exposicdes Claudio Carticonde do CContro de Artes Letras da Universidade Federal de Santa Maria. A série de desenhos traz interpre taebes do corpo humano, fregmentado, inrde em meio a elementos decorativos em excesso, fitos 2 part do relovo calcado em papel vagetal Os trabalhos em grandes proporgdes atingem um cardter {ienelicido, ume vee que o modo como 28a apresantados (afastados da parede) prope ume relacio do proximideda © temporaldede com os espectadores. Editora Mediagio ARTE CONTEMPORANEA & EDUCAGAO INFANTIL As estratégias tinham que ser tecidas a cada visitacdo/mediagao & exposi¢ao devido ao fato de o piiblico ser afetado de maneira diferente. O Planejamento feito ndo foi tido como algo estatico, fechado, pelo con. tério, foi flexivel e aberto a mudangas do inicio ao fim, tendo em vista due a inféncia altera os rumos, interroga e nem sempre aceita a previsibi- lidade. E foi o que aconteceu durante as visitas mediadas na exposic&o: experimentamos, invertemos a ordem das ages, adaptamos ao tempo de Concentra¢ao das criangas, conversamos com elas ¢ exploramos 0 que {oi possivel em grupos ou individualmente, para que posteriormente pu- déssemos sentar ¢ conversar sobre os elementos visualizados nas obras. © que as obras da exposigSo despertaram nessas criancas? As obras configuraram os objetos/brinquedos de seu interesse? E a poténcia edulvo)cativa da exposigao artistica: 0 que pensar e propor para além da visitagao? O que essa experiéncia suscitou em nds, pesquisadores e do- centes? Como dialogamos com essa experiéncia? 0 que reverberou, que Pensamentos mobilizaram nossos processos de formagao — sejam eles de ordem inicial ou continuada? ‘Apés a visita & exposi¢go, mediagdo e rode de conversa com o autor das obras, as criancas foram convidadas @ experimentar o papel vegetal, utl- zando uma ponta-seca ~ neste caso palitos ¢ cabos de pincéis, ~ estimuladas 2 criar suas narrativas visuais tendo como dispositive o tema da exposicéo 8 representa¢des do corpo, e evitando questionar o que e por que produzi- ram suas imagens, mas incentivando-as a experimentar novas possibilidades ue foram exploradas por meio de diélogos, da investigaco do material pro- Posto, uma vez que, na ocasiéo, desconheciam os materiais utilizados, Elas exercitaram o sentir, 0 explorar, o riscar e 0 coneretizar ideias: fragmentos corpéreos, palavras aleatérias, referéncias & exposicéo, per. Sonagens inventados. Percebemos que a alusdo aos desenhos infantis oriundos da televiséio foram suas principais elaboragdes. O papel, de tres metros por um metro e meio de largura disposto sobre a mesa, resultou na Produgao coletiva de um painel. Foi possivel observar que algumas crian- 88 resgataram em seus desenhos a tematica da exposigo, outras ficaram 6m seus temas habituais: casas, cachorros, pessoas, flores, dentre outros Editora Mediagio desenhos ¢ estruturas tipicos dessa faixa etéria. No instante em que per- ceberam a fragilidade do papel, que poderia rasgar com facilidade, algu- mas criancas tiveram que dosar a forga da ponta-seca no papel vegetal para obter 0 resultado esperado. Além disso, puderam testar espessuras de linhas, pois os palitos possibilitavam fazer linhas mais finas, enquento © cabo de pincéis resultava em linhas mais grossas. Finalizada a oficina, a préxima etapa do trabalho com as criangas con- sistiu na visita a um laboratério de ciéncias equipado com microscépios réplicas de estruturas ésseas, 6rgdos e membros do corpo humano em trés dimensées. Apés a explanagao sobre o tema em questo por parte de uma monitora do laboratério, as criangas puderam observar as laminas e poste- riormente questionar e conversar sobre a experiéncia que tiveram. © momen- to de analisar as laminas com fragmentos de tecidos celulares por meio dos microscépios causou muito entusiasmo e curiosidade pelas descobertas que estavam fazendo. Dentre tantas perguntas, destacamos alguns exemplos: — Esse esqueleto é de verdade? Ou 6 de pléstico? (Referindo-se ao esqueleto exposto no laboratério). ~E esses ossos, séo de animais ou de gente? (Sobre esqueletos expostos na mesa de entrada do laboratério) — Coma é feito 0 osso? — Qual 6 0 tamanho do coracso? — As células 880 moles ou duras? As oélulas morrem? Quando a célula morre, a gente morre também? Quando a gente t4 crescendo 6 porque as células estéo crescendo também? — Um corpo sem ossos é mole @ cai... fica sem sustentagao? (Perguntas de criancas das turmas de primeiro ano. Arquivo dos autores) Algumas dessas perguntas foram repetidas inimeras vezes, pois a curiosidade das criancas crescia a cada nova conversa @, assim, desdobra- mentos ocorreram. Atentas aos objetos presentes no laboratério de cién- cias, puderam desfrutar e analisar as células, arriscar nomenclaturas, palpi- tar sobre 0 que viam, imaginar 0 que poderia ser aquela imagem mintiscula disposta no aparato. Inclinadas e as vezes até sobre as mesas, tiveram a experiéncia de aproximagao com a area da biologia, por meio de conversas Editora Mediagao ARTE CONTEMPORANEA E EBUCAGAO INFANT Paralelas com 0 que viram na exposicéo artistica: a partir das imagens de 6rg8os e membros do corpo humano fixadas nas paredes do laboratério, fecordavam as obras visualizadas na exposicao. Conectadas ao processo de alfabetizacéio, quando possivel, eram estabelecidos /inks com letras e palavras. Por exemplo: a partir da letra c: corpo, coracao, cérebro, célula, coluna, cabeca. A formacao de palavras Que estavam dispostas sobre as mesas, indicando qual parte estaria sen- do analisada naquela (4mina, servia também como estimulo & apreenséo da linguagem escrita e falada Diante da explicacao técnica, olhavam com ansiedade os materiais dispostos no local, tentando descobrir como seria a experiéncia a seguir. Durante a explicagao da proposta, das etapas e dos materiais, a inquietacdo para usar todas as cores possiveis ficou evidente. As criangas receberam bandejas com diferentes formatos e tamanhos, rolinhos, canetas e palitos para fazerem os desenhos, sulcando a superficie do isopor, tendo como pro- Posta, criar representagdes das células que haviam visto no microscépio. Assim que foi iniciado 0 trabalho, a busca frenética pelas cores e suportes demandou boa parte da proposigao. Em seguida, a cada impressio realiza- da, um grupo motivado contemplava com alegria a magia impregnada de tinta que se materializava no suporte. Sucessivamente, uma quantidade imensa de células comecou a multiplicar-se em diferentes cores, formatos, tamanhos, pautando-se, sobretudo, por uma experiéncia coletiva de com- Partilhamento de processos e descobertas. Experiéncias compartilhadas entre formagéo inicial e continuada Diante do pulsar inventive das criangas, pensar sobre a docéncia como uma via de intenso transito e que necessita constantemente aten- tar @ mudanga trouxe novos sentidos frente 20 complexo contexto que vivenciamos ao longo do processo desenvolvido. Nao somente no que concerne as representagées e imaginérios construidos historicamente Editora Mediacso acerca do papel da docéncia, mas por despertar olhares mais atentos aos processos formativos iniciais dos docentes que, muitas vezes, restritos academia, deixam escapar oportunidades de intercdmbio com professores que j4 atuam hé alguns anos com a educagdo de criangas ¢ jovens. Da mesma maneira, para a docéncia jé instituida, a possibilidade de rever as proprias préticas, a partir de olhares menos impregnados de como deve ser € comportar-se um professor, favorece uma construgao pautada pela subjetividade e possibilita examinar as verdades inventadas desde “sem- pre” sobre a docéncia vinculada ao assistencialismo. A partir dessa experiéncia, foi possivel perceber as significativas mudancas que obtivemos na instituigao a partir das atividades por grupos de estudos compostos por docentes em formacao inicial. Verificou-se, ainda, que as reflexdes ¢ abordagens que surgiram, apés alguns encon- tros, serviram como ponto de partida para discutir situagées do cotidiano escolar e que necessitavam ser repensadas. Os relatos, com os quais tivemos contato apés essas discussées ¢ proposigdes, apresentaram evi- déncias de que o efeito que essas praticas exercem sobre o imaginério co- letivo dos professores favorece a abertura a outras percepcées, de outros rumos que talvez nao fossem descobertos sem esse compartilhamento. Como argumenta Hernandez (2009, p. 208), a consequéncia educativa dessa posi¢ao € que 0 desafio postulado con- siste em ajudar criancas, jovens, educadores @ diferentes tipos de visu: alizadores a irem além do propésito de ensinar a ver e facilitando-Ihes experigncias artisticas. Em um mundo dominado por dispositivos da viso @ tecnologias do olhar, a finalidade educativa proposta é faciliter experi- éncias criticas. Porque, no final das contas, se ndo podemos compreender e intervir no mundo, é porque ndo temos a capacidade de repensé-lo & oferecer alternativas. Nesse sentido, a0 adentrar 0 universo das artes visuais para investi- gar que tipos de narrativas so construfdas por professores e professoras ‘em formago juntamente com grupos de docentes da escola, pudemos questionar sobre os distintos “modos de ver" que coexistem em nosso Editora Mediagio ARTE CONTEMPORANEA & soUEAGAO IFANTIL entorno social e cultural, © que nos levou a reflexdes mais amplas sobre © papel do professor contemporaneo e os giros necessérios para transfor- ‘mar o sistema educativo atual em arte e educacdo. Explorando a poténcia edu(vo)cativa das artes visuais E notério que o campo artistico potencializa aprendizagens que a lin- guagem escrita ¢ falada talvez nao consiga. Experiéncias visuais, sonoras, olfativas, tateis ¢ outras agugam/potencializam nossos sentidos e passam a exigir diferentes narrativas e produgdes textuais, Acreditamos que a escrita Parte de uma vivéncia, mais jamais corresponde a aco em si mesma, séo acontecimentos de naturezas distintas. Isto 6, um texto sobre uma expe- riéncia vivenciada nao deveria pretender sua explicacao e/ou tradugao de aspectos que no seriam possiveis serem traduzidos, ilustrados, descritos, uma vez que essas ages esto sempre atreladas a um determinado ponto de vista: de quem narra, de quem seleciona. Somado a isso, temos também 98 aspectos que delimitam a narragao: contingéncias histéricas, sociais, Culturais, ideolégicas, geograficas, etc. Portanto, ao nos referirmos a esori- ta, preferimos a expresso “tecido provocative”: como cada pessoa sente © atribui sentido e/ou significado a determinados aspectos da vida (dentro dos paradigmas culturais do qual participa). Dessa forma, entendemos as artes visuais como: a) um artefato educative que nos ensina modos de ver e de sermos vistos, de ser e estar, envolvendo tudo o que potencializa visées de mundo, de construgao e de legitimagao de concepedes; b) um artefato evocativo, que diz respeito as percepgdes que envalvem a meméria, aquilo Que permanece como referencial anterior para cada pessoa e que, na rela: 80 com as novas conexées, pode se reconfigurar em novas conexées, tra- Zendo & tona, fazendo emergir, surgit, novas ideias; e c) um artefato cativo que seduz, que aprisiona, que detém atengo, que afeta, que domina, uma imagem que nao apenas mobiliza, mas evoca, potencializa, educa, constréi, legitima, instrui (HERNANDEZ, 2007). Editora Mediacao © termo edu(vo)cativo origina-se, portanto, da jungaio dessas trés Palavras: educativo, evocative © cativo. E dessa forma que nos aproxi- amos das visualidedes na busca de uma justaposicéo com a produgéo artistica para que a aprendizagem das Criangas seja potencializada a partir dessa visualizago. Levamos em conta também que as imagens carregam Particularidades especificas de natureza visual/afetiva e que as artes visu- ais néo podem ser Conjecturadas dentro de uma nica estrutura lingulstica 4 qual nos vinculamos em nossos contextos culturais. As imagens visuais ampliam os campos de Percepodo das criangas, indo mais Para a expe- fimentagao subjetiva do que Para a compreensao formal de significagao Previamente apreendida. Discursivamente se constitui em poténcia simbé- lica, recheada de elementos oriundos de imaginérios coletivos produzidos Culturalmente nos quais ancoramos nossas percep¢des mais intimas, Desenvolver agées como essas, desenvolvidas em nossa pesquisa, de participacéo e de Colaboracao, promovendo a partilha de saberes e de didlogo entre docentes em formagao e professores com experiéncia de sala de aula, configurou-se como abertura a0 didlogo sobre questées atuais no que diz respeito ao ensino da arte e as abordagens recentes em educacao, Aprender artes visuais a Partir de propostas edu(vo)cativas como as que desenvolvemos leva docentes a inventar Processos e a revisitar suas crengas, suas verdades, assumindo uma postura cada vez mais critica frente as indmeras situagées cotidianas dadas como prontas. Leva-os a nao aceitar a realidade como imutével e a pensar em formas de transgredir © instituido, considerando a docéncia como um Processo em constante transformagao, que se constréi diariamente diante da complexidade de Posturas € corporeidades presentes dentro de uma sala de aula e dos con- flitos existenciais do mundo: contemporaneo. Algumas consideracées Movimentagées ao redor das mesas, compartilhamento de materiais, Conversas aleatérias, narrativas fragmentadas, perguntas, muita cus Editora Mediacéo ARTE CONTEMPORANEA & EDUGAGAO INFANTIL © grande dose de espontaneidade caracterizaram nossas vivéncias em torno da producao artistica com as criangas ao longo ano em que trabalhamos com elas. O prazer de produzir a sua prépria célula, a tinta escorrendo entre 0s dedos e criando seres imaginérios no chao, no papel ou em qualquer ou- tra superficie disposta para a criacao artistica, as impressdes em superticies flexiveis como papel e TNT, ou rigidas, como pisos cerémicos, provocaram Nas criangas diferentes percepeées em relago aos varios materiais dispo- niveis. As células, temas centrais da estruturacio das isogravuras, feitas ‘em laminas de isopor, provocaram nas criancas surpresa e encantamento: a surpresa da impressao aliada & magia da revelagao suscitaram no seu fazer artistico um protagonismo impressionante. As composigdes, que em geral beiraram 0 abstrato, revelaram a ampliacao das suas referencias artisticas & © trabalho coletivo entre turmas diferentes favoreceu o didlogo, a interacao, © compartilhamento de ideias e produgées. Por meio das experimentagées, foi possivel reconhecer que as crian- Gas constroem experiéncias significativas, que séo produtoras de conhe- cimento, de seberes simbélicos, que efetivam conexées-inventivas para responder, de forma peculiar, as suas proprias quostées, exigindo que 0s docentes se reinventem a cada nova proposta a fim de acompanhar 0s desdobramentos que surgem. A poténcia edu(vo)cativa abre miltiplas vias de acesso, novos caminhos a experienciar, 0 que impele os professo. res 2 adotar posturas pedagégicas menos rigidas, mais abrangentes, bus cando miltiplas formas de ensinar e de aprender, favorecendo criancas @ Professores a criar, a inventar. Descontinuidade, imprevisibilidade, rupturas de espaco e de tempo, questionamento de verdades, desequilibrio © 0 inesperado, a irrupgao de acontecimentos séio matérias-primas da arte contemporanea. Nem sempre ha molduras ou paredes para abrigar quadros, nem sempre as obras artisti- C88 Se apresentam na perspectiva tradicional a que estamos acostumados. Flas podem ser interativas, para serem tocadas, sentidas ou modificadas pelos espectadores, ou nada disso. Cabe a nés, professores, desenvolver Propostas edu(volcativas com as criangas para que aprendam a partir das Possibilidades educativas, evocativas e cativantes dessas obras. Editora Mediagao 4 VISITANDO E CRIANDO 8 A PARTIR DE UMA EXPOSICAO DE ARTE CONTEMPORANEA Maria Eduarda Rangel Vieira da Cunha Este capitulo tem como objetivo refletir sobre as relagdes das crian. as com a arte contemporanea, bem como apresentar possibilidades de Projetos' de ensino em artes visuais, enfocando artistas contemporaneos brasileiros. Ancorada nos estudos sobre infancias (SARMENTO, 2011), em que as produgées visuais infantis séo entendidas como modos como elas compreendem e interpretam 0 mundo, e 0 ensino de arte sob uma aborda- gem sensivel (MARTINS, 1998) e critica (HERNANDEZ, 2009), percebo 0 interesse e a curiosidade das criangas como sendo engrenagens para pro- postas que oportunizem 0 desenvolvimento de um olhar oritico Em minha experiéncia como professora de artes, percebo que elas estabelecem relagdes com obras contemporaneas pela sua interatividade, pelas possibilidades inusitadas de interpretacao, podendo relacioné-las a suas vivéncias, pela utilizagéio de materiais do cotidiano e {cones conhe- cidos por todas. Buscando trabalhar artistas contemporaneos brasileiros que estavam expondo em Porto Alegre, pensei nas exposigdes “A Poesia do Fio", de Arthur Bispo do Rosério, e “Rever", de Rochele Zandavalli, 5 Wabalhos relatados foram dasonvolvds com grupos de crianas de cinco a sels anos no Atslié Infantil Azul Anil, em Porto Alagre, da 2013 2014 Editora Mediagao ARTE CoNTEMPORANEA & EOUEAGAO INFANTE que estavam ocorrendo no Santander Cultural, algumas possibilidades de estudé-los em projetos de trabalho. As criangas teriam @ oportunidade de ir a exposicbes e conhecer as obras, estabelecendo relacées diferentes, do que se apenas tivessem contato com reprodugées dessas. Ao analisar a biografia de Bispo, presumi que, por meio de uma abor- dagem adequada, as criangas formulariam aprendizagens significativas sobre a diferenca, a exclusao e 0 preconceito nos mais diversos ambitos. Também encontrei, nos materiais inusitados utilizados pelo artista, uma relago com o cotidiano delas. Percebendo que a memoria 6 um elemento de intersecodo entre as obras de Bispo e de Zandavalli, busquei aprofundar junto &s oriangas os seus conhecimentos e entendimentos sobre o tema. Reconhecendo a meméria Na perspectiva de Hernandez (2009, p. 23-24), ha a necessidade de uma alfabetizacdo visual critica “que permita aos aprendizes analisar, interpretar, avaliar e criar a partir da relagao entre os saberes que circulam pelos ‘textos’ orais, auditivos, visuais, escritos, corporais’. Assim como 0 autor, acredito na necessidade da abordagem de mil: tiplos alfabetismos por meio de diversas fontes (visuais, escritas, virtuais). Nesse projeto, busquei cercar as criancas de referéncias sobre a meméria, utilizando 0 livro “Guilherme Augusto Aratjo Fernandes", 0 curta-metra- gem “Dona Cristina perdeu a meméria”, fotografias das criangas e das Professoras e obras de artes dos artistas Bispo e Zandavalli projeto iniciou com o levantamento de uma questo: “o que é me- méria?” Em um primeiro momento, as criangas ficaram pensativas, con- fusas e nao formularam respostas. Lembrei, entao, os jogos de meméria Conhecidos por todas. Questionei o porqué do nome “jogo de meméria” € novamente fiquei sem respostas. Essa reagao das criancas jé era es- Perada, visto que estas tinham cinco e seis anos, ainda constituindo a nogao de temporalidade. Ressalto aqui a importancia de relacionar as aprendizagens as vivéncias das criangas. Para isso, 6 indispensdvel que Editora Mediagao asilo, seus! © professor seja um grande conhecedor do grupo com que esté traba- Ihando. Brincadeiras e conversas séo momentos em que podemos captar costumes, preferéncias e modos de pensar das criangas. Com o intuito de compreenderem o que seria a meméria, contei a histéria de um menino chamado Guilherme Augusto Aradjo Femandes, que, assim como elas, néo sabia o que era a meméria. Iniciou-se, entéo, a leitura do livro homénimo, em que um menino, que mora ao lado de um. asilo, possui uma amiga idosa chemada Dona Antonia. Ele um dia escuta seus pais conversando sobre a perda da meméria da amiga. Como o me- nino nao sabe o que é meméria, ele sai em busca de respostas. Conforme as informagées que recebe dos outros moradores do asilo, Guilherme co- leta objetos que despertem lembrangas em Dona Anténia. Apés a leitura do livro, expliquei que assistiriamos a um curta-me- tragem intitulado “Dona Cristina perdeu a meméria”. O curta-metragem, com duracao de 15 minutos, é baseado no livro Guilherme Augusto Arati- jo Fernandes. Assim como na obra literdria, existe um personagem que mora ao lado de um asilo e faz amizade com uma idosa, Dona Cristina, que sofre de Alzheimer. No filme ola possui vérios objetos, os quais ela chama de “reliquias” e que ajudam na reconstrugao da sua meméria ‘Apés assistirem a0 video, chegou o momento da roda de conver- sas. Indaguei as criangas se agora saberiam responder & nossa pergunta inicial, sobre 0 que significa meméria. Animadas, responderam que sim, que no livro 0 menino também n&o sabia, mas que havia descoberto. “Meméria € algo de que vocé se lembre”, respondeu um aluno, repetindo uma frase do livro. “Por exemplo, dizer 0 que eu fiz ontem é contar uma meméria”, respondeu outro. Lembrei as criangas que, no livro e no filme, Guilherme utilizava algumas ferramentas para despertar a meméria da amiga. Quais eram elas? “Os objetos, que a faziam lembrar", responde- ram. Perguntamos se 0 mesmo ocorria conosco, se os objetos nos traziam recordagées. Inicialmente as criangas nao entenderam a pergunta e fi ram confusas para responder. Dei, entao, alguns exemplos mais préximos da realidade delas, mostrando objetos do atelié que evocavam atividades realizadas anteriormente. Perguntei se recordavam 0 que haviamos feito Editora Mediagao ARTE CONTEMPORANEA E EBUCAGAO INFAWTIL na aula anterior, @ responderam que no. Mostrei, entéo, uma das pro- duces tridimensionais realizadas na data, e rapidamente lembraram da Proposta. Expliquei que os objetos, assim como no livro, no filme e na aula, trazem-nos memérias de acontecimentos passados. Para que a discussao se inserisse mais no cotidiano das criancas, eu havia solicitado, na semana anterior, que trouxessem fotografias an- tigas suas. Eu também havia preparado um material de fotos da minha infancia, com a intencdo de dividir essas memérias com elas, contando um pouco da minha histéria, relatando acontecimentos e encontrando Pontos em comum com as criangas. © grupo iniciou a conversa falando sobre as lembrangas que se relacionavam aos momentos registrados nas fotografias. Surgiram rela- tos sobre varios acontecimentos, como mudangas de uma moradia para outra, nascimento de irmaos, férias inesqueciveis, aniversérios... As lem- brancas foram trazidas com muita animagao, pois as criangas encon- ‘taram ali um momento para falar das suas vidas, sobre momentos que a8 tocaram de alguma maneira. Eu também levei diversas imagens que foram espalhadas pelo cho. Cada uma escolheu trés fotografias que Seriam comentadas por mim. Optei por pré-selecionar muitas fotos para que as criangas pudessem fazer a sua propria selecao. Nao queria ficar felando sobre imagens que nao as interessassem, por isso a importancia da a escolha ser feita por elas. 0 momento da mostra das minhas foto Qrafias foi muito rico, pois nos aproximou em termos da realidade das Nossas infancias. Todas acharam muito divertido ver que a professora também jé foi crianga um dial Enquanto mostrava as fotos, lembrei es criancas de que antiga- Mente as cameras fotogréficas no eram digitais, mas analégicas. Ex- pliquei que havia uma relagdo muito diferente da que se tem hoje com @ fotografia: como os filmes possibilitavam apenas 12, 24 ou 36 fotos, 8 pessoas tinham um cuidado muito maior na escolha da cena a ser fotografada. Podemos dizer que a fotografia era muito mais valorizada do que atualmente, quando todos possuem uma camera ou um celular Editora Mediagao capaz de armazenar dezenas de imagens sem custo algum. Contei as criangas sobre a ansiedade que tinhamos na espera da revelagdo dos filmes, fato que no ocorre mais nos dias de hoje. Falei que, em muitas das nossas fotos, havia recados no verso, dedicatérias ou a identifica- 980 do local e da data. A seguir perguntei as criangas: qual a relagdo entre o curta-metra- gem assistido, a histéria de Guilherme e a conversa sobre os registros fotograficos? Uma crianga respondeu que era porque as fotos nos fa. ziam lembrar algo, assim como os objetos nas histérias. Outra crianca disse: “Nés estamos trabalhando a meméria, tudo que a gente faz tem a ver com ela!” ‘Apés as conversas, todas sentaram-se as mesas, nas quais nor- malmente realizamos os trabalhos. Expliquei, entao, a proposta da ativi- dade prética: realizar um desenho sobre as memérias evocadas a partir das fotografias. que haviam levado. Uma crianga perguntou se deveria copiar a foto, eu-expliquei que no. A ideia seria colocar no desenho elementos que nao esto presentes na imagem, mas, sim, nas memérias que ela nos desperta. A pergunta feita por ela, aparentemente simples, evoca as pré- ticas artisticas adotadas em sala de aula. Percebo que as atividades Propostas nas escolas transitam sempre pelos mesmos enunciados: Propdem as criangas a cépia de obras de arte, a representagdo do mo- mento de que mais gostaram no passeio realizado, o desenho da histé: ria narrada. Enfim, enunciados que nao instigam as criangas a irem além das representagées dbvias. Para que a proposta ficasse mais clara, lembrei a elas de fatos que haviam relatado, relacionados as imagens. Apés essa breve recapitulacao, escolheram os materiais que utilizariam fa proposta. Perguntei com qual tipo de papel cada uma gostaria de trabalhar: folha grande, pequena, fina, grossa, branca, colorida, entre outros formatos ou cores. Apés as escolhas, as criangas partiram para @ pratica, Enquanto produziam, eu estimulava as lembrancas por meio de diversas perguntas. Editora Mediacao ARTE CONTEMPORANEA = EDUCAGAO INFANTIL A meméria no trabalho de Rochele Zandavalli A aula seguinte iniciou com uma conversa sobre a sério “Rover™ da artista Zandavalli. Contei que a artista mora em Porto Alegre. Pedi SS criangas que haviam ido & exposicao que contassem as demais como Gram @s obras da artista. Elas disseram que a artista fazia fotografias antigas com algumas partes coloridas. Expliquei que Zandavalli néo fa- 218 esas fotografias, ela apenas as coletava em brechés e briques no tinha conhecimento sobre quem eram aquelas pessoas retratadas. Mostrei, entéo, varias obras da série “Rever”, pois algumas criancas nao haviam ido & exposieao, Indaguei sobre o que havia de diferente naquelas imagens. Algumas disseram gue a artista desenhava nas fotos, outras gue ela pintava, até que conclufram que Zandavalli intervinha com bor- dados nas imagens. Nessa intervengao sobre 0 registro da meméria de outra pessoa, sur- ge um contexto diferente do jé presente na fotografia. As imagens, desse ‘modo, vo sendo ressignificadas pela artiste. Segundo Cunha (2010, p. 2), “artistas brincam com o cotidiano, a histéria, os mitos e com os nossos Pensamentos. Reconstroem significados em torno do jé visto e do su- Postamente sabido”. Percebo semelhancas, nessas préticas dos artistas, com 08 processos de aprendizagem das criangas, que brincam de “faz de conta” representando vivéncias cotidianas, fantasiando e dando sentido as. suas experiéncias, ‘Algumas criangas comentaram que aquelas imagens pareciam ser muito mais antigas do que as da professore, pois compreenderam que ali havia uma estética fotografica diferenciada: a roupa das pessoas, os cené- rios, @ auséncia das cores, entre outros elementos. Também foi salientada 8 auséncia de sorrisos nos rostos das criancas, as poses delas, formais ¢ Contidas, diferente da espontaneidade presente nas fotografias mais atuais. A conversa sobre as obras de Zandavalli foi encarada de forma leve, aberta a didlogos e a opiniées de todas. & importante que as criancas sintam uma naturalidade na abordagem dos temas artisticos, de modo que esses facam parte de suas vidas da mesma maneira que os filmes Editora Mediacao ou desenhos animados, por exemplo. Acredito que a arte nao deva ser abordada com um assunto distante delas, especial, intocével, com ex- Plicagées prontas e rigidas, sem abertura para 2 construcdo de conheci- Mentos. Para Hernandez (2009, p. 93), (...) no se separa quem aprende e quem ensina (com suas inquietudes. temores € desejos) do processo de ensinar e aprender a compreender o ‘mundo, as situacdes emergentes ¢ as relacdes dos sujeitos com eles mes- mos e com os outros. Com isso, pretende-se favorecer uma concepgao do sujeito que 6 capaz de apaixonar-se por aprender de forma critica se tiver a oportunidade de fazé-lo, Da mesma forma, apoiada nos estudos de Martins (1999) sobre o ensino da arte, acredito que a experiéncia e a vivéncia em um proceso expressivo, aliadas aos conhecimentos artisticos, resultam em aprendiza- gens signiticativas. Assim, epds as discussées tedricas sobre a obra dé Zandavalli, as criangas foram todas para a mesa central e sentaram-se, atentas a explicagao da proposta. Foram distribuldas fotogratias xeroca- das de colegas de outras turmas. As imagens estavam em preto e branco © $6 continham a figura das criancas sem o fundo, O desatio das criancas fol elaborar um contexto para a imagem do colega, “criando” uma me. méria: com 0 que essa crianga gostava de brincar, onde ela estava, com guem, se tinha algum bicho de estimacao, se morava em casa ou apar. tamento, se tinha irmaos, qual seu nome, entre outros. Criando, elas se Perguntavam como seria a reagdo do dono da fotografia ao ver sua foto modificada. Lembrei, entéo, a série “Rever” de Zandavalli. Como seré que as pessoas se sentiriam ao verem fotografias suas ressignificadas por uma artista? E por um colega? A memoria no trabalho de Bispo do Rosério Introduzi a proposta explicando que irfamos estudar um artista bra- sileiro que estava expondo no Santander Cultural, ao lado da Zandavalli Editota Mediagao ‘CONTEMPORANEA E EDUCAGAO INFANTHL \¢éi0 dos movimentos antimani Comiais, que extinguiram grande parte dos manicOmios, @ tema da loucura no ser abordado normalmente com el Segunda opeao, questionamo-nos sobre os motivos da gem do tema. Chegamos & concluséo de que a loucura cane Singularidade que, aos olhos de muitos, precisa ser corrigida, a pes. S02 isolada, separada da sociedade. Por meio da fala das criancas, conclar Gus no tinham acesso, néo conviviam com pessoas que se desviem dos Padrées de “normalidade", e também no so convidadas a conversar, a Ponsar @ respeito, a refletir sobre a diferenca. Mostrei as criancas uma fotografia de Bispo, e a reagdo geral delas confirmou essas suposie6es: ficaram visivelmente surpresas com a cor negra da pele do artista, Trata-se de préticas que tém no racismo 0 seu ponto imédiato de conver. géncia, se entendermos por racismo no apenas a rejeicao do diferente, mas, também, a obsessdo da diferenca, entendida como aquilo que conta. mina a pretensa pureza, a suposta ordem, a presumida perfeigo do mun- 0. A diferenca pensada como uma mancha no mundo, na medida em que 08 diferentes teimam em no se manter dentro dos limites nitidos, pre 508, com os quais 0 lluminismo sonhou geometrizar o mundo, A diferenca entendida como aquilo que, sendo desvianto ¢ instével, estranho e eféme- fo, no se submete a repeti¢ao, mas recoloca, a todo momento, o risco do 208, 0 perigo da queda, impedindo que 0 sujeito moderno se apazigue no reflgio eterno de uma prometida maioridade (NETO, 2001, p, 108). A partir das explicages sobre hospicio, foram lovantadas diversas questBes: por qual motivo os louces moravam nesses ambientes? Por que eles nao podiam viver livres, como as outras pessoas, mas presos, consi- derados perigosos? Quem decide se o louco pode ser livre ou no? Todos 08 loucos so loucos o tempo inteiro? Eles podem ser curados? A loucura & contagiosa, “desenvolve-se” ou as pessoas nascem com ela? Editora Mediagao sujeite louco/ “estore: respond Lembrei fato de pensara Com esses questionamentos, direcionei a conversa para 0 compor- tamento que todos temos com as pessoas consideradas diferentes de n6s. Conversamos sobre as possibilidades que nos levam a nao gostar de determinadas pessoas. Chegamos juntos concluséo de que muitas vezes os “diferentes” séo separados da sociedade porque esta nao os tolera. Mas ndo seriam as singularidades qualidades, em vez de deteitos? Comentei também com es criangas que, em muitas mUsicas, os composi tores versam sobre esse tema A seguir, pedi que as criangas sentassem no cho e apaguei as luzes para assistirmos @ dois clipes. Pedi que prestassem ateneao na letra das misicas, no apenas nas imagens. O primeira clipe fol de Raul Seixas cantando “Maluco Beleza”. 0 segundo foi “Balada do Louco”, de Arnaldo Batista. Apés assistirem aos clipes, as criancas fizerem uma roda, @ nés iniciamos uma conversa sobre o que diziam as letras das misicas. Destaquei o trecho: “Enquanto vocé se esforga para ser um Sujeito normal) e fazer tudo igual/ eu do meu lado aprendendo a ser louco/ maluco total/ na loucura real”. Por quais motivos as pessoas se “esforcam” para serem normais? Porque eles néo querem ser loucas, responderem as criangas. E por que as pessoas néo querem ser loucas? Lembrei que, na musica de Arnaldo Batista, ele salienta exatamente o fato de que os “normais” é que sao infelizes: “Dizem que sou louco/ por Pensar assim/ se eu sou muito louco/ por eu ser feliz/ Mas louco 6 quem me diz/ € nao & feliz/ nao é feliz. Para “aquecer” a discussao, perguntei sobre acontecimentos coti- dianos de lugares frequentados pelas criangas. Uma crianca lembrou que, em sua classe, hé um colega autista que muitas vezes 6 cagoado pelos demais. Outro contou sobre um vizinho cadeirante que nunca era convida- do para as brincadeiras no condominio. Com esses exemplos, pensamos sobre a exclusdo das diferencas nos mais diversos ambitos. Perguntei, en- to, se elas conheciam algum artista louco. Todos responderam que nao. Voltando para as obras de Bispo, expliquei que o artista, antes de ser internado, havia trabalhado na Marinha, por isso, conhecia muitos paises e pessoas. Em suas produgées, Bispo recriava o mundo ao seu modo, assim Editora Mediagéo ARTE CONTEMPORANEA & EDUCAGKO INFANTIL como nés nos utilizamos de fotografias para lembrar de acontecimentos, o artista bordava as suas memérias. Bispo no tinha acesso a materiais plés- ticos préprios para suas produgées artisticas, por isso utilizava em suas Obras objetos do cotidiano do hospital. Os bordados eram feitos com as linhas desfiadas de seu proprio uniforme, aplicadas sobre lengdis e panos velhos. Ele também utilizava, em suas obras tridimensionais, sucatas do hospital € objetos descartados pelos outros internos. Ele conseguia salvar restos da cultura industrial, itens desprezados e esquecidos, ¢ ressiginifi- cava-os, criando uma composi¢ao Unica ¢ individualizada. Mostrei as criangas uma fotografia do “Manto da apresentac&o”, um ‘trabalho em que o artista apresenta uma rica gama de cores em dois tipos. de tecido. Na face externa, feita de um cobertor, palavras, simbolos, nu eros e figuras so bordados em fios de la. Na face interna, sobre fundo de tecido branco, ha nomes de mulheres, organizados em forma de uma espiral irregular em diregao a abertura da cabeca. Esse manto, vestido por Bispo e carregado de tantos significados, foi reinventado pelas criancas: diversos tecidos, lés, linhas, joaninhas e fi- tas foram dispostas mesa. As criancas, com a minha ajuda, foram crian- do adoros, enfeites roupas. Sem a necessidade de costurar os tecidos, a8 roupas foram sendo construfdas em conjunto. A sala, coberta de panos coloridos, transformou-se em palco para apresentacées performéticas. Elas se reinventaram no novo ambiente que ali surgiu: personagens foram tomando forma, corpo e lugar. Materiais inusitados Buscando formas particulares de expresso com as criancas, por meio dessas propostas, oportunizei o contato @ 0 conhecimento de diver- 50s materiais para utilizago em suas produgées simbdlicas. Assim como 98 artistas contempordneos aproveitam materiais inusitados em seus tra- balhos, explorando-os em todas as suas possibilidades, elas também po- dem fazer o mesmo quando se expressam. Editora Mediagao Na aula seguinte, ocorreu uma segunda mostra desses artistas. A mostra desta vez foi enfocada nos materiais utilizados nas obras. Conver samos sobre 0 que havia em comum em ambos: a utilizagao da la/linha para a realizacio das imagens. Foram fornecidos as criangas diversos fios, las, cordées, cadargos e linhas, além de fita adesive, cola branca ¢ folhas de diversos tamanhos, gramaturas e cores. Expliquei que o objetivo da atividade seria “desenhar” nas folhas sem recorrer aos materiais gréficos (canetinhas, lapis de cor...), desafian- do as criangas a reinventarem o uso daqueles materiais. Elas investiga- ram os fios fornecidos, testando diferentes modos para a formac&o de desenhos, emaranhados e relevos. Algumas delas resolveram “bordar” as folhas: fizeram diversos furos pequenos com a tesoura e os percorreram com as linhas. Cunha (2012, p. 24) afirma que a8 possibilidades e limitagées infantis de crier formas estéo também rela. cionadas @ diversidade de materiais aptos a sofrerem transformagées atra- vés da curiosidade delas. Quando se disponibilizam diferentes materiais, a ‘ampliagao de ideias, invencdes e criagdes das criangas ganham destaque, de modo que elas necessitam elaborar maneiras de lidar com este desatio, originando desenhos, modelagens, colagens e pintures com marcas pes- soais € diferenciados dos comumente realizados. Reflexdes posteriores Apés a realizagao de qualquer projeto de trabalho, costumo realizar ‘com as criangas uma conversa, levando em conta os processos de apren- dizagem de cada crianga, pensando nas transformagées individuais, anali- sando 0 modo como elas recebem os desafios propostos, as dificuldades © as facilidades encontradas, fazendo, assim, uma autoavaliagao sobre a jabordagem utilizada. Também acredito ser fundamental uma anélise so- Bre o entendimento das criangas (para além de um julgamento puramente Formal) sobre a proposta dos artistas trabalhados. Busco, para isso, estar @tenta construgao gradual de uma linguagem visual propria, singular, Editora Mediacao ARTE CONTEMPORANEA E EDUCAGAO INFANTIL afastada de esteredtipos formais, evidenciando as semelhancas e as dife- rengas entre os trabalhos delas. Acredito que as atividades préticas devem estar atreladas a reflexao teérica e critica do professor. Primeiro, pensar sobre 0 objetivo que se tem ne atividade proposta; durante o desenroler da aula, observar a receptivi dade das criangas, as dividas que surgem, os questionamentos; e depois de atividade, analiser 0 que foi vélido, 0 que contribuiu para a formacao de um sujeito mais sensivel, mais conhecedor da arte. Posso dizer que, no projeto realizado, as criangas vivenciaram ex- periéncias significativas que alteraram as suas concepgées sobre a dife- renga, analisando os seus comportamentos com o outro de uma maneira mais critica. Duschatzky e Skliar (2001, p. 137) perguntam (...) seria possivel a tarefa de educar na diferenca? Felizmente, 6 impossi vel educar se acreditamos que isto implica formatar por completo a alteri- dade, ou regular sem resistencia alguma, o pensamento, a lingua a sen- sibilidade. Porém parece atraente, pelo menos nao para poucos, imaginar 0 ato de educar como uma colocagao, a disposi¢ao do outro, de tudo aquilo que possibilite ser distinto do que 6, em algum aspecto. Uma educago que aposte transitar por um itinerério plural e criativo, sem regras rigidas que definam os horizontes de possibilidade. Com as propostas realizadas, 0 repertério visual das criangas foi am- pliado, de modo que elas entraram em contato com diferentes linguagens (video, livro, clipe, fotogratias), artistas e materiais, que normalmente n&o eram vistos por elas como préprios para a realizado de obras de arte. As sim, pretendi suscitar 0 entendimento delas de que o conhecimento nao é fragmentado, dividido, e que a arte contemporanea pode ser vista como um emaranhado, em que miltiplos fios se cruzam em variados pontos. Tal como diz Cunha (2010, p. 2), “os artistas ampliam as nossas relacdes de conhecimento com 0 mundo ao proporcionarem versées inusitadas sobre as benalidades e estranhezas do mundo". O projeto me permitiu perceber a necessidade de um estimulo para a ida das criangas a exposi¢des, também para que suas familias conhecam Editora Mediacéo espacos culturais como esses de Porto Alegre. Percebo que, quando os familiares se relacionam com a arte, as criangas adquirem uma nova con- Cepoao sobre o universo artistico. Observo que muitos pais desvalorizam o campo artistico, enxergando as aulas de arte e do atelié como um momento de divertimento, sem reflexdes ou aprendizagens. Essa concepedo é pas: sada para as crianeas que acabam recorrendo & reproduc de desenhos estereotipados, sem refletir sobre o que esto produzindo e sem expressar suas singularidades nos mesmos. O convite a familiares para nos acompa- nhar 8s exposicdes de arte contemporanea foi uma maneira de atral-los ao universo artistico e uma tentativa de mudanca das suas concepgdes de arte e ensino da arte. Trabalhei com artistas e suas exposiges em Porto Alegre no intuito de desfazer a ideia que muitos adultos tam de que a arte que esta nos mu: seus 6 algo complexo, de dificil entendimento ¢ impréprio para criangas, vistas muitas vezes como incapazes de compreender ou ter um contato mais profundo com a arte contemporénea. Como professora de artes, sou uma frequentadora ass{dua das exposi¢des que ocorrem em minha cidade, pois, ancorada em Franco (s/d), acredito que, para que o repertério cultu- ral dos meus alunos seja ampliado, ¢ necessério que o meu proprio esteja constantemente sendo ampliado, o que sugiro a todos os professores. Nesse projeto, tive a intengdo de mostrar as criangas que os artis- tas, quando criam algo, tém alguma intencionalidade, algum propésito em relagdo as suas produgées. Entretanto, a interpretagao do piblico é algo imprevisfvel, que acaba fugindo do controle dos autores. Com as criangas, busquei trabalhar as diferentes possibilidades de significado que uma obra possa gerar, atenta sempre ao entendimento de- las. Conforme @ compreensdo que se obtém sobre determinado assunto, ‘aprofundamo-nos nas teméticas e inten¢des do artista, sem deixar de lado os sentidos atribuidos pelas criangas ao que esté sendo visto. Levo em con- sideragao outros aspects que vao além da relacao artiste-obra, abordando também a relagdo obra-espectador. Que relagéo as criangas estabelecem entre as obras @ as suas vivencias e experiéncias particulares? Que senti- mentos elas suscitam? Finalizo com as reflexdes de Martins (2003, p. 6): Editora Mediagao, ARTE CONTEMPORANEA E EDUCAGAO INFANTIL © que nos passa, nos acontece, nos toca quando é a arte que provoca a experiéncia? Nosso corpo perceptivo @ poroso a acolhe e a hospeda dentro de nés, ou rejeita o que parece estranho ou aparentemente sem sentido? Por sua prépria natureza, a arte incita a aventuras interpretativas, mas nem sempre os olhos estéo convocados para uma viagem estética. Nem sempre nos damos conta dos complexos fluxos ¢ relagdes que podem ser estabelecidos entre a nossa fruigéo ¢ a producio artistica, Relacbes que podem ser, a principio, superficiais nas constatagdes de “gosto” ou “no gosto”, ou que podem nos levar a um extenso e inquieto trabalho de cons- trugo de sentidos. Editora Mediagao 6 AS PRODUGOES GRAFICO-PLASTICAS DAS CRIANGAS Andressa Thais Favero Bertasi Rodrigo Saballa de Carvalho Os primeiros tragados realizados pelo ser humano foram encontra- dos em cavernas, grutas, paredes, tetos e outras superficies rochosas. Cada um dos desenhos retratados nessas superficies apresentam expe- rigncias e modos de vida do homem primitivo, que retratava em grande parte os animais que conhecia. Sendo assim, além de expor marcas de diferentes épocas, experiéncias e modos de vida, o desenho é uma lingua- gem que comunica, expressa @ conta historias. E evidente a fascinacao que essa linguagem desperta em criancas da Educagéo Infantil, que, quando chegam a escola, mostram-se entusiasma- das pela descoberta de novas possibilidades de exploraco. Entretanto, essa importante linguagem ainda é muito desvalorizada. As praticas pedagégicas encontradas nas escolas ainda atendem apenas as necessidades biolégi- cas das criangas ou se preocupam demais em preparé-las para o Ensino Fundamental. Nessa prética 0 ato de desenhar é inexistente. O curriculo predominante centrado na realizagao de atividades com um fim em si mes- ‘mas, com énfase na listagem de técnicas e datas comemorativas, além uma auséncia de relacdo entre as propostas desenvolvidas. Assim, nessa con- cepeao, o desenho 6 apresentado pronto para as criancas que passam por diversas atividades com o produto final mais valorizado do que o processo. Editora Mediagao ARTE CONTEMPORANEA © EDUEAGhOINFANTIL Muitos professores ainda veem o desenho apenas como uma forma de aprimorar @ coordenago motora fina, como uma expressao do desen- volvimento psicolégico ou como um meio, um instrumento para diversos fins a seu servico. Corroborando 0 argumento, Augusto (2009) destaca Que 0 professor ainda procura a figuracéo, o elogio, a destreza, 0 uso de Certas cores ¢ @ habilidade de quem desenha formas proximas da perfeicdo. Além disso, existem professores que seguram nas méos dos alunos para que a pintura fique perfeita, dentro do limite imposto pelo desenho acabado. As criancas que conseguem tel faganha sozinhas recebem elo- Gos, sorrisos © aplausos, as que no conseguem acabam sendo menos- prezadas, ignoradas e/ou classificadas como incapazes. Em casos em que © aluno tem a possibilidade de produzir seu desenho, com tracados @ for- mas préprias, os professores acabam interferindo e modificando os dese- nhos tendo em vista a organizagao, a limpeza e os tracos perfeitos. Essas concepgdes do desenho nao apresentam a crianga como sujeito ativo no mundo, com singularidades, pensamentos e interpretacées proprias. Ao contrério disso, neste texto, defendemos @ imagem de uma crianga que, desde que chega & cena humane, vivencia experiéncias que vao constituindo sua singularidade e também suas manifestagées ox Pressivas. A partir da interacdo com 0 mundo, ela elabora seu pensamen- to, que muitas vezes 6 demonstrado por meio de um desenho, que ndo precisa ficar perfeito ¢ idéntico ao objeto desenhado, mas que, mesmo assim, apresenta a particularidade com a qual a crianga olha os diversos contextos a que tem acesso. Por isso mesmo, é indispensével, nos diferentes espacos escolares, @ observacéo de criangas debrugadas @ concentradas sobre suportes di versificados, experimentando, com diferentes materiais, os mais variados riscos, rabiscos, formas e cores que seu desenho pode adquirir. Ou seja, @ escola precisa proporcionar as criangas momentos em que contemplem experiéncias nicas, em que cada desenho seja entendido como uma pro- dugao cheia de historias e signiticados impares. Nessa perspectiva, pretendemos trazer alguns aportes tedricos so- bre 0 tema, além de apresentar e analisar os pensamentos que perpassam Editora Mediacao as producées gréticas das criancas, problematizando as relacées que in- terferem nos seus percursos criadores. Por fim, descreveremos proposi- ges de desenho como sugestées didéticas para os professores. Pensando os tracados: escritas sobre o ato de desenhar Quando um professor se permite olhar com atenedo os tragados, as formas e as cores apresentadas no desenho de uma crianga, visualiza vestigios de sua singularidade, cultura e modos de viver. Ao solicitar, também, que ela fale sobre seu desenho, verifica que seu discurso é pautado em interesses individuais que surgem a partir de suas interacdes sociais mais relevantes. Para Gobbi (2009), os desenhos infantis sao formas privilegiadas de expresso. A atitude investigativa do professor, que os contempla a partir dos olhares das criangas pode contribuir para ages politicas que as respeitem em termos de seu mundo vivido, imaginado e construido, analisando suas concepgées sobre os fenémenos sociais. © ato de desenhar é uma linguagem importante a ser constituida na infancia. Com 0 desenho, as criangas podem expressar outras formas de olhar, imaginar, pensar e sentir 0 mundo a sua volta. Enquanto desenham, relembram, dialogam, narram, fantasiam, planejam. Com isso, & possivel perceber como elas pensam sobre a cultura, a histéria e a sociedade, carac- terizando seu ponto de vista ¢ deixando marcas por meio dos seus tracados. © papel da escola e do professor € 0 de ofertar uma diversidade do experiéncias de forma que a capacidade de criagéo venha a ser exercida elas criangas, propostas de qualidade e que considerem a exploragao a ser proporcionada, de forma que as criancas tenham a possibilidade de desfrutar de atividades atrativas, envolventes, apaixonantes, que permi- tam vivéncias impares e a evolugao do seu desenho De acordo com Gobbi, (2010), muitas vezes, as ricas manifestagdes que as criancas utilizam para se expressar so enfraquecidas no cotidiano infantil pela auséncia de propostas que garantam processos de criagéo que Editora Mediagio ARTE CONTEMPORANEA € EDUCAGHO INFANTIL Contemplem questionamentos, a busca criativa por diferentes materials Fespeito pelo proprio trabalho e do outro. Para que tal enfraquecimento ocorra, € preciso observar tr8s aspectos essenciais: os materiais, os supa {0s € 08 espacos'. Quanto mais espacos forem utilizados, © quanto mal ample for a variedade de materiais © suportes oferecidos as criancas para desenhar, mais claramente conseguiréo comunicar seus pontos de vista, Mesmo que a escola nao possua grandes recursos © espacos, um olhar atento e dinamico do professor permite enxergar possibilidades que: outros no visualizam. Se nao tiver muitos materiais industrializados, pode Preparar tinta de terra com as criangas, disponibilizar gravetos, folhas, pe- dras, gros, plésticos, papelées, papéis, tecidos e outros de baixo custo como suportes. Se a escola contar com espagos restritos, as propostas Podem ser executadas embaixo das mesas da sela de aula, nas paredes, Te chlo liso, no chéo éspero, em grades, arvores. Enfim, & possivel pro. Piclar experiéncias de qualidade quando o professor investiga, pesquisa e Presta ateneio nas possibilidades que esto a sua volta. Pera cada espaco utilizado, 6 possivel dispor de diversos supor- tes que, por sua vez, podem ser experimentados com: varios materiais, fazendo com que as possibilidades de exploracdo sejam abundantes praticamente incontaveis. Para lavelberg (2013), ao fazer uso de diversos materiais, a crianca Percebe que desenhar tem magia, que envolve imaginago. Nesse senti- Go, uma crianca que esté utilizando como espago o piso éspero do patio dia escola e como suporte uma folha AS tem a possiblidade de explorer indmeros materiais separadamente como a tinta guache, tinta nanquim, canetinhas, lapis de cor, giz de cera, giz de quadro, giz pastel, carvao, en. tre outros. Cada um dos materiais testados em seu fazer artistico imprimi- '6 uma experiéncia diferente e Gnica que ampliaré seu repertério artistico © transformaré suas futuras produgées ial 0 instumento que possibilta a reaizacto doe tragados, formas © cores no ato de dese uporte 0 meio que fornace a base para que o desenho acontoge, Eepase ¢ 0 losthece Caney Suporte seré colocade para a reeizacio do processo de elapse Editora Mediagao Além disso, torna-se necessério um olhar atento aos desenhos a que a crianga tem acesso no seu cotidiano e que influenciam nas suas criagdes, pois, quando ela apenas tem contato com desenhos que apre- sentam uma forma de desenhar mais valorizada ou com tragados per feitos, 6 frequente observé-la dizer que ndo sabe desenhar ou solicitar que outros colegas, ou até mesmo a professora, desenhe por ela algo. Para evitar isso, as propostas de desenho precisam proporcionar 0 co- Nhecimento das diversas representagdes que um mesmo elemento pode adquirir, por meio de visitas a museus, ou planejando situacdes de apren- dizagem em que as criancas tenham a oportunidade de apreciar um mes: mo elemento em diferentes obras de arte, analisando os tracados usados pelos artistas em seus desenhos De acordo com lavelberg (2013, p. 16), “prender a crianga a re- presentagao do real & colocé-la aquém de suas possibilidades em duplo sentido: por desconsiderar seus modos de desenhar e por afastar seus desenhos da arte como é concebida na contemporaneidade”. Apresentar 0s tragados que diferentes artistas utilizam em suas obras permite que a crianga amplie seu repertério visual e perceba que ndo existe uma unica forma de desenhar. Com isso, ela tende a demonstrar mais seguranca ¢ confianga no ato de desenhar, explorando todas as possibilidades de tra- gados e cores que os materiais disponiveis podem Ihe oferecer. O ato de desenhar passa a ser inteiramente da crianca, fazendo com que a beleza de seu desenho esteja na apropriagao da imaginacao, na descoberta, no inusitado e no em linhas, formas e tracos perfeitos. Os desenhos “perfeitos’, por outro lado, expostos muitas vezes nos corredores das escolas, precisam ser substituldos pelos desenhos dos alunos, mostrando sous olhares, suas marcas, suas descobertas, seus interesses e, principalmente, suas criagdes. Dessa maneira, ao visualizer como os colegas retrataram determinada proposta, eles tém a possibi lidade de ver outras formas de pensar, outros tragados, outras cores. Nesse processo, internalizam essas imagens e percebem que existem diversas formas de expressar seu pensamento. Exemplificando: se uma crianga sempre utiliza 0 azul e 0 verde em seus desenhos e, durante as Editora Mediagao ARTE CONTEMPORANEA & EDUEAGAO INFANTIL Socializagées, observar as outras cores que os colegas utilizaram, ou ainda, se algum colega Ihe questionar sobre essas cores, observaré que Pode utilizar outras nos préximos desenhos. Por conta disso, teré mais liberdade na exploracéo dos materiais disponiveis. A percepgaio empre- gada nesse processo possibilitaré a reconstrucao elaborada de suas cria- 96es, além da ampliac&o da habilidade de aco e retlexdo. Dessa forma, © desenho favorece seu desenvolvimento integral, pois, por meio dele, suas capacidades intelectuais e cognitivas s80 aprimoradas. Outra questéo a destacar 6 que 0 ato de desenhar néo pode ocorrer isoladamente, ume atividade com um fim em si mesma, é preciso criar situages de aprendizagem nas quais a crianga tenha oportunidade de apreciar obras de artistas, explorar 0 fazer artistico e reflotir sobre as suas. produgées e as de seus colegas para ampliar seus pontos de vista. E importante © professor pensar sobre os desenhos das criangas, Pois, pelo fato de estarem relacionados a vida delas, contam histérias, Staccioli (2011) acredita que os desenhos sao o espelho dos pensa- mentos das criangas, refletindo, apenas em parte, as propostas que se fazem. Ao olhar suas produgdes como simples representacses da reali- dade, desconsidera-se a multiplicidade de pensamentos e de emogdes envolvides no seu processo de criagao. Portanto, estamos afirmando que 0 desenho da crianga acontece na relacéo entre o seu repertorio visual © o seu pensamento. Ou seja, no ato de desenhar, ela resgata de Sua meméria as imagens sobre determinado tema e cria uma ideia para seu desenho. Nesse proceso de criacao, seu pensamento vai sendo elaborado e Sua ideia passa a ter uma representagao visual. Olhar os desenhos das. criangas 6 refletir sobre seus pensamentos, suas percepgées e suas formas de compreender 0 que esté a sua volta. As constantes interpretacées que a crianga realiza no didlogo com ‘95 seus desenhos e com os de seus colegas propiciam uma criagéo talentosa. Ela é responsavel por sua construcdo. A cada nova inter- Pretacdo, 0 pensamento infantil é redefinido, gerando representagdes renovadas e originais. Editora Mediacao veis: revelando os pensamentos das criangas (Os desenhos das criangas revelam seus tracos culturais e pontos de vista distintos. A reflexdo e 2 observacdo atenta, durante o percurso criador, possibilitam ao professor 0 acesso a elementos que influenciaram a consti- tuigao do desenho, levando-o a refletir mais profundamente sobre a crianca. Com base nas passagens selecionadas para nossa anélise, obser. vamos que as criangas organizam os pensamentos que permeiam a sua produce tendo em vista expressé-los e construir uma narragao. Dessa forma, 6 indiscutivel a necessidade de problematizar suas verbalizacdes durante a ago gréfica e ao final dos desenhos. Exemplificando, comentaremos alguns comentarios das criancas durante a produgéo de autorretratos. Para essa atividade, utilizamos, como espago, a sala de aula, as mesas e, como suporte, uma folha sulfite 60. No centro da mesa, colocamos materiais, como pincéis, nanquim, canetdes, canetinhas, lapis de cor, giz de cera e tinta guache para que as criangas tivessem a oportunidade de escolher os que considerassem mais apropriados. Além disso, ao final da proposta, solicitamos que elas falassem sobre seus desenhos, tendo em vista ouvir seus comentérios e desencadear discussées, didlogos e transformagées gréficas. Reproduzimos seus comentérios neste texto tal como foram feitos © usamos nomes ficticios para as criangas tendo em vista preservar as suas identidades. Alguns episédios foram aqui relatados para exemplifi- car 0 processo de andlise que levou em consideragao 0 desenho como produgo discursiva (CUNHA, 2015). Durante a produgo, cinco criencas de cinco anos foram incentivadas a utilizar 0 espaco, o suporte e os ma- teriais disponibilizados para explorar a linguagem do desenho, usando sua imaginagao e criatividade, expressando, assim, suas vivéncias, narrativas, modos de olhar o mundo a sua volta No decorrer da proposta, percebemos que a interacao com os cole- gas e com os materiais resultou na modificagao das producées gréticas de quatro das cinco criangas 4 medida que iam observando, no desenho dos colegas, algo que Ihes chamasse a aten¢o, ou ainda, por conta de Mediagio ARTE CONTENPORANEA & eDUCAGHO INFANTIL Comentérios deles que suscitaram novos temas para o desenho, conforme Pode ser observado na transcri¢ao? a seguir Episédio 1 Paulo: Mas 86 que, no, no tava frio. Tava o sol assim Grande, mas s6 ue tava chovendo. Pesquisadora: Hum, tinha chuva e sol? Paulo: Sim, é por isso que aparece o arco-its. Mariana: Ah, profe, vai ter a escuridéo e vai ter um are Curidéio, porque té chovendo e tem solzinho. Mariana: (..) A escurido também t0 fazendo de preto (9 Vou ter que imidar de cor a escuridéo. Eu vou fazer uma escuridgo super colorida, sabe, profe? Nesse epissdio, percebe-se que os desenhos de Paulo e de Mariana Passaram por transformagées gréticas por conta dos comentarios entre sles durante 0 ato de desenhar. Primeiramento, Quem realiza a mudanca oa Mariana, que estava comecando a pintar a escuridan ©, apés ouvir Paulo comentar que fez um arco-itis no seu desenho, resolveu nomear jue comecava em uma extremidade lateral no da menina que ela jé havia desenhado. is, Mariana inclui outra linha, dessa vez na Gor marrom sobre a linha laranja. Quando Mariana ‘comecou a desenhar @ escuridéo, 2 Todos os epieddios descritas no Secorrer das andlises reforem-se as narratives orais das criengas Gurante © 2p6s » produpso dos desenhas Editora Mediagio havia mais espaco, 4 que a intengdo inicial nao era desenhar um arco- iis. Parece-nos que, a partir da fala do colega e de o tracado da linha larania he sugerir um arco-iris, ocorreu uma mudanga no pensamento de Maria na que ficou evidente por meio de sua fala. Além disso, pelo que disse Mariana, verificamos que ocorreu uma mudanca em seus planos de fazer a escuridéo, jé que ela sentiu a necessidade de mudé-la de cor logo na parte superior da folha, em que utilizou as cores rosa-claro, rosa-escuro azul-claro pare expressar seu pensamento. Posteriormente, quando Paulo percebeu que Mariana desenhou uma escuridao, também modificou seu desenho, passando nanquim preto so: bre todo 0 seu arco-fris. A ago grafica de Paulo pode ter a intengao de expressar um fenomeno que ocorre na natureza, provavelmente jé viven- ciado por ele, em que sai o sol, comeca a chover, surge 0 arco-fris e de- pois 86 permanece a chuva. No ato de desenhar de Mariana e Paulo, ocorreu, segundo nosso en- tendimento, um processo de imitaeao, no de cépia. Explicando a diferenca entre imitagao e cépia, Derdyk (2015) ressalta que a capacidade de imitar decorre da experiéncia pessoal de cada crianga, sendo uma maneira de se apropriar de determinada representag3o. Observando o desenho do Paulo © da Mariana, pode-se, assim, dizer que no séo iguais. O que significa que, mesmo que uma crianga imite a acéo de outra, estar representando a mes- ma ideia de uma forma prépria, singular, neste caso, 0 arco-iris @ a escuridao. Episodio 2 Pesquisadora: Me fale sobre o seu desenho. Jo&io: Um menino que tava na escurido, que apareceu um arco-tris. Joana: Eu fiz uma menina, s6 que ela tava na chuva, molhou tudo e tava queimando. (Arquivo dos autores) Nesse episédio, observamos que, apesar de Joao nao ter verbalizado seu pensamento durante a produgao gréfica, sua fala, no encerramento do desenho, seguiu 0 modelo do de Mariana e Paulo. Corroborando o argumento, Silva (2002) destaca que, durante 0 desenho, os colegas Editora Mediagao ARTE CONTEMPORANEA & EDUEAGAO INFANTIL ao apontado pistas que permitem que cada crianga avance por conta Prépria, aplicando 0 repertério grafico a que tem acesso. Em seus cos mentérios, Joana incorporou a fala dos colegas para explicar o resultado die sua produgao gréfica. Durante o episédio 1, Mariana e Paulo falaram Sobre # questéo da chuva. Como é possivel observar, Joana interpretou 2 chuva de uma maneira singular, pois, enquanto 0 centro do debate de Seus colegas eram 0 sol ea chuva, a formagdo do arco-iris ¢ a escuridéo, ° Pensamento de Mariana perpassou o molhar da chuva e sua relacéo com © queimar. Dessa forma, pode ser que a ideia inicial de Joana fosse cutra, mas, @ partir das observagées dos colegas, houve uma mudanca de significado em seu desenho, resultando em uma narraciio inédita Nos trechos analisados, reparamos gue a estrutura dos materiais, Principalmente a cor, ganhou bastante destaque, passando, em muitos ca 808, a orientar 0 desejo de as criancas tornarem visiveis seus pensamentos. Mariana: Acho que agora vou precisar do marrom, Mariana: Ah... branco! Vou precisar fazer o que de branco? Vou fazer os. Pontinhos de branco. Eu me esqueci antes. Mariana: Olha eu fiz os olhos e a boca. O que mais eu vou precisar fa- zer de preto? Ah... vou fazer a escuridao. Eu vou pintar tudo isso aqui (referindo-se & lateral esquerda da folha). (Arquivo dos autores) Nos comentarios de Mariana observam-se duas formas de ela re- lecionar-se com as cores. Primeiramente, menciona que a cor de que Precisa para que seu desenho esteja de acordo com seu pensamento 6 a marrom, mostrando que essa deve satisfazer uma ideia preconcebida. No entanto, a seguir, 0 processo se inverte. Mariana tem a cor projetada para um pensamento que ainda esté em elaboragdo. Em ocasides como essa, Percebemos que a exploracdo dos materiais nutre os processos de forma- $40 conceitual das criangas (SILVA, 2002). Quando elas refletem sobre gual cor precisam ou quando pensam em qual parte do desenho precisam empregar determinada cor, estéo em elaboragdo dos pensamentos que Editora Mediacao constituem seu fazer gréfico. Durante a aco, as criangas véo desenhan- do e as figuras vao assumindo posigdes variadas (DERDYK, 2018). Assim, a cada tracado que realizam, novas formas vo se configurando, sugerin: do outros rumos € narragées dos desenhos. Além disso, a histéria do de- senho esté pautada na interpretagéo que fazem do seu desenho, Muitas contam histérias bastante detalhadas, provavelmente porque seus dese- nhos representam situagGes vividas, além dos pensamentos que resultam da relago entre sua imaginago e o seu cotidiano. Olhar os desenhos das criangas e acompanher 0 seu percurso criador com atengao 6 essencial para que o professor possa compreendé-las em sua singularidade, desen- volvendo sua sensibilidade para visualizar as histérias que os desenhos das criangas contam Propostas de desenho: algumas sugestées A partir dessas consideragdes sobre a pesquisa realizada, apresenta- mos algumas sugestdes de propostas de desenhos que propiciem as criangas a investigagao de solugdes grdficas de expressdo dos seus pensamentos. ~ Desenho na parede: todas as crian¢as gostam de desenhar nas paredes. Por conta disso, o professor pode aproveitar esse desejo natu- ral, escolher uma parede da escola, interna ou externa, fazer uma faixa com folha de oficio preta e oferecer giz de quadro para que as criangas facam desenhos. Geralmente, as criangas desenham apenas sentadas e/ ou apoiadas em mesas dentro da sala de aula. Quando o professor pos- sibilita que 0 ato de desenhar aconteca em espacos distintos de forma que as elas fiquem em outras posicées: em pé, deitadas, acocoradas -, © professor favorece novas experiéncias estéticas que ampliam o reper- t6rio grafico das criancas. = Desenho embaixo das mesas: para ampliar a percepgao espacial das criangas © desafié-las a experimentar seu corpo aliado ao ato de Editora Mediacao ARTE CONTEMPORANEA € EDUOAGAO INFANTHL desenhar em diferentes posigdes, pode-se colocar folhas A3 embaixo das mesas ¢ oferecer canetinhas, canetdes e giz de cera para que as criangas ali desenhem. Durante 0 ato de desenhar, 0 pensamento das criangas vai sendo colocado em ago por meio dos seus tracados. Segundo Barbieri (2012), 2 crianca s6 € capaz de pensar com 0 movimento, ou seja, a ago da crianga esta incorporada ao seu pensamento. Por isso, ao proporcionar que a apo gréfica aconteca com o corpo em uma posigao diversificada, Contribul-se para o aperfeicoamento de movimentos e diferentes respos- tas do corpo na expressdo do pensamento infantil ~ Desenho em saco plastico: inicialmente o professor deveré colo- ©ar, dentro de um saco pléstico, uma folha sulfite A4, oferecendo um su- Porte visual & crianga, e, entéo, disponibilizaré canetdes a base de élcool Para a aco grafica. Depois de desenharem nos sacos plésticos, ird lever as criangas a uma sala escura ou escurecer a propria sala, projetando luz na parede com uma lanterna e propondo que elas explorem as sombras do Seu préprio corpo na parede, percebendo que se transformam (tamanho ¢ forma) sob 0 efeito da luz. Dando continuidade a essa proposta, elas iro projetar seus dese- nhos no plastico junto ao seu corpo colocando-se na frente da luz. Ido observar que os tragos nao podem ser tocados ou escondidos e que a Sombra dos tragos se reflete também em suas roupas, corpos, etc., des- cobertas que, em geral, fascinam as criangas. Um terceiro passo dessa Proposta serd propor que facam um desenho maior também no saco plas tico. Entéo, o professor iré prender outro pléstico do temanho da projegao na parede, @ as criangas iréo recriar 0 desenho projetado, passando a Caneta sobre 0 seu tragado ampliado. Ao final, esse pode ser colocado no cho, pintado com cola colorida e, quando estiver pronto, servir de cor- tina ou conério de alguma brincadeira de faz de conta, incentivando-se, também, 0 jogo simbélico. Editora Mediacao = Introduzindo suportes diferentes: nossa sugestéo baseia-se na leitura de “O livro com um buraco”, de Hervé Tullet (2014), uma obra de literatura infantil. Nele, existe um buraco na lateral esquerda da capa que, quando o livro 6 aberto, passa a estar no meio de todas as paginas, Permitindo que as criancas inventem diferentes maneiras de interagir com ele. Para desenvolver essa proposta, o professor iré selecionar folhas, Papéis, embalagens, etc. de diferentes tamanhos, fazendo neles buracos de diferentes formas e tamanhos. Iré dispd-los no chao da sala de aula, © as criangas poderéo utilizar em seus desenhos canetinhas, canetées, ‘apis de cor, cola colorida, nanquim, tintas coloridas, carvéo vegetal e os mais diversos pineéis, tendo por objetivo criar algo que leve em conta os. buraces existentes nesses diferentes suportes. ~ Pesenhando com pedrinhas: pedrinhas so um material mais pe- Sado, por isso, para-essa proposta, sugere-se utilizar pranchas de madeira 0u papéis mais resistentes. O professor ofereceré pedrinhas de varias cores € cola. As criangas usarao a cola para prender as pedrinhas no su- Porte. Depois da produgao dos desenhos, organizar uma roda de leitura grupal com todas as produgées dispostas no centro, convidando as crian- as a falarem entre si sobre suas criacées @ as dos colegas. Por meio dessas e de outras propostas criadas por cada professor, adaptadas, € claro, as possibilidades e limites de sua escola, as criancas iro aperfeicoar seus desenhos e encontrar diferentes formas de represen- tar seus pensamentos. 0 ato de desenhar passaré a ser movido por novas motivagSes e interesses, que, por sua vez, suscitardo novas investigacoes © vivéncias estéticas. A preocupacao do professor em oferecer novas Propostas deve alimentar as praticas didrias, pois, quanto mais a crianca xplorar os materiais, mais aperfeigoaré seus processos de elaboracdo Ponceitual, com mais liberdade e confianga para falar sobre os seus dese- hos @ narrar as historias que eles contam (SILVA, 2002). Editora Mediacao ARTE CONTEMPORANEA E EDUCAGAO INFANTIL O desenho: um universo de pensamentos © desenho & uma importante linguagem de comunicagéio humana, © a escola tem a responsabilidade de promover o desenvolvimento inte- gral de todas as linguagens. Visualizando as préticas escolares, contudo, Percebe-se que o desenho sempre foi encarado como um instrumento Pedagégico a servico exclusivo do professor. Ou seja, a preocupacsio com © desenvolvimento do grafismo ¢ da capacidade produtora das criangas nem sempre esta presente nas propostas apresentadas nas escolas. Por meio das propostas de desenho desenvolvidas com as criangas em nossa pesquisa, descobrimos que 0 percurso grafico dos seus desenhos 6 constituido na interago com 0 modelo, com a fala do outro e com os materiais, pois, no decorrer dos desenhos, algumas delas modificavam seus ‘tracados por conta de verbalizacdes e modelos que sugeriam outro percurso Gréfico, além de discutirem a aplicacao das cores enquanto desenhavam, Além disso, nossa atencao constante aos gestos e comentérios fei- tos pelas criancas, durante o percurso criador, possibilitou-nos perceber muitas ideias que perpassaram a elaboraco dos seus desenhos. Os seus Comentérios exerceram uma fungao autorreguladora, influenciando e redi- recionando a ago gréfica (SILVA, 2002). Afinal, com 0 acesso ao suporte © aos materiais disponiveis, elas planejaram sua agao e buscaram formas de traduzir em tragados suas reflexes, pensando sobre os desafios pro- Postos a tomando decisées eficazes para concretizar suas solucées. Entender 0 desenho da crianca como pensamento visual 6 afirmar @ crianga como sujeito ativo ¢ participative na construgao da sociedade, além de entendé-la como protagonista e construtora de seu conheci- mento e de sua hist6ria, oportunizando propostas ricas de desenho que auxiliam no seu desenvolvimento integral Para finalizar, desejamos que este texto incentive professores a contemplar com mais sensibilidade as diferentes manifestagées artisticas Produzidas pelas criangas no contexto da vida coletiva, bem como contri- bua para a realizado de novas pesquisas sobre o universo fascinante que envolve o desenho das criangas da Educagao Infantil. Editora Mediacéo 7 CRIANGAS, FOTOGRAFIAS, DERIVAS Marcia Aparecida Gobbi Goléxias () @ comego aqui © mego aqui este comego e recomeco e remeco e arremesso e aqui me meco quando se vive sob a espécie da viagem o que importa no é a viagem mas o comeco da (Haroldo de Campos) Com certo receio, a pesquisadora perguntou ao menino: Rafael, para onde és vamos? Vocé conhece o caminho? Eu nao sei andar por aqui. Tranqui: lo, sem titubear, ele respondeu: Eu te levo. Eu conhe¢o por aqui. E pegou nas mos da pesquisadora, um tanto surpresa (Arquivo da autora) Com os pés na rua, derivas, principio de viagem A voz forte 14 no fundo entoa uma cangao destemida e se mistura ao som dos carros, Onibus, vendedores, tantos trabalhadores que apres- sadamente passam por nés. Vamos, pessoal, sem filas, mas, se possi- vel, andando juntos. Deslocamentos. Rumos incertos e nem tanto, ao Sabor do ritmo do grupo ou de cada participante. Andar no ritmo de cada um, © que se conforma ao tempo do outro, ora mais vagaroso, ora mais Editora Mediacao ARTE.CONTEMPORANEA E EDUCAGhO INFANTIL apressado e daf ao sabor dos espacos por onde se passa. E assim vamo conhecendo 0 outro e a cidade (que ¢ composta de varios outros} e, cor isso, conhecendo e construindo a si mesmo e aquele com o qual nos re lacionamos. Cameras fotogréficas 4 mao revelam e constroem jeitos de: olhar os aspectos a vista de alguns, permitem vasculhar o cotidiano em: suas repetic6es © no inusitado. Vao surgindo brechas para subversées, ainda que pequenas e que podem ser captadas. Assim fomos nés, dias @ fio por distintos caminhos na paulistana cidade. Que as criangas fotografam, jé sabemos, porém, 0 que e como elas fotografam? A fotografia A menina timidamente sorri ¢, debrucada sobre os bragos, inclina sua cabeca para um dos lados, exibe seus dentes ainda chamados “de leite”, ‘A menina fotografada fez de um dos largos vos entre muros na Rua Maria Anténia, em Séo Paulo, a moldura a der forma e contorno & ima. gem que decidiu eternizar via imagem fotogratica. Pose sob a luz do céu, que naquole dia gritava azul, de uma capital tida por muitos como cinza, chama a atenc&o dos transeuntes que, em sua rapidez didria, ainda nao haviam percebido esse espacinho na parede. Passam om seus ritmos de aceleragao matutina, Todos parecem querer freneticamente chegar a algum lugar, repetindo sem perceber a ideia de que Séo Paulo nao pode arar e, ainda menos, quem nela habita. Cria-se uma rotina que voltas d4 @m torno de si mesma cada dia. Num segundo de atencao, percebem @ quebra disso com criancas fotografando e, mais, discutindo sobre a composicao da cena que se dave num fundo florido. Cenério precisa- mente escolhido para que a coleguinha fotografasse e forjado pelo gosto 8 cultivado pela garota em cena, que lentamente orientou a colega que captava a imagom. Clique... (Arquivo da autora) Editora Mediacao nda nao ritmos Este texto abordaré uma experiéncia resultante de pesquisa em que se buscou a producao de fotografias por criancas de até seis anos de ida de e moradoras da cidade de Sao Paulo’, respeitando e valorizando seu modo de fotografar € 0 ponto de vista delas. Assim, convido os leitores @ acompanhar esse ensaio sobre fotografia, infancia e cidade. Cameras fotogréficas foram utilizadas para promover a captago de modos de ver de meninos ¢ meninas em distintos bairros de Sao Paulo, o que poderia ‘ser feito em qualquer outra esfera publica ou privada a depender dos ob- jetivos ¢ desejos que nos levem a investigar o espago. A expresso “derivas” 6 empregada no texto, conforme a acepgao de Guy Debord (2003), que as define como principio metodolégico orien- tador das saidas. Elas podem ser definidas como possibilidades de parti- cipagao na cidade que se dé, entre outras formas, via andancas sem um Tumo previamente orientado, procurando aprender ruas, avenidas, pra- as, a partir da Observagio das relagées e usos sociais desses diferentes espagos piblicos, como espago a decifrar e a descobrir. Essa experiéncia seré ponto de partida para as reflexes que se fard sobre fotografias elaboradas por criangas e que nos permitem conhecer aspectos do cotidiano citadino pela visio infantil A fotografia aparece em recentes pesquisas com criancas em diferen- tes contextos sociais e culturais, possibilitando compreender como meninos e meninas concebem espagos, relagdes sociais e valores, dentre outros, por tanto, como objeto material portador de histéria, disparador e provocador de memérias, fonte indiciéria e expressiva do ser humano como “agentes”? que sao (criangas @ fotografias), na acepcao sociolégica do conceito. Referdncia ao projeto MCTI CNPq /MECICAPES n°, 18/2012 - Cidncias Humanas, Socisis ¢ Sociais Aplicades. Othar sobre a cidade: fotografia © desenho na construcio da imagens sobre Sao Paulo @ Dattr de crianas des escolas municipais de Educs¢do Infant 2 Proprio da sociologi, o uso do termo tem tomado vultos mais amples e que podem distancié-io de sua acepséo original. Afma-se aqua crianga como ativa, tendo iniciativas que 9 afmam sore “agente”, recebendo, com isso, tada sorte do fespostas e trocas positivas © negetivas marcantes © presentes nas relactes estabelocidas eocialmente = am diferentes grupos. Editora Mediagio ARTE CONTEMPORANEA E EOUCAGAO INFAWTIL Conhecer os usos sociais dados a fotografia, tal como preconizado Por Bourdieu (2005; 2006) e Freund (2006), é fundamental ponto de Partida para se saber mais e melhor sobre as criancas a partir do que elas fotogratam, E importante considerar também 0 que Kossoy (2002, p. 128) apon- ta sobre as possibilidades da fotografia para se compreender os modos de ver 0 cotidiano das cidades, tais como Fesgatar nomes, hébitos ¢ o dia a dia das moradores que habitaram deter- minada casa em fotos antigas, detalhes sobre a arquitetura das edifica. 9685, 0 tragado das ruas, a vegetacdo ornamentel, particularidades acer. ca do comércio através das placas nas fachadas, cartazes promocionais anunciando algum produto medicinal ou alguma apresentaao teatral, 0 tipo de transporte urbano, a calma de certas ruas @ 0 burburinho de outras, ‘@ moda, 0 gesto, um certo ritmo no andar, a malicia no olhar, 0 comum @ © suspeito, 0 explicito e 0 implicito. Por essas consideragées, percebe-se a importancia de considerar as fotogratias como textos imagéticos que informam sobre as relacdes es- tabelecidas entre meninos e meninas nos diferentes espagos, com outras criangas @ com os adultos, 20 mesmo tempo em que informam sobre as PrOprias crianeas sua capacidade inventiva de criar imagens fotogréfi cas, fazer escolhas e investigagdes sobre os assuntos escolhidos. Nas escolas € perceptivel certa dificuldade na aceitagao @ apli- cacao das fotografias como campo de investigac&o, em especial, na Educacao Infantil. As fotos, tais como as imagens, ainda sao consi deradas meras fontes ilustrativas de textos, nao sendo estabelecido qualquer diélogo entre o imagético e o escrito. Nesse sentido, desta- ©0 aqui os estudos em sociologia (MARTINS, 2008; NOVAES, 2009; SAMAIN, 2000; 2012). Fotografias séo concebidas pelos pesquisadores como fontes de Pesquisas sobre as infancias nas ciéncias sociais, educagdo e sociolo- gia. Isso nao significa té-las como testemunhos empiricos, incontesté- veis da realidade ou de fatos histéricos, ou seus diferentes elementos Editora Mediagao edifica- tomados de forma testemunhal e fiel & realidade captada, mas, sim, como representagdo social, objetos de anélise de diferentes contextos, reafirmando valores @ normas, modos de ver ¢ agir das criancas em es. colas @ na sociedade. Nesse sentido, pretendo trazer algumas reflexdes e propostas so- bre trabalhar com fotografias na Educacao Infantil, propostas essas que estardo presentes no decorrer deste texto de modo “esparramado”, Afirmo, sobretudo, que as criancas sao capazes de criar imagens com diferentes suportes, ¢ a fotografia é a expresso de uma entre essas manifestacdes expressivas. Observei que 0 manuseio da cAmera foto- gréfica se comprova familiar para elas, mesmo para as de bem pouca idade, ¢ 0 equipamento se mostra fecundo no processo de investiga- 980 do € no cotidiano da cidade, revelando aspectos nao percebidos e Ines conferindo os mais diversos sentidos, assunto que irei tratar mais adiante neste texto. Atravessa logo menino, o farol vai fechar! Estar como transeunte em ruas e pracas, dando diferentes e par- ticulares usos aos espacos publicos, parece ser vetado, ainda que de modo implicito, @ certos grupos, sobretude aqueles compostos por criancas de bem pouca idade. Sabemos que s8o espacos de circulaco, mas de quem? Planejados para quem? Parece-me, grosso modo, que a ideia de privacidade, importada da Europa para o Brasil, na virada do século XIX para o século XX, mais recentemente tem se aliado ao medo do outro, 0 qual tem se intensificado brutalmente nas relagdes sociais brasileiras. O confinamento de todos e dos grupos infantis em deter- minados espacos tem sido a tonica. Criam-se condominios, escolas, Creches, parques dentro de shoppings, pracas com grades de protecao, 3A tase fo dito em S80 Paulo, por isso mantive 0 termo “farol’. Em outres cidedes, o mals comum ¢ dizer semaforo. Ha quem diga que esse 6 lito paulstano de far Editora Mediacso Anra.conTEMPORANEA = eoUoAGKO INFANTIL sinais de engessamento proibitivo de convivio e socializagao, resultado da imposigao de um modo de viver particularmente regulado. As con- tradicdes emergem, revelando-se ora no acesso, ora na proibicdo da en- trada de criangas em determinados locais, visiveis na paisagem urbana ou sutilmente ocultas. Hé que andar pela cidade e observar, registrar e refletir. Mas como as criangas esto percebendo esses espacos dos quais fazem parte ¢ que as marcam em seus modos de ser e de ver 0 entorno, a si mesmas ¢ aos outros? Fotografar a cidade sem pressa de chegar Tendo a fotografia e as criancas como ponto principal a ser abor- dado, este texto pretende convidar o leitor a pensar sobre atos de foto- grafar das criangas de até seis anos e fora do contexto escolar. A cidade torna-se aqui um entre tantos locais fotografaveis por elas. A questo que fago é: 0 que é captado e construido pelas criangas a partir dessa ago em tempos e espacos distintos e que se configuram e reconfiguram diante dos seus olhos? A fotografia nao é entendida aqui como olho da histéria. A concep- 980 de fidedignidade, em termos de elementos da realidade fotografada, exige olhares e discussdes mais acuradas. Nao pretendo aqui tomé-las como “verdades”, mas sinais a serem traduzidos. Uma fotografia aponta para a existéncia de elementos captados pela cémera, mas néo se pode asseverar que se trata de um documento confiével em si, informacao Unica e indiscutivel. Ao fotografar, inventam-se pessoas e lugares, re- criam-se imagens, apesar do caréter aparentemente fiel das fotogratias, e aprende-se a ver com elas ao longo de seu proceso de criacao. Concernente aquele que vé suas imagens fotografadas, Barthes (2006) afirma que a fotografia é a percep¢ao de mim como outro. Saio de mim @ me vejo em poses, em gestos @ aprendo sobre mim pelo olho alheio. Dessa forma, pode ser uma oportunidade para conhecermos as criancas que fotografam e o que foi fotografado, ampliando/transformando Editora Mediagio @ nossa viséo sobre lugares, objetos, situagdes. A rua, que é luta e des- lumbramento, disputa e conquista, vivéncias, experiéncias, sensagdes, Percepoées € sentimentos diversos, permite viagens pelas e a partir das derivas. Sao Paulo, cidade tipicamente urbana, com suas indmeras con- tradig6es, foi palco, em minha experiéncia, de derivas com as criangas em dias distintos, em locais diversos, que pudemos ver de outros jeitos, a Partir das préprias criangas e/ou com elas. Andar pela cidade aproxima-se da proposta de Speck (2016), que elabora uma teoria geral da caminhabi- lidade, dizendo que caminhar deve atender quatro condicdes basices: ser Proveitoso, seguro, confortével e interessante. Ele nutre a preocupacao Sobre @ auséncia de possibilidades (derivas) de caminhar despreocupada- ‘mente pelas ruas, hoje, néo somente pelo medo da violéncia, como pela Configuracao de cidades que suprimem, cada vez mais, os espacos de encontros. A partir disso, pretendi investigar: como criancas irdo registrar imagens da cidade de Séo Paulo em suas fotografias? Como seu corpo, seus olhos e sentimentos registram paisagens e situacdes usando came- ras fotogréficas? As fotografias que resultaram das derivas pelas criangas revela- ram-se como viagens pessoais e no coletivo por diversos locais, abrindo Novas possibilidades de as criangas e eu, pesquisadora, termos outros olhares por onde se andou, reconhecendo-se ou nao nesses. Muitas questdes surgiram de tais andangas fotograficas. Uma delas € que os espacos piblicos frequentemente geram o pensamento ou a crenga de que, sendo piblicos, séo para todos. Mas, quando observa- mos mais acuradamente as relacées neles estabelecidas, pergunta-se: ‘@ quem, de fato se destinam? Quais grupos neles prevalecem e em que periodos e locais? Concernente as criancas, 0 uso dos espacos puiblicos, Pautado em normas ¢ regras, segue determinadas ldgicas que, por vezes, apartam as criangas da convivéncia e das experiéncias urbanas, em es- Pecial as menores, principalmente quando surge a questao de um tempo sempre apressado. © tempo, mais que o préprio espaco, 6 senhor do encontro ou do de- sencontro nas grandes cidades. O “achamento” do outro se dé somente Editora Mediacao ARTE CONTEMPORANEA © EDUCAGAO INFAPTIL entre iguais, 0 que mascara 0 convivio com as diferencas e naturaliza as. desigualdades. “A forca da grana que ergue e destréi coisas belas”, como diz Caetano Veloso, afasta aqueles que nao compéem esse cenério, ou que, porventura, tenham ritmos diferentes da produgéo que ergue e des- tréi voraz e impiedosamente corpos e mentes, j4 que somos ensinados a desejar o que confirmam certas narrativas ratificadoras do que 6 proposto. Pela sociedade. O proprio desenho urbano é desfavorével as criangas © & construgio do pertencimento. Diante da auséncia de espacos para encon- trar 0 outro, 0 desencontro acontece. O diferente esta presente, porém re- duz-se ao cruzamento de pessoas que sequer se olham. Acelerar, produzir, urgir leva & inibi¢o de contatos e a olhares mais profundos, criando uma interdi¢o da possibilidade de cada pessoa olhar, conhecer e apropriar-se do espago para além de si prépria. Fotografar pode nos levar a pensar em “tempos mais lentos” da busca ¢ descobertas do inusitado no cotidiano, Como as criangas fotografaram a cidade de Sao Paulo? Ainda se percebe uma grande desproporcio entre o que é visto se- gundo a elaboracao infantil e as respectivas representagées fotogréficas de adultos, que historicamente so mais conhecidas e respeitadas como validas. Fotografias e desenhos podem vir a estabelecer um didlogo entre 08 mundos infantil e adulto, compreendendo as criancas como criadoras e Participes desse universo representativo até entéo prevalentemente adul- to. Criangas registrando fotograficamente espagos piiblicos pressupée, democraticamente, assegurar-Ihes 0 direito a expressar sous pontos de vista em termos de classes sociais, de etnias, de geracao, de grupo, de genero, etc. Mas, ao considerarmos isso, nos perguntamos: por que a auséncia de criangas, sobretudo quando bem pequenas, em pragas, ruas © demais espacos publicos de convivio em Sao Paulo? O que e como elas Percebem o cotidiano das grandes cidades? O que e como registram tais Percepeées? Nés enxergamos e valorizamos seus registros, os utilizamos como modos de ver ¢ estar de criangas de todas as idades? Editora Mediagio Quanto as derivas que originaram as fotografias, podemos pensar nelas como um método de captagao e mudanga do espaco vivido e alte- rado por quem vive nele, posicionando-se de modo contrério & concep- 40 espetacular que, hé tempos, envolve a todos e em distintas cidades, Conforme Debord (2003). Encontramo-nos aqui com a fotografia como recurso fundamental para olhar, descobrir e agenciar a cidade. Nas derivas fol possivel vaguear com as criancas por esquinas, gra- fites em grandes paredes, bichinhos ¢ flores em outras fendas que se abrem téo timidas sobre as calgadas. A fotografia, assim como diferentes linguagens, permite demonstrar ou informar de outras maneiras o que se nota ou se sente, sobretudo um ato de imaginar, apesar da conturbada cidade. Fotografar proporciona o n&o ocultamento da cidade e que esta Possa ser descrita ou narrada pelas meninas e meninos, sem esquecer do exercicio da divida sobre as imagens, sobre o que nos mostram, pois, No necessariamente deve haver consenso sobre elas (DIDI-HUBERMAN, 2012), j que ensejam descobertas, aprendizagens sobre si mesmo ¢ Sobre 0 outro, seja ele o que for. Comentar as imagens fotogréficas cap- tadas pelas crianoas ¢ também uma maneira de manter viva a propria Infancia © as singularidades inerentes aos grupos infantis de distintos Contextos histéricos, sociais ¢ culturais. Mas, para isso, 6 necessério nutrir-se, € esse alimento vem também das derivas, das caminhadas em que a conversa anima a ver e a registrar. Propée-se, a partir da experiéncia realizada, as derivas somadas & fotografia como pratica dentro ¢ fora da escola de Educagdo Infantil. Uma Prética de duplo sentido: 0 de conhecer cidades dentro da cidade a partir dos registros de meninos @ meninas © de compreendé-los como agentes 8 registrar e modificar 0 espago urbano em sua complexidade. Fazemos, desse jeito, uma provocacio aos professores: a ocupacdo de outros es. Pagos possiveis de aprendizagens,.o que j4 6 sabido e concebido como necessério, porém ainda pouco materializado ou aproveitado como opor- tunidade de ver, observar ¢ registrar o visto e 0 sentido por meio da foto- grafia e de outras formas. Editora Mediacio ARTE CONTEMPORANEA E EOUCAGAO INFANTIL era na mao, criangas, fotografias AA relago com a imagem e com 0 espaco se apresenta sob um duplo aspec- to: recebem-se as imagens (fixas ou méveis) ¢ elas séo fabricadas. Fabricar imagens ¢, a0 mesmo tempo, se apropriar do espago, transformélo e, de certa maneira, consumi-lo, Essa maneira de vivenciar o lugar tem por fim olhar 0 espaco e a historia que se desenvolve no local. Assim, tal como em um espetdculo, esses elementos fornecem a matéria-prima, mas impde mu: dancas na natureza do lugar € em sua temporalidade (SARLO, 2013, p.58). Olhos fatigados alimentados pela curiosidade. Olhos diligentes ali- mentando e mostrando modos de ver. Viajantes & procura do desconhe- cido, mas nao s6. Viandantes que procuram reconhecer-se naquilo que olham, em suas descobertas, no que est4 por vir e que 6 munido pela Curiosidade que faz vasculhar 0 espago inquietante e lentamente. Uma foto. Um projeto. Criangas. Espacos/ambientes de acolhida, conforto e deslocamentos pelas ruas, pracas e mercados. Fotos como diérios a se- rem observados em cada trecho, em cada objeto que.traz narrativas de cidades, lugares, sontimentos evocados. No inicio deste texto, procurei fazer breve descrigao de uma das Cenas fotografadas em nossas andancas por uma determinada regiao central da cidade: as imediagdes da Rua Consolacéo, na regiao central da capital paulista, apresentando o registro de uma situaco criada por duas meninas: fotégrafa e fotografada. A fotografia descrita por mim, assim como as demais resultantes dessa e de outras tantas caminhadas, foram feitas a partir de cameras digitais. Considerando as criangas e as. imagens fotograticas como agentes capazes de intervir e gerar mudancas Nos grupos sociais dos quais participam, vale frisar que observei o que o entorno causa as criangas em seu processo de construgao de modos de ver, @ as mudancas no entorno, nas relagdes e interagdes sociais daque- les que as veem fotografar. No que diz respeito as criancas, em especial, deu-se uma intensa troca entre pares, 0 que contribuiu para a composic¢ao de outras ima- gens. A experiéncia mostrou-se, também, muito instigante para mim, Editora Mediagao regido central daque- intensa pesquisadora, e para aqueles que observaram 0 resultado do processo de criagao das criangas. A presenga da cémera fotogréfica ao longo de uma andanga, seja ela por onde for, suscita mudangas nas relagdes estabelecidas entre os partici pantes dos grupos. Para-se, de tempos em tempos, ndo s6 para observar 0 entorno, mas a propria cémera e a imagem nela produzida que presentifica © que se vé e registra. O visor da cémera recorta 0 objeto e Ihe empresta outra forma. Com isso, enseja outras praticas e formas de olhar. Dinamiza, reconfigura 0 modo de ver o que esté diante dos olhos, uma experiéncia de imagem para além da fotogréfica. Criam-se narrativas visuais com ou sem intengao visual. Ago que muda aos outros e a si mesmo. Esse exercicio de observagao e estranhamento, por meio da foto- grafia, nem sempre realizado, 6 um grande desafio e pode se inserir em praticas pedagégicas nas escolas relacionadas eo olhar, resultando em desnaturalizacaio do cotidiano, problematizagéo e mudangas. Por meio dos sentidos e de possiveis emogoes estéticas, um novo espace ¢ fa- bricado, 0 que envolve apropriar-se dele, transformé-lo e transformar-se (fotégrafo) concomitantemente. Aprender a ver 6 traduzir, @ traduzir 6 inventar e reinventar-se. O que implica ver e também escutar. Embora com prevaléncia do visual, a fotografia envolve 0 corpo todo e os sentidos das criangas, favorecendo diferentes tradugées do seu cotidiano. Imagens pertencem aos campos do sensivel e do social, e em muito contribuem para melhor apreendermos e compreendermos o que esta diante de nés, considerando as fotos como fonte documental e representacao. Othar, ver, receber, guardar Investigar minuciosamente as fotografias permite conhecer ou le- vantar hipéteses sobre como as relagdes sociais estéo sendo construldas tanto pelos fotografados como pelo fotdgrafo e tantos outros que, as vezes, anonimamente, envolvem-se das mais diversas maneiras com 0 ato fotogréfico. A foto nao é indice de verdade, contudo fornece boas Editora Mediag&o [ARTE CONTEMPORANEA E EDUCAGKO INFANTIL com as criangas fotografadas e com isso conjugar tais imagens a outras linguagens, compondo narrativas de uma inféncia que nao esté em estado de espera daquilo que viré posteriormente, numa expectativa de produzir homens ¢ mulheres prontes, modelos a serem seguidos. Ao contrério, tais estudos ¢ pesquisas se propdem a percebé-los como quem se representa © constréi a si mesmo e aos contextos nos quais estao inseridos no tem- Po vivido de modo singular e concomitante. Na projecdo, ou mesmo na exibi¢&o das fotos, de modo ritualistico ou como mera exibigao de cenas sequenciadas da vida, aspectos do cotidiano séo recriados e aprende-se com elas, numa dindmica continua e as vezes pouco percebida por aqueles Que esto envolvidos na produgo ou recepgao de tais imagens. Sugere-se clhar de modo detido e curioso, perscruter o que estd diante de nés com olhares investigativos. Nao deixarei aqui um receituério sobre procedimen- tos praticos a serem realizados diante das imagens. Com o intuito de fina- lizar as reflexdes destaco apenas mais algumas questées que podem ser ampliades, investigadas e certamente aprofundades. Polissémicas, as imagens permitem as mais variadas formas de compreensio, originadas das histérias de vida daqueles que as olham ou veem; do capital social e/ou cultural construidos individual ou coletiva- mente, da capacidade aprendida de olhar e ver; do cultivo da imaginacao € da desnaturalizacio do objeto, que, de téo visto, pode deixar de sé-lo. Assim como diria Brecht (1989, p. 149), no podemos “acher natural aquilo que muito se repete” e, em imagens, isso também pode ser consi- derado. Para compreendermos essas imagens, 6 interessante considerar @ comunicagao com o grupo social no qual os envolvidos estao inseridos, levando em conta que os mesmos no esto separados do cotidiano vivi do, concebido ou imaginado alusivo a elaboragéo das fotografias. E importante, em alguns casos, investigar a Percepcao e a recep- 980 das fotografias em diferentes contextos, bem como as candigées culturais, sociais ¢ econémicas que envolvem a produgao das imagens. Trata-se n&o de tomar visivel, mas de garantir visibilidades escolhidas Editora Mediagao @ inventadas pelas criancas ou demais fotégrafos, sem esquecer dolas a0 nos debrugarmos sobre as fotografias. Afinal, nossa capacidade c: dora rectia 0 visto quando vé, 0 que também o transforma. Fotografias apresentam-se como narrativas culturais criadas também pelas criangas, comportando nisso a imaginacao e os demais elementos do cotidiano. Ha ainda outras maneiras de pensarmos sobre as fotografias as relacdes estabelecidas a partir delas, pontos para reflexdo que nelas residem o que podemos chamar de dédivas, aproximando-se da compreensio de Mauss (2003). Isso se encontra nao no objeto presentificado pela foto Propriamente, mas na relag8o estabelecida entre aquele que a recebe, olha a foto em si ¢ seu contetido, implicando reciprocidade entre sujeito e objeto, foto e teor. A foto, ao envolver a imagem, ndo se resume a mera troca mercantil e, sim, manifesta-se como retribuigao e permuta. Nao se Vé a foto sem dar algo de si para a imagem vista, traz-se algo para ela @ além dela, hé reciprocidade entre quem vé e a imagem vista que pode modificar a ambos. Dar, receber, retornar Nao hé uma férmula que indique a exata postura que deve ser ado- tada para entender o ponto de vista das criangas quando o assunto 6 fo- tografia. A metodologia consiste em olhar e escutar as criangas, olhé-las em ago € as imagens criadas, mergulhar insistente e prazerosamente Nos assuntos, nas cores, nas formas apresentadas ¢ representadas. Fo- tografias s80 compreendidas aqui como artefatos culturais elaborados pelas criangas e que nos dizem sobre elas, suas representacées, por ve~ zes desconsideradas no universo adulto. Elas nos conduzem a presenga de fatos e coisas e nos orientam quanto as relagdes constituidas pelas narrativas da imagem, entre 0 que mostram e 0 que escondem, experi- mentacdes e desafios. Considerar 0 que trazemos para as imagens — de nossas historias de vida, formagao, disposico e tempo para estar com elas ~ e o que essas Editora Mediagio ARTE CONTEMPORANEA E EDUCAGAO INFANTIL Nos trazem, certamente é um bom inicio de conversa entre imagens e Pessoas que as olham. Nao pretendi, neste texto, apresentar uma anélise das fotos feitas pelas criangas nessas derivas. Mais do que pensar sobre “o que” as criangas fotografaram, pretendi destacar o quanto essa forma de criagdo imagética possibilita aos professores, em diferentes inst&ncias, compre- ender 0s modos de ver das criangas, como fios que, quando puxados, permitem viajar com elas, com aquilo que criam imageticamente em suas fotografias. Dessa forma, como diz Calvino (2010, p. 18), “talvez um Novo Mundo se abra aos nossos olhos todos os dias ¢ no o vejamos”. Editora Mediacéo ORGANIZADORES Susana Rangel Vieira da Cunha Rodrigo Saballa de Carvalho AUTORES Andressa Thafs Favero Bertasi Camila Bettim Borges Carla Clauber Cayenne Ruschel da Silveira Jéssica Maria Freisleben Lutiere Dalla Valle Marcia Aparecida Gobbi Maria Eduarda Rangel Vieira da Cunha Rodrigo Saballa de Carvalho Rosa lavelberg Silvia Pillotto Stéfani Vieira Susana Rangel Vieira da Cunha wwweditoramediacao.com.br FE

Você também pode gostar