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ZCBYLRAYO FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO Ministro do Superior Tribunal de Justiga Membro ¢ Coordenador das Comissdes de Reforma Penal de 1984. Professor visitante da Universidade de Brasilia. PRINCIPIOS BASICOS DE DIREITO PENAL 5* edigao 1994 15" tiragem 2010 we Editora On Saraiva cia, aliés, € que o emprego de novos métodos educacionais e peda- gdgicos tornem obsoletas ou de aplicacéo excepcional tais praticas. Alguns autores consideram justificados tais castigos, desde que néo excessivos nem causadores de lesdes, pelo denominado direito correcional. Pensamos que a educagao de filhos e pupilos € antes um dever dos pais e dos tutores, pelo que os meios para atingir tal fim situam-se no ambito do estrito cumprimento do dever legal e de- vem ser avaliados com muito rigor para evitarem-se abusos conde- nayeis, verdadeiras torturas fisicas que a truculéncia dos adultos ainda emprega contra os pequeninos desprotegidos, na maior parte dos casos mais carentes de afeto. c) Consentimento do ofendido 220. O Cédigo Penal nao inclui entre as excludentes de ilicitu- de o consentimento do ofendido. Vimos, entretanto (supra, n. 159), que 0 consentimento expresso do ofendido pode e deve ser reputado, entre nés, uma causa supralegal de justificagio, quando se imponha de fora do tipo para a exclusio da ilicitude (o Einwilligung do direito alemio) de fatos lesivos a bens plenamente disponiveis por parte de seus respectivos titulares. Anibal Bruno é dessa opiniao, admitindo o consentimento como. causa de exclusao do ilicito, quando decorra de yontade juridicamente valida do titular de um bem disponivel?. Assim, também, Jescheck, para quem “correto é compreender o consentimento como causa de justificagao” 8, E preciso, entretanto, nao esquecer que o consentimento do titular do direito desempenha mais de uma fungdo na 4rea penal. Casos hé em que se apresenta como elemento essencial do tipo (rapto consensual, art. 220; sedugao, art. 217). Outros hé em que sua presenga ou auséncia é totalmente irreleyante (homicidio, art. 121). Outros ha em que anula a propria tipicidade por excluir dissenso da vitima que constitui elemento essencial do tipo (in- trodugio de animais em propriedade alh art. 164; apropriagio indébita, art. 168). Finalmente, outros hé em que atua como ver- 7. Direito penal, cit., t. 2, p. 19-20. 8. Lehrbuch, cit., p. 278. José Henrique Pierangelli, em excelente mono. grafia, salienta q © consentimento do ofendido pode-se constituir em causa de exclusio da antijuridicidade unicamente nos delitos em que o nico titular do bem ou interesse juridicamente protegido é a pessoa que aquiesce (acordo’ ou ‘consentimento’) ¢ que pode livremente dele dispor” (O consen- timento do ofendido na teoria do delito, p. 92). 214 dadeira causa de justificagdo, como nos exemplos, ji vistos, do crime de dano (art. 163) e de crcere privado (art. 148). 221. Note-se que nao incluimos nesta causa de justificacéo, de acordo aliés com a doutrina dominante °, as intervengées cirdr- gicas, realizadas dentro das normas da arte médica. Nesta hipétese exclui-se nfo s6 a ilicitude mas também a tipicidade do fato', Tealizado no a dano mas em beneficio de quem o suporta. 222. Sio requisitos do consentimento justificante: @) que o ofendido tenha manifestado sua aquiescéncia livre- mente, sem coagio, fraude ou outro vicio de vontade; 5) que o ofendido, no momento da aquiescéncia, esteja em condigées de compreender o significado e as conseqiiéncias de sua decisio, possuindo, pois, capacidade para tanto; c) que o bem juridico lesado ou exposto a perigo de lesio se situe na esfera de disponibilidade do aquiescente; d) finalmente, que o fato tipico penal realizado se identifique com o que foi previsto e se constitua em objeto de consentimento pelo ofendido. 223. A doutrina alema acolhe igualmente o consentimento Presumido para solucionar certos problemas na 4rea das interven- ges médicas (exemplo: aborto necessério, em casos de emergéncia, quando a paciente no esteja em condigdes de manifestar sua von- tade) e do direito de correcio de criangas, por parte de terceiros (exemplo: travessuras graves praticadas na auséncia dos respon- siveis) 1, Na primeira hipétese, o direito brasileiro soluciona a questao, por expressa disposic&o legal, através do instituto do estado de ne- cessidade (CP, arts. 128, I, ¢ 146, § 3.°, I). Na segunda hipétese, © que exceder dos limites do estado de necessidade ou da legitima defesa afigura-se-nos uma indébita intromissfio na seara alheia, to- talmente injustificada, conforme reconhece Jescheck ¥. Nao vemos, pois, necessidade de sua admissfio no direito bra- sileiro. 9, CE. Jescheck, Lehrbuch, cit. p. 281-2. 10. Gallas, La teorla del delito, cit, p. 31. 11. Cf. Jescheck, Lehrbuch, cit., p. 287. 12, Lehrbuch, cit., p. 288. se-nos a colocagéo de Tourinho Filho, ao reduzir as denominadas “condigdes de punibilidade” a meras “condigdes de procedibilidade”> condicdes especificas da acdo penal), isto é, condigdes “a que fica subordinado, em determinadas hipéteses, 0 direito de acao penal” ©, S6 nao estamos de inteiro acordo com o processualista citado porque, conforme se viu, reduzimos também algumas dessas “com— digdes” a meros elementos do tipo, ou seja, a caractéristicas do fato tipico penal. 144. Escusas absolutérias ou causas pessoais de exclusdo de pena. Nao incluimos as escusas absolutérias na categoria de “con— digéo” de punibilidade ou de procedibilidade*. Sio antes causas pessoais de exclusdo de pena que operam incondicionadamente, nos casos expressos em lei, em beneficio de um circulo restrito de agentes ligados geralmente a vitima por vinculo de parentesco (CP, arts. 181 e 348, § 2.°) ow por outra circunstincia que o legislador queira instituir, por razdes de politica criminal. Nessa hipétese, o crime subsiste, tanto que delas nao podem valer-se os co-autores que nao apresentam as caracteristicas personalissimas do tipo de agente bene— ficiado pela norma legal (cOnjuge, ascendente, descendente etc.) . Wessels distingue as causas pessoais de exclusio de pena das causas pessoais de extingao de pena. As primeiras, segundo esse mesmo autor, sdo “circunstancias legalmente reguladas, que de ante— mao conduzem a impunibilidade e que devem ter-se constituido no momento em que o fato é cometido” * (relacio de parentesco e outras); as segundas so “circunstancias que s6 ocorrem depois do cometimento do fato e que impedem novamente, de modo retroativo, a punibilidade j4 fundamentada” * (desisténcia voluntéria e arrepen- dimento eficaz). Tais causas, como € 6bvio, por se situarem fora do tipo, nao precisam ser abrangidas pelo dolo do agente, quando do cometi- mento do fato. Assim o filho que, equivocadamente, furta coisa per- tencente ao pai, por desconhecer essa ltima circunstancia, bene- ficia-se com a isengdo de pena do art, 181 do Cédigo Penal. 62. Proceso penal, cit., v. 1, p. 486, 502 e s. 63. Assim, Asta, Tratado, cit, v. 7, p. 56, Em sentido contrério, Heleno Fragoso, Ligées, cit., p, 234. 64. Wessels, Direito penal, cit, p. 109-10. 65. Wessels, Direito penal, cit, p. 109-10, 158 § 11. Ilicitude a) A questéo terminoldgica e a reforma penal 145, Ilicitude e antijuridicidade sio termos empregados como sinénimos. Nossos penalistas, porém, por influéncia dos autores de lingua espanhola e italiana, utilizam com maior freqiiéncia, ao invés do primeiro, a palavra antijuridicidade, para exprimir um dos ele- mentos fundamentais do conceito juridico do crime. Essa op¢o, entretanto, nZo € muito feliz, conforme temos advertido desde a publicacio de nosso livro O erro no direito penal’. Carnelutti j4 apontara 0 equivoco de se atribuir ao delito, fendmeno juridico por exceléncia, 0 caréter de algo antijuridico, pondo em destaque que, com isso, se costuma afirmar do delito estas duas coisas, pelo menos na aparéncia contraditérias: “...que o delito seja um fato ou um ato juridico e, ao mesmo tempo, um fato ou um ato anti- jurtdico” *. Para extirparmos essa aparente contradicao, seré necessério sever a segunda expresso, néo a primeira, j4 que a inclusio do de- lito no género dos “fatos juridicos” nio pode ser impugnada diante da constatacio ébvia de que o crime é uma criacao do direito po- sitivo (nullum crimen sine lege). Além disso, apresenta-se cle aos 1. V. p. 70, nota de pé de pagina n. 131. 2. Teoria general del delito, trad., p. 18. 159 nossos olhos com aquela caracteristica que, segundo Miguel Reale, define todo e qualquer fato juridico, ou seja, “um fato juridicamente qualificado, um evento ao qual as normas jurfdicas j4 atribufram determinadas conseqiiéncias, configurando-o e tipificando-o objeti- vamente” *, Nessa linha de pensamento, o certo serd, pois, dizer-se que o delito 6 um fato juridico, classificado, em uma das ramificagGes. deste, entre os denominados atos ilicitos. Podemos, portanto, atri- buir-Ihe correntemente, como fazem, aliés, os autores portugueses (denire os quais Eduardo Correia, Figueiredo Dias e Cavaleiro de Ferreira), a ilicitude, sem incorrer maquela contradigéo apontada por Carnelutti. Note-se que a questao é mais do que meramente terminolégica, como poderia parecer. , na verdade, uma questdo de fundo que, assim resolvida, permitird situar 0 delito, como ato ilicito, no Gnico local que verdadeiramente Ihe cabe, em uma visao sistemética do direito. 146. A reforma penal brasileira (Lei n. 7.209/84), ao dar nova redacéo a Parte Geral do Cédigo Penal, adotou, portanto, o termo correto ilicitude: f€-lo no art. 21, onde fala em “erro sobre. a ilicitude do fato”; no parégrafo Gnico desse mesmo dispositivo, quando menciona “consciéncia da ilicitude do fato”; e, notadamente, na rubrica lateral do art. 23, que relaciona as causas de justifi- cag&o, ao dizer “exclusio da ilicitude”. Andou bem, portanto, o legislador de 1984, no particular, ao retomar a melhor tradigfo portuguesa, contribuindo para afastar, segundo se espera, daqui por diante, o equivoco lingiiistico que pa- Tece ter sido fruto de importagio de uma tradugiio pouco precisa da palavra composta alema Rechtswidrigkeit, que significa, literal- mente, contrariedade ao direito (nao ao juridico). Com efeito, “‘ilf- cito € o fato que contraria 0 ordenamento juridico”*. Por isso € que Welzel define a ilicitude como sendo “a contradigfo entre a realizacio do tipo de uma norma proibitiva e o ordenamento juri- dico como um todo...” 5, 3. es preliminares, cit., p. 198. 4. Dreher © ‘Triwdle, Strafgesetzbuch, cit, p. 13. 5. Day deutsche Strafrecht, cit., p. 50, 160 b) IMlicitude formal e material, Conceito de ilicitude 147. Conforme salientamos p4ginas atrds, ilicitude (ou anti- juridicidade) & algo que se afirma do fato tipico penal, diante da ordem juridica. A ilicitude é, pois, em outras palavras, uma re- lagdo ou propriedade que se atribui ao fato tipico penal. Com isso queremos dizer que o termo ilicitude exprime a idéia de contradicao, de antagonismo, de oposig’o ao direito®. Nesse sentido, um fato humano — qualquer que seja — serd ilicito sempre que se apre- sente em oposicéo & ordem juridica, estabelecendo com esta uma relagio de contraposigéo. E isso ocorre tanto com o fazer 0 proi- bido pelo ordenamento juridico quanto com o néo fazer o que est determinado por esse mesmo ordenamento. A ilicitude penal é, assim, a propriedade de certos pecceeneerl humanos, seja sob a forma de agio, seja sob a forma de omissio, de se oporem 4 ordem juridica. Em um sistema como o nosso, em que vige o principio per- mititur quod non prohibetur, o circulo dos atos ilicitos € bem mais reduzido do que o dos atos Ifcitos. Fazem parte deste ultimo todas as agées ou omissdes ordenadas, toleradas ou apenas nfo expressa- mente vedadas pelo direito, mesmo quando nao ajustadas a rigo- Tosos conceitos éticos (honradez, lealdade etc.). Pertencem & esfera dos atos ilicitos os comportamentos comissivos ou omissivos porta- dores de um contetido antag6nico ao dever-ser da norma juridica. E como se o ordenamento jurfdico, ao organizar a vida em socie- dade, estabelecesse, para a protecio de bens jurfdicos, intimeras vias sinalizadas. A inobservancia destas sinalizagdes pode dar nas- cimento aquela relagio de antagonismo entre 0 comportamento vio- lador e 0 comando normativo, caracterizando a ilicitude do fato. 148. A ilicitude, assim entendida como relagao de contrarie- dade entre 0 fato e a norma juridica, tem sido qualificada de con- ceito puramente formal. Por isso certos autores, a partir de von Liszt, ao lado da denominada ilicitude (ou antijuridicidade) formal, se esforcam em desenvolver outro conceito mais enriquecido, ou seja, o de ilicitude material, Modernamente, Jeschek, para quem a itude no se esgota na relacdo existente entre a ago ¢ a norma, 6. Assim Jeschek: “Rechtswidrigkeit bedeudet Widerspruch gegen das Recht” (Lehrbuch, cit., p. 161 afirma que a ilicitude material \eva igualmente em consideragao a lesdo ao bem juridico protegido pela norma respectiva’. E disso extrai o autor citado o que reputa de “relevante sentido pratico”, a saber: 4) a ilicitude material seria ponto de referéncia para a cria— Gao de tipos legais e sua aplicagio ao caso concreto, para a gra— duacao do injusto e sua influéncia na dosimetria da pena, final- mente, para a interpretaco teleolégica dos tipos; 5) conseqiiéncia da ilicitude material seria a possibilidade de admissio de causas supralegais de justificagio, com base no prin- cipio da ponderagao de bens *, c) Concepgao unitéria 149. H4, porém, outra corrente de pensamento que considera a distingao anteriormente examinada perfeitamente dispensdvel. 1B, a nosso ver, com razio. Um comportamento humano que se ponha em relacéo de antagonismo com a ordem juridica nado pode deixar de lesar ou de expor a perigo de lesio os bens juridicos tutelados por essa mesma ordem jurfdica. Isso leva 4 conclusio de que a ilicitude s6 pode ser uma s6, ou seja, aquela que se quer denominar “material”. Pensar-se em uma ilicitude puramente formal (desobediéncia a norma) e em outra material (leséo ao bem juridico tutelado por essa mesma norma) s6 teria sentido se a primeira subsistisse sem a segunda. Embora nao se possa negar, conforme observa Jiménez de Astia®, essa possibilidade no plano do dualismo entre direito natural e direito positive, o certo € que o conceito de ilicitude, ainda que no se confunda com a mera inobservancia de um certo preceito legal — o que seria anacrénico positivismo juridico — nao pode deixar de ser considerado dentro dos limites de um de- terminado ordenamento jurfdico. Correta, pois, a afirmagao de Bettiol de que a contraposicao dos conceitos em exame — antijuridicidade formal e nio tem razio de ser mantida viva, “porque s6 é anti 7. Lehrbuch, cit, p. 176. 8 Lehrbuch, cit, p. 176-7. 9. La ley y el delito, p. 278, 162 fato que possa ser reputado lesivo a um bem juridico. Fora disso, a antijuridicidade nfio existe”, 150. Assim, em nossa definicao, ilicitude € a relacio de an- tagonismo que se estabelece entre uma conduta humana voluntéria e o ordenamento juridico, de modo a causar leséo ou expor a pe- rigo de lesio um bem juridico tutelado 4. Dentro dessa concepgio, a ilicitude s6 poder4 referir-se & acéo humana. Consegiientemente, a contrariedade ao direito — esséncia do conceito em exame — se caracterizaré fundamentalmente por dois pressupostos, a saber: primeiro, a existéncia de uma conduta voluntéria na origem, positiva ou negativa (acio ou omissio), em antagonismo com o comando normativo (fazer o que esté vedado ou ndo fazer o que esta determinado); segundo, a existéncia conco- mitante de possiveis ou reais conseqiiéncias danosas, sobre o meio social, dessa mesma conduta (leséo real ou potencial ao bem ju- ridico tutelado)"®, 151. © primeiro pressuposto exclui da 4rea do juizo de ili- citude os fenémenos puramente causais, inevitaveis, ocorridos sem qualquer interferéncia da vontade humana, ou seja, o puro resultado fisico. Isso quer dizer que somente as condutas dolosas ou, no minimo, as culposas, nas quais a vontade est4 presente (nas pri- meiras a vontade vai até o resultado tipico, nas segundas a vontade s6 alcanca até a causa desse resultado), sero passiveis de se submeterem ao jufzo de ilicitude. Conseqiiéncia desta colocagio, dentro de uma visao finalista do tipo, que nele inclui o dolo e a negligéncia, é a afirmaco de que a ilicitude do delito ser& necessa- riamente e sempre uma ilicitude tipica. O tipo, por sua-vez, conteré um jutzo de ilicitude condicionado. O injusto, a acio tipica ¢ ik- cita. O e sera, conclusivamente, um injusto culpdvel (= agéo tipica, ilfcita e culpavel). O segundo pressuposto — a exigéncia de Jesio ou perigo de Jesdo a um bem juridico tutelado — revela o contetido material da ilicitude que deixa de ser um conceito puramente formal, ou seja, a mera infragio de um dever, Nao haver4, pois, duas ilici- tudes, uma formal ¢ outra material, mas apenas uma — a que se 10. Diritto penale, cit., p. 292. 11. Mlicitude penal, cit., p. 8. 12. Com mais detalhes, consulte-se nosso IMicitude penal, cit, 163 diz material. As conseqiiéncias de ordem prdtica serio enormes. Em primeiro lugar, dentro desta concepgo material, permite-se a construgao de causas supralegais de justificagio, ao lado das causas legais. Com isso, dar-se-4 maior dinamismo ao direito penal que, a nivel dogmiatico, procederé, sempre que necessério, 4 despenali- zagao dos fatos que, diante de sensiveis mutagdes sociais, perderam © cardter lesivo ou a reprovabilidade ético-social. Assim € que, por exemplo, a esterilizagGo consentida do homem ou da mulher J& poderd nao ser um ilicito penal, pois a ilicitude desse fato estar4 excluida pelo consentimento do ofendido. Certas lesdes cometidas durante praticas esportivas nao constituirio um injusto penal, pela observancia de certas regras e de sua aceitac3o generalizada, causa excludente da tipicidade. As lesées insignificantes, inexpressivas, ficarao igualmente excluidas do tipo de injusto, porque, realmente, de minimis non curat pretor. E desse estreito intercambio entre o tipo e a ilicitude, no interior do conceito de injusto, que os unifica, surgird, seguramente, um renovado direito penal. 152. Por fim, a ilicitude, na 4rea penal, nfo se limitaraé a ilicitude tipica, ou seja, a ilicitude do delito, esta sempre ¢ necessa- riamente tipica. Um exemplo de ilicitude atipica pode ser encon- trado na exigéncia da itude da agressio (“‘agressio injusta”™ significa “agressio ilfcita”) ma legitima defesa. A agressio que autoriza a reagao defensiva, na legitima defesa, nao precisa ser um. fato previsto como crime, isto 6, nao precisa ser um ilicito penal, mas deverd ser no minimo um ato ilicito, em sentido amplo, por inexistir legitima defesa contra atos Ncitos. Essa constatacéo, que nos parece Obvia, revela-nos que a ilicitude possui mais de uma fungéo no direito penal: ora atua como elemento geral e estrutural de todo delito, com fungSo delimitadora do ilicito penal; ora ca- racteriza © ato ilicito, em sentido amplo, penetrando na esfera penal para ai produzir efeitos distintos e atuar como fator de identifi- cacao daquelas lesdes a bens juridicos que podem ser legitimamente repelidas pela reacfo defensiva e daquelas outras que estamos obri gados a suportar, contra as quais nada podemos fazer. Essa di versidade de fungées conferida pelo legislador ao conceito de ilici- tude foi enfatizada, na drea do direito civil, por Karl Larenz 13, Nio vemos como negé-la, igualmente, no direito penal. 13. Metodologia da ciéncia do direito, trad. port, p. 358 ¢ s. 164 d) Nicitude penal e extrapenal 153. Note-se que a ilicitude penal nio se restringe ao campo do direito penal: projeta-se para 0 todo do direito. Por isso é que Welzel define a ilicitude como sendo “a contradigio da reali- zacao do tipo de uma norma proibitiva com o ordenamento juridico como um todo” *, Disso resulta que um fato ilicito penal nao pode deixar de ser igualmente ilicito em outras 4reas do direito, pois um ato licito civil, administrativo etc., no pode ser ao mesmo tempo um ilicito penal. Nao se deve, entretanto, confundir o con- ceito de ilicitude com o de injusto, conforme ressaltamos nesta obra, pois este Gltimo, por exigir também a tipicidade, pode apresentar-se, em certos casos, localizado em determinada drea do direito (ilicito civil, administrativo etc.). Apenas o injusto tipico penal nao dis- pensa a nota da contrariedade com o ordenamento juridico total, pelo que n&o pode deixar de ser, igualmente, um ilicito global. Poderfamos representa graficamente essa distingdo através de dois cfrculos concéntricos: 0 menor, o do injusto penal, mais con- centrado de exigéncias; 0 maior, 0 do injusto extrapenal (civil, administrativo etc.), com exigéncias mais reduzidas pata sua con- figuraco. O fato ilicito situado dentro do cfrculo menor néo pode deixar de estar situado também dentro. do maior, por localizar-se em uma 4rea comum a ambos os circulos que possuem o mesmo centro. J& 0 mesmo nao ocorre com os fatos ilicitos situados fora da tipificacio penal — 0 circulo menor — mas dentro do circulo maior, na sua faixa periférica e exclusiva. Assim, um ilicito civil ou administrativo pode ndo ser um ilicito penal, mas a reciproca nao é verdadeira. Enganam-se, pois, os que supdem, sem considerar que a ilici- tude penal sé existe enquanto tipica, que a ilicitude € sempre a mesma para o todo do direito. Trata-se de uma concluséo valida somente para a ilicitude penal, nado para o que se reputa ilicito, localizadamente, apenas em 4reas extrapenais, hipétese em que, na auséncia de tipicidade, inexistir4 ilicitude penal. Assim, por exem- plo, o dano culposo, seguramente um ilfcito civil (CC, art. 159), por nio estar tipificado como crime em nossa legislagéo penal, nao se considera um ilicito penal. 14. Das deutsche Strafrecht, cit., p. 51. 165 154, Nessa linha, reputamos desvio dos principios enunciados a pretensdo de se condenar por delito de transito (lesio corporal Provocada por acidente de veiculos) quem jé havia sido julgado e absolvido, pelo mesmo fato, no juizo civil, com sentenca transitada em julgado, na qual se reconhecera a inexisténcia de culpa sequer levissima. A inexisténcia, assim proclamada, do ilicito civil cons- titui obstéculo irremovivel para o reconhecimento posterior do ilicito penal, pois o que € civilmente licit permitido, autorizado, nao Pode estar, ao mesmo tempo, proibido e punido na esfera penal, mais concentrada de exigéncias quanto A ilicitude. Nao obstante, no tinico caso concreto de que temos conhecimento, decidiu 0 Su- premo Tribunal Federal, por razées de ordem puramente processual, que a sentenga civil “nio tem influéncia nem precedéncia Iégica sobre 0 juizo criminal, ainda quando negue a existéncia do fato e da autoria constitutivos da responsabilidade penal, salvo no caso das prejudiciais heterogéneas contempladas nos arts. 92 e 93 do CPP” 15, Embora esse julgado esteja apoiado ein s6lida doutrina pro- cessual, portanto fundamentado dentro dessa perspectiva, parece-nos que outra poderia ter sido a sua conclusio se alegados e enfren- tados os princfpios de direito material aqui examinados. 15. RHC 59.716-PR, Dj, 11 jun. 1982, p, 5678, 166 § 12. Causas de exclusao da ilicitude a) Tipo e ilicitude. As causas justificativas ¢ a reforma penal. Causas legais e supralegais 155. © tipo legal, segundo temos sustentado, ndo é mera ima- gem orientadora ou mero indicio da ilicitude. & antes um portador da ilicitude penal, dotado de contetido material e, em razdo disso, de uma funcio verdadeiramente seletiva. Essa, aliés, é uma resul- tante de ser a ilicitude do delito “necessariamente ¢ sempre uma ilicitude tipica”. Relembremos 0 que foi dito a respeito dos tipos incriminadores: servem eles para fundamentar o jufzo de tipicidade de certos comportamentos humanos, juizo esse que constitui tam- bém um juizo condicionado de ilicitude. Nao obstante, os tipos legais de crime — e esta é provavelmente a sua mais importante fungdo, a denominada fungdo de garantia, vinculada ao princfpio da reserva legal — servem também, como se viu, para fundamentar © juizo de atipicidade da grande maioria dos comportamentos hu- manos, dando-lhes o cardter de comportamentos licitos penais, a0 situ4-los fora dos limites da tipicidade legal. Este juizo de licitude penal € definitivo no 4mbito do exame da tipicidade do fato. Nao depende de qualquer outra condigéo ou de qualquer outro exame posterior. Veja-se o exemplo de Ticio que, por imprudéncia na condugio de um veiculo, provoca acidente culposo de que resultam tZo-somente danos materiais em outro vefculo alheio. Nessa hipé- tese de dano culposo, o mais simples exame do tipo legal do crime 167

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