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ANDRÉ SINGER
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ANDRÉ SINGER
é jornalista e professor do
Departamento de Ciência
Política da USP. É autor
de Esquerda e Direita
no Eleitorado Brasileiro
(Edusp).
Mídia e democracia

58 REVISTA USP, São Paulo, n.48, p. 58-67, dezembro/fevereiro 2000-2001


ou
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n no Brasil
Mais do que oferecer respostas, este ensaio pretende

indicar possíveis caminhos para pensar a relação entre meios

de comunicação e democracia no Brasil. Foi preparado e


apresentado em maio de 1998 para um seminário do

Woodrow Wilson Center (Washington, DC).

A forte influência da mídia sobre a democracia moderna


tem sido apontada há décadas por importantes autores inter-

nacionais. Contudo, ainda não há uma conclusão clara sobre


o sentido geral das mudanças que os meios de comunicação

impingem ao regime democrático. Não sabemos se as alte-


rações na democracia produzidas pelo desenvolvimento de

comunicação permitem uma previsão otimista, uma vez que

o público de hoje tem mais acesso à informação, ou se elas


devem causar os sentimentos mais assustadores – já que a

tendência da mídia é a fragmentação e espetacularização dos


acontecimentos. Porém, enquanto aguardamos que o deba-

te avance, tenho a impressão de que, diante do que é men-


cionado na literatura como a natureza distorcida da informa-

ção transmitida pelos meios de comunicação, a maioria dos


autores tende a ser pessimista em relação aos efeitos da mídia

sobre o futuro da democracia (Abramson et al., 1990; Bourdieu,


1997; Fallows, 1997; Guéhenno, 1994; Sarcinelli, 1997).

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De qualquer maneira, é certo que a mídia Contudo, é preciso lembrar que somen-
mudou a política (Sartori, 1992), no que te em meados da década de 80 deste século
diz respeito a pelo menos três aspectos o Brasil se juntou ao clube das democracias
importantes. Em primeiro lugar, a mídia de massa – pois nossa experiência democrá-
determina os temas sobre os quais recairá tica anterior, entre 1945 e 1964, possuía fortes
a atenção pública (McCombs e Shaw, configurações elitistas, determinadas pela
1972) e também é ela que decide o que característica rural de boa parte da popula-
não deve ser dito, como no caso das idéias ção. Conseqüentemente, de certo modo a
que são submetidas à “espiral do silêncio” democracia de massa no Brasil está sendo
(Comparato, 1997). Em segundo lugar, a modelada – e não apenas mudada – pela
imprensa exerce uma significativa influ- mídia. Isso significa que a democracia bra-
ência na formação da opinião pública sileira provavelmente está sendo mais influ-
(Filgueira e Nohlen, 1994). Em terceiro enciada pela mídia do que as velhas demo-
lugar, a mídia mudou a disputa eleitoral, cracias da Europa e dos Estados Unidos, que
substituindo os partidos políticos em sua tinham tradições consolidadas antes da ex-
função comunicadora, em maior ou me- plosão dos meios de comunicação.
nor grau (Rubin, 1981). Antes de chegarmos à questão de que
Ainda no terreno eleitoral, devemos ad- tipo de influência a mídia brasileira está
mitir – sem exagero – que a mídia tem certa exercendo sobre a jovem democracia bra-
influência na determinação do comporta- sileira, é necessário definir melhor o que é
mento do cidadão. Sendo a mais importante democracia. Dentro da esfera da democra-
fonte de informação política para a maioria cia liberal, que efetivamente é a única for-
dos cidadãos, o que aparece na mídia não ma conhecida da democracia moderna,
pode ser deixado de lado quando se faz pre- podemos falar de duas concepções diferen-
visões do comportamento eleitoral. Mas isto tes sobre o que a democracia deveria ser. A
não quer dizer que a mídia cria a preferência primeira, que chamaremos de participativa,
do eleitor, como veremos. Por fim, devemos é otimista em relação às possibilidades de
reconhecer que o papel de fiscalização rea- participação racional das pessoas nas deci-
lizado pela imprensa – o chamado “quarto sões políticas – se as instituições forem
poder” – resultou, a par de uma saudável planejadas para isso. Nessa visão, a demo-
restrição dos administradores no abuso dos cracia é um regime em que a pessoa decide
bens públicos, em hostilidade crescente em as políticas públicas que deveriam ser es-
relação às instituições representativas colhidas pelos representantes eleitos.
(Fallows, 1997; Wolf, 1997). O segundo ponto de vista é pessimista
O reconhecimento do poder exercido em relação às oportunidades de se obter
pela mídia levou muitos acadêmicos a se maior participação racional de parte dos
preocuparem com o controle dos veículos cidadãos nas deliberações democráticas, in-
de comunicação por grandes grupos priva- dependentemente do tipo de instituições que
dos (Bagdikian, 1993), que coloca em xe- existirem. Nessa visão, os indivíduos com-
que os princípios democráticos liberais do portam-se de maneira irracional quando
pluralismo e dispersão do poder. chamados a participar da arena política.
A descrição geral de como a mídia in- Na primeira visão, é preciso uma mídia
fluencia a democracia se aplica, como se- mais empenhada em tentar esclarecer a
ria de se esperar, ao Brasil. O país tem uma opinião pública, devido ao papel decisivo
das cinco maiores redes de televisão do que a informação desempenha na ação de
mundo (Blumenthal e Goodenoug, 1991), uma cidadania participativa. Na segunda
a quarta maior revista semanal e cinco jor- isto não é tão importante, uma vez que os
nais diários independentes que circulam por cidadãos não tendem a ser racionais em
todo o país com um padrão gráfico e infor- política; contudo, mesmo a escola “cética”
mação técnica equiparáveis aos do Primei- se preocupa com a desmoralização da de-
ro Mundo. mocracia gerada pela mídia.

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Em uma democracia nova, como é a seis jornais (Folha de S. Paulo, O Estado
brasileira, a segunda escola, cuja maior de S. Paulo, Gazeta Mercantil e Valor, em
preocupação é criar instituições que per- São Paulo, e O Globo e Jornal do Brasil, no
mitam a negociação pacífica de conflitos e Rio de Janeiro) e três revistas semanais
não instituições que abram amplo espaço (Veja, Época e IstoÉ). Entre eles há um
de participação, tende a ser dominante. Afi- ambiente de verdadeira competição.
nal de contas, começa-se pelo começo. Pri- Por outro lado, temos a televisão, em
meiro, garantir que as contradições sociais que a predominância de uma das transmis-
não descambem para a violência. Depois, soras sobre as outras criou, de acordo com
se for o caso, propiciar alternativas de par- certos autores, uma espécie de “monopólio
ticipação popular. virtual” (Lima, 1993). Segundo Lima
Entretanto, é interessante observar que (1993, p. 98), no início da década de 90 a
a democracia no Brasil renasceu sob a in- Globo detinha de 60% a 84% da audiência
fluência de fortes concepções participa- em qualquer momento do dia. Para Kucinski
tivas, apesar dos obstáculos característicos (1998, p. 8), “o sistema da Globo é [...] a
de um país pobre à consolidação democrá- única rede hegemônica em uma grande
tica, devido a conflitos sociais radicais e sociedade formalmente democrática”. Eu
aos recursos escassos que devem ser distri- não saberia dizer se o fenômeno Televisa
buídos (Moisés, 1990; Benevides, 1991). no México constitui caso semelhante, mas
Como reflexo disso, a nossa Constitui- acredito que, de fato, o domínio da Globo
ção, promulgada em 1988, afirma em seu dá ao subsistema da televisão no Brasil um
primeiro artigo que “todo poder emana do aspecto diferente do que se vê nos Estados
povo, que o exerce por meio de seus repre- Unidos, onde três grandes estações compe-
sentantes eleitos ou diretamente” (o grifo é tem de perto pelo mercado.
meu). No 14o artigo acrescenta ainda que a Apesar de certas mudanças que conso-
soberania do povo também pode ser lidaram os concorrentes da Rede Globo nos
exercida por plebiscito, referendo ou inicia- anos 90, em especial o SBT, a diferença
tiva popular. entre os índices de audiência entre ela e os
Convém, portanto, levar em conta a concorrentes ainda é considerável.
influência da mídia sobre dois aspectos di- Mesmo com essa importante diferença
ferentes da democracia brasileira: de um (competição acirrada e competição mitiga-
lado, a construção de instituições represen- da), penso que os dois grandes sistemas (a
tativas capazes de tratar pacificamente dos “grande imprensa” e a televisão) estão in-
conflitos e, de outro, a qualidade da infor- tegrados. Em primeiro lugar, porque estão
mação prestada à população de modo a sempre se observando e se comparando –
permitir a participação racional da cidada- razão pela qual tendem a apresentar pautas
nia nas decisões políticas. comuns. Depois, há companhias que têm
O sistema da mídia no Brasil é muito interesses nos dois sistemas. O grupo Glo-
diferente no plano nacional e no patamar bo, por exemplo, além da televisão (Rede
regional. A nível nacional, por sua vez, Globo), tem um dos grandes jornais do país
apesar de funcionalmente integradas, há (O Globo), uma das três revistas semanais
duas partes que devem ser claramente dife- (Época), e metade, junto com o Grupo Fo-
renciadas. De uma parte, temos a mídia im- lha, do jornal Valor. Terceiro, os dois
pressa, que constitui a chamada grande subsistemas inclinam-se pelo mesmo mo-
imprensa. Os veículos que pertencem a esse delo norte-americano de jornalismo – o que
grupo são caracterizados por terem como significa que estão vinculados à idéia de
paradigma os métodos jornalísticos dos independência editorial em seu relaciona-
Estados Unidos (Lins da Silva, 1991). Nes- mento com o governo e com os anunciantes.
se subsistema há uma forte competição entre A mídia regional é regida por determi-
os veículos destinados ao público leitor. nantes diferentes. Em geral, são jornais
Nossa imprensa nacional é constituída por regionais não-independentes e transmis-

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soras de rádio e televisão controladas por no-americanos (Filgueira e Nohlen, 1994).
políticos locais. Nos estados, é comum No final da “transição” a Folha de S.
existirem dois clãs de famílias políticas, Paulo retomou a tendência de ligação com
cada uma a controlar uma estação de tele- o mercado, já tradicional na imprensa brasi-
visão, uma de rádio e um jornal (Rossi, leira (Lins da Silva, 1988), seguida por ou-
1998). Segundo informação não confirma- tros veículos. O processo se completou du-
da, de um a dois terços do Congresso Na- rante a década posterior à democratização
cional seria formado por proprietários de (1985-95). Podemos dizer que, hoje, a gran-
transmissoras locais de TV. de imprensa brasileira ligou-se outra vez
É justo afirmar que o segmento “nacio- fortemente ao mercado e exerce com pleni-
nal” da mídia brasileira exerceu a favor da tude o seu papel de “cão de guarda” do Es-
democracia o seu papel de quarto poder tado, como a imprensa norte-americana (que
durante a primeira década da redemo- é o modelo da imprensa brasileira).
cratização (1975-85). No entanto, deve-se Em outras palavras, pode-se dizer que
lembrar que tal comportamento foi o resul- a primeira década da democratização com-
tado de uma longa história iniciada na se- pletou a “americanização” da imprensa
gunda metade do século XIX. Quando a brasileira. Hoje podemos afirmar que o
república foi estabelecida em 1890, já ha- Brasil conta com um importante meio de
via um comércio forte e uma imprensa in- controle das instituições representativas
dependente no Brasil. Depois dessa época, devido a uma imprensa que policia as ati-
nunca mais houve imprensa partidária for- vidades dos poderes Legislativo, Executi-
te no país (Sodré, 1983; Lins da Silva, 1991). vo e Judiciário e denuncia constantemente
Com isso, consolidou-se no Brasil uma a corrupção, os favores, o fisiologismo, o
instituição que, na Europa, só veio a surgir mau uso do dinheiro público e a incompe-
mais tarde: a imprensa independente. tência no exercício do poder.
No século XX, essa imprensa desen- Não há nenhuma dúvida de que a im-
volveu-se, embora nem sempre tenha sido prensa brasileira conseguiu se constituir
independente. No período anterior ao gol- como poder. Em outras palavras: como aque-
pe de 1964, os veículos de comunicação le obstáculo que, segundo Montesquieu, tem
não estavam tão comprometidos com a im- capacidade de limitar outro poder.
parcialidade como afirmava seu ideário. Os Observemos que a televisão, dedican-
interesses das empresas privadas que sus- do menos espaço às questões políticas, as-
tentam os veículos determinaram – embo- sumiu uma posição secundária nesse pro-
ra o assunto ainda mereça estudos especí- cesso. Por outro lado, ainda que inclinada
ficos – uma ação antigoverno. a exercer o papel de policiamento de ma-
Em 1964 a independência da imprensa neira menos agressiva, quando o faz, ela
foi ameaçada. Quase toda a “grande im- influencia e amplifica o efeito de seu con-
prensa” deu apoio ao golpe militar. Rapi- trole devido à imensa audiência. É impor-
damente o governo impôs a censura às no- tante lembrar que o Brasil tem um patamar
tícias, o que levou essa mesma imprensa ao médio baixo de escolarização e, em conse-
campo da oposição. Durante a transição qüência, o público é fortemente ligado à
para a democracia (1974-85), uma aliança televisão e não à leitura.
temporária entre a imprensa e o setor libe- Um exemplo significativo do funciona-
ral das Forças Armadas proporcionou um mento do sistema da mídia como agente
importante papel para a imprensa na fiscalizador foi o processo culminado com
redemocratização (Singer, 1994). o impeachment do presidente Fernando
Não obstante as suas contradições, a Collor de Mello, em setembro de 1992. As
longa tradição de uma imprensa voltada notícias de práticas de negócios ilícitos que
para o mercado é uma das explicações envolviam o presidente começaram a ser
importantes para a diferença entre a im- publicadas na revista Veja em maio de 1992.
prensa brasileira e a dos outros países lati- Dali por diante, os cinco jornais diários se

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empenharam numa disputa para descobrir ca” – ou seja, uma atitude de ataque perma-
fatos que comprometessem o presidente da nente aos políticos, com a conseqüente des-
República. Com isso, criaram um forte moralização destes e das instituições re-

comunicação
ambiente anti-Collor (a Folha de S. Paulo presentativas.
chegou a promover uma campanha cívica Deve-se notar, desde outro ângulo, que
a favor do impeachment). A gota d’água a ação de policiamento exercida pela im-
veio com as revelações da revista semanal prensa acabou por não contribuir para me-
IstoÉ, que mostravam claramente que o lhorar a qualidade da representação no
presidente mentira. Podemos dizer que Brasil, pois boa parte dos parlamentares
Fernando Collor foi derrubado pelo siste- eleitos estão ligados a esquemas de comu-
ma da grande imprensa. A televisão demo- nicação regional, que não são independen-
rou para entrar na onda das denúncias e só tes dos interesses políticos, como se men-
o fez depois que as notícias sobre corrupção cionou acima.
no governo estavam bem disseminadas. Em outras palavras, criou-se um círcu-
O episódio Collor é revelador em mui- lo vicioso. Os políticos eleitos com apoio
tos aspectos. A “grande imprensa”, regida da imprensa regional, quando chegam ao
por mecanismos de mercado, criou uma poder, são desmoralizados pela imprensa
corrida por notícias exclusivas. O tema (ne- nacional, mas conseguem ser reeleitos com
gócios ilícitos do governo) provocou o iso- o apoio da mesma imprensa regional, não
lamento político do presidente e desenca- modificada até aqui pelo avanço da demo-
deou uma disputa pelas últimas notícias de cracia. O resultado é uma grande desmora-
acusação à Presidência. O episódio tam- lização do sistema representativo.
bém mostrou que, apesar da diferença de Ou seja, se, de um lado, a ação de fisca-
alcance dos jornais e revistas em relação à lização da grande imprensa contribui para
televisão – os jornais vendem cerca de 2 limitar de alguma forma as falhas éticas
milhões de exemplares por dia (Kucinski, dos representantes, ainda não se assistiu a
1998) e as revistas, aproximadamente, 1,5 uma mudança na qualidade da representa-
milhão de exemplares por semana, enquan- ção. O resultado tem sido a condenação das
to a televisão atinge 40 milhões de lares instituições representativas, como tais, por
(Bucci, 1998) – o importante papel de agen- uma parcela significativa do eleitorado. É
da setting no Brasil ainda se deve à mídia possível que um grande aumento na aliena-
impressa. ção do voto na eleição presidencial de 1994,
Segundo Bucci (1993, p. 152), a TV quando 36% dos eleitores optaram pela
Globo manteve silêncio a respeito do que abstenção, pela anulação de seus votos ou
ocorria no processo de impeachment, até pelo voto em branco, seja um reflexo dessa
que todo o processo estivesse bem adianta- rejeição à simples idéia da representação
do. Somente quando se tornou impossível (devemos lembrar que no Brasil, onde o
ignorar os fatos, a maior emissora de tele- voto é obrigatório, uma alienação dessa
visão do país teria começado a dar notícias ordem é muito significativa).
das acusações ao presidente. É interessante Se a sociedade se desinteressa do pro-
observar que o mesmo acontecera oito anos cesso político, é menos provável que no
antes, durante a campanha para o resta- futuro haja um aumento da qualidade na
belecimento das eleições diretas no Brasil. política. Portanto, a crítica da imprensa aos
No final das contas, o episódio do políticos, se não resultar em mudanças
impeachment revelou a força da mídia como positivas na qualidade da representação, não
quarto poder e o papel de liderança do contribuirá para reforçar as instituições. Na
subsistema da grande imprensa sobre a te- verdade, a desconfiança na representação
levisão. Contudo, além da ação benéfica de pode criar uma representação pior, caso haja
policiamento, a mídia impressa logo de- um afastamento da política.
senvolveu o que Sartori (1992, p. 311) de- Como se pode quebrar este círculo vicio-
nominou “parcialidade de oposição críti- so? Como a mídia poderia ajudar a melho-

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rar a qualidade da representação e recupe- inflação e da unidade dos partidos de cen-
rar a legitimidade das instituições políticas tro e direita em torno de Cardoso. Mais uma
democráticas? Para alguns autores, é im- vez, de meu ponto de vista, o papel da Rede
possível entender essas questões sem dis- Globo não foi decisivo.
cutir a influência da televisão no processo No entanto, se não é correto afirmar que
eleitoral brasileiro. Embora parte deles uma estação de TV decidiu as eleições, tam-
considere essa influência avassaladora, a bém é verdade que as campanhas eleitorais
ponto de haver orientado decisivamente a tendem a acontecer cada vez mais por meio
eleição dos dois presidentes eleitos depois da televisão. Isso significa que os candida-
da democratização (Lima, 1993; Kucinski, tos sem idéias são equiparados com os que
1998), não estou entre eles. Acredito que o têm algumas. Mas esta não é uma caracterís-
processo eleitoral é mais complexo, envol- tica só do Brasil. Segundo Rees (1995, p.
vendo não apenas a imagem transmitida 120), o uso de spots rápidos de propaganda
pelos candidatos na televisão, mas aspec- na televisão (cerca de 30 segundos) como
tos como a identificação ideológica do elei- principal instrumento de campanha nos EUA
tor e a avaliação da administração econô- levou à publicidade abusiva (normalmente
mica do governo (Singer, 2000). o xingamento ao opositor) e se tornou a tô-
Como procurei demonstrar, na eleição nica da campanha política.
de 1989, por exemplo, dois fatores influen- O fato de serem anúncios muito rápidos
ciaram fortemente a vitória de Fernando impede qualquer tipo de raciocínio a res-
Collor de Mello. O primeiro foi a intensa peito de problemas significativos a enfren-
insatisfação do povo com a política econô- tar, o que permite a eleição de candidatos
mica do governo precedente, de José Sarney. sem plataformas eleitorais. Assim, desco-
Conforme os partidos de centro se envolvi- brir como a televisão pode ajudar a melho-
am mais, ou menos, com a presidência de rar a qualidade da representação é um pro-
Sarney, houve um vazio político a ser preen- blema para todas as democracias e não
chido. Dois candidatos de oposição foram apenas a brasileira.
eleitos para o segundo turno: Collor, que No Brasil, a crescente influência da te-
vinha da direita do espectro político, e Lula, levisão nas campanhas também é preocu-
que foi o primeiro candidato de esquerda a pante, porque o controle desse meio é con-
verdadeiramente se aproximar da presidên- centrado, como já vimos, e pode prejudicar
cia em toda a história brasileira. a natureza pluralista da disputa entre os
Na batalha do segundo turno entre partidos. Ainda que a legislação atual pro-
Collor e Lula, emergiu o segundo fator: a porcione tempo gratuito para a propaganda
maioria dos eleitores se sentia ao centro e política na TV, existe um grande medo de
à direita do espectro político, e não à es- que o virtual monopólio exercido pela Rede
querda. Embora Lula tenha conseguido Globo impeça que os partidos de esquerda
obter muitos votos do centro e com isso tenham condições reais de disputar o po-
tornar muito apertada a vitória de Collor, a der. Nas palavras de Kucinski (1998, p. 8):
força da direita mostrou-se superior – e ele
perdeu a eleição não porque a Rede Globo “Nos escritórios de Roberto Marinho e nos
assim desejou, mas porque parte do eleito- estúdios da Globo foram definidas impor-
rado brasileiro temia a desordem. Acredito tantes opções estratégicas em momentos
que há certo exagero em se atribuir a elei- decisivos da transição, ou seja, a derrota de
ção de Collor à televisão, especialmente à Brizola (que não foi obtida), a Diretas-Já e
Rede Globo, sem com isso negar o inegá- a derrota da campanha de Lula. Também
vel poder que reúne em suas mãos. foi nos escritórios de Roberto Marinho que
Na eleição de 1994, a vitória de a estratégica aliança PFL-PSDB se conso-
Fernando Henrique Cardoso sobre Lula foi lidou para durar pelo menos doze anos, oito
decidida por uma mistura do sucesso da sob a administração de Fernando Henrique
política econômica do governo contra a e quatro sob Luís Eduardo Magalhães”.

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Seria necessário ter mais dados empí- sadas afetadas. Acompanhados mais de
ricos para provar se realmente as desigual- perto pelos jornais, eles teriam de ser con-
dades dos partidos no acesso à televisão cebidos não como palco político, mas como
são tão grandes quanto se receia. Sem a espaço para a discussão de propostas con-
menor dúvida, o problema terá que ser en- cretas com poder de decisão, ainda que
frentado. Portanto, no que diz respeito à sujeitos à composição das forças políticas
influência da televisão, a questão se apre- presentes na Câmara dos Deputados. A
senta em dois níveis. No primeiro, temos verdadeira discussão deveria acontecer
de encontrar mecanismos que assegurem nesses fóruns abertos a não-parlamentares”
iguais oportunidades para diversas frentes (Whitaker, 1992, pp. 82-3).
políticas, de modo que suas mensagens
atinjam o público. Em segundo lugar, te- O modelo apresentado pelo vereador
mos de enfrentar uma realidade ainda mais não foi levado adiante. De nosso ponto de
complexa: o uso do veículo talvez não seja vista, a pergunta a fazer é a seguinte: se
compatível com a solução racional das fossem estabelecidos grandes fóruns para
questões públicas e, conseqüentemente, não negociação pública de projetos em anda-
haverá melhoria na qualidade da represen- mento no Congresso, será que os jornais
tação enquanto ele for predominante. estariam interessados em acompanhar de
No que diz respeito à mídia impressa, perto o progresso do trabalho? Movidos pela
corre-se o risco de que se formem consen- lógica do mercado (Bourdieu, 1997), cada
sos editoriais – como o que em certo mo- vez mais sujeita ao princípio da notícia
mento da década de 90 pareceu ocorrer em espetacular, os jornais tenderão à “televi-
torno da necessidade de reformas de inspi- sionação” de seu conteúdo?
ração neoliberal. Tais consensos poderiam Para alguns, no desenvolvimento das
excluir posições diferentes, o que seria pre- revistas e jornais brasileiros houve uma
judicial ao debate público. Nesse caso, tor- tendência a dar ênfase à imagem (desenhos
na-se fundamental garantir o pluralismo de e fotografias), com a publicação de textos
opiniões a serem ouvidas e publicadas, curtos. Na mesma linha, haveria maior aten-
postura defendida em tese pelos veículos e ção do que antes a questões de grande ape-
que deve ser creditada em boa parte ao pro- lo popular, como perfis de celebridades,
jeto desenvolvido desde a década de 70 pela escândalos, espetáculos, esportes e crimes.
Folha de S. Paulo. Se a diversidade não for Ou seja, na opção entre “fazer jornais que
respeitada corre-se o risco de assistir à são quase televisão” ou “enfatizar a dife-
máquina jornalística dos grandes veículos rença entre a mídia impressa e a televisão”,
movimentar-se em uma única direção. Ao será que o jornalismo brasileiro se movi-
contrário, se houvesse uma tendência mun- menta na primeira direção? Da resposta a
dial de transformar os jornais em televisão essa questão depende, em parte, a avalia-
impressa, a qualidade da informação pres- ção do futuro das relações entre mídia e
tada também seria de pouca importância democracia no Brasil. Seja como for, não
para a participação racional do público. chegamos ao ponto em que o padrão
Há alguns anos um vereador da cidade televisivo foi imposto a jornais e revistas.
de São Paulo, Francisco Whitaker, esbo- Observe-se que a falta de atenção e de
çou a proposta de um modelo para, com profundidade no trato dos grandes proble-
maior participação, enfrentar os vícios da mas públicos não é problema brasileiro. Ela
instituição legislativa na cidade. A certa é apontada em relação à imprensa norte-
altura do projeto, lia-se: americana por Fallows (1997) e à argenti-
na, por Béliz (1997). No Brasil, a reação de
“A implementação dos projetos teria de dois respeitados jornalistas, Pompeu de
incluir fóruns de negociação pública mais Toledo (1998) e Carta (1998), à maneira
abrangentes, abertos aos técnicos, líderes como a imprensa lidou com a mudança do
sociais e representantes das partes interes- ministro da Saúde em abril de 1998

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exemplifica as dificuldades em pauta. credibilidade necessária para exercer esta
Toledo e Carta afirmam que todos os função. No entanto, a natureza do subsis-
grandes problemas envolvidos na saúde tema televisivo no trabalho de policiamen-
comunicação
pública brasileira e apresentados nas entre- to das instituições precisa ser corretamen-
vistas dadas pelo ministro que renunciava te qualificado: não foi tão independente
foram deixados de lado, em favor dos as- quanto o da “grande imprensa”. Entretan-
pectos superficiais da mudança de partido to, podemos dizer que a democracia no
político que a substituição acarretava. Brasil, por causa do sistema de fiscaliza-
Se a superficialidade e a falta de inte- ção da mídia e de sua independência, está
resse em uma séria discussão ameaçam o mais saudável do que estaria se não exis-
papel da imprensa escrita, o que dizer da tisse um sistema como esse.
televisão, em que esse interesse talvez nun- 2. Em seu papel policiador, a mídia tem
ca tenha existido (exceto em raras – embo- desenvolvido uma “oposição crítica parci-
ra importantes – experiências da televisão al” com relação às instituições representati-
pública)? A seguinte descrição de Sartori vas. Esta postura pode ter contribuído na
(1992) aplica-se muito bem ao jornalismo progressiva desmoralização das instituições
feito pela televisão comercial: representativas. Nas eleições presidenciais
de 1994, houve uma alienação eleitoral (abs-
“A compressão e a omissão são enormes. A tenção, votos em branco e nulos) de 36%.
omissão também é imensa porque a impor- 3. A função de fiscalização não tem
tância de um evento está acima de tudo em melhorado significativamente a qualidade
sua qualidade televisiva; alguns eventos de da representação. Uma parte dos eleitos tem
importância inquestionável (aqueles de que conexões locais com uma outra corrente do
falam os historiadores) terminam em cima sistema da mídia regional no Brasil. São
da escrivaninha, enquanto a tela está cheia grupos regionais de comunicação que de-
de ‘pseudo fatos’. Não obstante, a compres- têm, ao mesmo tempo, o controle de televi-
são ainda é pior: praticamente desaparecem sões, rádios e jornais locais. Esses grupos
o contexto e a explicação do ‘problema’. de comunicação não são independentes no
Um evento sem problema, isolado de seu que diz respeito ao poder político. Ao con-
problema não é nada. Conclui-se que a tele- trário, usam seus recursos de comunicação
visão não explica e isto porque em si a ima- para disputar o poder.
gem é inimiga da abstração, ao passo que 4. Os grupos regionais e o virtual mo-
explicar é criar um discurso abstrato, base- nopólio na área da televisão colocam o
ado em conceitos e não em imagens”. problema de mudar a legislação dos meios
de comunicação para evitar o monopólio
Em resumo, se a qualidade da represen- da representação e para aperfeiçoar as qua-
tação é ameaçada pelas características da lidades da representação. Devem ser dis-
campanha na televisão, a participação pode cutidas medidas para dispersar a proprie-
não encontrar estímulos nem na televisão dade local e nacional dos meios de comu-
nem na mídia impressa. De modo que, a nicação (Comparato, 1998).
meu ver, cinco pontos sobre os veículos de 5. É preciso investigar se os jornais es-
comunicação devem ser levados em conta tão cada vez mais parecidos com a televi-
ao refletirmos sobre o desenvolvimento da são. Se cada vez mais abandonam a cultu-
democracia no Brasil. ra escrita pela cultura visual. O resultado
1. Em uma década de democracia disso seria menos espaço para a discussão
(1985-95), o sistema da mídia no Brasil profunda de questões importantes, em fa-
consolidou-se ao mesmo tempo em que vor de pseudofatos. Essa tendência em
exerceu o poder de fiscalização às insti- nada contribuiria para a democracia
tuições que o caracterizam como um quarto participativa com a qual generosamente
poder. A independência da mídia impres- sonharam para nós os autores da Consti-
sa em relação ao poder político deu-lhe a tuição de 1988.

66 REVISTA USP, São Paulo, n.48, p. 58-67, dezembro/fevereiro 2000-2001


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