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O URSO - Anton Chekhov (1860-1904) Comédia em um ato

PERSONAGENS: HELENA IVANOVNA POPOV, jovem viúva, dona de uma propriedade rural / GRIGORI STEPANOVITCH SMIRNOV, proprietário rural
/ LUKA, criado da senhora Popov

(Final do século XIX. Propriedade da senhora Popov. Sala de visitas bem mobiliada na residência da senhora Popov, que guarda luto profundo pelo finado marido.
Sentada em um sofá, ela contempla fixamente um retrato. Luka também está presente.)

LUKA Isto não está certo, madame. A senhora está se acabando! A criada e a um regimento aquartelado em Riblov – cheio de oficiais... tudo uma beleza! Toda
cozinheira estão colhendo frutas silvestres no campo; tudo o que respira está sexta-feira tem baile e a banda militar toca todos os dias. Ah, minha prezada...
contente da vida; até o gato sabe ser feliz – corre de um lado pra outro no pátio, minha cara senhora..., jovem e bonita como é, se ao menos procurasse se divertir
caçando passarinhos – e a senhora enfurnada dentro desta casa, como se estivesse um pouco... vá viver a vida! A beleza não dura pra sempre. Dez anos passam
num convento. Pra dizer a verdade, nos meus cálculos, faz um ano inteirinho que rápido; saia e vá conhecer os oficiais! Se não fizer isso agora, depois será muito
a senhora não sai de casa. tarde...

SENHORA POPOV E nunca sairei daqui. – Por que deveria? Minha vida acabou. SENHORA POPOV [resoluta] Por favor, não vamos mais tocar nesse assunto!
Ele jaz em seu túmulo e eu entre estas quatro paredes. Ambos mortos. Você bem sabe que desde a morte de Nikolai Michailovitch minha vida perdeu o
sentido. Você acha que eu estou viva, mas é só aparência, compreende? Ah! Que
LUKA Lá vem a senhora de novo! Não gosto nem um pouco de ouvir isso; é
a alma de meu finado marido possa ver como eu o amo! Eu sei que não é nenhum
terrível! Nikolai Michailovitch está morto; foi a vontade do Todo-Poderoso; ele
segredo para você... muitas vezes ele foi cruel e injusto comigo; e também não foi
ganhou a paz eterna. A senhora já chorou muito a morte dele; agora basta! Já está
fiel..., mas eu serei fiel até o túmulo e mostrarei a ele como sou capaz de amar.
na hora de parar. Não dá pra ficar de luto e chorando pra sempre! Minha mulher
Lá, no Além, ele me verá como a mesma mulher que fui até sua morte.
morreu faz alguns anos. Fiquei de luto por ela e chorei um mês inteiro – depois
acabou. Será que a gente precisa ficar lamentando pra sempre? Isso é mais do que LUKA Em vez de ficar dizendo todas essas palavras, a senhora devia dar um
seu marido merece! [Suspira.] A senhora se esqueceu dos vizinhos. Não sai mais passeio no jardim ou mandar atrelar o Toby ou o Welikan e ir visitar seus vizinhos.
de casa e não recebe ninguém. Com o perdão da palavra, madame, estamos
SENHORA POPOV [choramingando] Oh! Oh!
vivendo feito aranhas que nunca veem a abençoada luz do dia. Os ratos corroeram
todo o meu uniforme. A senhora está agindo como se não existisse mais gente boa LUKA Madame, minha cara madame, o que está acontecendo? Em nome de

nesse mundo! Mas isso não é verdade! A vizinhança está cheia de gente boa. Tem Deus!
SENHORA POPOV Ele gostava tanto do Toby! Era seu cavalo preferido quando SENHORA POPOV [agitada] Pois muito bem. Traga-o aqui! Quanta insolência!
ia visitar os Kortschagins ou os Vlassovs. Que cavaleiro maravilhoso ele era! E [Luka sai, pelo centro.]
com que elegância ele controlava as rédeas! Toby, Toby – mande dar a ele uma
SENHORA POPOV Como as pessoas são inconvenientes! O que querem de
ração extra de aveia hoje!
mim? Por que vêm perturbar meu sossego? [Suspira.] É... acho que eu deveria ir
LUKA Sim, madame. [A campainha toca alto.] para um convento. [Pensativa.] É isso mesmo – um convento. [Smirnov entra,
seguido de Luka.]
SENHORA POPOV [estremece] Quem será? Não estou para ninguém.
SMIRNOV [para Luka] Seu idiota, você faz muito barulho! Você é um imbecil!
LUKA Pois não, madame. [Ele sai, pelo centro.]
[Dá-se conta da Senhora Popov...adota um tom educado.] Madame, tenho a honra
SENHORA POPOV [contemplando o retrato de Nikolai] Você verá, Nikolai, de me apresentar: Tenente da Artilharia, reformado, proprietário rural, Grigori
como sou capaz de amar e perdoar! Meu amor morrerá somente quando meu pobre Stepanovitch Smirnov! Sinto-me obrigado a incomodá-la a respeito de um assunto
coração parar de bater. [Sorri por entre as lágrimas.] E você, não se envergonha? extremamente importante.
Continuo sendo uma esposa fiel e bondosa. Enclausurei-me aqui e permanecerei
SENHORA POPOV [sem estender-lhe a mão] O que o senhor deseja?
fiel até a morte; e você... você... você não se envergonha, meu querido monstro!
Brigava comigo, deixava-me sozinha durante semanas... [Luka entra, muito SMIRNOV Seu finado marido, que tive a honra de conhecer, deixou-me duas
agitado.] promissórias num total de mil e duzentos rublos. Como tenho de pagar amanhã os
juros de um empréstimo do Banco Agrário, venho pedir-lhe, madame, que a
LUKA Madame, lá fora tem um homem; ele está insistindo que quer ver a
senhora pague hoje o que me deve.
senhora...
SENHORA POPOV Mil e duzentos rublos… e a que se refere essa dívida de
SENHORA POPOV Mas você não disse a ele que desde a morte de meu marido
meu marido para com o senhor?
não recebo ninguém?
SMIRNOV Eu lhe vendi aveia.
LUKA Eu disse, sim, mas ele não quer saber; diz que é um assunto urgente.
SENHORA POPOV [com um suspiro, dirige-se a Luka] Luka, não se esqueça
SENHORA POPOV Não estou para ninguém!
de dar a Toby uma porção extra de aveia. [Luka retira-se.]
LUKA Foi o que eu disse pra ele, mas ele é um grosseirão; foi logo xingando e
SENHORA POPOV [para Smirnov] Se Nikolai Michailovitch tinha uma dívida
forçando a entrada na sala. Agora, ele está na sala de jantar.
para com o senhor, eu certamente pagarei, mas infelizmente não tenho essa
quantia hoje. Amanhã, meu administrador retornará da cidade e pedirei a ele que saí de casa e visitei cada um dos meus devedores. Se pelo menos um deles tivesse
pague o que lhe é devido, mas até lá não posso atender ao seu pedido. Além do pagado o que me deve! Já fiz tudo o que pude! Só mesmo o diabo sabe em que
mais, hoje faz justamente sete meses que o meu marido faleceu, e não estou raios de espelunca passei a noite: num cômodo com um barril de vodca! E, agora,
disposta a discutir questões financeiras. quando finalmente chego aqui, a setenta verstas de casa, esperando receber um
dinheirinho, tudo o que ouço a senhora dizer é que não está “disposta”. – Por que
SMIRNOV E eu estou disposto a dizer um lindo adeus à vida, se não puder pôr
eu não deveria me exasperar?
as mãos nesse dinheiro amanhã. Vão confiscar as minhas terras!
SENHORA POPOV Pensei ter deixado bem claro que quando meu
SENHORA POPOV O senhor terá seu dinheiro depois de amanhã.
administrador voltar da cidade o senhor terá o seu dinheiro.
SMIRNOV Preciso do dinheiro hoje, não depois de amanhã!
SMIRNOV Não vim aqui para falar com o seu administrador; vim para falar com
SENHORA POPOV Sinto muito, mas hoje é impossível. a senhora. Com o perdão da palavra, que diabos tenho eu que ver com o seu

SMIRNOV E eu não posso esperar até depois de amanhã. administrador?

SENHORA POPOV Mas o que posso fazer se não tenho o dinheiro? SENHORA POPOV Francamente, meu senhor, não estou habituada a esse tipo
de linguajar e nem a esses modos grosseiros! Não tenho mais nada a tratar com o
SMIRNOV Então a senhora está me dizendo que não pode pagar?
senhor. [Ela se retira, pela esquerda.]
SENHORA POPOV Não, não posso.
SMIRNOV Que tal isso? Não estou “disposta”! Já faz sete meses que o marido
SMIRNOV Humm! É sua última palavra? morreu! Tenho ou não tenho que pagar os juros? Repito a pergunta: tenho ou não
tenho que pagar os juros? O marido está morto e coisa e tal; o administrador... que
SENHORA POPOV É minha última palavra.
o diabo o carregue... está viajando sei lá por onde. Agora, me diga: o que devo
SMIRNOV Tem certeza? fazer? Escapar dos meus credores num balão? Ou bater a cabeça contra a parede?

SENHORA POPOV Tenho certeza. Procuro Grusdev e ele manda dizer que “não está em casa”; Iaroshevitch
simplesmente se escondeu; briguei com Kurisin e quase o atirei pela janela;
SMIRNOV [Dando de ombros.] E ainda esperam que eu tolere isso tudo e fique
Masutov está doente, e esta mulher não está “disposta”! Nenhum deles quer me
calmo! O coletor de impostos que acabei de encontrar na estrada me perguntou
pagar! E tudo porque fui gentil demais com eles, porque sou um choramingas, um
por que estou sempre irritado. Por que, em nome de Deus, eu não haveria de estar?
moleirão! Fui sempre um coração mole. Mas vocês não perdem por esperar!
Preciso muito desse dinheiro; estou com a corda no pescoço. Ontem, pela manhã,
Ninguém vai me fazer de bobo; para o inferno todos! Vou ficar aqui e não me
arredo daqui enquanto ela não me pagar! Diabos! Que ódio! Estou furioso! Todos Pare! Eu lhe mostro como fazer. Pare! [Afasta-se da janela.] Que situação
os músculos do meu corpo estão tremendo de tão furioso que estou! Mal consigo horrível! Um calor insuportável, sem dinheiro, não dormi a noite passada, e ainda
respirar! Estou passando mal! [Grita.] Criado! [Luka entra.] por cima… vestida de luto e “não está disposta”. Ai! Que dor de cabeça! Acho
que vou beber alguma coisa. É isso mesmo! Preciso de uma bebida. [Chamando.]
LUKA O que o senhor deseja?
Criado!
SMIRNOV Traga-me um Kvas ou uma água! [Luka sai.] Bem, o que fazer? Ela
LUKA O que o senhor deseja?
não tem o dinheiro aqui? Que tipo de lógica é essa? Um camarada está com a
corda no pescoço, precisa de dinheiro, está a ponto de se enforcar e ela não vai SMIRNOV Traga-me alguma coisa para beber [Lukasai. Smirnov senta-se e
pagar porque não está “disposta” a discutir questões financeiras. Típica lógica examina suas roupas.] Droga! Que bela figura! Não há como negar. Cheio de
feminina! É por isso que jamais gostei de falar com mulheres e é por isso que não poeira, botas sujas, sem banho, despenteado, palha no colete... provavelmente a
gosto nem um pouco de fazer isso agora. Prefiro sentar-me num barril de pólvora madame me tomou por um salteador. [Boceja.] Foi um pouco indelicado de minha
a falar com uma mulher. Raios! Estou fervendo de ódio! Esse assunto já está me parte me apresentar neste estado. Ah! Ora bolas! Não estou prejudicando
dando nos nervos! Basta eu ver uma criatura romântica como essa, mesmo que de ninguém. Não estou aqui como convidado. Estou aqui como credor. E credores
longe, e fico tão furioso que começo a suar frio de tanto ódio! Isso é o bastante não precisam de nenhum traje especial.
para fazer alguém gritar por socorro! [Entra Luka.]
LUKA [entrando com um copo] O senhor é muito atrevido!
LUKA [servindo a água] A madame não está se sentindo bem e não quer recebê-
SMIRNOV [irritado] O que foi que você disse?
lo.
LUKA [gaguejando] Eu... não disse nada.
SMIRNOV Desapareça da minha frente! [Luka retira-se.] Não está se sentindo
bem e não quer ver ninguém! Pois muito bem! Não precisa. Também não verei SMIRNOV Com quem pensa que está falando? Cale-se!

ninguém! Vou me sentar e ficar aqui até receber meu dinheiro. Se ela passar uma LUKA [irritado] Que bela trapalhada! E esse sujeito não vai embora! [Retira-se.]
semana indisposta, vou ficar aqui uma semana. Se passar um ano, vou ficar aqui
SMIRNOV Deus do céu! Que ódio! Estou com tanto ódio que poderia fazer o
um ano. Com o céu por testemunha, vou conseguir o dinheiro! Suas lamúrias não
mundo virar pó! Estou até passando mal! Criado! [A Senhora Popov entra,
me atingem... nem suas covinhas. Conheço muito bem essas covinhas! [Grita pela
cabisbaixa.]
janela.] Simon, desatrele os cavalos! Vamos demorar para ir embora. Ainda vou
ficar aqui por um tempo. Diga lá no estábulo para darem uma ração de aveia a SENHORA POPOV Meu senhor, na solidão em que vivo, desacostumei-me da
eles. O cavalo da esquerda enroscou-se na rédea novamente. [Caçoando dele.] voz humana; não suporto quando falam em voz tão alta. Peço-lhe, por favor, que
não perturbe o meu sossego. SENHORA POPOV Não, o senhor não sabe. O senhor é uma pessoa mal-
educada e grosseira. Pessoas respeitáveis não se dirigem a uma dama dessa forma.
SMIRNOV Pague-me o que me deve e irei embora.
SMIRNOV Que coisa extraordinária! Como é que a senhora deseja que lhe
SENHORA POPOV Já lhe disse claramente uma vez, em sua própria língua
falem? Quem sabe em francês! Madame, je vous prie! Perdoe-me por tê-la
nativa, que não tenho esse dinheiro comigo agora; espere até depois de amanhã.
aborrecido. O dia está tão agradável hoje! [Faz uma reverência profunda e
SMIRNOV Eu também já tive a honra de informá-la, em sua própria língua cerimoniosa, com ar de zombaria.]
nativa, que preciso do dinheiro hoje, não depois de amanhã. Se a senhora não me
SENHORA POPOV Não acho a menor, a menor graça! É vulgar demais!
pagar hoje, serei obrigado a me enforcar amanhã.
SMIRNOV [imitando-a] Não acha a menor graça? É vulgar demais? De modo
SENHORA POPOV Mas o que posso fazer, se não tenho esse dinheiro?
algum! Não sei como me comportar em companhia de senhoras! Madame, no
SMIRNOV Quer dizer então que a senhora não vai me pagar imediatamente? É decorrer de minha vida, conheci mais mulheres do que a senhora já viu pardais.
isso? Três vezes duelei por elas, doze eu rejeitei e nove me rejeitaram. Houve um tempo

SENHORA POPOV Não posso! em que banquei o tolo, usei linguagem doce, curvei-me e me anulei. Amei, sofri,
suspirei para a lua, derreti-me em tormentos de amor. Amei com paixão, amei
SMIRNOV Então vou ficar sentado aqui até conseguir o dinheiro. [Ele se senta.]
loucamente, amei em todos os sentidos, tagarelei como uma matraca sobre a
A senhora vai me pagar depois de amanhã? Ótimo! Fico aqui até depois de
emancipação feminina, sacrifiquei metade da minha fortuna por conta de ternas
amanhã. [Levanta-se de um pulo.] Pergunto-lhe: tenho ou não tenho que pagar os
paixões, mas agora o diabo sabe que foi o bastante. Este seu obediente servo não
juros amanhã? Ou a senhora acha que estou brincando?
se deixará mais conduzir pelo cabresto. Basta! Olhos negros, olhos apaixonados,
SENHORA POPOV Meu senhor, eu lhe imploro, não grite! Não estamos em um lábios de coral, covinhas nas bochechas, sussurros à luz do luar, suspiros suaves e
estábulo! discretos... por tudo isso, madame, eu não daria um copeque! Não estou me
referindo à senhora em especial, mas às mulheres em geral; da mais insignificante
SMIRNOV Não estou falando de estábulos; estou lhe perguntando se tenho ou
à mais notável, são convencidas, hipócritas, tagarelas, odiosas, dissimuladas da
não tenho que pagar os juros amanhã.
cabeça aos pés; vaidosas, mentirosas até o último fio de cabelo; mesquinhas,
SENHORA POPOV Definitivamente, o senhor não sabe como tratar uma dama. cruéis, donas de uma lógica ensandecedora, e [Agride a própria testa com um

SMIRNOV Ah, sim, sei muito bem! soco.] quanto a isto, queira perdoar minha franqueza, mas um pardal vale dez
dessas filósofas de saia que mencionei. Quando um homem se encontra diante de
uma dessas criaturas românticas, imagina estar diante de um ser sagrado; um ser possíveis. Depois de sua morte, encontrei sua escrivaninha repleta de cartas de
tão maravilhoso que um único alento seu é capaz de dissolver o pobre coitado num amor. Em vida, deixava-me sozinha por meses a fio... é terrível pensar nisso... ele
oceano repleto de encantos e delícias; mas se ele olhar dentro de sua alma... não cortejava outras mulheres descaradamente na minha presença, gastava meu
há nada ali a não ser um crocodilo qualquer. [Pega uma poltrona e quebra-a em dinheiro e zombava de meus sentimentos... e, apesar de tudo, eu confiava nele e
duas partes.] Mas o pior de tudo é que esse crocodilo imagina ser uma obra-prima lhe era fiel. Mais do que isso: ele está morto e ainda lhe sou fiel. Enterrei-me
da criação; acha que tem o monopólio de todas as doces paixões. Que o diabo me dentro destas quatro paredes e vou usar luto até o túmulo.
enforque de ponta-cabeça se há algo que se possa amar nas mulheres! Quando
SMIRNOV [com uma risada desrespeitosa] Luto! Por quem a senhora me toma?
uma mulher está apaixonada, tudo que ela sabe fazer é reclamar e se debulhar em
Como se eu não soubesse por que a senhora usa essa capa preta e por que se
lágrimas. E se o homem sofre e se sacrifica, ela se mostra indiferente, presunçosa
enterrou dentro destas quatro paredes! Grande segredo! Que romântico! Quem
e tenta conduzi-lo pelo cabresto. A senhora teve o infortúnio de nascer mulher e
sabe um cavaleiro ainda há de passar pelo seu castelo, mirar as janelas e pensar
naturalmente conhece a natureza feminina; diga-me, sinceramente: em toda sua
consigo mesmo: “Aqui vive a misteriosa Tamara, que, por amor ao marido,
vida, a senhora conheceu uma mulher que fosse realmente honesta e fiel? Nunca!
enterrou-se entre quatro paredes”. Ah! Conheço muito bem essas artimanhas!
Só as velhas e as decrépitas são honestas e fiéis. É mais fácil encontrar um gato
de chifres ou um corvo branco do que uma mulher fiel! SENHORA POPOV [levantando-se de um salto] Como é que é? O que o senhor
quis dizer com isso?
SENHORA POPOV Mas permita-me perguntar-lhe: então, quem é honesto e fiel
no amor? Os homens, por acaso? SMIRNOV A senhora enterrou-se viva aqui dentro e, no entanto, não se esquece
de empoar o nariz!
SMIRNOV Claro! Os homens! Sem dúvida alguma!
SENHORA POPOV Como ousa falar comigo dessa maneira?
SENHORA POPOV Os homens! [Ri com sarcasmo.] Os homens! Honestos e
fiéis no amor! Vejam só! Temos uma grande novidade aqui! [Em tom amargo.] SMIRNOV Por gentileza, não grite comigo! Não sou seu administrador. Permita-

Como é que o senhor pode afirmar tal coisa? Os homens – honestos e fiéis! Já que me dar nome aos bois. Não sou mulher e estou acostumado a dizer o que penso.

estamos falando disso, posso dizer também que de todos os homens que conheci, Portanto, peço-lhe a gentileza de não gritar.

meu finado marido foi o melhor; amei-o intensamente, com toda a minha alma, SENHORA POPOV Não sou eu quem está gritando! É o senhor! Por favor,
como só uma mulher jovem e razoável o faria; dei a ele minha juventude, minha retire-se! Eu lhe imploro!
felicidade, meu destino, minha vida. Eu o idolatrei como uma selvagem. E o que
SMIRNOV Pague-me o que me deve e irei embora.
aconteceu? Ele, que era o melhor dos homens, me traiu de todas as formas
SENHORA POPOV Não vou lhe pagar! Vou reduzi-lo a pó!

SMIRNOV Não vai? A senhora não vai me pagar? LUKA [põe a mão no coração] Deus do céu! [Cai numa cadeira.] Oh! Estou
passando mal! Não consigo respirar!
SENHORA POPOV Não me importa o que o senhor faça. Não vai conseguir um
copeque de mim! Retire-se! SENHORA POPOV Onde está Dascha? [Chamando.] Dascha! Pelageja!
Dascha! [Toca a sineta.]
SMIRNOV Como não tenho o prazer de ser seu marido nem seu noivo, por favor,
não faça escândalo. [Senta-se.] Não suporto escândalos. LUKA Elas já saíram. Estou passando mal! Água!

SENHORA POPOV [enfurecida] O senhor vai se sentar? SENHORA POPOV [para Smirnov] Saia! Fora daqui! Já!

SMIRNOV Já me sentei. SMIRNOV Seja gentil. Tenha um pouco mais de educação!

SENHORA POPOV Queira fazer a gentileza de se retirar. SENHORA POPOV [com as mãos em punho e batendo os pés] O senhor é um
grosseiro! Um brutamontes! Um urso ensandecido!
SMIRNOV Quero o dinheiro.
SMIRNOV O que foi que a senhora disse?
SENHORA POPOV Não quero conversa com homens insolentes! [Pausa.] Não
vai se retirar? SENHORA POPOV Eu disse que o senhor é um grosseiro! Um brutamontes!
Um urso ensandecido!
SMIRNOV Não.
SMIRNOV [dando alguns passos rápidos na direção dela] Permita-me
SENHORA POPOV Não?
perguntar-lhe: com que direito a senhora me insulta?
SMIRNOV Não.
SENHORA POPOV E insulto mesmo! E daí? Por acaso acha que tenho medo do
SENHORA POPOV Pois, então, muito bem. [Toca a sineta. Entra Luka.] senhor?

SENHORA POPOV Luka, conduza este cavalheiro até a porta. SMIRNOV E a senhora acha que porque é uma criatura romântica, pode me

LUKA [dirigindo-se a Smirnov] Senhor, por que não sai quando lhe pedem pra insultar e ficar impune? Pois eu a desafio!

sair? O que mais o senhor quer? LUKA Deus de misericórdia! Água!

SMIRNOV [levantando-se de um salto] Com quem você pensa que está falando? SMIRNOV Então vamos duelar!
SENHORA POPOV E o senhor acha que seus punhos fortes e seu pescoço de de honra, é a primeira vez em minha vida que vejo uma mulher desse tipo!
touro me metem medo?
LUKA Oh! Senhor, vá embora! Vá embora!
SMIRNOV Não admito que ninguém me insulte! E não vou abrir exceção porque
SMIRNOV Isso sim é que é mulher! Posso compreendê-la. Uma mulher de
a senhora é mulher e pertence ao “sexo frágil”!
verdade. Sem fricotes ou chiliques... é puro fogo, pólvora e explosão! Seria uma
SENHORA POPOV [tentando menosprezá-lo] Urso ensandecido! Brutamontes, pena atirar numa mulher como essa.
troglodita!
LUKA [choramingando] Oh, senhor! Vá embora! [Entra a Senhora Popov.]
SMIRNOV Já está mais do que na hora de acabar com a velha crença de que só
SENHORA POPOV Aqui estão as pistolas. Mas... antes de começarmos nosso
os homens são obrigados a dar satisfação. Se é para ser igual, que haja igualdade
duelo, o senhor poderia me mostrar como se atira? Nunca segurei uma arma antes!
em tudo. Há um limite para tudo!
LUKA Deus nos acuda! Vou buscar o jardineiro e o cocheiro. Por que está
SENHORA POPOV O senhor quer duelar? Muito bem! Vamos duelar!
acontecendo esta desgraça? [Retira-se.]
SMIRNOV Imediatamente!
SMIRNOV [examinando as pistolas] Como a senhora pode ver, há armas de
SENHORA POPOV Imediatamente! Meu marido tinha algumas pistolas. Vou diferentes tipos. Estas são pistolas de pederneira, especiais para duelos, mas estes
buscá-las. [Sai apressadamente e retorna.] Ah! Com que prazer vou cravar uma são revólveres de percussão Smith & Wesson; excelentes pistolas! Um par destas
bala em sua cabeça petulante! Que o diabo o carregue! [Retira-se.] custa no mínimo noventa rublos. É assim que se segura um revólver. [Fica de
lado.] Que olhos, que olhos! Uma mulher de verdade!
SMIRNOV Vou acabar com ela com um tiro! Não sou nenhum principiante,
nenhum cãozinho sentimental. Para mim, não existe essa história de sexo frágil! SENHORA POPOV Assim?

LUKA Oh, senhor! [Cai de joelhos.] Tenha dó de mim, sou velho; vá embora! O SMIRNOV É; assim mesmo. Depois puxe o cão para trás – assim – em seguida,
senhor está me matando de medo e agora quer se bater em duelo com a patroa! mire – ponha a cabeça um pouco mais para trás. Estique o braço, por favor.
Assim... em seguida, aperte aqui com o dedo, e pronto. O mais importante é: não
SMIRNOV [sem prestar qualquer atenção] Um duelo. Isso é que é igualdade,
fique ansiosa, não mire apressadamente, e tome cuidado para não deixar tremer a
emancipação. É assim que os sexos se tornam iguais. Vou atirar nela por uma
mão.
questão de princípio. O que se pode dizer a uma mulher dessas? [Imitando-a.]
“Que o diabo o carregue! Vou cravar uma bala em sua cabeça petulante!” O que SENHORA POPOV Não fica bem duelar aqui dentro. Vamos para o jardim.
dizer disso? Ela se enfureceu, seus olhos faiscaram; ela aceitou o desafio. Palavra
SMIRNOV Sim, mas vou lhe dizer uma coisa: vou atirar para o alto. SMIRNOV Santo Deus! Que mulher! Nunca em minha vida encontrei uma
mulher como esta. Estou perdido, arruinado! Fui apanhado como um rato na
SENHORA POPOV Isso já é demais! Por quê?
ratoeira.
SMIRNOV Ora, porque... porque... Isso é problema meu.
SENHORA POPOV Saia ou eu atiro!
SENHORA POPOV O senhor está com medo! É isso mesmo. A-h-h-h! Não,
SMIRNOV Atire! A senhora não imagina que felicidade seria morrer
senhor! Nada disso, caro senhor! Nem pense em desistir! Por favor, siga-me. Não
contemplando esses lindos olhos, ser morto pelo revólver que está nessas
terei sossego enquanto não fizer um buraco nessa testa tão detestável. O senhor
pequenas mãos de veludo! Estou enlouquecido de amor! Pense bem e decida-se
está com medo?
logo, pois se eu sair por aquela porta, nunca mais nos veremos. Decida-se... diga
SMIRNOV Sim, estou. alguma coisa... Sou um nobre, um homem respeitável, tenho renda de dez mil

SENHORA POPOV Está mentindo! Diga, Por que não quer duelar? rublos, consigo acertar uma moeda em pleno ar com um tiro. Possuo alguns belos
cavalos. A senhora aceita ser minha esposa?
SMIRNOV Porquê..., porque a senhora..., porque gosto de ti;
SENHORA POPOV [balançando o revólver, furiosa] Vou atirar!
SENHORA POPOV [rindo, enfurecida] Ele gosta de mim! Ele ousa dizer que
gosta de mim! [Apontando para a porta.] Saia! SMIRNOV Minha mente está confusa... não consigo compreender nada. Criado!
Água! Apaixonei-me como um rapaz. [Toma a mão dela e ela chora
SMIRNOV [coloca o revólver sobre a mesa sem fazer ruído, pega o chapéu e vai
copiosamente.] Eu amo a senhora! [De joelhos.] Eu amo a senhora como nunca
na direção da porta, onde para por um momento e olha para ela em silêncio; em
amei nenhuma outra mulher antes. Rejeitei doze, nove me rejeitaram, mas a
seguida, aproxima-se dela, hesitante] Ouça bem o que vou lhe dizer. A senhora
nenhuma delas amei como eu amo a senhora. Rendo-me, estou perdido, caio a
ainda está zangada? Eu estava doido como o demônio, mas, por favor, me
seus pés como um tolo e imploro sua mão. Vergonha e desgraça! Faz cinco anos
compreenda... como posso me expressar? O fato é que as coisas são... [Elevando
que não me apaixono. Agradeci a Deus por isso e agora estou atrelado à senhora
o tom de voz.] bem... é culpa minha que a senhora me deve dinheiro? [Agarra com
como um vagão se atrela a outro. Suplico por sua mão! Sim, ou não? A senhora
força o encosto da cadeira, que se quebra.] Que diabo de mobília fraca a senhora
me aceita? Está bem! [Levanta-se e dirige-se rapidamente para a porta.]
tem! Eu gosto da senhora! A senhora compreende? Eu... eu estou quase
apaixonado! SENHORA POPOV Espere um momento!

SENHORA POPOV Retire-se! Eu odeio o senhor! SMIRNOV E então?!


SENHORA POPOV Não é nada. Pode ir. Mas... espere um pouco. Não, pode ir, pode ir. Eu odeio o senhor. Ou melhor..., não, não vá! Oh! Se o senhor soubesse como
eu estava irritada! [Joga o revólver na cadeira.] Meu dedo inchou por causa dessa coisa. [Em sua fúria, rasga o lenço.] Por que o senhor está parado aí? Retire-se!

SMIRNOV Adeus!

SENHORA POPOV Sim, pode ir [Gritando.] Por que o senhor está indo embora? Espere... não, vá! Ah! Que ódio estou sentindo! Não se aproxime muito, não chegue
tão perto – humm... pare aí!

SMIRNOV [aproximando-se dela] Que raiva estou sentindo de mim mesmo! Apaixonado como um garotinho de escola, caindo de joelhos. Que arrepio estou sentindo!
[Em tom de voz forte.] Eu a amo. Que beleza!... Era só o que faltava! Eu me apaixonar! Amanhã, tenho que pagar os juros, a colheita já começou e então me aparece a
senhora! [Toma-a nos braços.] Jamais vou me perdoar por isso.

SENHORA POPOV Vá embora! Tire suas mãos de mim! Eu o odeio – odeio o senhor – tudo isso é... [Um longo beijo. Entra Luka com um machado, o jardineiro com
um rastelo, o cocheiro com um forcado, e serviçais segurando estacas de pau.]

LUKA [olhando para o casal] Deus seja louvado! [Longa pausa.]

SENHORA POPOV [baixando os olhos] Diga lá no estábulo que Toby não precisa mais ganhar ração extra.

Desce o pano.

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