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2.

1 POVO
Formado por indivíduos-cidadãos com dignidade de pessoas humanas, isto é, no dizer
de Kant, por pessoas consideradas sempre como fins e nunca apenas como meios (Cf. KANT,
2001, pp. 69 e 70), e chamado também de cidadania, o povo é a dimensão humana e
humanizadora do Estado. No Estado social e democrático de direito, ou, simplesmente, Estado
democrático de direito, o povo é o titular do seu poder soberano (princípio da soberania popular),
como o proclamou Rousseau, e o titular do seu governo democrático (princípio do governo
popular): o governo democrático (a democracia) é governo do povo, pelo povo e para o povo,
como o afirmou Abraham Lincoln.

De forma particular, a Constituição do Estado democrático de direito brasileiro de 1988


registra isso nos incisos I, II e III, e parágrafo único do seu art. 1º, Título I:

“Título I – DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS

Art. 1º. A República Federativa do Brasil... constitui-se em Estado democrático de direito e


tem como fundamentos:

I - a soberania;

II – a cidadania

III – a dignidade da pessoa humana

[...]

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio
de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” (negritos nossos).

Num verdadeiro Estado democrático de direito, então, o povo não é apenas um


componente sociológico do Estado, mas é também componente normativo, jurígeno, ético
(moral), jurídico e político. Nesse Estado, o povo, seja de forma direta, seja por meio dos seus
representantes éticos, justos, honestos, dialógicos, cooperativos, pacíficos e pacificadores,
humanos e humanizadores, e junto a esses seus representantes, é o construtor e reconstrutor
dos princípios éticos ou morais da justiça social e da ordem jurídica constitucional socialmente
justa do Estado, princípios e ordem aos quais o Estado e ele próprio estão e devem estar
submetidos. Como dimensão humana do Estado, o povo é, pois, um ser humano coletivo ético-
jurídico-político.

Nesse sentido, o verdadeiro Estado democrático de direito (Estado do povo, pelo povo,
com o povo e para o povo, como diriam Rousseau e Lincoln) é um empreendimento ético-jurídico-
político originado, construído e desenvolvido pelo seu componente humano e para o seu
componente humano: o povo, formado por indivíduos-cidadãos com dignidade de pessoas
humanas. Por seu componente humano e para o seu componente humano, o verdadeiro Estado
democrático de direito é, pois, também, um Estado ético, humano e humanizador.

Assim, o povo e os indivíduos-cidadãos que formam o povo não são meros objetos do
Estado, nem da sua ordem jurídica, nem do seu governo, mas, principalmente, são autores,
sujeitos, princípios e fins primeiros deles. Por isso, o povo e os indivíduos-cidadãos que o
constituem tampouco são apenas sujeitos de deveres e direitos subjetivos perante o Estado,
mas, sobretudo, são autores do próprio direito (positivo ou positivado) que devem observar,
obedecer e respeitar e que o Estado também deve observar, obedecer e respeitar e deve fazer
com que seja obedecido e respeitado com o uso da força, se necessário for.
É pelo povo e para o povo que o Estado existe. O povo é, pois, o componente criador,
gestor, empreendedor, construtor e beneficiário do Estado democrático de direito.

Há autores que, considerando o elemento humano como o mais importante e


fundamental do Estado, conceituam o Estado como: “conjunto de habitantes” (PLATÃO, 1996, p.
39); “universalidade dos cidadãos” (ARISTÓTELES, 1998, p. 41); “multidão unida numa só pessoa”
(HOBBES, 2000, p. 144); “pessoa pública formada pela união de todas as demais” (ROUSSEAU,
1996, p. 22); “associação constituída por cidadãos iguais” (RAWLS, 1997, p. 230); “povo
politicamente organizado”; “O Estado somos nós”, etc.

2.2 TERRITÓRIO
É o elemento espacial do Estado. É o espaço no qual e sobre o qual o Estado afirma
seus direitos de soberania e governo. Esse espaço tem várias dimensões: (a) espaço territorial:
solo e subsolo; (b) espaço fluvial: rios e lagos; (c) espaço aéreo; (d) espaço marítimo: mar
territorial, plataforma continental, alto mar; (e) espaço ficto: embaixada, navios e aeronaves.

Num verdadeiro Estado democrático, o território, além de espaço jurídico e político, é


também espaço moral, ético e humano, pois é nesse espaço que vive seu elemento humano, seu
empreendedor, criador, governante e soberano: o povo e os indivíduos-cidadãos com dignidade
de pessoas humanas que compõem o povo, ente coletivo moral, ético e humano.

Além do mais, o território é também fonte de recursos naturais e ou materiais do


Estado.

2.3 PODER POLÍTICO


É o componente energético e coercitivo do Estado, a energia ou força coercitiva do
Estado. Num Estado democrático de direito, como foi visto, o titular do poder político é o povo, a
cidadania, os indivíduos-cidadãos como coletividade.

O poder do Estado tem as seguintes características: (1) é soberano ou supremo, isto é,


possui a qualidade (ou atributo) da soberania ou supremacia; (2) é um, só um, uno, indivisível,
indelegável, inalienável e imprescritível. A qualidade da soberania é tão inerente ao poder do
Estado que ela é considerada como sendo o próprio poder soberano ou supremo do Estado.
Vejamos isso em quatro pensadores da soberania ou poder supremo ou soberano do Estado:
Aristóteles, Bodin, Hobbes e Rousseau.

O poder supremo do Estado como sinônimo de soberania já está em Aristóteles:

“O governo é o exercício do poder supremo do Estado. Esse poder só poderia estar ou nas
mãos de um só, ou da minoria, ou da maioria das pessoas (...) A principal dificuldade consiste
em saber a quem deve caber o exercício da soberania.” (ARISTÓTELES, 1998, pp. 105 e 149)
(negritos nossos).

Para Jean Bodin, autor francês, considerado o primeiro a tratar da soberania de forma
sistemática, ela, a soberania, tendo as características de indivisibilidade, indelegabilidade,
irrevogabilidade e perpetuidade, é o poder absoluto ou supremo do Estado. Paulo Bonavides, na
sua obra Ciência Política, nos lembra disso:

“A soberania é una e indivisível, não se delega a soberania, a soberania é irrevogável, a


soberania é perpétua, a soberania é um poder supremo, eis os principais pontos de
caracterização com que Bodin fez da soberania... um elemento essencial do Estado.”
(BONAVIDES, 2003, p. 160) (negritado por nós).

Também para Hobbes o poder do Estado é poder soberano, que ele, ressaltando sua
característica de indivisibilidade, chama também de “soberania”, “o maior dos poderes
humanos”, “poder comum”, “grande autoridade”:
“O maior dos poderes humanos é aquele que é composto pelos poderes de vários homens,
unidos por consentimento numa só pessoa, natural ou civil, que tem o uso de todos os seus
poderes na dependência da sua vontade: é o caso do poder de um Estado (...) Portanto não é de
admirar que seja necessária alguma coisa mais, além de um pacto, para tornar constante e
duradouro seu acordo: ou seja, um poder comum que os mantenha em respeito, e que dirija suas
ações no sentido de benefício comum. A única maneira de instituir um tal poder comum... é
conferir toda a sua força e poder a um homem ou a uma assembleia de homens, que possa
reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade (...) à multidão assim
unida numa só pessoa chama-se Estado, em latim, civitas. É esta a geração daquele grande
Leviatã, ou antes... daquele Deus mortal (...) Aquele que é portador dessa pessoa chama-
se soberano, e dele se diz que possui poder soberano (...) o poder soberano é conferido mediante
o consentimento do povo reunido (...) É evidente que quem é tornado soberano não faz
antecipadamente nenhum pacto (...) E se fizer tantos pactos quantos forem os homens, depois
de ele receber a soberania esses pactos seriam nulos (...) Portanto é inútil pretender conferir
a soberania através de um pacto anterior (...) Quando se confere a soberania a uma assembleia
de homens, ninguém deve imaginar que um tal pacto faça parte da instituição (...) a grande
autoridade é indivisível, e é inseparavelmente atribuída ao soberano (...) o poder
soberano inteiro (que já mostrei ser indivisível) tem que pertencer a um ou mais homens, ou a
todos...” (HOBBES, pp. 83, 143, 144, 145, 146, 147, 150 e 153) (as cursivas são do autor; os
negritos, nossos).

Chevallier, comentando o absolutismo e a indivisibilidade da soberania ou poder


soberano tanto em Bodin quanto em Hobbes, leciona:

“Como em Bodin, também em Hobbes o absolutismo da soberania acarreta


sua indivisibilidade... Dividir o poder é dissolvê-lo. Os fragmentos do poder reciprocamente se
destroem... Verdadeira doença do corpo social. As características dessa soberania
absoluta e indivisível são as mesmas que em Bodin...” (CHEVALLIER, 1993, p. 75) (negritos
nossos).

Do seu lado, Rousseau, quem colocou o poder soberano ou soberania nas mãos do
povo, afirmando as suas características de indivisibilidade e inalienabilidade, chama a soberania
também de “força comum”, “poder absoluto”, “autoridade soberana”:

“Do pacto social (...) ‘Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja com toda
a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada um, unindo-se a todos,
só obedeça, contudo, a si mesmo e permaneça tão livre quanto antes’. Esse é o problema
fundamental cuja solução é fornecida pelo contrato social (...) esse ato de associação produz
um corpo moral e coletivo composto de tantos membros quantos são os votos da assembleia, o
qual recebe, por esse mesmo ato, sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade. Essa
pessoa pública, assim formada pela união de todas as demais, tomava outrora o nome de
Cidade, e hoje o de República ou de corpo político, o qual é chamado por seus membros de
Estado quando passivo, soberano quando ativo e Potência quando comparado a seus
semelhantes. Quanto aos associados, eles recebem coletivamente o nome de povo e se
chamam, em particular, cidadãos, enquanto participantes da autoridade soberana (...) o poder
soberano não tem nenhuma necessidade de garantia em face dos súditos (...) Dos limites
do poder soberano (...) o pacto social dá ao corpo político um poder absoluto sobre todos os
seus, e é esse mesmo poder que, dirigido pela vontade geral, recebe, como ficou dito, o nome de
soberania (...) Pela mesma razão por que é inalienável, a soberania é indivisível.” (ROUSSEAU,
pp. 20, 21, 22, 24, 34, 38, 39) (as cursivas são do autor; os negritos, nossos).

Para Rousseau, então, da mesma forma que para Bodin e Hobbes, o poder do Estado, o
poder soberano ou soberania é indivisível. Quanto ao titular do poder soberano ou soberania,
porém, Rousseau opõe-se a Bodin e Hobbes. Para Bodin e Hobbes o titular da soberania é um
indivíduo: o monarca, o príncipe. Já para Rousseau, o dono, o titular do poder soberano ou
soberania é o povo, a cidadania, os cidadãos como coletividade. Em relação a isso, Chevallier
comenta:

“Absoluta, infalível, indivisível, inalienável, - a que se pode acrescentar, como se viu:


sagrada e inviolável, - de que prestigiosos atributos não se acha aureolada
essa soberania segundo Rousseau! Muito bem se disse: depois de O Espírito das leis, que
acentuava outros valores, O Contrato é ‘a desforra da soberania’. Sobre as ruínas do absolutismo
monárquico, condenado em espírito, Rousseau quis erigir, lembrando-se de Genebra,
uma soberania sem perigo para os governados e, apesar disso, tão augusta, majestosa e
exigente quanto a soberania de um só, segundo Bodin, Hobbes e Bossuet. Soberania do povo,
isto é, dos cidadãos em conjunto, soberania inteiramente abstrata, em substituição
à soberania concreta de um Luís XIV... Soberania que opõe a O Estado sou eu, do monarca
absoluto, O Estado somos nós, dos governados em conjunto!” (CHEVALLIER, 1993, p. 174) (as
cursivas são do autor; os negritos, nossos).

Num verdadeiro Estado democrático de direito, porém, a soberania (ou poder soberano
ou supremo) popular não é mera força coercitiva, mas é também, principalmente, soberania
humana e humanizadora, pois é o poder do povo soberano, seu elemento humano, povo formado
por indivíduos-cidadãos com dignidade de pessoas humanas. Em razão disso, a soberania do
povo é também soberania justa (socialmente justa, essencialmente), dialógica, cooperativa,
pacífica e pacificadora, isto é, soberania ética ou moral, pois ela se autolimita, autorregula e
autogoverna pelos princípios éticos ou morais da justiça social.

Para alguns autores, o poder político é o elemento mais importante do Estado. É por
isso que tais autores definem o Estado como “poder institucionalizado”.

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