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PAULO GOMES

2010
MARCO

CAPÍTULO 1: Minha Vida até os quinze anos

Quando lembramos do nosso passado, das épocas da infância, dos dias em que nossas
mães nos colocavam em seu colo e faziam a gente parar de chorar, é muito emocionante. É
como se mergulhássemos numa piscina de emoções...
Minha vida não foi muito fácil, passei por dificuldades quando morava no Centro, mas
mesmo assim superei muitas dores. Até os seis anos morava com meu pai e minha mãe, mas a
partir dos sete, com meu padrasto, minha mãe e a filha dele. Por sinal ela sempre implicava
comigo. Chamava-se Júlia. O Eduardo casou com minha mãe assim que meu pai se separou
dela. Eu só tinha sete anos. Eu não entendia, mas era dolorido ver minha mãe com outro cara.
Não conseguia me sair bem na escola. Fiquei na primeira série por mais de dois anos
consecutivos.
Mas eu quero contar mesmo a revolução que aconteceu comigo quando completei
dezesseis anos. Eu consegui um emprego na fábrica de Brinquedos Janete, uma das melhores
do país, lá eu ganhava muito bem. Dava pra eu pagar o aluguel de um apartamento e morar
sozinho. Conversei com minha mãe e disse que não agüentava mais o Eduardo e muito menos a
Júlia. Não poderia mais viver ali. Ela deixou.
Muitas vezes chorei a noite. Tinha saudades do papai, mas ele nem queria saber de mim
e nem da minha mãe. Até onde eu sabia, ele tinha saído do estado com outra mulher. Mesmo
assim eu o amava e um dia pensava em ir atrás dele. Queria saber como estava. Poucas foram
as vezes em que conversei com ele. Eu apenas gostava de brincar de carrinho no chão com ele.
Mas mesmo assim eram momentos raros, pois ele não me dava muita atenção, vivia sempre
muito ocupado com o trabalho. Ele era pedreiro e era o único que colocava dinheiro em casa,
pois minha mãe não tinha emprego.
Lembro de brigas horrorosas que minha mãe tinha com ele por causa do fumo e das
bebidas. Eu não entendia o que se passava com eles, até perceber que um dos dois estava
falando em sair de casa. Meu pai já estava cansado dos vícios da mamãe e um dia ele
desapareceu sem ao menos despedir-se da gente. A última vez que o vi estava deitado no sofá,
dormindo e a televisão ligada. Naquele mesmo dia eu apenas ouvi vários palavrões da mamãe,
no quarto, brigando com ele, e na manhã seguinte não estava mais ali.
Alguns meses depois, mamãe conheceu um outro homem. A gente iria se mudar pra
casa dele. Mamãe vendeu nossa casa e comprou alguns móveis novos que levamos pra casa do
Eduardo, seu novo marido. O Eduardo mostrou-se frio comigo e não gostava de mim, não queria
que eu morasse com eles. Ele pedia pra mamãe me deixar com meu pai. Mamãe dizia que não
faria isso nunca.
Ele tinha uma filha que já estava adolescente. Ela desde que eu cheguei lá, implicava
comigo a pedido do Eduardo. Me batia sem ao menos eu fazer algo de errado. Foram esses os
primeiros motivos de briga do Eduardo e da mamãe.
Na festa do aniversário de 15 anos da Júlia algo muito chato aconteceu comigo. A garota
me trancou no armário do quarto e mamãe nem se quer notou. Eu perguntei no outro dia o
motivo de ela ter feito isso, ela disse que não queria que as amigas delas me vissem. Ela tinha
vergonha de mim e também pensou que eu ia estragar a festa. O Eduardo sabia o que ela ia
fazer e nem fez nada. Mamãe brigou com a Júlia e a esbofeteou. A Júlia partiu pra cima e queria
bater na minha mãe. Eu joguei a panela de pressão nela e quebrei a cabeça dela. O pai dela
ficou irado quando chegou à noite do serviço e tentou me agredir, mas mamãe não deixou. Ele
vivia me dizendo que me odiava e que não sabia por que ele ainda estava me aturando na casa
dele. Eu não sei ao menos o que o incomodava em mim. Talvez não aceitasse o fato de minha
mãe ter tido um outro marido e muito menos um filho.
Depois daquele dia eu não me sentia mais bem em ficar ali. Eu pedia para mamãe pra
irmos onde o papai. Ela procurou por ele, mas soube que tinha saído do estado como outra
mulher e não tinha informações do lugar que ele foi. Nunca mais soubemos dele.
Quando completei nove anos mamãe ficou doente de tanto fumar. Ela teve que ficar
internada por muitos meses no hospital. Uns quatro ou cinco. Eu sempre avisei pra ela largar de
fumar, isso ia prejudicá-la, mas não me dava bola. Eu estudava de manhã e a tarde ia ficar com
ela. Fazia meus exercícios do colégio no hospital mesmo. Eu tava me esforçando para passar de
ano, afinal ainda tava na primeira série. Isso me deixava muitas vezes com vergonha dos
colegas que eram mais novos que eu. Eu já era bem grande perto deles.
Numa daquelas tardes no hospital minha mãe chegou a me dizer que não agüentava
mais de tanta dor que sentia. Eu a abraçava e parece que aquele abraço era um alívio para ela.
Ela chorava muito e os médicos muitas vezes me tiravam de perto dela. Um dia o Eduardo me
falou que ela ia morrer que os médicos já tinham feito de tudo. Isso me deixou muito debilitado e
confuso. Foi quando eu fui à igreja e orei para que Deus a curasse e a livrasse da morte. Eu
disse que não sobreviveria sem ter minha mãe por perto.
Em alguns dias mamãe se recuperou incrivelmente e os médicos se admiraram. Eu
guardei isso comigo até hoje, não contei para eles que foi Deus que atendeu meu pedido.
Eu consegui passar para a segunda série. Mamãe me deu uma bicicleta de presente.
Eduardo nem deu a mínima. Júlia me abraçou. Foi a única vez que eu cheguei perto de gostar
dela. Mas depois daquele dia ela continuou a mesma chata de sempre.
Foram anos cheios de muita dor, mas parece que sempre tive alguém lá em cima
olhando por mim. Mamãe parou de fumar, mas continuava bebendo demais. Os dois ainda
brigavam muito. Eduardo mandou mamãe procurar um trabalho. Ela não gostou da idéia e disse
que ele que tinha que sustentá-la. Ele bateu tanto nela, chamou ela de vagabunda e começou a
bater na filha e em mim. Os vizinhos chamavam a polícia mas nunca adiantava. Sempre
acontecia a mesma coisa. Mamãe dizia que ia embora, mas nunca fazia isso. Ela gostava
mesmo dele.
Os anos se passavam muito rápido. Eu já estava na oitava série e nem percebi. Já não
queria apanhar do Eduardo. Afinal eu já estava com quase dezesseis anos, e se ele me batesse
eu iria agredi-lo. Mas eu não fazia pela mamãe, que o amava. E sabia também que ia me dar
mal.
A Júlia estava igual a mamãe e o pai dela. Viciada. Ela chegava a me oferecer cigarros e
bebidas. Mas eu nunca aceitei. Ela me chamava de covarde, de medroso. Ela me perseguia,
queria que eu comprasse drogas para ela, da mão de um cara que estudava na minha turma.
Na sexta série conheci o Juan, um garoto rico e que tinha sido transferido da Escola
Nacional para a minha escola. No primeiro dia de aula ele se sentou ao meu lado. Ele era super
engraçado e sempre muito bem humorado. Ele tinha 11 anos quando o conheci. Seus pais
tinham uma fábrica de brinquedos na cidade e em outros locais do país. O Juan sempre foi muito
sincero e verdadeiro comigo. Nós ficamos muito amigos e sempre brincávamos na hora do
intervalo.
Muitas vezes ele me convidou para ir a sua casa jogar vídeo game e tomar banho de
piscina. Nunca tive um amigo como ele.
Sempre íamos ao cinema, ao parque. Ele sempre pagava para mim quando eu estava
sem dinheiro. Sua sinceridade e humildade me cativavam e talvez seja por isso sua presença me
fazia bem.
Uma tarde nós inventamos de andar de metrô pela cidade. A gente passou mais de uma
hora no metrô e quando descemos estávamos na estação da cidade vizinha. A gente pegou o
metrô errado. Queríamos apenas ter uma aventura na nossa cidade e acabamos viajando. Já
estava de noite.
Os pais dele estavam muito preocupados, bem como minha mãe. A polícia foi avisada
do nosso desaparecimento e fomos pegos por policiais poucas horas depois de
desembarcarmos. O policial perguntou o que a gente estava aprontando. Ele nos levou ao
distrito policial e ali esperamos pelos pais do Juan e por minha mãe.
Sabíamos que quando chegássemos em casa iríamos levar uma grande bronca. Mas foi
muito divertido aquele dia.
Quando estava na oitava série Juan conversou com os pais deles para que eu pudesse
trabalhar como aprendiz em sua fábrica de brinquedos. Os pais deles me empregaram no mês
do meu aniversário, em junho, e eu ia ganhar muito bem para um garoto da minha idade. Eu ia
embalar os brinquedos, durante o dia, e a noite eu poderia estudar.
Naquela época, Eduardo começou a sair toda noite e enganar minha mãe com outras
mulheres. Eu brigava com ele para que não fizesse isso e se ele continuasse a enganar mamãe
eu iria matá-lo. Não suportava a idéia de que minha mãe estivesse sendo traída por um cara que
nem merecia o amor que ela devotava. Várias noites peguei minha mãe chorando por causa
disso. Eu falei pra ela o deixar e irmos embora. Ela disse que não dava e que ali estava a razão
dela viver. Eu disse tudo pra ela. Contei que Eduardo estava lhe traindo com várias mulheres do
seu trabalho. Ela me bateu no rosto e pediu para eu nunca mais dizer uma coisa dessa.
Eu chorei por vários dias. Minha raiva por ela era tanta que nem mesmo tinha coragem
de lhe dirigir a palavra. Juan me aconselhou a perdoá-la. Eu bem que tentei, mas toda vez que
chegava perto dela sentia medo. Numa noite, eu me sentei ao seu lado e lhe disse que a amava.
Ela me disse o mesmo e nos abraçamos. Ela pediu que eu entendesse sobre ela e o Eduardo.
Eu falei tudo bem.
Na mesma semana, eu passava pela rua para ir ao trabalho e vi um anúncio de um
apartamento que estava para alugar bem perto da fábrica. Era barato e dava para eu pagar.
Parecia uma solução para o que eu vivia. Há muito tempo eu queria sair de casa e aquela era a
oportunidade. Eu queria me sentir livre do Eduardo, da Júlia, da minha vida de perturbação. Eu
queria respirar um pouco.
Conversei com mamãe e ela como já estava trabalhando, pôde assinar os contratos de
aluguel. Ela entendeu a minha decisão e achava que eu ficaria bem melhor distante da realidade
que vivia. Em novembro eu comecei a morar lá. Mamãe me deu uma geladeira, eu comprei a
cama e o resto o Juan pegou de sua casa e me deu.
Minha vida mudou completamente a partir daquele dia. Eu tinha que fazer coisas que
nunca tinha feito, foi uma verdadeira aventura. Não estava acostumado com a cozinha, mas
todas as noites eu teria que preparar meu jantar. Algumas vezes dava tudo errado e era o jeito ir
para escola sem comer nada. Lá eu conseguia lanchar alguma coisa.
Certa noite eu estava preparando um frango, que eu havia comprado já temperado e só
no ponto de ir ao forno. Para mim estava maravilhoso, eu não precisava me preocupar com nada
mais além do arroz. Eu fui assistir ao jornal e nem reparei o tempo passar. Eu só sinto de longe
um cheirinho de fumaça. Era o frango assado, torrado. Ainda bem que não tinha nenhum
convidado.
CAPÍTULO II: A DOR DA SOLIDÃO

Existem momentos na nossa vida em que admitimos que tudo vai de mal a pior e que
não existe mais possibilidades de continuarmos assim. São fases em que não suportamos e nem
mesmo conseguimos olhar com esperança algum sinal de mudança, de alguma coisa nova. Pois
é, quando morava com minha mãe eu sentia muito isso. Não era ela o motivo, apesar de ser
alcoólatra e viciada em drogas e cigarro. Era o Eduardo, beberrão, viciado, mal educado e
violento. Eu nunca o suportei. Ele era para mim uma das piores pessoas que existia. Mas eu
percebi que naquele mundo que eu estava vivendo, sozinho e sem ninguém para conversar, pra
falar... Tudo era tão dolorido. Era difícil me acostumar naquele apartamento vazio, só eu, já havia
alguns meses que estava ali, no entanto ainda não tinha me acostumado com a minha própria
decisão de viver sozinho. Eu sentia falta da mamãe. De vez em quando eu me pegava
chamando mamãe. E depois eu me dava conta de que não era verdade.
Muitas vezes eu telefonava para minha antiga casa, falava com ela, dizia que estava
morrendo de saudades e que a amava. Era um alívio para mim. Pedia muito para ela vir passar
alguns dias comigo, mas era difícil. Foram raros os domingos que me visitou. Eu não a culpo,
tendo em vista eu sair de casa. Queria que ela ficasse mais perto de mim, mas ela queria ficar
perto do Eduardo.
Eu tenho lembranças bem nítidas ainda. Como se fosse hoje. É como se eu estivesse
lembrando das coisas que fiz ainda hoje de manhã. A sirene tocando e eu me levantando da
cama, com frio e ainda morrendo de sono e indo em direção da porta, com meu pijama azul, um
dos que eu mais gostava de usar pra dormir. E quando abri a porta via o seu rosto, com aquele
sorriso, que jamais esqueci, sempre tenho em mente como mamãe sorria para mim. Ela me falou
“e aí garoto rebelde”, “me deixou só com aquele infeliz”. Eu disse que ela poderia morar comigo
a hora que quisesse. Ela apenas me deu um beijo, disse que me amava e entrou já indo em
direção à cozinha preparar o café. Eu fui dormir de novo, afinal ainda eram seis da manhã. Ela
me chamou às oito e nos sentamos na mesa para comer. Conversamos bastante. Ela me dizia
que eu parecia um adulto e que não tinha nada de criança. Perguntou se eu não queria voltar pra
casa. Eu levantei da cadeira, fui até ao armário, tirei uma caixa de biscoitos de chocolate, e
voltei. Antes de sentar eu disse a ela que meu mundo não cabia naquela casa. Minha vida só
teria paz longe daquele sofrimento. Longe de pessoas como Eduardo.
Sentei-me e perguntei sobre sua saúde, como estava com os vícios. Ela disse que ainda
bebia muito, que não conseguia parar. Eu pedi que ela conversasse com Deus e pedisse uma
resposta, uma orientação, uma libertação daquele vício. Ela não acreditava muito nessas coisas,
pra ela Deus era simplesmente um ser que sequer notava para o ser humano. A gente colocou
muitas coisas em dia naquele café da manhã. Depois fomos ao parque, passeamos durante a
manhã toda, respiramos o ar daquele dia, abraçados. Voltamos para casa e almoçamos. Ela
preparou uma feijoada deliciosa. Era o prato que eu mais gostava. À tarde assistimos a dois
filmes e depois dormimos até as oito da noite, quando ela se arrumou para voltar pra sua casa.
Foi um dos melhores domingos que tive com ela.
Na noite daquele domingo eu me sentei no computador e comecei a escrever alguns
trechos da minha vida. Foi naquele domingo que eu comecei a escrever sobre minha vida. Eu
sempre colocava alguns episódios ocorridos. Pra falar a verdade eu tinha pouco o que falar de
mim até aquela época. Depois quando crescemos e nos tornamos adultos é que vemos o quanto
o tempo tem pra nos ensinar.
Eu apenas me recordo que para eu acostumar-me morando sozinho tive que conviver
com algumas tristezas durante quase um ano. E durante esse quase um ano aconteceram
muitas coisas. Uma delas foi uma viagem que fiz à Europa com Juan e os seus pais. Foi
sensacional.
Nas férias de julho Juan perguntou se eu não queria conhecer Londres de graça. Era o
meu sonho conhecer Londres e eu não iria desperdiçar essa oportunidade. A gente foi e
passamos por lá uns vinte dias e depois mais dez dias em Paris. Os pais dele sempre foram
muito gentis comigo. Dona Janete sempre foi como uma mãe pra mim e o seu Luciano como se
fosse um pai. Eles me incentivavam sempre a estudar, a priorizar o colégio. Queriam me ver
formado e bem sucedido. Na empresa deles eu aprendi muito sobre negócios.
Em Londres o Juan comprou várias roupas pra ele e pra mim. Nós visitamos alguns
castelos e tiramos muitas fotos. Em Paris visitamos a torre Heifel. Passei por vários lugares que
jamais pensei passar na minha vida. Lá eu desejava muito que minha mãe estivesse passando
aqueles momentos comigo.
Eu aprendi algo muito importante. Na nossa vida devemos valorizar as pessoas que
estão ao nosso lado e sempre buscar satisfazê-las e se importarmos com ela mais do que com a
gente mesmo. Era isso que via na família do Juan. Eles tinham uma sinceridade, uma amizade
comigo, que por vezes me sentia até constrangido e com vergonha.
Foram esses momentos durante esse período que me deixaram menos medroso, menos
sozinho, menos deprimido. A companhia deles me marcou mesmo. Eles foram uma família que
eu jamais tive. Aquela harmonia me encantava.
Lembro que no final daquele ano, eu já me sentia bem mais acostumado com aquela
solidão. Eu estava terminando a oitava série e no próximo ano, eu iria fazer o ensino médio em
apenas um ano e meio, para assim eu recuperar o tempo perdido. Meus planos até então eram
somente me formar e depois fazer uma faculdade qualquer, nada mais.
No natal, fiz um banquete em casa. O Juan me convidou para ceiar em sua casa. Mas
eu queria mesmo é ficar com a minha mãe. Minha mãe veio e ficou até 1 da manhã. Depois foi
embora. Mas foi um dia especial para mim. Eu fui na casa do Juan e ali nos confraternizamos.
Foi um dos melhores natais da minha vida. Não era nem um pouco parecido com os natais que
tive anos atrás.
Todas essas memórias estão aqui na minha mente...
Parece que ainda vivo esses dias...
CAPÍTULO III: O ANO EM QUE JUAN FICOU DOENTE

O início de mais um ano estava a surgir. A festa foi maravilhosa na casa do Juan. Minha
mãe foi convidada pessoalmente pelos Santos, pais de Juan Santos. Ela levou o Eduardo e a
metida da Júlia. Mesmo assim, isso não me incomodou. Afinal, minha mãe tinha uma família,
que apesar de sofrimentos que passava, achava que ali era seu lugar.
As aulas começaram em março daquele ano. Foi nessa época que meu amigo ficou
doente. Ele gostava muito de bicicleta. Era campeão nacional em competições. Nas provas de
inicio de temporada, ele sofreu um grave acidente que o levou a um quadro de coma profundo.
Eu estava na aula quando recebi a ligação da Dona Janete. Ela estava desesperada. Sai
correndo do colégio e fui de táxi até o Hospital Central, onde ele estava. As provas estavam
sendo realizadas no Clube da Cidade. O médico informou pra gente que o Juan não estava bem,
corria sérios comprometimentos e que talvez perdesse os movimentos das pernas ou a própria
vida. Nós choramos muito. O seu Luciano estava abaladíssimo e dona Janete teve que ser
internada na mesma hora em que recebeu a notícia. Todos os familiares do Juan estavam ali. A
imprensa nacional fez várias entrevistas com os médicos e todo o país ficou por dentro do
ocorrido com Juan.
Meu coração estava profundamente triste. Eu cheguei próximo a cama do Juan e falei
nos ouvidos dele que ele sairia daquela situação e que eu sentia muito por não poder ajudá-lo.
Disse também que agora seria a hora de eu agradecer toda a sua amizade e companheirismo
durante aquele ano.
Foi uma série de dificuldades que passamos naquele período. Foi justamente naquela
época que o Dr. Luciano me tirou da divisão de embalagens e me colocou no setor
administrativo para auxiliá-lo nos negócios. Ele me ensinou muita coisa ali. Meu salário
aumentou e eu tive condições de comprar um carro. Mas por causa da minha idade, eles
pagaram um motorista pra mim até quando eu completei dezoito anos e pude tirar minha carteira
de habilitação.
Juan passou por diversos especialistas em todo o país e chegou a sair pro exterior, onde
seria tratado por especialistas famosíssimos por sua experiência. Já faziam mais de dois meses
e meu amigo continuava em coma. Os médicos do exterior conseguiram fazer uma cirurgia nele.
Essa evitaria a perda dos movimentos das pernas, no entanto, ele não recobrou. Continuava em
coma e agora os médicos recomendaram os pais dele de trazerem de volta pro país. Era apenas
uma questão de tempo.
Para administrar a fábrica, os Santos contrataram o administrador Jonas Sandorval,
conhecidíssimo no meio profissional e um dos melhores do país. Ele me influenciou muito. Ele
me ensinava como gerenciar negócios e me motivava pra aprender administração. Saíamos
juntos, conversávamos sobre negócios. Foi assim que meus olhos foram abrindo para o mundo
dos negócios. Eu já tinha idéia do que fazer depois de terminar o segundo grau. Eu iria cursar
administração.
Sandorval ficou na administração geral até o Juan voltar do exterior. Depois que os
Santos retornaram, Sandorval iria ser chefe do setor de recursos humanos. E eu fui com ele pra
lá, sendo o seu assistente.
Mesmo eu crescendo na empresa, meu desejo estava apenas focado na recuperação do
Juan. Eu o visitei na manhã do início da primavera, quando ele voltou depois de mais de 5
meses em outro país. Quando estava junto dele me desesperei e chorei demais. Vê aquele
garoto naquela situação foi como se meu coração estivesse sendo partido. Era como se um
pedaço de mim estivesse dilacerado.
O Juan foi a única pessoa do mundo em que eu tive muita confiança e uma amizade
surpreendente. Suas últimas palavras antes de morrer foram emocionantes. Eu nunca me
esqueci delas. E até hoje, elas soam em meus ouvidos como naquela tarde em que ele morreu.
Eu já estava no final do ensino médio e com quase dezoito anos. Fazia mais de um ano
e meu amigo estava em coma ainda. Muita coisa mudou. Eu estava gerenciando o departamento
de finanças há alguns meses, claro auxiliado pelo gerente financeiro da fábrica, que estava para
sair e deixar a meu cargo o setor. Daqui há alguns dias eu ia prestar vestibular para
administração na faculdade de administração nacional, uma das mais concorridas do país. Eu já
tinha me acostumado com meu amigo daquela forma, mas ainda não acreditava que ele estava
daquele jeito. Eu preferia acreditar que ele estava viajando por um bom tempo e que ia voltar
algum dia.
Numa manhã, indo para o serviço, eu recebo uma ligação da Dona Janete. Ela me
falava ansiosamente que era pra eu ir até o hospital. Eu pedi pro meu motorista mudar o trajeto e
me levar onde o Juan. Chegando lá, os Santos me abraçaram fortemente e me disseram que o
Juan tinha recobrado. Eu fiquei surpreso e sem reação. Rapidamente me dirigi a sala e
chegando lá o abracei por vários minutos. Ele me falou que gostava muito de mim e que eu era o
irmão que ele nunca teve. Eu falei que sem ele eu não poderia ser feliz e minha vida não seria a
mesma. Disse ainda que eu estava muito feliz por ele ter voltado daquele sono profundo. Mas
ele me disse que não estava dormindo e sim sonhando.
O médico pediu que eu me retirasse e que faria uns exames nele. Eu me retirei. Foi a
última vez que eu conversei com ele. Os exames demoraram toda a manhã. Os pais dele e eu
estávamos super ansiosos. Quando foi a tarde o doutor que o examinava se dirigiu até nós e
contou o estado dele. Para o doutor o estado dele era gravíssimo e que a qualquer momento ele
poderia voltar a entrar em coma e morrer. A mãe dele chorou demais e desmaiou. Nós não
compreendíamos até o doutor explicar junto com sua equipe sobre esse caso raro de pessoas
voltarem do coma e depois não suportar o impacto ao acordar depois de vários dias
inconsciente. Ele estava ainda acordado, mas não podíamos entrar a não ser Dona Janete que
foi vê-lo. Ela nos contou que ele estava ficando sem noção das coisas e que falava coisas
incoerentes e não compreensíveis até que entrou em processo de coma e depois em menos de
meia hora veio a falecer. Antes de morrer ele disse que queria ganhar a competição. Foram suas
últimas palavras antes do coma e de sua morte.
Ele foi enterrado dois dias depois no cemitério central da cidade. Eu não consegui
superar essa perda por mais de dois anos. Foi muito doloroso. Eu não acreditava naquilo.
Pensava estar sonhando. Afinal ele parecia tão bem ao acordar do coma, e em poucas horas
voltar ao coma e morre. Foi um grande choque pra família e pra mim.
Duas semanas depois eu fiz as provas do vestibular e fiquei sabendo da minha
aprovação em um mês depois. Eu iria começar o curso de administração no mês de agosto, no
segundo semestre daquele ano. No mesmo ano eu pude tirar minha carteira de habilitação. Ia
sozinho agora no carro. Estudava à noite e gerenciava o departamento de finanças da Fábrica.
Todas as vezes que eu passava em frente da casa de Juan lágrimas desciam dos meus olhos.
Dona Janete estava ainda inconsolável. Apenas seu Santos tinha um certo conforto com a perda
do filho. Eu ainda estava muito chocado com aquilo. Juan era tão novo e tão brilhante. Eu nunca
iria me sentir bem enquanto aquela dor não saísse de dentro do meu peito, aquele aperto na
garganta. Mas descobri com o passar do tempo, que eu jamais me sararia daquela dor. Minha
única consolação era saber que cada dia eu poderia lembrar-me de sua amizade e sentir-me ao
seu lado naquelas lembranças.
Juan meu amigo, que Deus o tenha...
CAPÍTULO IV: UMA NOVA VISÃO

O curso de administração foi uma das melhores escolhas que fiz em minha vida.
Realmente era o que queria. Eu cada dia me interessava por negócios e empreendedorismo. Eu
já tinha uma certa experiência e já havia gerenciado um setor importante dentro da fábrica
Janete. Mas eu queria algo novo. Aliás, já estava juntando uma grana para montar minha própria
empresa. Em quatro anos eu sairia da fábrica e abriria as Lojas Juan, uma empresa de
eletrodomésticos nacional e talvez internacional. O nome seria em homenagem ao meu melhor
amigo. Eu conversei com a família dele sobre meus projetos e eles concordaram. Minha mãe
ficou muito feliz com minha visão. Eu comprei uma casa pra minha mãe e outra pra mim. Foi um
tempo de muita prosperidade na minha vida. Foi o ano também em que conheci Isabella e
começamos um relacionamento saudável. Ela era uma garota excelente. Nós íamos sempre a
igreja e buscávamos a Deus para que nos abençoasse e nos orientasse nas nossas decisões.
Foi quando juntos entendemos que estávamos prontos para o casamento. Ela era filha dos
Michels, donos da rede de supermercados Michels, uma empresa internacional. Quando nos
noivamos estávamos a dois anos da formatura. Seu Jorge Michels nos pediu que deixássemos o
casamento pra depois da formatura e concordamos de comum acordo.
O seu Santos me pediu que eu gerenciasse uma divisão da loja, a divisão de brinquedos
importados. Lá eu iria receber 15 vezes mais o que eu ganhava quanto entrei na Fábrica, por
meio do Juan. E foi exatamente a mesma data em que eu comecei a trabalhar a quatro anos
atrás. Aquele dia foi muito emocionante, pois lembrei-me do Juan, que me abriu essa porta na
minha vida. Eu chorei na sala onde ocuparia o cargo de gerente-geral de divisão de brinquedos
importados da Fábrica. Foi a última vez, que me lembro, ter sentido essa amargura e dor, como
se fosse aquela hora em que o estava perdendo. Depois apenas recordações e saudades. No
meu casamento, lembro de ter comentado com os Santos, que sentia a falta do Juan ali. Bem
como no dia em que me formei.
Um ano antes da formatura, Isabela e eu viajamos, nas férias para os Estados Unidos,
onde conhecemos Nova Iorque e alguns lugares da Califórnia. Lá também podemos ter contato
com profissionais do mundo dos negócios e fechamos alguns contratos para abrirmos uma loja
naquelas cidades. Eu iria administrá-las daqui do país, enquanto esses profissionais iriam
gerenciá-las lá nos EUA. Foi uma surpresa pra gente, já que nossa intenção era apenas
conhecer o mercado e conseguir contatos de negócios e não abrir logo a loja.
Quando voltamos, abrimos outras lojas na cidade. A Isabela iria ser a administradora
enquanto eu ainda estava cumprindo meu contrato com os Santos. Faltava ainda mais um ano.
A Loja Juan, começou a crescer sobremaneira e em menos de seis meses, a Isabela já tinha
aberto mais de 50 lojas em todo o país.
Chegou a época da formatura. Naquele dia senti a falta do meu melhor amigo, mas ao
mesmo tempo muita alegria por tê-lo conhecido. Toda a minha família estava presente. A família
do Juan e de minha noiva também. Foi um dia muito feliz e quem sabe um dos mais marcantes
pra mim. Eu estava lembrando de toda a minha vida e da minha desesperança na minha
infância. Para mim jamais eu estaria ali. Lembranças me cercaram, cada momento de dor e de
solidão na minha vida vieram na minha mente naquele dia. Eu agradeci a Deus por tudo que fez
por mim até àquela hora.
Um mês depois eu pedi as contas para a família Santos e me despedi deles. Eu iria
administrar minhas lojas junto da Isabela. Eles fizeram uma festa surpresa pra mim e me
agradeceram muito pelo trabalho e principalmente pela amizade e companheirismo. Eu jamais
vou esquecê-los. Eles foram pai e mãe pra mim. Sempre quiseram meu sucesso, sempre me
apoiaram e me deram incentivo pra crescer.
CAPÍTULO V: AS LOJAS JUAN

Foi um verdadeiro sucesso a inauguração de diversas lojas no país e em menos de dois


anos já tínhamos aberto cerca de 450 lojas aqui e mais de 200 no exterior. As lojas do EUA
estavam um verdadeiro sucesso.
Depois de dois anos de formatura Isabela e eu casamos e fomos para a Austrália e
passamos quase um mês lá. Foi uma verdadeira experiência e um descanso, naturalmente,
depois de tanto trabalho.
Compramos uma mansão no melhor bairro da cidade.
Em toda a minha vida nunca tinha estado tão feliz, ao lado de alguém que me amava e
eu muito mais ainda. A Isabela era um exemplo de mulher, humilde, dedicada a Deus e a seu
trabalho. Era uma verdadeira administradora. Saia sempre nas melhores revistas, dando
entrevistas sobre o sucesso e o crescimento das Lojas Juan. Claro eu sempre estava ao seu
lado.
Mamãe havia finalmente deixado os vícios e com o passar dos anos parece que
finalmente havia encontrado a felicidade que eu sempre desejei para ela. Ela estava aposentada
e eu ajudava ela todos os meses com uma quantia considerável. O Eduardo estava mais
moderado. Afinal, já estava ficando mais maduro com a idade. Meus problemas com ele eu
finalmente tinha deixado no passado. Já não sentia raiva e ódio dele como quando criança. A
Júlia saiu da cidade para morar com um cara que tinha conhecido dentro da faculdade. Os dois
eram formados em medicina. Parece que estavam exercendo a profissão no interior. Eu não tive
a oportunidade de vê-la até hoje. Aliás, jamais soube dela depois que ela foi embora.
Bem, eu estou muito bem hoje. Eu moro ainda na cidade. Minha vida com a Isabela é
maravilhosa. Somos muito felizes e daqui há alguns meses teremos nosso primeiro filho. Eu vou
cuidar dele como nunca fui cuidado...
...Hoje não sou mais jovem, tenho muitas coisas pra contar, nas deixarei pros meus
próximos livros...
Minhas lágrimas caem agora, por lembrar desses momentos...
MARCO – emoção e determinação
Propriedade Intelectual de Paulo Gomes
2008

Edição especial ano 2010

Todos os direitos reservados

http://twitter.com/tbiallnew

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Edição 2010
Obra adquirida pelo blog TBI All New

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