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Vilma Arêas
Resumo:
Abstract:
The texte analyses the relation between Clarice Lispector's A Hora da Estrela and the
circus, both in its structure and characters.
Federico Fellini
1.
Ele se assemelha a muitas coisas: uma pedra crua, um patinho, uma boneca
fabricada por um idiota. Mas também se parece conosco. Mero objeto, não
deixa de ser fascinante. Entretanto, até que ponto pode ser considerado uma
pessoa? E o que faremos dessa nossa mútua semelhança?
Para efeito deste texto, desejo ressaltar um traço basilar dos clowns, que é a
ambigüidade que os caracteriza e que, numa simpatia autorizada pela mágica
do espetáculo, nos alcança também a nós, espectadores. (O mesmo Willeford
chama a atenção, a esse respeito, para uma das ilustrações de Holbein a
propósito do Elogio da Loucura, de Erasmo: um homem de expressão
circunspecta olha-se ao espelho, no qual emerge sua própria figura, entretanto
encapuzada como um bobo e estirando a língua desabusadamente a si próprio.
Abaixo, um dito de Sêneca: quando desejo ver um bobo, só tenho de me olhar
no espelho).[2]
Quando digo clown, penso no augusto, afirma Fellini, que brinca de associar
significantes sociais às duas figuras (Moravia é um augusto que desejaria ser
branco, Picasso é um augusto triunfal, Hitler é um clown branco, e assim por
diante)..[3] O cineasta demora-se na definição de um tipo e outro: o clown
branco se propõe sempre de forma moralista e pode tomar a forma da Mãe, do
Pai, do Professor, do Artista, do Belo, em suma, no que se deve fazer. Então o
augusto, que devia sucumbir ao encanto dessas perfeições, se não fossem
ostentadas com tanto rigor, se rebela. Vê as lantejoulas cintilantes, mas a
vaidade com que são apresentadas as torna inalcançáveis. O augusto, que é a
criança (...) se revolta ante tanta perfeição, se embebeda, rola no chão e na
alma, numa rebeldia perpétua. [4]
2.
Clarice Lispector
Ora, é esse clima paradoxal descrito por Fellini, dilacerante e festivo, que
caracteriza A Hora da Estrela.
Ora, nessa história exterior e explícita (as aventuras de uma moça numa
cidade toda feita contra ela ), história com começo, meio e `gran finale'
seguido de silêncio e de chuva caindo (p.17), Macabéa personifica o
verdadeiro clown, a estrela do show, embora esse show seja o da hora da
morte: (Na certa morreria um dia como se antes tivesse estudado de cor a
representação do papel de estrela. Pois na hora da morte a pessoa se torna
brilhante estrela de cinema, é o instante da glória de cada um e é quando
como no canto coral se ouvem agudos sibilantes - p.36).
Etc., etc., etc., é o que cacareja o dia inteiro a galinha. A galinha tem muita
vida interior. Para falar a verdade, a galinha só tem mesmo é vida interior. A
vida interior da galinha consiste em agir como se entendesse.
Por outro lado, a simplicidade do enredo - menos trama que às vezes sucintas
direções de palco - funciona como mero suporte a tiradas a um passo do non-
sense, mas com funcionalidade dupla: humor e sátira social. (Por exemplo,
Macabéa que sonha amestrar pulgas, pois que não se podia dar ao luxo de ter
um cão, que imagina lamber os potes de creme de beleza, nos anúncios que
colecionava, solucionando imaginariamente a fome e recolocando, para a
pobreza, nova funcionalidade às inalcançáveis mercadorias, etc).
Eu sou fã de Jesus. Sou doidinha por Ele. Ele sempre me ajudou. Olha,
quando eu era mais moça tinha bastante categoria para levar vida fácil de
mulher. E era fácil mesmo, graças a Deus. Depois, quando eu não valia muito
no mercado, Jesus sem mais nem menos arranjou um jeito de eu fazer
sociedade com uma coleguinha e abrimos uma casa de mulheres, etc.
(p.87/88).
Ou:
ele - pois é.
Ou: Macabéa, diante da vitrina de uma loja de ferragens, com medo de que o
silêncio significasse uma ruptura com o namorado:
3.
Gelsomina e Cabiria são duas augustas. Não são mulheres, são seres assexuados.
F. Fellini
... o fato de vir a ser uma mulher não parecia pertencer à sua vocação.
Stan e Oliver, o Gordo e o Magro dormem juntos. Ambos são augustos cheios
de inocência, com absoluta falta de caracteres sexuais. Faziam rir justamente
por isso [8]
Ainda desse ponto de vista, Macabéa é fiel ao modelo. Embora sensual, seu
sexo era como um nascido girassol num túmulo (p.84), rasurado, portanto, no
instante original; por sua vez, pela delicadeza da cliente, a cartomante
aconselha-a ao homossexualismo (entre mulheres o carinho é muito mais fino
- p.89), e sua passagem de virgem a mulher se dá pelo rito da morte, pois esta
se parece com a intensa ânsia sexual - (p.101).
Em suma, realizar o encontro sexual não pertence ao universo do clown, esse
habitante da ambigüidade.[10]
Pareciam por demais irmãos, coisa que - só agora estou percebendo - não dá
para casar (...) só sei que eram de algum modo inocentes e pouca sombra
faziam no chão (...) E ali acomodados, nada os distinguia do resto do nada.
Para a grande glória de Deus. (p.58).
Na verdade sou mais ator porque, com apenas um modo de pontuar, faço
malabarismos de entonação, obrigo o respirar alheio a me acompanhar o
texto - afirma(m) o(s) narrador(es). (p.29)
Referências bibliográficas
[1] William Willeford, The food and his septre, Londres, Edward Arnold, 1977, 2ª ed. -
p.4. Retorna ao texto
[3] Fellini por Fellini - edição de Christian Strich e Anna Keel, trad. de José Antonio
Pinheiro Machado, Paulo Hecker Filho e Zilá Bernd. Porto Alegre, LPM, 1983. p.112.
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[7] Martin Esslin, O teatro do absurdo, RJ. Zahar, 1968, tradução de Bárbara Heliodora.
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[9] Sérgio Augusto, Este mundo é um pandeiro, SP, Cia das Letras, 1989, p.191.
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[10] Em alguns contos de Clarice, as velhas que sofrem ânsias sexuais são também,
aliás segundo antiquíssima tradição cômica, associadas ao clown. Em A procura de uma
dignidade, por exemplo, a Sra. Xavier, apaixonada por Roberto Carlos, exibe um rosto
que era apenas a máscara de uma mulher de 70 anos. Então sua cara levemente
maquilada pareceu-lhe a de um palhaço. Onde Estivestes de Noite, RJ, Artenova, 1974,
p.20. Retorna ao texto
[11] Os nomes dos personagens principais mereceriam, por si só, uma observação
adicional pela força cômica que veiculam, contrastantes que são com a dimensão de
pequenez social que os caracteriza. Retorna ao texto
VILMA ARÊAS é autora de Na Tapera de Santa Cruz (ensaio), SP, Martins Fontes,
1987 e A Terceira Perna (ficção), SP Brasiliense, 1992, entre outros. Professora de
literatura brasileira na UNICAMP.
* Este texto foi publicado originalmente na revista Tempo Brasileiro, nº 104, março de
1991.
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