Você está na página 1de 69

UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MATO GROSSO PROFESSOR CARLOS

ALBERTO REYES MALDONADO CAMPUS UNIVERSITÁRIO DE CÁCERES


“JANE VANINI” FACULDADE DE EDUCAÇÃO E LINGUAGEM
DEPARTAMENTO DE PEDAGOGIA

VALTEIR CLARA SANTANA

INFLUÊNCIAS DA CULTURA DO MST NA EDUCAÇÃO INFANTIL DA ESCOLA


ESTADUAL MADRE CRISTINA, DO ASSENTAMENTO ROSELI NUNES –
MIRASSOL D’OESTE/MT
Cáceres/MT 2017/01
VALTEIR CLARA SANTANA

INFLUÊNCIAS DA CULTURA DO MST NA EDUCAÇÃO INFANTIL DA ESCOLA


ESTADUAL MADRE CRISTINA, DO ASSENTAMENTO ROSELI NUNES –
MIRASSOL D’OESTE/MT

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


como exigência parcial para a obtenção do título
de licenciado pela Universidade do Estado de
Mato Grosso no curso superior de Pedagogia.
Orientadora: Prof.ª Dra. Ilma Ferreira Machado.
Cáceres/MT
2017/01

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________
Profª. Drª. Ilma Ferreira Machado
Orientadora
Departamento de Pedagogia – UNEMAT

___________________________________________
Profª Ms. Roseli Ferreira Lima
Membro
Departamento de Pedagogia – UNEMAT

___________________________________________
Profª Ms. Eulene Vieira Moraes
Membro
Departamento de Pedagogia – UNEMAT
Aprovado em: _______/_______/2017 Nota:__________ Agradeço a
Deus, por todas as bênçãos.

A minha família pelo apoio sempre presente, por


estarem torcendo por mim e pela compreensão por minha ausência em
determinados momentos.

As minhas valorosas companheiras de caminhada


durante todo o curso, por passarmos por tudo o que passamos unidos.

A minha orientadora, pela paciência, carinho e


comprometimento com que sempre me acolheu e instruiu.

As componentes da banca examinadora, pelo


profissionalismo e auxílio.

A todas as professoras e professores que guiaram meus


passos na Universidade.

A todas as professoras e professores que guiaram meus


passos na Educação Básica.

A Escola Estadual Madre Cristina, e todos os seus


profissionais, pelo acolhimento e pelo carinho.

Ao Assentamento Roseli Nunes em geral, pelo


acolhimento.

A Universidade do Estado de Mato Grosso, campus “Jane


Vanini”.
À minha amada esposa, Daiane, pela inspiração
e companheirismo, por estar ao meu lado,
sempre me apoiando, por me dar suas forças em
momentos em que eu não mais dispunha das
minhas.
À meus sobrinhos.
“A Escola deve cultivar, enfim, a alegria
coletiva de revolucionar a vida por inteiro”
*MST
RESUMO

O presente trabalho de conclusão de curso trata da identificação de traços culturais do


assentamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), na prática pedagógica
da Educação Infantil de uma escola do campo, considerando-se que a luta do Movimento pelos
direitos sociais dos trabalhadores rurais constituiu fator relevante para a instauração de escolas
nos assentamentos. Essa pesquisa tem como objetivo analisar as influências da cultura do MST
na formação das crianças da Educação Infantil de uma escola do campo. E, ao mesmo tempo,
busca evidenciar a existência e a importância da reprodução dos valores do Movimento no
interior da escola, de modo especial na prática pedagógica na Educação Infantil. O lócus da
pesquisa é a Escola Estadual Madre Cristina, no Assentamento Roseli Nunes, no município de
Mirassol D’Oeste-MT. Para tanto foi realizada uma pesquisa de cunho qualitativo, através de
entrevistas com duas educadoras e três entes familiares de crianças que frequentam ou que já
frequentaram a Educação Infantil da referida escola. O referencial teórico deste estudo pauta-se
nos autores Caldart, Bogo, Machado, Montessori, entre outros. Com essa pesquisa concluímos
que é de grande importância que a escola do assentamento possua um currículo organizacional
impregnado de valores culturais próprios do campo e, neste caso, próprios do Movimento desde
a Educação Infantil, como forma de perpetuar a cultura dos povos do campo.

Palavras-chave: MST; Cultura Camponesa; Educação do Campo; Educação Infantil.

ABSTRACT

The present work of course conclusion deals with the identification of cultural traits of the
settlement of the Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), in the pedagogical
practice of Early Childhood Education of a rural school, considering that the struggle of the
Movement for the social rights of rural workers constituted a relevant factor for the
establishment of schools in the settlements. This research aims to analyze the influences of the
MST culture on the training of children in the Early Childhood Education of a rural school. At
the same time, it seeks to highlight the existence and importance of the reproduction of the
values of the Movement within the school, especially in the pedagogical practice in Early
Childhood Education. The locus of the research is the Escola Estadual Madre Cristina, in the
Assentamento Roseli Nunes, in the municipality of Mirassol D'Oeste-MT. For this purpose, a
qualitative research was carried out, through interviews with two educators and three family
members of children who attend or who have attended the kindergarten of said school. The
theoretical reference of this study is based on the authors Caldart, Bogo, Machado, Montessori,
among others. With this research we conclude that it is of great importance that the school of
the settlement has an organizational curriculum impregnated with cultural values proper to the
field and, in this case, proper to the Movement since Child Education, as a way of perpetuating
the culture of the rural people.

Keywords: MST; Peasant culture; Field Education; Child education.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Localização da Escola Estadual Madre Cristina ...................................................... 40

Figura 2: Localização do Assentamento Roseli Nunes ........................................................... 42

SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 10

CAPÍTULO I 1. EDUCAÇÃO E CULTURA NO MST:


............................................................................. 15 UMA ABORDAGEM SÓCIO-
HISTÓRICA
1.1 Gênese do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra ........................................... 15
1.2 Princípios educativos do MST ........................................................................................... 18
1.3 O MST e a cultura .............................................................................................................. 20

CAPÍTULO II 2. A EDUCAÇÃO INFANTIL NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO DO


CAMPO ......... 25

2.1 Educação do campo: breve histórico das conquistas sociais da população do campo ...... 25
2.2 Educação infantil no/do campo .......................................................................................... 29
2.2.1 A criança como ser social e cultural ............................................................................... 33

CAPÍTULO III 3. PERCURSO METODOLÓGICO E


................................................................................. 36 CONTEXTUALIZAÇÃO DO
ESPAÇO DA PESQUISA
3.1 Metodologia ....................................................................................................................... 36
3.2 Caracterização da Escola .................................................................................................... 40

CAPÍTULO IV 4. EDUCAÇÃO INFANTIL NA ESCOLA ESTADUAL MADRE


CRISTINA ............... 45

4.1 A visão das educadoras ...................................................................................................... 46


4.2 A visão dos familiares ........................................................................................................ 54
4.3 Algumas confluências entre as falas dos sujeitos .............................................................. 61

CONSIDERAÇÕES .............................................................................................................. 64

REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 66
10

INTRODUÇÃO

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) tem desde o seu princípio a
preocupação em relação a escolarização das crianças das famílias acampadas ou assentadas.
Levando em consideração o cotidiano das famílias em locais de ocupação, e posteriormente (em
caso da conquista da terra), a organização do assentamento, o Movimento sempre lutou também
em prol ao direito dessas crianças receberem escolarização no interior dos próprios
acampamentos e assentamentos. Esta não foi uma tarefa simples, pois o caráter volátil da vida
em acampamento dificulta a implantação de prédios escolares. Tal fator ilustra que a luta pela
conquista da terra está longe de ser o único objetivo do Movimento.

O Movimento defende, antes de tudo, a libertação das classes trabalhadoras da


exploração por parte das classes dominantes. Porém, a conquista da autonomia para uma vida
plena nem sempre se dá de forma pacífica, o que, no decorrer da história da humanidade não
corresponde a nenhuma novidade, pois, historicamente toda conquista em prol a direitos sociais
foi marcada por momentos conflitantes.

As comunidades camponesas historicamente, e ainda hoje, são vistas com certo teor de
inferioridade em relação a população urbana. Dessa forma a necessidade de escolarização da
classe camponesa nunca antes (da luta do Movimento em prol a Educação do Campo) fora
levada em consideração. A organização das primeiras escolas em zonas rurais foi marcada pela
caracterização de extensão das escolas urbanas, não respeitando ou considerando quaisquer
especificidades da vida no campo. Assim instaurou-se a chamada Educação Rural, que apenas
veio a se tornar a Educação do Campo, após um período de reivindicações, sobretudo, do
próprio MST. Por esse motivo, não raramente se lê ou ouve que a Educação do Campo se
desenvolveu paralelamente ao Movimento.

A Educação Infantil atual também é fruto de um histórico de estudos e discussões em


relação à criança. No período medieval os pequeninos eram considerados como adultos em
miniatura, não tendo, portanto, as especificidades da infância respeitadas. Essa visão mudou
com o passar do tempo, e apenas no século XX a criança começa a ser reconhecida de fato
sujeito. Ainda assim, apenas na parte final do século XX passa-se a considerar as
especificidades da criança.

Atualmente sabe-se que a criança é um sujeito histórico e de direitos, que assimila, mas
que também cria conhecimentos. Dessa forma, existe a preocupação em relação à escolarização
11

da criança desde a mais tenra idade. Então, a Educação Infantil, que corresponde a primeira
etapa da Educação Básica, conta com uma organização que visa o atendimento de crianças de
zero a cinco anos de idade1, se dividindo em duas etapas, creche (0 – 3 anos) e pré-escola (4 e
5 anos).

Identificando as especificidades das crianças e da escolarização oferecida a elas, há de


se destacar um perfil específico de criança e, portanto, um perfil específico de escola. Trata-se
das crianças e da escola do campo. Como afirmado anteriormente, a Educação do Campo
evoluiu paralelamente à luta do MST e agora foca também num perfil delicado de personagem,
as crianças em idade pré-escolar.

Assim, é válido ressaltar que as escolas do campo possuem suas especificidades, o que
pode parecer óbvio por se localizarem em realidades completamente diversas das escolas
urbanas, mas que levou um período extenso para ser reconhecida em aspectos diversos.

As escolas do campo dos assentamentos do MST, possuem características ainda mais


específicas, que as diferem até mesmo da escola do campo ‘tradicional’. Na realidade dos
assentamentos, as escolas são frutos de luta, assim como todas as conquistas das comunidades
assentadas. Dessa forma são parte de uma realidade advinda de valores que divergem dos ideais
defendidos pelas classes burguesas. A cultura dos assentamentos é impregnada pelos valores
revolucionários do Movimento, valores de não-aceitação da exploração, de busca da liberdade
e da autonomia, da formação integral do sujeito, etc.

Considerando-se que a escola é parte dessa realidade e a principal responsável pela


educação formal das crianças de famílias assentadas, pensamos sobre a reprodução dos valores
do Movimento no interior da escola do assentamento. Essa reprodução acontece? Se acontece,
como isso se dá? Quais os benefícios? É pertinente? O que pensam as famílias em relação a
cultura do Movimento dentro da escola? O que pensam os educadores? Qual a importância da
perpetuação dessa cultura? Desse modo, temos a seguinte questão como eixo norteador desta
pesquisa: quais são as influências que a cultura dos assentados do MST exerce na formação das
crianças no período compreendido pela Educação Infantil?

1
Cinco anos e onze meses, se considerarmos que a criança só pode ser matriculada no primeiro ano do Ensino
Fundamental com seis anos completos. A data base é 31 de março. Se até esta data a criança tiver completado seis
anos, então será matriculada no primeiro anos do Ensino Fundamental, caso contrário deverá ser matriculada na
Educação Infantil, pré-escola.
12

Nesta pesquisa objetivamos analisar as influências da cultura do MST na formação das


crianças da Educação Infantil de uma escola de assentamento. Para tal, buscamos: identificar
elementos/fatores da cultura do MST que influenciam a prática pedagógica na Educação Infantil
da Escola Estadual Madre Cristina, do Assentamento Roseli Nunes; e descrever as principais
ações e atividades educativas realizadas na Educação Infantil da Escola Estadual Madre
Cristina.

Buscando respostas para estas perguntas, fomos para uma instituição escolar criada e
localizada no interior de um assentamento do MST. Assim, realizamos a pesquisa na Escola
Estadual Madre Cristina, localizada no Assentamento Roseli Nunes, no município de Mirassol
D’Oeste. Ressaltamos que embora se trate de uma instituição estadual, a Educação Infantil é
oferecida pela rede municipal de educação de Mirassol D’Oeste, conforme legislação vigente.
A oferta de Educação Infantil é dever dos municípios, conforme estabelece a Constituição
Federal, e deve respeitar todas as especificidades das crianças atendidas, conforme estabelecem
a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBN nº 9394/96) e as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (Resolução CNE/CEB nº 05/2009).

A pesquisa realizada é de cunho qualitativo e caráter descritivo, onde utilizou-se a


entrevista como ferramenta de coleta de dados. Foram entrevistadas duas educadoras e três entes
familiares (duas mães e um pai) de crianças que frequentam a Educação Infantil da instituição.

A justificativa para a realização desta pesquisa tem relação com minha trajetória de vida.
Nasci e vivi, até então, nos arredores ou dentro do município de Curvelândia, uma pequena
cidade à cerca de 60 km a noroeste de Cáceres. A maior parte do território desse município é
composta pela zona rural, geralmente pequenas propriedades, que garantem, por meio das
atividades agropecuárias, grande parte da economia do município curvelandense.

Muitas dessas pequenas propriedades são pertencentes à assentamentos do MST, já que


nos arredores de Curvelândia localizam-se quatro desses assentamentos, no total. Nem todos
localizam-se em território curvelandense, mas a proximidade e a vivência fazem com que os
limites territoriais com municípios vizinhos sejam deixados em segundo plano.

Há alguns anos um grande amigo de infância, Edimar (egresso do Curso de Biologia da


UNEMAT/Cáceres – Campus Jane Vanini), tornou-se professor em um desses assentamentos,
o Roseli Nunes, que possui um vasto território, uma pequena parte em território curvelandense
e sua maior porção de terras em território do município de Mirassol D’Oeste. Pouco tempo
depois conheci, neste mesmo assentamento, uma moça chamada Daiane (hoje, minha esposa),
13

que prestava serviço voluntário na escola do assentamento. Assim, passei a ter um contato bem
próximo com a realidade do assentamento e da própria escola e, desde então alguns fatores me
despertaram a atenção, pois a escola do campo tem suas peculiaridades, seu charme. E, isso me
levou a pensar sobre as diferenças entre a tradicional escola no campo e a escola do campo nos
assentamentos, devido ao que podemos chamar de “influências do MST nas práticas
pedagógicas”.

Neste texto monográfico apresentamos o resultado da pesquisa desenvolvida no curso


de graduação em Pedagogia, da Universidade do Estado de Mato Grosso. O texto está
organizado em quatro capítulos.

Primeiramente esclarecemos sobre o surgimento e os valores defendidos pelo


Movimento e a criação de uma identidade própria das famílias acampadas, e sua importância
para o desenvolvimento da Educação do Campo. Buscamos mostrar que a luta do Movimento
em prol dos direitos sociais constituiu fator relevante para a instauração de escolas que visavam
a escolarização das crianças de famílias acampadas e assentadas.

Posteriormente, abordamos as conquistas da Educação Infantil como primeira etapa da


Educação Básica, a partir do reconhecimento das especificidades da criança, que passa a ser
reconhecida como sujeito histórico e de direitos. Assim, a criança representa um cidadão em
formação, que vive, experimenta, assimila, cria e recria conhecimentos a partir de suas
vivências. A partir daí partimos para a Educação Infantil do campo, onde as crianças possuem
especificidades ainda maiores se considerarmos a realidade em que estão inseridas.
Apresentamos as conquistas sociais da Educação Infantil, que conta com um histórico de
legislações: Constituição Federal de 1988, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDBEN nº 9394/96), Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (Resolução
CNE/CEB nº 05/2009), além de Resoluções que regulamentam e estabelecem normas para a
Educação do Campo.

Em seguida, discorremos sobre as opções teórico-metodológicas e o percurso da


pesquisa e apresentamos a instituição onde foi realizada a pesquisa, a Escola Estadual Madre
Cristina, abordando o histórico da escola e o histórico do surgimento do próprio Assentamento
Roseli Nunes, uma vez que a história e o desenvolvimento de ambos caminham de forma
paralela e indissociável.

Por fim, trazemos a análise de dados das entrevistas realizadas com educadoras e entes
familiares de crianças que frequentam a Educação Infantil da Escola pesquisada. Assim,
14

buscamos conhecer e compreender a visão das famílias e das educadoras sobre a influência da
cultura do MST na educação das crianças da Educação Infantil. Os resultados da pesquisa
indicam a importância do reconhecimento e da valorização da cultura camponesa pela criança,
uma vez que estas crianças nasceram e estão crescendo diante da realidade de luta do
Assentamento. Indicam, também, que a Educação Infantil no/do campo enfrenta problemas em
relação às políticas públicas.
15

CAPÍTULO I
EDUCAÇÃO E CULTURA NO MST: UMA ABORDAGEM SÓCIO HISTÓRICA

Neste capítulo abordaremos o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST,
como eixo central, visando apresentar um perfil sócio histórico do surgimento e
desenvolvimento, além das principais proposições e conquistas em relação a educação e à
cultura, questões articuladas à dimensão da luta pela Reforma Agrária. Dessa forma busca-se
evidenciar o MST como um dos precursores da educação no campo no Brasil.

1.1 Gênese do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) teve sua gênese marcada no
início da década de 1980, durante o período da ditadura militar. Porém, muito antes deste
período a luta pela terra e pelos direitos do pequeno produtor rural, que constituem o ideal do
Movimento, já existia. “A semente para o surgimento do MST talvez já existia quando os
primeiros indígenas se levantaram contra a mercantilização e apropriação pelos invasores
portugueses do que era comum e coletivo: a terra, bem da natureza” (MST, 2014, p. 1).

É importante ressaltar que os ideais da Reforma Agrária, assim como os do MST, são
defendidos pela Constituição Federal de 1988, sobretudo no Artigo 184 onde afirma que
“Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de Reforma Agrária, o imóvel
rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos
da dívida agrária” (BRASIL, 1988, p. 64). Cabe considerar que a função social da terra está
definida no Artigo 186, e seus incisos, da mesma Constituição.
A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente,
segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I – aproveitamento racional e adequado;
II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio
ambiente;
III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores
(BRASIL, 1988, p. 64).

A luta pela Reforma Agrária desencadeada pelo MST está articulada a um projeto de
sociedade diferente, de igualdade e justiça social, de relações solidárias de trabalho e não
16

exploradoras. Nos assentamentos a gestão democrática é o fator primordial para a sobrevivência


da produção familiar através do cooperativismo.

A gestão democrática aqui é uma autogestão da cooperativa pelos próprios


trabalhadores com base em instâncias decisórias, como assembleias gerais, núcleos de
base e outros mecanismos de tomada de decisão pelo coletivo de associados ao
empreendimento. O autogoverno, com a tomada de decisões coletiva e direta, é um
dos elementos que diferencia esse tipo de cooperativa dentre tantos outros existentes
(DAL RI; VIEITEZ, 2004, p. 1383).

Dessa forma o cooperativismo solidário fortalece a agricultura familiar, tornando o


pequeno produtor em protagonista na atividade agropecuária do país, pois estima-se que cerca
de 40% do PIB da produção agropecuária brasileira é oriundo da agricultura familiar.

Diante disso, considera-se a luta do Movimento não apenas como uma batalha em busca
de um pedaço de chão, mas sim em busca de qualidade de vida, de liberdade e de
sustentabilidade. Dessa forma, não há como deixar de considerar a importância da educação
para o desenvolvimento do próprio MST e da sociedade de forma geral, levando em conta a
importância da Reforma Agrária para o país.
A Reforma Agrária compreende um processo amplo e complexo que vai além da
conquista da terra. O acesso à terra, na prática, constitui apenas o primeiro passo da
Reforma; é necessário, em sequência ao passo inicial, viabilizar as conquistas que
garantam o bem-estar social dos assentados e que possibilitem o seu desenvolvimento
econômico (SERRA; SOBRINHO, 2013, p. 143).

Vislumbrando a importância da educação para o desenvolvimento de qualquer


sociedade, o Movimento luta também pelo acesso à educação pública sendo que “quase ao
mesmo tempo em que começou a lutar pela terra, o MST, através das famílias acampadas e
depois assentadas, começou a lutar também pelo acesso dos Sem Terra à escola pública” (MST,
2004, p. 12).
Ainda não havia um Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra organizado e
presente em todo o Brasil. Muito menos um Setor de Educação que desse conta de
elaborar uma pedagogia específica para a tarefa de educar crianças, adolescentes,
jovens e adultos do campo. Mas já havia a semente da luta pela educação e a
preocupação com as crianças. Essa preocupação estava presente desde as primeiras
ocupações (MST, 2004, p. 25).

Porém, de acordo com Dal Ri e Vieitez:


Como ocorre com outras organizações que divergem da ordem social capitalista, o
MST percebe que o ensino oficial não atende as necessidades de formação dos seus
membros, pois podemos dizer, com relação à educação, o que já se disse com relação
à ideologia. Na sociedade de classes, a educação dominante é a educação das classes
dominantes, ainda que a ideologia pedagógica oficial se apresente travestida na forma
de conhecimentos, valores e habilidades universais (2004, p. 1382).
17

A partir de então deu-se início à discussão sobre a idealização de uma escola do campo
que fosse voltada ao campo, e não apenas uma instituição educacional com a mesma estrutura,
organização e currículo das instituições urbanas, visto que diante das especificidades do
campo, em relação à cidade, fica clara a necessidade de se pensar uma instituição escolar que
respeite e valorize a vida no/do campo.
A partir do momento em que a educação passa a fazer parte da luta pela Reforma
Agrária, surgem reflexões direcionadas à concepção de uma escola do campo voltada,
de fato, para o campo, sem estar pautada nos valores urbanos. No final dos anos 1980,
pouco tempo depois da fundação do MST (o Movimento foi fundado em 1984), as
discussões passam a girar em torno de uma proposta educacional que contemplasse os
anseios, os valores, a cultura, os aspectos físicos e econômicos do meio rural e que
proporcionasse às pessoas que vivem no e do campo condições para sua valorização
pessoal (SERRA; SOBRINHO, 2013, p. 146).

No contexto da luta do MST, é muito justo ressaltar a importância da escola itinerante


como primordial para a organização escolar no interior dos assentamentos. Esta é uma escola
própria de acampamentos, voltada ao atendimento dos filhos das famílias acampadas e que, na
efetivação do acampamento como assentamento, pós conquista da terra, institui-se como escola
do campo. Em síntese, é uma instituição que “em seus objetivos gerais, não se diferencia das
demais escolas do MST; o que se altera são as circunstâncias em que ela está inserida”
(BAHNIUK; CAMINI, 2012, p. 331).

Diante de uma realidade onde nem sempre os acampados do MST obtêm êxito na luta
pela terra, fica claro que a vivência movimentada dificulta a escolarização das crianças dessas
famílias. Além disso, mesmo onde se obtém êxito, existe um intervalo de tempo entre a
ocupação do terreno e a organização do assentamento. E um período maior ainda entre a
ocupação e a construção de escolas, ou mesmo o acesso às escolas mais próximas, que em
determinadas situações ficam em cidades há muitos quilômetros de distância.

Assim sendo, diante da preocupação com a educação de suas crianças, os próprios pais
e mães acampados passam a organizar atividades pedagógicas com intuito de iniciar ou dar
continuidade ao processo de alfabetização. No início, os acampados e as acampadas que
dominam um pouco mais o processo de leitura e escrita assumem essa tarefa de instrução das
crianças. É também, com essa preocupação que o Movimento criou a escola itinerante.

Escola itinerante é um modelo de escola que acompanha a comunidade por onde ela for,
e se instala rapidamente nos acampamentos a fim de otimizar o tempo e o aprendizado das
crianças. De acordo com o Movimento “é uma escola que está voltada para toda a população
18

acampada, o barraco da escola itinerante é construído antes do barraco de moradia e tem também
a função de se converter em um centro de encontros de toda comunidade acampada” (MST,
2014, p. 1).

A escola itinerante foi pensada como forma de diminuir o fracasso escolar e garantir o
direito à escolarização das crianças de famílias acampadas. Levando em consideração que os
acampamentos são organizações sujeitas a mudanças de localização, e, dessa forma, a
escolarização das crianças ficava completamente comprometida. Desse modo a escola itinerante
é uma proposta que foi colocada em debate no Movimento desde as primeiras ocupações, na
década de 1980, sendo originalmente chamada de “escola de acampamento”.

Atualmente as escolas itinerantes são reconhecidas por alguns conselhos estaduais de


educação, como por exemplo, dos estados do Paraná e Rio Grande do Sul:
As escolas itinerantes são escolas públicas que compõem a rede estadual de ensino e
são aprovadas pelos conselhos estaduais de educação. Por se movimentarem com a
luta, têm de estar vinculadas legalmente a uma escola base que é responsável por sua
vida funcional [...] a escola base localiza-se em um assentamento do MST,
referenciando-se no projeto educativo do Movimento (BAHNIUK; CAMINI, 2012,
p. 332).

Portanto, a escola itinerante possibilita a escolarização de crianças das famílias


acampadas, fazendo com que o processo de aprendizagem não seja interrompido a cada
mudança de localização do acampamento e, consequentemente, das famílias.

1.2 Princípios educativos do MST

A proposta educacional do MST extrapola a escola itinerante e os espaços de


acampamentos, abrangendo a formação dos trabalhadores rurais tanto no espaço da escola,
quanto fora dele e os processos de escolarização desde a Educação Infantil até Ensino Superior.
Essa formação ocorre em espaços específicos do MST, a exemplo podemos destacar: Iterra2,
Escola Florestan Fernandes, Josué de Castro, etc., e também, sob a forma de parcerias e
convênios de cooperação com universidades e institutos de educação.

De maneira resumida destacaremos alguns dos princípios educativos ou as matrizes


pedagógicas do MST.

2
Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária, que é vinculado ao MST. Tem sua sede atual
no município de Veranópolis, Rio Grande do Sul.
19

 Todos ao trabalho; a criança deve, desde cedo, aprender o valor do trabalho, pois “é
trabalhando que se aprende a trabalhar. É trabalhando que se pega amor e gosto pelo trabalho”
(MST, 1999, p. 12). Assim, a escola também deve ser local de trabalho, onde as crianças podem
começar com a arrumação e limpeza das próprias salas de aula.

 Todos se organizando; pois a organização é fator fundamental para o formação humana


do sujeito. “As crianças devem ser participantes ativas da organização e funcionamento da
escola” (MST, 1999, p. 14). Dessa forma as crianças começam a aprender, e valorizar, a
organização desde as tarefas em seus cadernos.

 Todos participando; visto que a escolarização visa sempre a inclusão de todos, assim “a
escola é também um lugar para aprender democracia. Este aprendizado não se faz estudando
sobre o que é democracia. A democracia se aprende no relacionamento diário” (MST, 1999, p.
15).

 Todo o Assentamento na Escola e toda a Escola no Assentamento; a vivência e o


aprendizado na escola deve sempre estar vinculado à vida na comunidade, no assentamento e
vice-versa. “É importante que o trabalho e a organização das crianças na Escola tenham uma
ligação com a vida do Assentamento” (MST, 1999, p. 16).

 Todo o ensino partindo da prática; a escolarização nas escolas dos assentamentos é


sempre ligada diretamente à prática. “A Escola do MST não parte do conteúdo. Parte da
experiência vivida pelas crianças. Experiências de trabalho. Experiência de organização.
Experiência de relacionamento com os outros” (MST, 1999, p. 17).

Além disso, as escolas dos assentamentos possuem objetivos bem destacados,


valorizando sempre a vida no campo e a cultura os valores dos trabalhadores do campo. Segue
breve descrição de tais objetivos.

 Ensinar a ler, escrever e calcular a realidade: “elas (as crianças) devem aprender a ler,
escrever e calcular a realidade do Assentamento e de toda a sociedade” (MST, 1999, p. 6).

 Ensinar fazendo, isto é, pela prática; “a gente aprende a capinar, capinando. Só explicar
não chega. É preciso fazer” (MST, 1999, p. 7).

 Construir o novo; “a escola deve ajudar a construir a nova mulher e o novo homem. Isto
só é possível se ajudar a superar os hábitos negativos” (MST, 1999, p. 8).
20

 Preparar igualmente para o trabalho manual e intelectual; “pegar na enxada vale tanto
quanto pegar na caneta. É falso achar que o trabalho intelectual vale mais do que o trabalho
manual” (MST, 1999, p. 9).

 Ensinar a realidade local e geral; “não podemos nos contentar em conhecer e


compreender só as coisas, as relações, a história, o funcionamento do nosso Assentamento, o
que está à nossa volta” (MST, 1999, p. 9).

 Gerar sujeitos da história; “a Escola deve gerar pessoas que sejam sujeitos, com
capacidade e consciência organizativa. Pessoas capazes de decidir sua vida e os rumos a
caminhada coletiva” (MST, 1999, p. 10).

 Preocupar-se com a pessoa integral; “a criança tem sentimentos, corpo, tem cultura. Ela
deve poder desenvolver todas estas dimensões [...] A Escola deve cultivar, enfim, a alegria
coletiva de revolucionar a vida por inteiro” (MST, 1999, p. 11).

Na proposta educacional do MST, uma das categorias de grande importância, é a cultura,


por isso, dedicaremos a ela um pouco de atenção no tópico seguinte.

1.3 O MST e a Cultura

A palavra “cultura” é definida como sendo todo o complexo de conhecimentos criados


e/ou adquiridos, compreendendo os saberes científicos, artísticos, morais, religiosos, e outros
aspectos. Considerando sua etimologia, Bosi afirma que: “Cultura, culto e colonização derivam
do mesmo verbo latino colo, cujo particípio passado é cultus e o particípio futuro é culturus [...]
colo significou na língua de Roma, eu moro, eu ocupo a terra, e, por extensão, eu trabalho, eu
cultivo o campo” (apud BOGO, 2000, p. 8). Portanto, a origem da palavra está diretamente
ligada ao trabalho. Caldart apresenta visão semelhante ao afirmar que “cultura é uma palavra
de origem latina, colere, que significa cultivar, criar, tomar conta, cuidar” (2012, p. 180).

Considerando que a divisão social e o desenvolvimento do trabalho se deu


principalmente após a descoberta da agricultura, cultivo de grãos, notamos que o sentido da
palavra cultura também está voltado à produção da existência. Dessa forma “definimos que
cultura é tudo o que fazemos para produzir nossa existência” (BOGO, 2000, p.8). Assim, cultura
possui um sentido amplo em relação aos saberes e costumes, e também às ações, criadas por
cada grupo ou etnia do planeta. Para Tardin,
[...] cultura é toda criação humana resultante das relações entre os seres humanos e
deles com a natureza que leva ao estabelecimento de modos de vida. Trata-se da
21

criação e da recriação que emergem daquelas relações em que os humanos, ao


transformarem o mundo, simultaneamente transformam a si próprios (2012, p. 180).

Dessa forma, percebe-se que a cultura não é inanimada, pelo contrário, é algo vivo e em
constante transformação. A cultura de determinado grupo não é exatamente idêntica à cultura
do mesmo grupo de gerações atrás. Isso fica esclarecido pelo fato de que novos conhecimentos
são criados ou assimilados, e assim também os costumes, tomando o lugar de conhecimentos e
costumes mais antigos.

Ao ser transformada, a cultura transforma também seus sujeitos fazendo assim, com que
os traços mudem/evoluam ao serem repassados de geração para geração. “De certa forma as
gerações seguintes sempre nascem e se forjam com o esforço das gerações passadas, tendo que
levar consigo como castigo ou como recompensa as impressões digitais das mãos que moldaram
a realidade” (BOGO, 2000, p. 15). Ainda assim, a geração que se apropria da cultura repassada
pelas gerações anteriores, dará também suas “contribuições” e, ao repassá-las, para as próximas,
o mesmo acontecerá de forma que caracteriza um ciclo ininterrupto e permanente de mudanças.
Conforme afirma Bogo,
Essa herança cultural, produzida e repassada aos seres individuais e sociais, não se
limita apenas às descobertas e invenções, nem tampouco as futuras gerações se
acomodarão em torno do que as antigas gerações descobriram. Haverá alterações
permanentes. Cada geração acrescenta nesta interligação de gerações, suas próprias
características, formando sua identidade, sempre com a responsabilidade de preparar
o ambiente onde viverão as gerações posteriores (2000, p. 14).

Assim, ao tratarmos dos sujeitos “sem-terra”, sujeitos do MST, devemos levar em


consideração que se trata de uma comunidade/grupo marcada por uma grande diversidade, onde
pessoas de várias regiões e, consequentemente, culturas diferentes se unem por um objetivo
comum. Assim, a cultura desse grupo é formada pela junção entre sujeitos de cultura diferentes,
mas com objetivos comuns. Sendo que,
Do geral ao particular, há uma sequência idêntica ao processo que ocorreu na história
da constituição do povo brasileiro com o surgimento da categoria social “sem-terra”,
formada pela mistura das raças, para tornar-se “povo organizado” Sem Terra,
sujeitos da produção da própria história (BOGO, 2000, p. 11).

A história da cultura do MST é uma prova concreta de que a cultura não se transforma
de forma isolada das demais, pelo contrário, assimila traços de culturas próximas. No caso
específico do Movimento, fica clara a importância da assimilação cultural, onde um grupo com
cultura própria é capaz de acolher sujeitos de culturas diferenciadas, pois um aspecto principal
22

do Movimento é a vivência e a luta coletiva, em prol de um mesmo objetivo. Assim, fica


caracterizada a formação do sem-terra, como afirma Caldart,
A formação do sem-terra, pois, não se dá pela assimilação de discursos, mas,
fundamentalmente, pela vivência pessoal em ações de luta social, cuja força educativa
costuma ser proporcional ao grau de ruptura que estabelece com padrões anteriores de
existência social destes trabalhadores e destas trabalhadoras da terra, exatamente
porque isto exige a elaboração de novas sínteses culturais (2000, p. 106).

Assim, a consequente união dos sujeitos do Movimento proporciona a possibilidade de


produção e intervenção na própria realidade. Essa coletividade faz com que o sujeito tenha
condições de construir seu futuro. Conforme Bogo (2000),
Podemos intervir no rumo da história, e através do esforço coletivo, acrescentar a ela
também nossos interesses e fazer o presente nascer de outros sulcos abertos pelo arado
da luta, plantando ali os sonhos, de início pequenos, mas vigorosos, em busca de
produzir a existência através dos próprios passos em outras circunstâncias (p.13).

Essa é a luta dos sujeitos do MST, buscando intervir na realidade imposta pela sociedade
que, geralmente, exclui o que tem menos tirando-lhe quaisquer condições de auto constituição
como cidadão. Assim, a expressão ‘sem-terra’ ganha um novo sentido e “deixa de ser categoria
social para tornar-se nome próprio quando identifica um grupo social que decidiu ser sujeito
para mudar de condição social através da organização política, forjando daí sua própria
identidade, com ideologia e valores” (BOGO, 2000, p. 22 – grifo nosso). Aspecto que fica claro
ao identificar-se o quão comum é referir-se ou ouvir referências a famílias de assentamentos
como famílias sem-terra. Ou seja, sem-terra não é mais só aquele que não possui terras, mas
sim aquele que que se engajou nessa luta em busca da superação da realidade socialmente
imposta.

Falar da cultura do MST, é falar de valores como terra, luta, trabalho, embelezamento,
vida, estudo, solidariedade e participação – conforme descreve a obra Pra soletrar a liberdade,
n 1, intitulado “Nossos Valores” (MST, 2000). Assim, discorreremos brevemente sobre cada
um destes valores de acordo com o movimento.

 Terra; a valorização da terra como forma de se conquistar o pão de cada dia, e mais que
isso, de conquistar a cidadania. Assim, o Movimento prega o cuidado, a valorização e o amor
pela terra. “Hoje em dia muitos exploram a terra ou a danificam com queimadas [...] Não
podemos ser senhores do ambiente. Apenas administradores, encarregados de cuidar” (MST,
2000, p. 7).
23

 Luta; como meio de conquistar e garantir os direitos ceifados outrora. Nenhuma


conquista do Movimento se dá sem que antes uma luta seja travada. “O povo da terra nunca
conseguiu nada de graça, precisou buscar cada conquista na marra [...] Brota da terra e marcha
rumo à cidade para conquistar seus direitos. Ocupa ruas, praças, prédios” (MST, 2000, p. 11).

 Trabalho; como forma de fazer valer a conquista de seus direitos, a valorização do


trabalho é um traço característico dos integrantes do Movimento. “Através do trabalho,
produzimos o pão nosso de cada dia. É na produção social da nossa vida que nos transformamos.

A luta pela Reforma Agrária nos ajuda a entender que o trabalho gera vida” (MST, 2000, p. 13).
Vale ressaltar que o trabalho, no movimento, é visto de forma coletiva, pois “no trabalho
coletivo não se trabalha menos: se trabalha diferente” (MST, 2000, p. 15).

 Embelezamento; trata da valorização da conquista do espaço, de forma que a


organização do assentamento seja a mais bela possível (e assim deve ser vista pelo assentado),
pois se trata de uma vitória enorme diante de muita luta. “Nada que temos nos foi dado de
presente. Tudo tivemos que conquistar com muita luta, suor e sangue. [...] Nossa casa, nosso
assentamento ou acampamento tem que ser bonito e agradável. Precisamos viver em harmonia
com a natureza” (MST, 2000, p. 17). Assim, sugere-se que desde a escolha do nome do
assentamento (sempre ligado à história de luta dos trabalhadores) até as placas de identificação,
organização das moradias, plantação de árvores frutíferas e construção de praças, entre outros
fatores, sejam feitas levando em consideração à beleza que representará.

 Vida; não apenas como existência, mas principalmente como ser sujeito ativo, pronto
para enfrentar desafios e se indignar contra as desigualdades. “Estar vivo não é apenas respirar.
Ter vida é sentir-se vivo. Estar vivo é conquistar vida digna. Vida digna para todos” (MST,
2000, p. 20).

 Estudo; como conquista de autonomia e desenvolvimento da sociedade sem-terra. “O


estudo é um dos princípios organizativos do MST. Somos desafiados a estudar sempre” (MST,
2000, p. 27).

 Solidariedade; é um dos pilares que sustentam a vida do/no assentamento. Ser solidário
é uma característica comum aos sujeitos dos assentamentos. A ajuda, a doação, etc., são fatos
corriqueiros e que devem sempre ser valorizados pela comunidade do Movimento. “No coração
da sociedade deve pulsar a alegria de ver seus filhos e filhas sendo gerados pela solidariedade
e pela paixão de construir um novo país” (MST, 2000, p. 30).
24

 Participação; é um fator extremamente importante na luta do Movimento. O sujeito deve


sempre procurar participar dos projetos, reuniões e demais eventos. “Uma das primeiras lições
quando juntamos a vida com a luta, é a necessidade de participar [...] Participar tornou-se um
valor para todos nós. Ser Sem Terra é participar” (MST, 2000, p. 31 – grifo nosso).

Os princípios educativos do MST se articulam, em grande medida, com os princípios da


Educação do Campo, uma vez que a concepção de Educação do Campo como um projeto
transformador e crítico, pensado e definido pelos sujeitos-trabalhadores do campo, tem enorme
influência desse Movimento.

Assim, no capítulo seguinte abordaremos sobre a Educação do Campo - concepção,


legislação e principais objetivos e princípios, dando destaque para a temática da Educação
Infantil do campo.
25

CAPÍTULO II A EDUCAÇÃO INFANTIL NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO DO


CAMPO

Neste capítulo abordaremos a Educação do Campo em seu contexto sócio histórico,


buscando a visualização da importância de um sistema educacional voltado à vida no campo e
que, consequentemente, respeite as especificidades que essa modalidade apresenta.
Abordaremos ainda a Educação Infantil, como o primeiro passo do processo educacional da
criança, buscando apresentar a função social desta etapa da Educação Básica, assim como suas
especificidades na escola do campo.

2.1 Educação do campo: breve histórico das conquistas sociais da população do campo

A educação brasileira de forma geral obteve uma grande “vitória” 3 na Constituição de


1988, a primeira constituição da história nacional que dedicou um capítulo especificamente à
educação. Conforme define o Artigo 205 da Constituição, a educação é “direito de todos e dever
do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando
ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho” (BRASIL, 1988, p. 70 – grifo nosso).

A Educação do Campo, até a década de 90, era considerada apenas como uma extensão
da educação urbana, e chegava a pouquíssimas comunidades, deixando milhares de crianças e
jovens fora da escola. Foi apenas em 1996, a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação

3
Termo utilizado para expor que não se trata de uma conquista que se deu de forma aleatória, mas fruto de todo
um histórico de reivindicações da sociedade. Assim ter um capítulo da Constituição Federal voltado à educação é,
sim, uma grande vitória.
26

Nacional (LDBEN) nº 9394/96, que a Educação do Campo, até então denominada de “educação
rural”4 passou a receber um tipo de referência, e a resguardar a necessidade de um tratamento
diferenciado no atendimento aos estudantes do campo, voltado à vida da comunidade
circundante, conforme o Artigo 28, que estabelece o seguinte:
Na oferta de educação básica para a população rural, os sistemas de ensino
promoverão as adaptações necessárias à sua adequação às peculiaridades da vida rural
e de cada região, especialmente:
I conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às reais necessidades e
interesses dos alunos da zona rural;
II organização escolar própria, incluindo adequação do calendário escolar às fases do
ciclo agrícola e às condições climáticas;
III adequação à natureza do trabalho na zona rural (BRASIL, 1996, p. 9).

O processo de democratização de nosso país, intensificado nos anos de 1990, apresentou


algumas mudanças em relação à educação dos trabalhadores rurais. A LDBEN nº 9394/96,
principalmente no Artigo 28, aborda esse aspecto - embora fale de escolas rurais e não de
escolas do campo, estabelecendo que devem ser feitas “adaptações necessárias à adequação” da
educação às peculiaridades da vida rural. Para isso, deve-se levar em conta fatores geográficos
e climáticos, dentre outros, pois há de se considerar as dificuldades para transporte e locomoção
de alunos em determinadas épocas do ano, quando as chuvas provocam estragos enorme das
estradas. Há de se considerar a época da colheita, quando normalmente, adolescentes e jovens
ajudam suas famílias no trabalho braçal, entre outros fatores.

Contudo, mudanças mais significativas na perspectiva de superação de concepção de


educação rural para Educação do Campo, serão registradas em leis e normativas, no final dos
anos de 1990, com a intensificação das lutas dos movimentos sociais no Brasil, pela criação e
ampliação de direitos sociais. Dessa forma, a Educação do Campo conquistou um espaço de
importância vital, graças à luta do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.

Essa modalidade de educação, passou por novas definições principalmente a partir de


2002 quando o Ministério da Educação, através do Conselho Nacional da Educação e da
Câmara da Educação Básica, aprovou a Resolução CNE/CEB nº 01, de 03 de abril, que “institui
Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo” (BRASIL, 2002, p.1).
Tal Resolução estabelece, em seu Artigo 3º, que:

4
A chamada educação rural não levava em conta os aspectos característicos ou culturais das populações do campo,
ou seja, não dialoga com a vida do campo, sendo assim reduzida apenas à uma extensão da educação urbana.
Enquanto isso, a Educação do Campo leva em consideração as especificidades desses povos, tendo seus
fundamentos estabelecidos por legislação específica, conforme citado no texto. A evolução da educação rural para
Educação do Campo é fruto de um extenso histórico de reivindicações populares.
27

O Poder Público, considerando a magnitude da importância da educação escolar para


o exercício da cidadania plena e para o desenvolvimento de um país cujo paradigma
tenha como referências a justiça social, a solidariedade e o diálogo entre todos,
independente de sua inserção em áreas urbanas ou rurais, deverá garantir a
universalização do acesso da população do campo à Educação Básica e à Educação
Profissional de Nível Técnico (BRASIL, 2002, p. 1).

Posteriormente, em 2008, o Conselho Nacional de Educação através da Câmara de


Educação Básica instituiu a Resolução nº 02, de 28 de abril, estabelecendo “diretrizes
complementares, normas e princípios para o desenvolvimento de políticas públicas de
atendimento da Educação Básica do Campo” (BRASIL, 2008, p. 1). A Resolução nº 02/2008,
reafirma a Educação do Campo como modalidade de extrema importância para o
desenvolvimento da sociedade, e estabelece em seu Artigo 1º que:

A Educação do Campo compreende a Educação Básica em suas etapas de Educação


Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio e Educação Profissional Técnica de nível
médio integrada com o Ensino Médio e destina-se ao atendimento às populações rurais
em suas mais variadas formas de produção da vida - agricultores familiares,
extrativistas, pescadores artesanais, ribeirinhos, assentados e acampados da Reforma
Agrária, quilombolas, caiçaras, indígenas e outros (BRASIL, 2008, p. 1).

Em 2010, o Ministério da Educação institui, através da Resolução nº 04, de 13 de julho,


as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica. Aqui a seção IV do capítulo
II, composta pelos Artigos 35 e 36, é voltada especificamente para a Educação do
Campo. Sendo assim, estabelece em seu Artigo 35 que na modalidade da Educação do Campo
“a educação para a população rural está prevista com adequações necessárias às peculiaridades
da vida no campo e de cada região, definindo-se orientações para três aspectos essenciais à
organização da ação pedagógica” (BRASIL, 2010, p. 12).

No artigo citado acima, podemos observar que a palavra ‘adaptação’ – que figura no
artigo 28 da LDBEN, foi substituída pelo termo ‘adequação’, reforçando a ideia de que sejam
respeitadas as características próprias do campo na organização educativo-pedagógica da
instituição escolar nesse contexto. O Artigo 35 da Resolução 04/2010, reproduz, integralmente,
os incisos I, II e III do artigo 28 da LDBEN, por isso, consideramos desnecessários transcrevêlos
aqui, uma vez que estão registrados no início desse tópico.

Ainda em 2010 a Presidência da República instituiu o Decreto nº 7.352, de 04 de


novembro, que “Dispõe sobre a política de Educação do Campo e o Programa Nacional de
Educação na Reforma Agrária – PRONERA” (BRASIL, 2010, p. 1). Tal Decreto dá uma nova
visão para o termo “escola do campo” ao romper com a questão territorial. Ou seja, o que torna
28

uma instituição uma escola do campo não é apenas o local onde está localizada, mas sim o
público que a mesma recebe/atende, conforme estabelece o inciso II, parágrafo 1º do Artigo 1º:
“escola do campo: aquela situada em área rural, conforme definida pela Fundação Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, ou aquela situada em área urbana, desde que atenda
predominantemente a populações do campo” (BRASIL, 2010, p. 1). Dessa forma, nem sempre
a escola do campo é a escola no campo, e nem sempre uma escola no campo é uma escola do
campo. Ou seja, a escola do campo é a instituição que atende a população do campo e volta-se
para essa realidade, independentemente de estar ou não localizada na zona rural.

Assim, a escola do campo fica caracterizada por seu público e não por sua localização e
deve estar organizada de forma a vincular-se à vida no campo.
A identidade da escola do campo é definida pela sua vinculação às questões inerentes
à sua realidade, ancorando-se na temporalidade e saberes próprios dos estudantes,
na memória coletiva que sinaliza futuros, na rede de ciência e tecnologia disponível
na sociedade e nos movimentos sociais em defesa de projetos que associem as
soluções exigidas por essas questões à qualidade social da vida coletiva no país
(BRASIL, 2002, p. 3 – grifo nosso).

O Decreto nº 7.352/2010 estabelece ainda, em seu Artigo 2º, os princípios da Educação


do Campo, assim discorreremos brevemente acerca de tais princípios.

 “Respeito à diversidade do campo em seus aspectos sociais, culturais, ambientais,


políticos, econômicos, de gênero, geracional e de raça e etnia” (BRASIL, 2010, p. 1); vem
fortalecer a importância de um sistema educacional cujo currículo leve em consideração todas
as especificidades das comunidades camponesas.

 “Incentivo à formulação de projetos político-pedagógicos específicos para as escolas do


campo” (BRASIL, 2010, p. 1); defende que as escolas que atendem a população camponesa
necessitam de uma organização própria, que vise contemplar todas as características comuns ao
povo e à comunidade do campo.

 “Desenvolvimento de políticas de formação de profissionais da educação para o


atendimento da especificidade das escolas do campo, considerando-se as condições concretas
da produção e reprodução social da vida no campo” (BRASIL, 2010, p. 1); considera que a
organização escolar voltada ao público do campo necessita também de profissionais com
formação adequada para o exercício docente junto à este público.

 “Valorização da identidade da escola do campo por meio de projetos pedagógicos com


conteúdos curriculares e metodologias adequadas às reais necessidades dos alunos do campo,
29

bem como flexibilidade na organização escolar” (BRASIL, 2010, p. 1); busca-se, dessa forma,
atingir o sucesso do processo de ensino aprendizagem, partindo dos saberes que o aluno já
possui e acrescentando sempre elementos comuns à vivência e aos interesses/expectativas deles
como seres pertencentes a uma coletividade. Assim os conteúdos devem, também, ser
formulados e apresentados de maneira que respeitem as especificidades e as necessidades dos
alunos do campo, sem descuidar dos conhecimentos científicos das diversas áreas do
conhecimento.

 “Controle social da qualidade da educação escolar, mediante a efetiva participação da


comunidade e dos movimentos sociais do campo” (BRASIL, 2010, p. 1); visando uma
convivência harmônica e democrática entre a instituição e a comunidade campesina, de forma
que a população faça parte da tomada de decisões, bem como da organização da escola, que
inclui a definição dos conteúdos e métodos a serem adotados, com vistas à formação integral
da criança e do jovem do campo.

No tópico seguinte traremos alguns elementos para discussão sobre a Educação Infantil
do campo, considerando a importância e as especificidades desta etapa da escolarização na
formação dos sujeitos.

2.2 Educação Infantil no/do campo

Assim no campo, como na cidade, compreende-se a importância da Educação Infantil


como a primeira etapa da Educação Básica e, mais que isso, ponto de partida para a formação
do sujeito crítico, ético e moral. E, voltando o olhar às crianças do campo, de modo especial
àquelas situadas em assentamentos vinculados ao MST, destaca-se a necessidade de formação
de pessoas cidadãs que darão continuidade, e contribuições, na luta pelos direitos sociais,
símbolos da luta do cidadão do campo e do Movimento.

A Educação Infantil encontrou, no decorrer da história, muitos desafios. Durante a Idade


Média a figura da criança era nula, vista como um adulto em miniatura, não sendo consideradas
suas especificidades e a infância como uma fase importante da vida. Mesmo após o surgimento
das primeiras creches, em consequência da Revolução Industrial no século XVII quando as
mulheres começam a ocupar lugar no mercado de trabalho, a escolarização era algo distante da
realidade. Estas instituições funcionavam como verdadeiros depósitos de crianças enquanto as
mães trabalhavam. No Brasil, também sob influência da Revolução Industrial, não foi diferente.
30

Assim, apenas no final do século XX, a Educação Infantil começou a ganhar o destaque
necessário,
Na década de 1980 dá-se um avanço em relação a Educação Infantil. Estudos e
pesquisas foram realizados com objetivo de discutir a função da creche/pré-escola.
Foi concluído que, independente da classe social, a educação da criança pequena é
extremamente importante e que todas deveriam ter acesso a ela (DOURADO, 2012,
p. 1).

A Constituição Federal de 1988, a primeira à destinar um capítulo específico à educação,


estabelece em seu Artigo 208 que “O dever do Estado com a educação será efetivado mediante
a garantia de [...] (Inciso IV) Educação Infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco)
anos de idade” (BRASIL, 1988, p. 70).

Não podemos deixar de citar a importante contribuição da Lei nº 8.069/90, o Estatuto da


Criança e do Adolescente (ECA), ao definir em seu Artigo 2º que “Considera-se criança, para
os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos” (BRASIL, 1990, p. 1). Dessa
forma fica estabelecido o período que compreende a fase da vida chamada de infância.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9394/96, reafirma o dever do


Estado em relação a Educação Infantil ao estabelecer em seu Artigo 4ª que: “O dever do Estado
com educação escolar pública será efetivado mediante a garantia de [...] (Inciso II) Educação
Infantil gratuita às crianças de até 5 (cinco) anos de idade” (BRASIL, 1996, p. 2). Além disso,
define em seu artigo 29 que “A Educação Infantil, primeira etapa da Educação Básica, tem
como finalidade o desenvolvimento integral da criança de até 5 (cinco) anos, em seus aspectos
físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade”
(BRASIL, 1996, p. 9).

Em 2009 é estabelecida a Resolução nº 5, de 17 de dezembro, que estabelece as


Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI). Trata-se de uma resolução
totalmente voltada à Educação Infantil e suas especificidades. Esta Resolução, em seu artigo 4º,
define a criança como:
Sujeito histórico e de direitos que, nas interações, relações e práticas cotidianas que
vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina, fantasia, deseja,
aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza e
a sociedade, produzindo cultura (BRASIL, 2009, p. 1 – grifo nosso).

Portanto, as DCNEI’s apresentam a criança como sujeito histórico e social e que tem
direitos sociais, tais como segurança e convívio familiar, saúde, educação, etc. Além disso, essa
resolução apresenta, em seu artigo 5º, a definição para a Educação Infantil como sendo:
31

Primeira etapa da educação básica, oferecida em creches e pré-escolas, às quais se


caracterizam como espaços institucionais não domésticos que constituem
estabelecimentos educacionais públicos ou privados que educam e cuidam de crianças
de 0 a 5 anos de idade no período diurno, em jornada integral ou parcial, regulados e
supervisionados por órgão competente do sistema de ensino e submetidos a controle
social (BRASIL, 2009, p. 1).

É válido dizer que como forma de resguardar as necessárias e adequadas condições de


funcionamento da Educação Infantil, o MEC publicou documentos orientadores às instituições
educativas, tais como Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil e
Parâmetros Básicos de Infraestrutura para Instituições de Educação Infantil; alguns critérios
a serem observados dizem respeito à formação de professores, aos parâmetros para assegurar
higiene, segurança, conforto espaços físicos, e ao número de crianças por professor (BRASIL,
2013). Cabe às Secretarias de Educação orientar as instituições e dar suporte técnico,
pedagógico e financeiro necessários para que elas consigam se adequar às exigências legais.

Atenta às especificidades do público atendido pelas instituições de Educação Infantil, as


DCNEI estabelecem, no parágrafo 3º e seus incisos, do artigo 8º, que:
As propostas pedagógicas da Educação Infantil das crianças filhas de agricultores
familiares, extrativistas, pescadores artesanais, ribeirinhos, assentados e acampados
da reforma agrária, quilombolas, caiçaras, povos da floresta, devem:
I - reconhecer os modos próprios de vida no campo como fundamentais para a
constituição da identidade das crianças moradoras em territórios rurais;
II - ter vinculação inerente à realidade dessas populações, suas culturas, tradições
e identidades, assim como a práticas ambientalmente sustentáveis;
III - flexibilizar, se necessário, calendário, rotinas e atividades respeitando as
diferenças quanto à atividade econômica dessas populações;
IV - valorizar e evidenciar os saberes e o papel dessas populações na produção de
conhecimentos sobre o mundo e sobre o ambiente natural;
V - prever a oferta de brinquedos e equipamentos que respeitem as características
ambientais e socioculturais da comunidade (BRASIL, 2009, p. 2-3 - grifo nosso).

Assim, ficam reconhecidas as características próprias da Educação Infantil nas escolas


do campo. De forma que se busca organizar essas instituições de acordo com a realidade de tais
localidades respeitando seus diversos aspectos. Considerando que,
[...] a identidade da escola do campo é definida por sua vinculação com as questões
inerentes à sua realidade (aspectos econômicos, sociais, culturais, políticos, de gênero,
geração e etnia) e as propostas da pedagogia da terra e da pedagogia da alternância
são citadas como formas adequadas de organização do trabalho pedagógico
(BARBOSA; FERNANDES, 2013, p. 305).

“A escola de Educação Infantil – como uma das instituições que oferecem traços
identificatórios para as crianças - precisa estabelecer o diálogo da cultura local com a cultura
universal” (BARBOSA; FERNANDES, 2013, p. 307), de forma que se leve em consideração a
32

realidade da criança, o contexto social em que essa criança está inserida e, a partir daí, apresente
novos saberes. Este é um fator importante para a aprendizagem significativa, onde o ponto de
partida é sempre o conhecimento que o sujeito já possui, e então os novos saberes são
apresentados sempre a partir de fatores e aspectos comuns à vivência da criança. Levando
sempre em consideração que as crianças do campo são caracterizadas pelo contato direto com
a natureza, pelo “brincar com o pé no chão”5.

As crianças do campo gostam de liberdade, seus brinquedos são correr, brincar de


casinha, criar seus brinquedos, as crianças podem brincar pelo sítio sem que os pais
se preocupem [...] As crianças brincam, tomam banho, almoçam, dormem quando
querem. Para as crianças tudo vira brinquedo, qualquer coisa: pauzinho, brinquedos
comuns como carrinho, gravetos, uma colher perdida, inventam brinquedos, brincam
no mato, sobem em árvores (PASUCH; SANTOS, 2012, p. 114).

E ainda, essas crianças, têm desde a mais tenra idade o contato com o trabalho, ainda
que doméstico. Por vezes, o ato de varrer o quintal ou a casa, por exemplo, transforma-se numa
brincadeira, principalmente quando há mais de uma criança envolvida. Estes são fatores a serem
levados em conta na organização de uma Educação Infantil do campo que vise a formação do
sujeito crítico,
[...] neste projeto (do MST), as crianças assumem um papel ativo, criativo e
empreendedor na construção de sua cidadania. Seus valores, interesses e participação
são reconhecidos e valorizados, rompendo com o individualismo, a ordem, a
autoridade e a submissão, que coloca o Brasil como um país de grandes contrastes e
como parâmetro de desigualdades sociais (SODRÉ, 2005, p. 182).

Dessa forma, compreende-se o papel da criança como sujeito transformador da realidade


imposta, e fica bem claro os motivos da preocupação em relação a perpetuação da cultura
camponesa, pois, apenas o sujeito critico é capaz de levar adiante a luta pela redução das
desigualdades e pela justiça social. Para isso é necessário o pensamento e a organização escolar,
para a Educação Infantil, voltada à criança e não apenas com atividades que “muitas vezes, se
tornam alvo de propostas espúrias que refletem mais o imaginário adulto do que o infantil”
(SODRÉ, 2005, p. 188).

É sabido das especificidades diversas das comunidades camponesas e,


consequentemente, das crianças do campo, e levando esses aspectos em consideração pode-se
concluir com clareza que existe uma iminente necessidade de se elaborar os Projetos
PolíticoPedagógicos (PPP) das instituições de Educação Infantil que atendem essas crianças, de

5
Brincar com o pé no chão, no sentido de que as crianças do campo têm um contato direto com a natureza em suas
brincadeiras. Geralmente brincadeiras já esquecidas pelas crianças das cidades, como: pega-pega, escondeesconde,
etc., em muitos casos, como estes, as brincadeiras dispensam brinquedos.
33

forma democrática e coerente. Assim, a partir da participação de todos (equipe de profissionais


da educação, pais e alunos) e dos princípios da Educação Infantil, da Educação do Campo e do
MST, a instituição contará com um PPP que atenda às diversidades.

Os valores repassados para as crianças nessas instituições vão muito além da


escolarização convencional6, devem focar a formação humana do sujeito. Assim, nas escolas
do campo, tais valores estão sempre voltados aos aspectos da vida camponesa, de forma que
valoriza o meio ambiente, o trabalho, a solidariedade, e outros. Ao se tratar mais
especificamente das escolas dos assentamentos, a tais valores são acrescentados também a luta
pelos direitos sociais, a valorização da terra, a valorização da coletividade, a indignação frente
as desigualdades. Assim, as ações da instituição postas em práticas através de seus docentes
devem sempre valorizar tais questões inerentes aos valores defendidos pelo Movimento.

Porém, as condições enfrentadas pelas escolas do campo dificultam enormemente o


alcance dos objetivos visados. Conforme Machado (2009, p. 3) tais dificuldades atingem
inclusive o professorado, evidenciando que no campo, geralmente atuam os profissionais menos
preparados e pior remunerados. A autora afirma ainda que,
A educação no campo enfrenta problemas de diversas ordens: infraestrutura
inadequada, educadores pouco qualificados, baixos salários, alto índice de crianças
em atraso escolar, material didático insuficiente e inadequado, e parcos recursos
financeiros. O que se observa, com raras exceções, é que a falta de condições
financeira e material vivida pela escola pública urbana acaba por se repetir nas escolas
do campo, porém, de modo mais acentuado (MACHADO, 2009, p. 3).

Fica, dessa forma, bastante claro a necessidade de investimento em políticas públicas


voltadas à educação e escolarização no campo. Pode-se identificar, através dos relatos da autora,
que os problemas das escolas do campo se estendem aos vários aspectos do ensino: estrutura
física, financeira, pedagógica e do quadro profissional.

Um dos fatores primordiais para o desenvolvimento da Educação Infantil do campo é


formação docente voltada a esta área de atuação. O profissional que atua na Educação Infantil
é responsável pela inserção da criança na vida escolar e, portanto, tem uma responsabilidade
enorme em relação ao desenvolvimento dessa criança. Assim considera-se papel do educador
que atua na Educação Infantil propiciar experiências que permitam e auxiliem no

6
O termo “escolarização convencional” é utilizado para ilustrar as função exercida pela escola tradicional, que por
vezes fazia das salas de aula da Educação Infantil verdadeiros depósitos de crianças. Além disso, ressalta-se que
não é função da Educação Infantil alfabetizar crianças, mas este processo se inicia na fase pré-escolar (4 e 5 anos)
e continua para os anos iniciais do Ensino Fundamental.
34

desenvolvimento integral da criança. O professor auxilia na educação e na promoção dos


valores fundamentais para a inserção da criança no meio social.

2.2.1 A criança como ser social e cultural

Maria Montessori, uma precursora da Educação Infantil, afirmou que “a criança é dotada
de poderes desconhecidos, que podem levar a um futuro luminoso. Se pretendemos realmente
alcançar uma reconstrução, o desenvolvimento das potencialidades humanas deve ser o objetivo
da educação” (MONTESSORI, 1949, p. 12). Assim, um dos maiores desafios enfrentados em
relação aos direitos da criança, foi o próprio reconhecimento da criança enquanto sujeito. Visto
que na visão medieval a criança era apenas uma miniatura do adulto e, dessa forma, o período
da infância não era reconhecido, e necessidade (ou direito) a educação não era respeitada.

Porém, com o passar dos anos a sociedade, pouco a pouco, passou a ver suas crianças
de uma outra forma. E através dessa nova visão em relação à criança, passamos a considerar
cada vez mais suas especificidades e necessidades educacionais, daí a evolução em relação à

Educação Infantil. De acordo com Montessori “uma reflexão banalíssima demonstra que a
criança não caminha, como o adulto, rumo à morte; ela avança na direção da vida, pois seu
objetivo é a construção do homem na sua plenitude de força e de vida” (1949, p. 42).

A partir dessa nova visão em relação à criança deve-se destacar os cuidados necessários
aos educadores e familiares responsáveis pela orientação dessa criança, principalmente nos
primeiros anos de vida.
Aquele que se propuser a ajudar o desenvolvimento psíquico humano deve partir do
fato de que a mente absorvente da criança se orienta na direção do ambiente; e,
especialmente, no início da vida, deve tomar cuidados especiais para que o ambiente
ofereça interesse e atrativos para esta mente que se deve dele nutrir para a própria
construção (MONTESSORI, 1949, p. 113).

Assim, passamos a considerar não mais a criança como um adulto em miniatura ou como
um cidadão do futuro, mas como um cidadão do presente, um sujeito atuante, à sua maneira.
A criança atuante é aquela que tem um papel ativo na constituição das relações sociais
em que se engaja, não sendo, portanto, passiva na incorporação de papéis e
comportamentos sociais. Reconhecê-lo é assumir que ela não é um “adulto em
miniatura”, ou alguém que treina para a vida adulta. É entender que, onde quer que
esteja, ela interage ativamente com os adultos e as outras crianças, com o mundo,
sendo parte importante na consolidação dos papéis que assume e de suas relações.
(COHN, 2005, p. 17).
35

Assim, a criança exerce função fundamental na reprodução e perpetuação da cultura,


sendo que, em suas ações e interações aprende e assimila traços culturais de seu povo. A criança
não mais é uma tábula rasa, como considerada outrora, mas indivíduo que possui determinados
saberes. Conforme Cohn (2005),
Quando a cultura passa a ser entendida como um sistema simbólico, a ideia de que as
crianças vão incorporando-a gradativamente ao aprender “coisas” pode ser revista. A
questão deixa de ser apenas como e quando a cultura é transmitida em seus artefatos
(sejam eles objetos, relatos ou crenças), mas como a criança formula um sentido ao
mundo que a rodeia. Portanto, a diferença entre as crianças e os adultos não é
quantitativa, mas qualitativa; a criança não sabe menos, sabe outra coisa (p. 20).

Dessa forma, podemos vislumbrar a importância dos traços influentes de determinadas


culturas na formação da criança como sujeito, apresentados pela escola. A Educação Infantil,
por ser o primeiro contato da criança com a escolarização, assume papel fundamental neste
sentido, pois é nesse período que a criança passa a assimilar novos saberes através do convívio
com as demais crianças e com o(a) educador(a). Então, trata-se de um meio de reproduzir e
perpetuar traços culturais, e também, de criação de outros traços.

Porém, essa transmissão e constituição de traços culturais se dá, não apenas no contexto
escolar, mas também no convívio informal das crianças, umas com as outras.
É verdade que muitos estudos têm mostrado a importância da transmissão cultural
entre crianças. Isso acontece, por exemplo, com brincadeiras infantis, aprendidas não
com os adultos, mas com outras crianças. Acontece mesmo na escola, nas brincadeiras
no pátio, fora das salas de aulas, em que canções e brincadeiras — às vezes
desconhecidas dos adultos que com elas convivem - se fazem e refazem (COHN,
2005, p. 21).

Assim, fica claro que o aprendizado se dá de forma constante na vida do indivíduo, e no


caso da criança, não é diferente. A escola atua na formação humana do sujeito, mas o
desenvolvimento da criança se dá também fora da escola, em seu convívio com outras crianças,
com a comunidade circundante, com adultos, enfim independente do “onde e quando”7.

Não temos intenção, jamais, de diminuir a importância da escola do campo no


desenvolvimento da criança, apenas apresentar uma visão de que o desenvolvimento integral da
criança não deve ser responsabilidade apenas da escola, mas sim compartilhada com a família
e com a comunidade.

7
Expressão utilizada para ilustrar uma visão tradicional que considera que a aprendizagem se dá em um lugar
especifico: a escola; e em um tempo determinado: o horário de aula. Dessa forma busca-se quebrar esse paradigma
e expressar que a aprendizagem é contínua, e acontece independentemente do local e do tempo, assim mais
importante do que o quando e onde se aprende, é o que se aprende.
36

Como visto anteriormente, a escola do campo nos assentamentos tem um papel social
muito importante frente à comunidade. Ela é o centro dos acontecimentos, onde ocorrem as
reuniões e eventos diversos. Assim, ela tem também o papel de disseminador da cultura da
comunidade que a circunda. E essa disseminação se dá também com o público infantil, de forma
que as crianças tenham acesso aos traços culturais que complementarão os aspectos já trazidos
de casa, da vivência e do aprendizado com a família.

CAPÍTULO III PERCURSO METODOLÓGICO E CONTEXTUALIZAÇÃO DO


ESPAÇO DA PESQUISA

Neste capítulo abordaremos sobre a metodologia e os instrumentos de pesquisa


utilizados, procurando evidenciar uma concepção de pesquisa, bem como o sentido de cada
instrumento e a forma de melhor utilizá-lo no sentido de que possam corresponder aos objetivos
da pesquisa. Faremos, também, uma contextualização da instituição campo desta pesquisa,
esclarecendo sobre seu surgimento e desenvolvimento enquanto instituição escolar; a
constituição da identidade da escola não se dá de forma indissociável da identidade do próprio
assentamento.

3.1 Metodologia

De acordo com Minayo (2002, p. 16) “entendemos por metodologia o caminho do


pensamento e a prática exercida na abordagem da realidade”, de forma que o caminho
metodológico deve ser cuidadosamente traçado para o sucesso de qualquer pesquisa. Minayo
afirma, ainda, que a pesquisa “é um labor artesanal que se não prescinde da criatividade, se
realiza fundamentalmente por uma linguagem fundada em conceitos, proposições, métodos e
técnicas, linguagem esta que se constrói com um ritmo próprio e particular” (MINAYO, 2002,
p. 25).
37

Assim o presente trabalho é de cunho qualitativo, considerando que “a abordagem


qualitativa aprofunda-se no mundo dos significados das ações e relações humanas, um lado não
perceptível e não captável em equações, médias e estatísticas” (MINAYO, 2002, p. 22). Além
disso,
Na abordagem qualitativa, o cientista objetiva aprofundar-se na compreensão dos
fenômenos que estuda – ações dos indivíduos, grupos ou organizações em seu
ambiente ou contexto social –, interpretando-os segundo a perspectiva dos próprios
sujeitos que participam da situação, sem se preocupar com representatividade
numérica, generalizações estatísticas e relações lineares de causa e efeito. Assim
sendo, temos os seguintes elementos fundamentais em um processo de investigação:
1) a interação entre o objeto de estudo e pesquisador;
2) o registro de dados ou informações coletadas;
3) a interpretação/ explicação do pesquisador (GUERRA, 2014, p. 11).

Minayo (2002) ressalta que:


A pesquisa qualitativa responde a questões muito particulares. Ela se preocupa, nas
ciências sociais, com um nível de realidade que não pode ser quantificado. Ou seja,
ela trabalha com o universo dos significados, motivos, aspirações, crenças, valores e
atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e
dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis (p.
220).

Dessa forma, esta pesquisa se enquadra como qualitativa pelo fato de que não se busca
dados quantitativos, mas a percepção em relação ao tema. Assim busca-se compreender
determinado fenômeno social, que é a presença de traços culturais do MST implícitos na prática
pedagógica da Educação Infantil. De acordo com Oliveira e Lima (2012, p. 17) abordagem
qualitativa é a mais utilizada na área da educação, sendo que os tipos de pesquisas desta
abordagem são:
[...] voltadas para o entendimento de fenômenos humanos, cujo objetivo é alcançar
uma visão detalhada da forma como os informantes os apreendem. Os princípios que
caracterizam a abordagem qualitativa é a descrição, a interpretação, a procura dos
significados para os fenômenos estudados. Deve-se tecer uma descrição e
interpretação minuciosa dos dados coletados de forma crítica e consistente
(OLIVEIRA; LIMA, 2012, p. 17).

Utilizou-se a pesquisa descritiva, considerando que não houve interferência do


pesquisador pois neste tipo de pesquisa “observam-se, descrevem-se, analisam-se, classificamse
e registram-se fatos sem qualquer tipo de interferência” (FURASTÉ, 2007, p. 38). Os mesmos
aspectos são reafirmados por Cervo, Bervian e Da Silva (2007, p. 61) ao afirmarem que “a
pesquisa descritiva observa, registra, analisa e correlaciona fatos ou fenômenos (variáveis) sem
manipulá-los”. Os autores afirmam ainda que:
38

A pesquisa descritiva desenvolve-se, principalmente, nas ciências humanas e sociais,


abordando aqueles dados e problemas que merecem ser estudados, mas cujo registro
não consta de documentos. Os dados, por ocorrerem em seu habitat natural, precisam
ser coletados e registrados ordenadamente para seu estudo propriamente dito
(CERVO; BERVIAN; DA SILVA, 2007, p. 62).

Na visão de Oliveira e Lima (2012, p. 16) a pesquisa descritiva “refere-se a um


levantamento das características conhecidas que compõem o fato/processo e, normalmente, é
realizada por meio de observações sistemáticas do fato”.

Para Gil (2008, p. 28) “As pesquisas deste tipo têm como objetivo primordial a descrição
das características de determinada população ou fenômeno ou o estabelecimento de relações
entre variáveis”. O mesmo autor salienta em outra obra que a pesquisa descritiva pode
assemelhar-se a outros tipos de pesquisa dependendo de sua natureza e objetivos, assim:
Algumas pesquisas descritivas vão além da simples identificação da existência de
relações entre variáveis, e pretendem determinar a natureza dessa relação. Nesse caso,
tem-se uma pesquisa descritiva que se aproxima da explicativa. Há, porém, pesquisas
que, embora definidas como descritivas com base em seus objetivos, acabam servindo
mais para proporcionar uma nova visão do problema, o que as aproxima das pesquisas
exploratórias (GIL, 2002, p. 42).

Portanto, a pesquisa qualitativa, de cunho descritiva é a que melhor corresponde às


intencionalidades deste estudo, cujo problema de pesquisa está assim configurado: quais são as
influências que a cultura dos assentados do MST exerce na formação das crianças no período
compreendido pela Educação Infantil?

O objetivo geral dessa pesquisa é analisar as influências da cultura do MST na formação


das crianças da Educação Infantil de uma escola de assentamento. Os objetivos específicos estão
assim definidos: identificar elementos/fatores da cultura do MST que influenciam a prática
pedagógica na Educação Infantil do Assentamento Roseli Nunes; e descrever as principais
ações e atividades educativas realizadas na Educação Infantil da Escola Estadual Madre Cristina

Na realização da presente pesquisa utilizou-se como ferramenta de coleta de dados a


entrevista. A entrevista foi realizada com duas educadoras da Educação Infantil, sendo que uma
delas atuou nas primeiras turmas de Educação Infantil da instituição, a partir de 2008; e a outra
é a atual educadora da Educação Infantil. Dessa forma pode-se também destacar as mudanças
ocorridas na organização da Educação Infantil da Escola. O objetivo da entrevista com as
educadoras foi identificar traços culturais do Movimento implícitos na prática pedagógica.
39

A entrevista também foi realizada com três entes familiares de crianças que frequentam
a Educação Infantil da Escola, duas mães e um pai. Para tal atividade, os familiares foram
escolhidos levando em consideração alguns aspectos como: disponibilidade, disposição em
participar, acessibilidade, e, claro, ter atualmente ou no passado filho(s) frequentando a
Educação Infantil da Escola. Aqui, o objetivo foi apreender e buscar entender a visão dos pais
acerca da importância da Educação Infantil na Escola e a valorização do fato de essas crianças
frequentarem uma escola do campo, assim como conhecer a visão deles acerca da influência da
cultura do MST na formação das crianças. Buscando, dessa forma, visualizar a identidade
própria do sujeito da/na comunidade.

Para uma melhor compreensão do termo,


Pode-se definir entrevista como a técnica em que o investigador se apresenta frente
ao investigado e lhe formula perguntas, com o objetivo de obtenção dos dados que
interessam à investigação. A entrevista é, portanto, uma forma de interação social.
Mais especificamente, é uma forma de diálogo assimétrico, em que uma das partes
busca coletar dados e a outra se apresenta como fonte de informação (GIL, 2008, p.
109).

De acordo com Gil (2002, p. 117) a “estratégia para a realização de entrevistas em


levantamentos deve considerar duas etapas fundamentais: a especificação dos dados que se
pretendem obter e a escolha e formulação das perguntas”. Assim:
Com relação à primeira etapa [...] significa estabelecer as relações possíveis entre as
múltiplas variáveis que interferem no problema. Com relação à segunda etapa, qual
seja a de escolha das perguntas, convém que se considerem diversos aspectos, tais
como:
a) as questões devem ser diretas (por exemplo: "O que você acha da maconha?") ou
indiretas (por exemplo: "Seus amigos são favoráveis à maconha?")?
b) as respostas devem ser formuladas previamente ou devem ser livres?
c) os aspectos a que se referem as perguntas são realmente importantes?
d) as pessoas possuem conhecimentos suficientes para responder às perguntas?
e) as perguntas não sugerem respostas?
f) as perguntas não estão elaboradas de forma a sugerir respostas num contexto
demasiado pessoal?
g) as perguntas não podem provocar resistências, antagonismos ou ressentimentos?
h) as palavras empregadas apresentam significação clara e precisa?
i) as perguntas não orientam as respostas em determinadas direções?
j) as perguntas não estão ordenadas de maneira tal que os pesquisados sejam
obrigados a grandes esforços mentais? (GIL, 2002 p. 117-118).

Após observados os fatores que compõem a organização da entrevista, a mesma foi


aplicada de forma anônima e individual, e registrada em gravador de voz. Para todos os casos
buscamos fazer com que o ambiente e o clima da entrevista fosse o mais informal possível, para
40

que, assim, o entrevistado e as entrevistadas se sentissem mais à vontade e, dessa forma, o


diálogo fluísse de forma natural e as repostas fossem espontâneas.

A participação dos sujeitos da pesquisa se deu de forma anônima e sob assinatura de


Termo de Autorização e Esclarecimento. Onde esclarecemos que, mesmo aceitando (de início)
participar da pesquisa, os sujeitos poderiam a qualquer momento desistir e solicitar a não
utilização das informações, sem quaisquer ônus.

Assim, a fim de respeitar o anonimato dos sujeitos utilizaremos nomenclaturas


diferenciadas. Para identificar as educadoras serão utilizados os seguintes nomes: Ed1
(educadora de turmas passadas); Ed2 (atual educadora da Educação Infantil). Para a
identificação dos entes familiares que participaram, serão utilizadas as nomenclaturas seguintes:
Mãe1 (responsável por uma criança que frequenta a Educação Infantil); Mãe2 (mãe de duas
crianças que frequentaram recentemente a Educação Infantil); Pai (pai de uma criança que
frequenta atualmente a Educação Infantil).

Após coletados os dados em gravador de voz, os mesmos foram transcritos de forma


fidedigna (sendo, inclusive, encaminhado uma cópia do áudio e da transcrição impressa para
cada sujeito).

Nos tópicos seguintes, contextualizaremos a instituição escolar e a comunidade onde foi


realizada a pesquisa.

3.2 Caracterização da Escola

A Escola Estadual Madre Cristina está localizada ao centro do Assentamento Roseli

Nunes, em território rural do município de Mirassol D’Oeste, conforme imagem abaixo: Figura

1
41

Fonte: Google Maps <https://www.google.com.br/maps/place/Escola+Madre+Cristina/>

Trata-se de uma instituição pública que, como o nome esclarece, é mantida pelo Estado
de Mato Grosso através da Secretaria de Estado de Educação (SEDUC-MT), e oferece
atendimento nos três turnos diários: matutino, vespertino e noturno. A instituição “mantém o
curso de Ensino Fundamental Ciclado (séries iniciais), seriado nas séries finais e Ensino Médio
Regular, multi-seriada, (EJA - educação de jovens e adultos)” (E. E. MADRE CRISTINA,
2016, p. 2).

A Educação Infantil é oferecida em prédio anexo à Escola, porém é mantida pelo


município de Mirassol D’Oeste, conforme estabelece a Lei de Diretrizes e Bases 9394/96.

O público atendido pela Escola é composto pelos filhos das famílias assentadas, e pelos
próprios pais e mães (na modalidade EJA), além de famílias de agricultores próximos ao
Assentamento.

Criada oficialmente através do Decreto estadual nº 3.021, de 06 de maio de 2004, a


instituição é fruto de um longo histórico de lutas e conquistas, cujo desenvolvimento acompanha
de forma paralela e indissociável a história do próprio Assentamento.
42

O início do Assentamento Roseli Nunes foi marcado pela ocupação da Fazenda Facão
no município de Cáceres, em 17 de março de 1997. De princípio eram 600 famílias, porém com
o passar dos dias esse número dobrou, tornando-se 1200 famílias provenientes de várias regiões
do estado e do país. Dessa forma houve a necessidade de dividir-se em núcleos para melhor
organizar o espaço. Assim, formaram-se 38 núcleos de famílias, levando em consideração
fatores como afinidade, regiões de origem e outros aspectos. “Os setores, também, foram se
formando como: saúde; segurança; higiene; finanças; animação; educação; esporte; organização
da juventude; formação; comunicação; cultura, etc.” (E. E. MADRE CRISTINA, 2016, p. 4).

Após pouco mais de um ano da ocupação, em abril de 1998 é estabelecido o comodato8


de duas áreas: uma em território do município de São José dos Quatro Marcos, tratando-se da
Fazenda Santana, que deu origem ao Assentamento Florestan Fernandes onde foram assentadas
180 famílias. A outra área, trata-se da Fazenda Prata que deu origem ao Assentamento Roseli
Nunes que, como citado anteriormente, localiza-se em território dos municípios de Mirassol
D’Oeste, São José dos Quatro Marcos e Curvelândia910, conforme imagem a seguir; onde estão
assentadas 331 famílias.

8
Comodato é um modelo de empréstimo de algo que não pode ser substituído por outro da mesma espécie. Para
fins de nomenclatura, a parte que empresta é chamada “comodante”, e a parte que recebe o objeto do empréstimo
é chamado “comodatário”. (Definição dada pelo site www.normaslegais.com.br, disponível em:
<http://www.normaslegais.com.br/guia/clientes/comodato.htm> Acesso em: 27 mai. 2017).
9
Existem algumas dúvidas sobre o munícipio de Curvelândia na data do estabelecimento do comodato da Fazenda
Prata, abril de 1998, já que as suas primeiras eleições municipais foram disputadas em 2000. Dessa forma alguns
acreditam que a emancipação se tenha dado também em 2000, assim o então criado Assentamento Roseli Nunes
estaria situado apenas em território dos municípios de Mirassol D’Oeste e São José dos Quatro Marcos em sua
origem. Mas, na realidade Curvelândia conquistou emancipação no dia 28 de janeiro de 1998 através da LEI nº
10
.981 que a desmembrou dos municípios de Cáceres, Mirassol D’Oeste e Lambari D'Oeste, a lei foi publicada
no mesmo dia pelo Diário Oficial do Estado de Mato Grosso.
43

Figura 2

Fonte: Daiane Priscila Alves Godoi <http://slideplayer.com.br/slide/3336763/>

O nome dado ao Assentamento é uma homenagem feita à Roseli Nunes, uma das
precursoras do MST. Rose, como ficou conhecida, participou da primeira grande ocupação
organizada pelo Movimento: a ocupação da fazenda Annoni, localizada no município de Pontão
(Rio Grande do Sul), em 29 de outubro de 1985. Roseli Nunes faleceu vítima de atropelamento
em 1987, quando um caminhão foi jogado sobre uma multidão de integrantes do MST que
realizavam uma manifestação, resultando em três mortes. Porém, antes de sua morte, Rose
proferiu a frase que seria eternizada pelo Movimento na luta pela Reforma Agrária: “Prefiro
morrer lutando a morrer de fome”.

Mesmo após o estabelecimento do comodato da área foram anos de acampamento, anos


debaixo de barracos de lona até a conquista oficial da terra. Durante esse período a escola
itinerante, organizada imediatamente após a chegada na então Fazenda Prata, estabeleceu raízes
e fortificou seu vínculo junto à comunidade.
No início funcionava na escola de 1° a 4° série e os primeiros educadores foram Jair
Furlan, Ana Luiza Furlan, Sônia Inês Neves, Valdirene Balduino, Geralda S. G.
Miranda, Maria José de Souza Gomes e Luiza Avelino que desafiaram todas as
dificuldades e fizeram acontecer à educação formal dentro do comodato (E. E.
MADRE CRISTINA, 2016, p. 6).

A existência da escola itinerante e a preocupação da comunidade em relação a educação


de seus filhos fez com que o vínculo entre as famílias se fortificasse cada vez mais. Daí a
afirmação de que o desenvolvimento da escola acompanha o desenvolvimento do assentamento.
44

Essa união entre os indivíduos foi responsável pela implantação da escola, já que dificuldades
e desafios não faltavam.
A implantação da escola foi gradativa e cheia de dificuldades. No início era feita de
coqueiro, coberta de lona e só tinha até a 6ª série (1999), depois foi feita com tábuas
e telhas usadas, e foi implantada 7ª e 8ª série (2000/2001).
O ano de 2002 foi muito difícil no setor de educação do assentamento. Devido ao
parcelamento da área, as famílias a partir de julho de 2002 começaram a ir para seus
lotes. A maioria delas ficou longe da escola e sem estradas, principalmente na
comunidade Conquista da Fronteira onde foi criada a extensão, houve muitas evasões,
devido à distância é a falta de condições de frequentar as aulas (E. E. MADRE
CRISTINA, 2016, p. 7).

Assim, a dificuldade na implementação de um prédio e uma organização escolar


adequada ao atendimento dos alunos era constante. As longas distâncias e as péssimas
condições das estradas foram responsáveis por evasões de alunos. Ainda nos dias atuais alguns
trechos das estradas são quase intransponíveis em época de chuvas.

Em 2003 iniciou-se a construção do prédio escolar, com recursos estaduais e dos


próprios assentados. Neste mesmo ano, os alunos eram transportados, ao menos os que
moravam em locais acessíveis ao transporte, para estudar na Escola São José, numa comunidade
rural chamada Veredinha também pertencente ao município de Mirassol D’Oeste e, distante
cerca de 30 Km do Assentamento.

Em 2004 o prédio da Escola Estadual Madre Cristina foi inaugurado, e a instituição


“passou a ser Estadual e não mais municipal, pois na época da construção o Prefeito não assumiu
os gastos deixando a responsabilidade das despesas para o estado” (E. E. MADRE CRISTINA,
2016, p. 7). Foram, ainda, disponibilizados dois ônibus para o transporte escolar.

A Escola recebeu o nome de Madre Cristina em homenagem “ao empenho da educadora,


psicóloga e estudiosa Célia Sodré Dória, ou melhor, Madre Cristina como era conhecida” (E.
E. MADRE CRISTINA, 2016, p. 6). Célia é autora de vários livros na área da psicologia e de
acordo com a comunidade, “uma mulher valorosa, com uma visão de sociedade voltada para os
mais pobres, sofridos e oprimidos e que foi perseguida por querer uma vida melhor para todos”
(E. E. MADRE CRISTINA, 2016, p. 6).

De acordo com o Projeto Político-Pedagógico da instituição “No processo educativo da


Escola Estadual Madre Cristina vivencia-se as matrizes pedagógicas enfatizadas pelo MST” (E.
E. MADRE CRISTINA, 2016, p. 8). Portanto, os princípios educativos da Escola são norteados
45

também pelas matrizes do Movimento, além, é claro, das orientações pedagógicas da Secretaria
de Estado de Educação (SEDUC-MT) e dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s).

A Escola Madre Cristina propõe uma educação específica e diferenciada, isto é,


educação no sentido amplo do processo de formação humana que constrói referências
culturais e políticas do educando, por meio do trabalho pedagógico que leve a um
senso crítico enquanto cidadão participante e transformadores da sociedade. Busca
uma ação educativa baseada no interesse, criatividade, disposição aos estudos,
procurando desenvolver um conteúdo significativo para o educando, baseado nos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) e na realidade do campo, promovendo a
integração dos conteúdos (ética, meio ambiente, saúde, pluralidade cultural,
sexualidade, trabalho, consumo e cidadania) nas diversas disciplinas (E. E. MADRE
CRISTINA, 2016, p. 11).

Dessa forma a instituição busca a valorização da realidade do campo, buscando


transformar alunos em sujeitos críticos, capazes de dar continuidade à luta por direitos sociais
básicos e de disseminar os valores da cultura campesina.
46

CAPÍTULO IV EDUCAÇÃO INFANTIL NA ESCOLA ESTADUAL MADRE


CRISTINA

Apresentaremos, neste capítulo, a análise dos dados coletados in loco, mediante


realização de entrevista com as educadoras e entes familiares de crianças que frequentam a
Educação Infantil. Dessa forma, procuramos destacar a vivência educativa das crianças na
Educação Infantil no interior da instituição e proporcionar uma visão ampla em relação à
pesquisa realizada.

Destaca-se que os sujeitos da pesquisa serão identificados por codinomes, respeitando o


anonimato. Dessa forma, como descrito no capítulo III, utilizaremos a seguinte nomenclatura
para os sujeitos: Ed1 (educadora de turmas passadas); Ed2 (atual educadora da Educação
Infantil). Para a identificação dos entes familiares que participaram, serão utilizadas as
nomenclaturas seguintes: Mãe1 (responsável por uma criança que frequenta a Educação
Infantil); Mãe2 (mãe de duas crianças que frequentaram recentemente a Educação Infantil); Pai
(pai de uma criança que frequenta atualmente a Educação Infantil).

Conforme esclarecido no capítulo III, a escolha dos entes familiares se deu de acordo
com a disponibilidade, disposição em participar, acessibilidade, e, claro, ter atualmente ou no
passado filho(s) frequentando a Educação Infantil da Escola Estadual Madre Cristina.

Como critério de escolha dos sujeitos, partimos da diversidade de vivências buscando


evidenciar os fatores através de múltiplos pontos de vista, assim temos:

 Ed1 – educadora das primeiras turmas de Educação Infantil da Escola Estadual Madre
Cristina (atuou a partir de 2008), reside na zona rural, mas fora do Assentamento;

 Ed2 – educadora atual da fase pré-escolar (4 a 5 anos) da Educação Infantil, reside no


Assentamento;

 Mãe1 – reside no Assentamento através da compra do terreno, ou seja, não participou


da ocupação que deu origem ao Assentamento;

 Mãe2 – reside no Assentamento sendo oriunda de outro assentamento;

 Pai – reside no Assentamento desde a origem, é professor, e leciona na Escola Estadual


Madre Cristina.
47

As entrevistas foram realizadas na residência do sujeito (Mãe1) e nas dependências da


Escola Estadual Madre Cristina (Ed1, Ed2, Mãe2 e Pai). Tudo ocorreu conforme planejado,
cada entrevista teve em média de 18 à 20 minutos. As entrevistas foram gravadas e,
posteriormente, transcritas, e foi encaminhado para cada participante uma cópia do áudio (em
disco) e uma cópia da transcrição (impresso).

Destaca-se ainda que as entrevistas foram realizadas no mês de junho de 2017, e que as
datas foram escolhidas de acordo com a disponibilidade dos entrevistados.

4.1 A visão das educadoras

De acordo com o que foi explicitado acima, a entrevista foi realizada com duas
educadoras da Educação Infantil. Sendo que uma (Ed1) atuou em outra época, com turmas
passadas, e a outra (Ed2) atua hoje. A entrevista foi composta por nove perguntas, conforme
segue:

 Existem diferenças entre uma escola do campo em assentamento do MST, como é o


caso da Escola Estadual Madre Cristina, e outras escolas do campo? Caso sua resposta seja
positiva, identifique estas diferenças?

 Em relação à metodologia e ao conteúdo, quais as especificidades da Educação Infantil


na escola do campo, mais especificamente, na Escola Estadual Madre Cristina?

 Que vínculos você possui com o Assentamento Roseli Nunes e com a Escola Estadual
Madre Cristina?

 Quais são os maiores benefícios da Educação Infantil oferecida pela Escola Estadual
Madre Cristina para a formação de sujeitos?

 A Escola Estadual Madre Cristina busca aproximar as crianças da cultura do


Movimento?

 Existem problemas na organização da Educação Infantil oferecida pela Escola Estadual


Madre Cristina? Se existem, quais são?

 Existem diferenças entre o público infantil da Escola Estadual Madre Cristina e o


público infantil das escolas das cidades? Quais são essas diferenças?
48

 Sabendo da importância da Educação Infantil no processo de escolarização e


desenvolvimento da criança, e sabendo que, consequentemente, a educadora deste nível de
ensino participa da formação do sujeito responda: que tipo de sujeito você quer formar?

 Você considera importante uma formação docente voltada à Educação no Campo? Por
que?

Com a primeira pergunta buscamos identificar, na visão das educadoras, as diferenças


entre uma escola do campo em assentamento e outras escolas. As respostas a essas questões
foram:

Ed1 – Sim. No caso, aqui nessa Escola Madre Cristina o que é mais focado é, assim, valorizar
a luta que os pais tiveram para conquistar a terra. Então, assim, desde o começo, então já
começa assim, trabalhando com os alunos na mística, que é uma questão de luta pra eles
valorizarem a terra.
Ed2 – Sim, existe diferença. A Escola Madre Cristina é uma escola do campo pertencente ao
Movimento, então as práticas, elas são mais coletivas, as pedagogias né, elas têm essa visão
de campo.
A experiência vivida nas escolas do campo aproxima as crianças da natureza, da vida
campesina. Desde o primeiro contato com a escolarização, a criança do campo, que já possui
um vínculo com a terra, está próxima aos elementos rurais, como: a plantação, o contato com
certas espécies de animais e com a terra (literalmente). Porém, no caso das escolas em
assentamentos do MST, essa diferença não para por aí.

As escolas dos assentamentos ligados ao MST possuem características próprias que vão
desde o seu surgimento até os objetivos a serem alcançados, conforme segue:
As escolas dos assentamentos do MST devem ser um lugar que [...] Mostre a realidade
do povo trabalhador, da roça e da cidade. Mostre o porquê de toda a exploração, o
sofrimento e a miséria da maioria. Mostre o porquê do enriquecimento de alguns.
Mostre o caminho de como transformar a sociedade (MST, 1999, p. 5).

Fica claro na resposta das educadoras que a escola do Assentamento Roseli Nunes é
engajada na luta do Movimento, em prol dos direitos sociais.

Conforme Caldart,
A escola do MST se insere nesta discussão, onde, então, certos detalhes começam a
ser bastante valorizados na proposta: a presença da bandeira do MST na escola, o tipo
de canções que acompanham as brincadeiras das crianças, a resposta que costumam
dar á pergunta: você é Sem-Terra? Emerge, pois, com força uma nova dimensão da
proposta: a preocupação com o cultivo da identidade histórica do Movimento e de
seus objetivos (1999, p. 170).
49

Dessa forma busca-se desde o início da escolarização a exposição e a vivência da vida e


da cultura do/no Movimento, com os símbolos, com as músicas, os valores, etc.

Na segunda pergunta buscamos identificar as especificidades da Educação Infantil no


campo, principalmente, no tocante à metodologia e ao conteúdo. As respostas dadas pelas duas
educadoras mostram a preocupação com uma educação articulada com a vida no campo:

Ed1 – Trabalha muito com as visitas nas famílias [...] Quais são as atividades que o pai
desenvolve pra ter a renda familiar, e além dos outros conteúdos que são obrigatórios, tem
mais estes pra complementar.

Ed2 – A gente visa as atividades não só dentro de sala, como atividades que possibilitam a
coordenação motora, mas todos os dias em contato com a natureza, as brincadeiras externas,
os momentos em que se faz a coordenação do corpo, a coordenação através dos espaços em
que a gente está. Isso é possibilitado por ser no campo.

As metodologias utilizadas na Educação Infantil do campo buscam sempre aproximar a


criança do cotidiano do próprio campo, não no sentido de prendê-las a essa realidade, mas
objetivando o reconhecimento e a valorização desta mesma realidade da qual a própria criança
é fruto. Assim, tanto Ed1 quanto Ed2 concordam e destacam a importância de se trabalhar,
também, fora da sala de aula, realizando atividades diversas.

De acordo com Machado,


Em linhas gerais, o MST defende para as suas escolas uma educação voltada para a
realidade do aluno do assentamento, que estabeleça a relação entre teoria e prática, a
partir de um ensino baseado em princípios humanistas e na cooperação, sendo capaz
de criar no educando uma consciência crítica, capaz de torná-lo um sujeito de ação
transformadora (2011, p. 20).

Dessa forma a escola do/no Movimento deve contar com uma organização pedagógica
que impregne em seus alunos os valores da vida e da luta no campo.

E, para que o trabalho pedagógico aconteça de forma coerente, os educadores, também,


precisam ter envolvimento com a realidade do campo. Por isso, buscamos saber das educadoras
que vínculos elas têm com a escola e com o Assentamento Roseli Nunes.

Ed1 – [...] a partir da escola você conhece a família, você vai conquistando a família através
dos alunos e conquista os pais também, eu acho que esse é o vínculo que eu tenho: a amizade,
o carinho, o respeito.
50

Ed2 – Eu sou assentada, sou camponesa, filha de camponeses, e sempre tive esse vínculo com
a terra [...] Então, assim, é aqui que eu me sinto bem, é aqui eu tenho meus laços, minhas
convivências né, as minhas ideologias estão vinculadas ao campo.

Aqui temos duas realidades um pouco diferentes, Ed1 destaca ainda que reside no
campo, mas fora do Assentamento Roseli Nunes, enquanto que Ed2 explica que é de origem
camponesa, no próprio assentamento. Ainda assim, há de se destacar a importância que ambas
dão à Escola, sendo que os vínculos com a instituição extrapolam a esfera profissional.

Destaca-se a importância e a necessidade desse vínculo afetivo com a instituição e com


a comunidade circundante, visto que esses profissionais terão um contato direto e prolongado
com as crianças dessa comunidade. E se tratando de Educação Infantil, na faixa etária “[...] dos
três aos seis anos [...] a criança começa a se tornar influenciável de um modo especial. Este
período é caracterizado pelas grandes transformações que ocorrem no indivíduo”
(MONTESSORI, 1949, p. 29). Esse é um período em que a criança fica, de certa forma,
vulnerável e receptiva a determinadas influências. Daí a importância ainda maior de se contar
com um profissional que possui um vínculo de afeto, uma relação de pertencimento à
comunidade.

Na quarta pergunta questionamos sobre os benefícios da Educação Infantil da Escola


Estadual Madre Cristina:

Ed1 – [...] todo ano tem uma atividade que é desenvolvida com as crianças, acho que de cinco,
pegam até uma faixa etária né, cada ano muda, às vezes até sete ou oito; que é o encontro de
Sem-Terrinha, que eu acho engraçado que aí, assim, é trabalhado com eles e ali trabalha
valores [...] Então assim, é uma atividade interessante que desde pequeno eles já vão
entendendo a forma como que eles tem pra reivindicar seus direitos.

Ed2 – A gente propõe, lá dentro do conteúdo programático, atividades de sensibilização,


mesmo, pra natureza, pra terra, com Projetos Políticos Pedagógicos que valorizem essa
questão do campo, a participação das crianças na mística né, sempre que possível. E, desde
pequeno já esse conhecimento de que eles pertencem a uma classe social né, trabalhadores,
que está vinculado a um assentamento que é de um movimento social.

Aqui as educadoras destacam a importância do trabalhado realizado, não só por elas,


mas pela instituição como um todo, que procura sempre trabalhar de forma a respeitar as
especificidades da comunidade circundante e do público atendido.
51

Ed2 destaca ainda a presença das místicas no cotidiano escolar; são muito comuns nas
escolas vinculadas ao MST, mas pouco conhecidas em outras realidades educacionais. Lage
argumenta que,

Mística, é outra palavra muito utilizada pelos Sem-Terra. Traz intrínseco um conjunto
de significados que vai muito além da perspectiva religiosa, geralmente atribuída a
este termo. A mística parece ser o sentimento que une as pessoas em prol de uma causa
comum e na vontade ativa de construir um caminho coletivo, que leve uma melhor
condição de vida a todos os Sem-Terra. A mística pode ser também entendida pela
vertente da solidariedade e da fraternidade, que os fazem partilhar da mesma luta,
colocando-os num novo patamar de dignidade nunca experimentado pela grande
maioria dos Sem-Terra; a mística é este novo que ocupa a possibilidade um futuro
viável (LAGE, 2008, p. 502-503).

Assim, as manifestações culturais são constantes na vivência da escola, visando a


inclusão da criança na vida do campo e a assimilação, por parte da criança, de traços culturais
e políticos do Movimento, de forma que possam vivenciar, entender e dar continuidade à luta
por justiça e igualdade social.

A visão em relação ao que a Escola tem feito para cultivar os valores do Movimento é
reforçada nas respostas ao questionamento (questão 5) que fizemos sobre a identificação da
criança com cultura do Movimento e que fatores as aproximam da cultura do MST.

Ed1 – A Escola tenta passar através do Hino né, que aí eles cantam Hino. Eu acho engraçado
que no começo eles [...] até nós também, a gente levantava o braço direito né, e é o braço
esquerdo. Então, aí eles ficam observando, tem vez que levantam o bracinho direito, aí eles
veem que não é e levanta o bracinho esquerdo. Então, eu acho que a mística e o Hino do
Movimento, eu acho que faz com que as crianças identifiquem bem a cultura do MST.

Ed2 – Aqui no Assentamento a gente tem muitas famílias que vieram desse processo de luta, da
lona, mas também tem muitas famílias que chegaram depois através da compra do lote. A gente
tem famílias que, apesar da luta que veio, também não estão tão aderidas à militância no MST.
E tem outras famílias que chegaram depois, pela compra, e que estão bem aderidas nesse
processo de militância. Então a gente tem criança de todo tipo, tem criança que se vê, que se
identifica com a cultura, que conhece, que sabe o que é uma mística; e tem outra que não [...]
e o fator assim, que identifica, que aproxima que eu vejo assim, é aqui na escola, as crianças
menores vendo as crianças maiores apresentando as místicas, elas mesmas apresentando,
conhecendo a bandeira, conhecendo o símbolo do movimento né, e dentro dos seminários que
acontecem. Então são todos esses momentos que vão trazendo essa identidade camponesa como
militante do MST.
52

Portanto nota-se que as manifestações culturais, por estarem sempre presentes, são as
principais responsáveis pela transmissão dos traços culturais do Movimento. Sobre estes
aspectos sempre presentes, Machado afirma que,

[...] a educação no MST não pode ser analisada separadamente do contexto social de
luta pela reforma agrária. A experiência vivida nas ações de ocupação, acampamento
e assentamento devem ser compreendidas como um processo histórico e pedagógico,
que contribui significativamente para a formação do sem-terra como sujeito social
(2011, p. 2).

Assim é completamente compreensível a introdução de tais manifestos culturais na


escolarização do MST, pois todo assentamento e toda escola de assentamento são frutos de um
histórico de lutas. E não se pode permitir perder de vista o valor dessas conquistas, que são
ameaçadas constantemente por políticas públicas inadequadas que defasam a Reforma Agrária.

Um exemplo de ameaça às conquistas do Movimento está na própria questão da


Educação Infantil. Vejamos quais foram as respostas das educadoras quando questionamos
sobre os problemas enfrentados na organização da instituição e de seu currículo:

Ed1 – Bom, eu acho que o problema que tem todo ano é em relação ao município [...] demora
pra liberar a sala, entendeu, esse ano mesmo acho que foi com um mês de atraso. Então eu
acho que o problema, assim [...] é mais o município.

Ed2 – Sim, muitos. Muitos problemas! Todo ano é uma luta pra que ele consiga abrir a sala, é
a primeira luta. Desde quando iniciou, que foi, assim, uma luta, vinha uma luta ferrenha porque
não tinha Educação Infantil. Conseguiu abrir já depois das férias do meio do ano. E de lá pra
cá, todo ano é uma luta constante. Esse ano, por exemplo, a gente conseguiu abrir a Educação
Infantil depois de um mês de começado as aulas, porque tem essa parceria com a Prefeitura.
Então é a Prefeitura que paga o professor, é a Prefeitura que manda a alimentação através de
uma verba [...]que viabiliza os materiais pedagógicos. Só que esse diálogo não é bem feito!
[...] Pra você ter uma ideia [...]tem uma sala ali, que foi construída pela prefeitura, são as
professoras que estão limpando, porque eles não viabilizaram uma pessoa pra limpar. Então
você faz o que? Você tem que trabalhar, você sabe da necessidade da comunidade e você acaba
assumindo responsabilidade que não é sua. Até o mês passado, além da gente limpar, a gente
estava trazendo material de limpeza de casa: sabão em pó, detergente, pano, rodo. Porque a
gente também não vai ficar na sujeira e deixar as crianças na sujeira. Até pra vir limpar o pátio
da sala lá, tivemos uma briga lá com a prefeita e a secretária de educação.

Aqui, vale ressaltar e esclarecer que: embora a Escola Estadual Madre Cristina seja
estadual, a Educação Infantil é oferecida pelo município, através da Secretaria Municipal de
53

Educação, conforme estabelece a LDBEN nº 9394/96 em seu “Art. 11. Os Municípios incumbir-
se-ão de [...] oferecer a Educação Infantil em creches e pré-escolas” (BRASIL, 1996, p. 4).
Dessa forma a Prefeitura Municipal de Mirassol D’Oeste construiu uma sala para a Educação
Infantil, em frente ao prédio da Escola estadual madre Cristina, porém por vezes nega-se a
prestar a assistência necessária. Na fala de Ed2 fica claro o descaso do órgão em relação à
assistência básica.

Na pergunta sete questionamos sobre a diferença entre o público infantil da Escola


Estadual Madre Cristina e o público infantil das escolas urbanas. Uma questão que parece
simples e óbvia, mas, não menos importante de ser compreendida.

Ed1 – Pelo que eu tenho observado as crianças, principalmente nesse horário de recreação,
eles têm, assim, afinidade um com o outro, quase não tem, assim, o problema de briguinha, de
bater um no outro. Porque, às vezes, na cidade é muita briga né! Gente, é reclamação de pais
todo dia na escola

Ed2 – as crianças aqui, elas têm esse maior contato coma natureza, então ela vê o assentamento
por um outro prisma. Na cidade, por exemplo, você tem criança que, mesmo sendo em Mirassol,
que não conhece as diferenças dos alimentos, de onde eles vem, e, e aqui não, aqui elas já estão
engajadas nessa luta do dia-a-dia, do trabalho do pai, do trabalho da mãe.

Esclarece-se que o público infantil da Escola Estadual Madre Cristina é composto por
crianças que tem uma relação direta com a natureza e o campo. São crianças que desde a mais
tenra idade conhecem o valor do trabalho. São crianças cujas próprias brincadeiras são mais
voltadas ao que é natural. Além disso possuem um vínculo de respeito maior em relação aos
outros.

Todos estes aspectos são de extrema importância na formação integral do indivíduo.


Para Montessori “O indivíduo humano é uma unidade. Pois muito bem, esta unidade deve ser
construída e fixada através de experiências ativas sobre o ambiente, estimuladas pela natureza”
(MOTESSORI, 1949, p. 223).

Assim, esse contato direto com o ambiente, com a natureza e com o outro, constitui
elemento essencial para a formação do sujeito. Conforme Pasuch e Santos,
É a partir desta perspectiva que analisamos a importância e a responsabilidade da
Educação como um todo, e da Educação Infantil de maneira especial, para as crianças
do campo, filhos e filhas de trabalhadores/ as, agricultores/as familiares,
assalariados/as rurais, sem-terras, extrativistas, ribeirinhos, pescadores, quilombolas,
indígenas, dentre outros que, a partir de seus saberes e práticas vivenciadas e
compartilhadas, constroem identidades próprias e coletivas (2012, p. 114).
54

O contato com o ambiente do campo facilita a assimilação da cultura e dos valores


camponeses pela criança.

A oitava pergunta aborda a formação que as educadoras esperam proporcionar às


crianças da Educação Infantil da Escola Estadual Madre Cristina.

Ed1 – Eu já gostava de trabalhar a coordenação motora com letras, aí assim, eu já gostava de


ir direto para as letras, aí ali eu trabalhava a coordenação motora

Ed2 – O nosso objetivo, pelo menos o meu objetivo enquanto educadora, é formar um sujeito
que conheça seus direitos, que lute pela sua classe, que se entenda como uma pessoa que quer
aquilo que te faz feliz. Eu não vou impregnar nos meus alunos, por exemplo, a ideia de ele tem
que ser camponês a vida inteira, ou a ideia de que ele tem que estudar pra sair do campo. Então
as propostas e os objetivos, é que ela entenda todo o processo e ela faça essa opção como
cidadão, desde que ela se sinta bem, que ela se sinta feliz.

Na fala de Ed2 nota-se a preocupação com a formação humana integral da criança,


visando um sujeito crítico, autônomo e feliz. Conforme as Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação Infantil, em seu artigo 8º;
A proposta pedagógica das instituições de Educação Infantil deve ter como objetivo
garantir à criança acesso a processos de apropriação, renovação e articulação de
conhecimentos e aprendizagens de diferentes linguagens, assim como o direito à
proteção, à saúde, à liberdade, à confiança, ao respeito, à dignidade, à brincadeira, à
convivência e à interação com outras crianças (BRASIL, 2009, p. 2).

Assim, a garantia de uma proposta pedagógica adequada à realidade da criança assentada


é fundamental para que as populações do campo preservem sua identidade. Nota-se também, na
fala de Ed1, uma preocupação em relação ao trabalho com as letras. Isso se dá como forma de
diminuir o impacto sofrido pela criança que sai da Educação Infantil para o Ensino
Fundamental, auxiliando assim o desenvolvimento da criança, pois sabe-se que a alfabetização
não é prioridade da Educação Infantil.

Na pergunta nove focamos na formação docente voltada ao campo, buscando saber se


as educadoras consideram necessário ter formação específica para atuar em escolas do campo.

Ed1 – Eu acho que seria importante né, porque, assim, até a gente que trabalha aqui, a gente
vai se aperfeiçoando com a convivência né, com a escola, com o pessoal que já vieram de luta.

Ed2 – Sim. A maioria dos educadores não vê esse processo de formação docente no campo nas
universidades [...] Porque é uma especificidade que tem que ter esse aparato da universidade.
55

Não é simplesmente só um professor que vai fazer uma Pedagogia da Terra que conhecer a
especificidade do campo, toda formação tinha que ter isso [...] eu fiz um regular porque eu não
podia fazer o outro né, mas eu vim pro campo, eu me identifico com o campo, eu quero ficar
no campo. Então tinha que ter tido isso na faculdade.

No Brasil, há uma preocupação crescente em relação à formação docente, e ao se tratar


da Educação do Campo isso não é diferente, pelo menos nos últimos anos em que essa
modalidade educativa ganhou certa evidência. Muitos profissionais encontram dificuldades que
os impedem de realizar um bom trabalho em uma instituição do campo, pela falta de formação
que lhes proporcione compreender as especificidades dessas escolas. Como esclarecido por Ed2
não são todos os profissionais que tem a possibilidade de participar de um curso voltado à essa
área, e, assim, os profissionais que fizeram um curso regular de graduação acabam assumindo
cargos (professor, coordenador, diretor) em escolas do campo, sem conhecer a realidade dessas
escolas e as necessidades e aspirações dos sujeitos que ali vivem.

De acordo com Molina,


Há que se instituir na estrutura das instituições de ensino superior brasileiras e em
escolas de nível médio, processos de formação inicial de educadores do campo. Não
há, ainda, consenso sobre o perfil do profissional demandado pelas escolas do campo,
um perfil coerente com a nova perspectiva de Educação do Campo que vem sendo
construída. Tem-se a certeza, apenas de que, tal formação deve assentar-se em
princípios universais já consagrados no setor das ciências da educação, e que leve em
conta que o campo é constituído de especificidades que não podem ser ignoradas nos
processos educativos, mais que isso, essas especificidades somente estarão presentes
se o professor tiver tido formação adequada (2006, p. 24-25).

Assim, podemos compreender a importância do profissional com formação adequada


para a escola do campo, pois sem a formação adequada o educador dificilmente poderá fornecer
os meios necessários para o desenvolvimento da criança do campo. Dessa forma corre-se o risco
de fazer com que a própria prática pedagógica do educador venha se tornar um obstáculo para
a aprendizagem e o desenvolvimento integral do aluno, uma vez que a criança assimila as
informações que recebe.

4.2 A visão dos familiares

Assim como na entrevista às educadoras, a entrevista com os entes familiares se deu de


forma individual e anônima, onde os sujeitos serão identificados pelos codinomes: Mãe1, Mãe2
e Pai.

A entrevista foi composta por seis perguntas, conforme apresentado logo abaixo:
56

 Você acha que a Escola Estadual Madre Cristina deve introduzir em seus conteúdos os
valores defendidos pelo Movimento?

 Sabendo que seu(sua) filho(a) está na Escola, e que a Escola é fruto da luta coletiva,
qual a importância de seu filho conhecer a história de lutas do Assentamento Roseli Nunes?

 Quais os benefícios de ter filhos estudando em uma escola do campo? Quais os possíveis
prejuízos de ter filhos estudando em uma escola do campo?

 Que formação você espera que a Escola Estadual Madre Cristina proporcione a seu (sua)
filho(a)?

 Como deve ser a formação dos professores que atuam na Educação Infantil em uma
escola do campo? Você considera importante uma formação voltada à Educação no Campo?
Por que?

 A cultura e os valores do MST são abordados no currículo e na prática pedagógica da


Escola Estadual Madre Cristina? O que você pensa sobre isso?

A primeira pergunta feita questionava qual a visão dos pais sobre a introdução de traços
culturais do MST na prática pedagógica:

Mãe1 – Bom, eu acho assim, que como aqui é um assentamento movido pelo MST né. Então eu
acho que numa parte sim, porque tá valorizando a cultura do assentamento deles né! Então eu
acho que sim, numa parte né.

Mãe2 - Sim. Porque através de interagir a luta né, os nossos filhos, valores, ele vai também
valorizando a nossa terra, a escola, então, os benefícios que o Movimento traz para nós. Então,
eu acho que é importante né, para isso, para eles também poder valorizar

Pai – Ah, com certeza, né! Porque eu acho que... Acho não, tenho certeza, porque desde lá da
Educação Infantil que elas também tem que entender o processo no qual elas também estão
constituídas enquanto sujeitos de uma história de luta e de resistência, de uma organização
que pra gente é muito importante e fundamental pra continuidade das família no campo.

Nessas falas fica clara a importância que as famílias dão aos valores defendidos pelo
MST, mesmo porque são esses os valores pelos quais lutaram e ainda lutam em prol à seus
direitos. Nota-se que Mãe1, no trecho “a cultura do assentamento deles né!” deixa a impressão
de se ver fora desse contexto. Isso ocorre, possivelmente, pelo fato de o sujeito não ter
participado da origem, da ocupação da terra e, portanto, não ter participado de muitos momentos
57

significativos da luta dos assentados. Ainda assim, destaca a importância e o respeito que tem
pela organização do Movimento, pela comunidade e pela escola.

Quando questionamos os pais se conseguiam enxergar a presença de traços do


Movimento na prática pedagógica e no currículo da Educação Infantil, e o que eles pensavam
sobre isso, as respostas foram:

Mãe1 – Aqui não conseguiu sem ter um fundador lá atrás né, teve que ter uma pessoa lá atrás.
Então isso aí a pessoa tem que, né, saber a criança tem que saber.

Mãe2 – Sim. Cantava, fazia mística...

Pai – Acontece sim, a gente vê, de vez enquanto eles participam das atividades que tem, e é
importante né. Eu acho que sem trabalhar essa questão da pertença, deles enquanto
criancinha, mas que ele pertence a uma organização de luta, eu acho que isso é fundamental.
E nas místicas fica bem visível isso.

As famílias assentadas, de modo geral, valorizam enormemente a introdução da cultura


do Movimento na escolarização. Assim ao relatar os aspectos desta cultura que veem
implícitas na prática pedagógica, as famílias o fazem reconhecendo o valor desta ação para a
perpetuação dos valores que o movimento defende.

Essa visão é complementada pelos pais quando questionamos sobre a importância dada
pelas famílias ao fato de a história do assentamento ser repassada para as crianças da
Educação Infantil da Escola Estadual Madre Cristina.

Mãe1 – Nessa parte aí está certo, ele tem que conhecer, porque né, é um pessoal que lutou
muito pra chegar até onde estão né. Então eles lutou muito pra chegar até aqui, então eu acho
que sim, a criança tem que aprender porque não pode deixar morrer também história de quem
lutou lá atrás

Mãe2 – [...] acho importante eles saberem o processo todinho, debaixo de barraco, o que nós
passamos, o que não passou, como que conseguiu construir a escola, como que conseguiu
construir a casa no sítio. Então eu acho importante.

Pai – A importância disso é que mesmo que a gente num processo de luta, quando a escola
trabalha isso também, como história mesmo, como história de luta e resistência, essa criança,
ela, começa a criar por si só a sua própria identidade, né [...] E saber que pra gente conquistar
alguma coisa, a gente tem que lutar né. Então desde pequeno a gente tem começar a luta e
entender como que é o processo de luta. Então eu acho fundamental isso!
58

Dessa forma podemos notar a importância que as famílias dão aos aspectos
característicos da cultura do Movimento, que são repassados na escola, implícitos na proposta
pedagógica da instituição.
[...] tal proposta pedagógica tem como finalidade formar o ser humano, educá-lo,
humanizá-lo, de forma que o aprendizado possa dar a ele condições de superação das
suas necessidades fundamentais, podendo ser capaz de transformá-lo integralmente,
produzindo um sujeito consciente dos seus direitos e da necessidade de lutar contra as
injustiças sociais e a favor da reforma agrária. Além disso, a pedagogia que o MST
propõe, daria condições a esse indivíduo de produzir a sua própria história,
transformando-a, de modo que essa transformação seria a condição fundamental para
a conquista da cidadania e de uma vida melhor (MACHADO, 2011, p. 18-19).

Diante disso, as famílias entendem que, para uma formação integral das crianças
enquanto sujeitos, é de extrema importância que saibam sobre o histórico de lutas e conquistas
do Movimento. Assim as crianças das famílias assentadas podem crescer já valorizando o
contexto social no qual estão inseridas. Ou seja, reconhecendo a comunidade como fruto de
luta, e se reconhecendo como membro dessa comunidade.

A condição de poder estudar numa escola do campo é valorizada pelos entes familiares
entrevistados e isso ficou evidente quando questionamos sobre os benefícios e possíveis
prejuízos de se estudar no campo.

Mãe1 – Numa parte é bom, mas só que o aprendizado daqui é totalmente diferente do
aprendizado da rua. Aqui, as vezes, é aquilo que já falei, eles envolvem muito com místicas

Mãe2 – A parte boa é que está dentro do assentamento né, local onde a gente mora, está sempre
presente. Pra mim não existe parte ruim!

Pai – Eu, no meu ponto de vista eu consigo ver mais a parte boa né. Porque ruim, eu acho que
poderia ser ruim se eles não tivessem a possibilidade de estudar aqui no campo. Isso pra mim
seria ruim, então eu quero dizer que pra mim é importante. Porque, primeiro eles estudando
aqui tem maior possibilidade deles permanecerem aqui no campo né. E também, esse campo,
pra eles também, ser trabalhado na escola não como um campo excluído igual, às vezes, a
grande mídia coloca. Mas que é um campo permeado de vida, um campo bom de se viver, um
campo livre de várias contradições que às vezes ele pode encontrar lá na cidade e aqui é um
campo repleto de vida né. E eu acho que eles estudarem aqui é só maravilha né, eu não consigo
ver malefício em relação a isso. Então, pra mim eu acho que é um orgulho até enquanto pai,
ter meus filhos estudando em uma escola do campo. Pra mim é bom demais.
59

As famílias destacam a questão da localização, pois por se tratar de um assentamento


bastante extenso é completamente benéfico que as crianças possam frequentar a escola no
interior do mesmo. Além disso, a Resolução CNE/CEB nº 2/2008 que trata sobre a oferta de
Educação Infantil no campo, em seu Artigo 3º estabelece que: “A Educação Infantil e os anos
iniciais do Ensino Fundamental serão sempre oferecidos nas próprias comunidades rurais,
evitando-se os processos de nucleação de escolas e de deslocamento das crianças” (BRASIL,
2008, p. 2).

Essa exigência busca evitar a necessidade de transporte com ônibus escolares, por um
trecho e período muito prolongados, pois geralmente as distâncias são grandes e as estradas, de
terra na grande maioria das vezes, não oferecem boas condições para a locomoção. Além disso
trata-se de crianças, e o cuidado deve ser redobrado. Assim evita-se o distanciamento entre a
criança e sua família, sua comunidade.

Porém, embora a localização seja um fator a ser destacado, não é o mais importante. A
oferta de Educação Infantil dentro do assentamento do MST proporciona à criança um
conhecimento acerca de sua realidade. Traz para o cotidiano da sala de aula elementos comuns
do campo, propiciando que uma criança camponesa possa reconhecer o valor da vida e das
conquistas da comunidade.

Machado afirma que essa não é uma luta recente,


Portanto, torna-se evidente que os Sem Terras desejavam construir uma escola de
forma dialética, responsável em produzir uma consciência histórica e não fictícia ou
falsa. Essa escola tinha de ser capaz de demonstrar, de forma objetiva e prática, a
existência da luta de classes no campo, a qual deve ser combatida com muita
organização e esforço da coletividade (MACHADO, 2011, p. 4).

Com base nos depoimentos dos entes familiares, podemos afirmar que a partir da
conquista que representa ter uma escola dentro do assentamento, pode se visualizar um futuro
promissor em relação ao futuro da comunidade e da cultura camponesa.

O futuro da cultura camponesa passa pelo tipo de formação que a Escola Estadual Madre
Cristina proporciona às crianças. Por isso, procuramos saber dos pais que tipo de formação eles
esperam para seus filhos.

O sujeito Mãe1 fez a seguinte afirmação “[...] eu acho assim, que o professor na sala
de aula é o segundo pai do filho da gente!”, deixando claro a importância do educador para o
desenvolvimento da criança.
60

Nas falas de Mãe2 e Pai, que seguem descritas abaixo, podemos identificar a
preocupação em relação a uma formação libertadora, que dê autonomia ao educando.

Mãe2 – A formação do aluno vai muito dele, você entendeu? não adianta a gente, tem hora,
bater com uma coisa que ele não queira. Tem que ensinar sim né, então a formação mais
humana, que aí ele busque mais pra frente conteúdo que ele quer né, agregar.

Pai – Oh, é uma escola voltada pra vida né! Uma escola que, ela, forma o sujeito pra viver
intervir dentro da sociedade. Uma formação que dá autonomia, uma educação que dá visão de
mundo, não aquele tipo de educação que coloca um taipa na criança que tem que falar lá que
Pedro Álvares descobriu o Brasil. Então uma formação que dê a ela condições dela poder
dialogar em qualquer instância da sociedade.

Talvez pareça prematuro falar em formação como sujeito quando tratamos de crianças,
não é, a Educação Infantil é o primeiro contato que a criança tem com a escola e merece especial
atenção. De acordo com Pasuch e Santos, as crianças “[...] existem no tempo presente e não
apenas como promessas de futuro. A criança é criança hoje, no futuro será adolescente, jovem,
adulta... Ela é ativa, criativa, protagonista de sua história” (2012, p. 115-16). Ou seja, nunca é
cedo para proporcionar uma formação crítica à criança. Se a escola pretende formar um sujeito
crítico, livre e autônomo, é com a criança que essa formação deve começar. Assim deve-se
considerar o fato de que se a criança não é mais um adulto em miniatura, como a visão de
outrora, tampouco a criança é apenas um sujeito do futuro. A criança é um sujeito do presente
que, com suas especificidades, “constrói sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina,
fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre a
natureza e a sociedade, produzindo cultura” (BRASIL, 2010, p. 12).

Sendo assim, ao identificarmos na fala de Pai a seguinte afirmativa: “formação que dá


autonomia, uma educação que dá visão de mundo”; notamos que as famílias também estão
cientes de que suas crianças são sujeitos de direito, e que necessitam de uma formação que lhes
proporcionem o desenvolvimento integral de suas capacidades. E o fato das famílias terem este
tipo de expectativa em relação a Educação Infantil é algo completamente benéfico para a
organização da mesma. Ao pensar ou planejar o currículo da Educação Infantil, a instituição
precisa levar em conta essa expectativa da família.

Procuramos, também, conhecer a visão dos pais sobre a formação dos educadores da
Educação Infantil no campo: como deve ser, se é importante uma formação voltada à Educação
no Campo, e por que.
61

O sujeito Mãe1 destacou que “Sim!”, e fez alguns relatos sobre a dificuldade de quem
vem de fora do assentamento, de fora da vida no campo: “Quando eu mudei para cá meus filhos
estudavam na rua. Quando chegou aqui eles (professores) mandaram meus meninos fazerem
uma pesquisa sobre plantação, sobre um monte de coisas, sabe, meus meninos não sabiam nada
disso e, nem tampouco eu, não sabia”. Dessa forma o sujeito concorda que existe dificuldade
para quem vem de fora da realidade do campo e, por isso, faz-se necessário uma preparação
melhor.

O sujeito Mãe2 destacou a importância de a universidade formar profissionais


preparados para atuar também no campo, relatando que: “teve muitos professores que vieram,
já, dar aulas aqui que nem ficou. Por que? Porque não estava preparado, né. Aí, talvez se
tivesse mais preparado, mais passado informação, como se diz, na faculdade, eles teriam
acolhido melhor, e trabalhado melhor”.

Sobre essa questão o entrevistado Pai assim se pronunciou:

Pai – Não dá pra você trabalhar... Estar no campo e querer trabalhar as mesmas coisa que lá
da rua, porque é uma contradição né [...] Então eu creio que é importante sim a formação
voltada pro campo, porque assim, até o Miguel Arroyo tem um lançamento do livro dele que
fala assim oh “novos sujeitos, novas pedagogias”, então se a escola não pensar que a
formação, ela parte de uma processo cultural, eu acho que não tem sentido essa formação [...]
Porque você vai conseguir deparar com as dificuldades daqui e você vai fazer uma relação,
um diálogo, com as outras, com o oposto que é o campo e a cidade.

Lembramos que pergunta parecida foi feita às educadoras, mas também é importante
conhecer a opinião das famílias em relação aos profissionais educadores. E, conforme
explicitado acima, as famílias dão muita importância ao fato de o educador ter conhecimento e
introduzir-se na realidade da comunidade, visto que assim poderá abordar com maior segurança
os traços culturais dos assentados do MST, dos trabalhadores do campo. Além disso essa
proximidade do educador com a vida do campo facilita na própria vivência do educador com a
comunidade, uma vez que o profissional assimile também traços dessa identidade camponesa,
como ocorre na Escola Estadual Madre Cristina.

É muito importante essa identificação e proximidade do educador com a realidade do


campo, pois só compreendendo os traços da vida campesina, o educador pode compreender o
meio em que seus alunos estão introduzidos. A partir daí, é possível a prática de metodologias
que respeitem as especificidades da cultura do campo.
62

A escola do campo, por ser uma instituição diferenciada, exige profissionais


diferenciados. De acordo com Machado,
Nesta escola, o professor não pode ser um mero espectador do processo educativo, ou
um simples transmissor de informação, mas deve ser, antes de tudo, um educador e,
como tal, precisa compartilhar a realidade vivida pelos alunos, como um grande
interlocutor e articulador entre a escola e o que nela se ensina, e o cotidiano dos
acampamentos e assentamentos (2011, p. 3).

Sendo assim, o educador deve estabelecer um contato próximo com a comunidade,


adquirindo saberes, conhecendo hábitos, etc. Tudo o que o embasará na prática pedagógica, que
vai muito além do aprendizado universitário.

No caso da Escola Estadual Madre Cristina, os educadores que vem de fora do


assentamento são acolhidos pela instituição, que oferece abrigo em suas dependências. Dessa
forma os profissionais permanecem no interior do assentamento, criando e estreitando vínculos
com alunos e famílias. Além disso, os educadores geralmente estão envolvidos nas atividades
e eventos do assentamento, que normalmente ocorrem nas dependências da própria escola.

4.3 Algumas confluências entre as falas dos sujeitos

De acordo com as falas dos sujeitos que participaram das entrevistas, entes familiares e
educadoras, podemos notar com certa clareza a proximidade entre a instituição e a comunidade
do assentamento. Destaca-se o fato de a escola ser o centro do assentamento, o local onde
ocorrem eventos, manifestações culturais, etc. Assim podemos vislumbrar que a organização
do assentamento em si, passa pela organização da própria escola. Não podendo então, deixar de
considerar a importância da instituição escolar para as famílias assentadas, e não apenas as
famílias de alunos, mas todas que de uma forma ou outra buscam viver e compartilhar as
experiências vividas.

Assim, não é difícil compreender a importância que as famílias dão aos profissionais
que atuam na escola, de tal forma que estes são acolhidos, não só pela instituição, mas pela
comunidade em geral. Porém, ressalta-se que para que esse vínculo seja criado o próprio
educador deve ter consciência de que, ao atuar em uma escola do campo, e mais que isso, uma
escola de assentamento, estará participando de uma realidade completamente diferente da
realidade urbana. Importante também destacar, que esse acolhimento em momento algum deve
ser visto ou considerado uma forma de exaltação ao educador como superior aos sujeitos da
comunidade, mas sim como maneira de torná-lo um sujeito igual aos demais desta comunidade.
63

Assim, como sujeito da comunidade camponesa, o educador exerce uma função extremamente
importante dentro e fora da sala de aula, instruindo, participando, criando junto aos alunos e
comunidade, etc.

Podemos notar um certo distanciamento na fala de Mãe1, em relação aos traços culturais
do Movimento. Isso se dá, como afirmado anteriormente, pelo fato de o sujeito não ter
participado da conquista da terra através da ocupação e das lutas do Movimento. Além disso, o
sujeito ao adquirir a terra através da compra, encontrou uma comunidade organizada, e de cuja
organização este não participou desde o início. Vale destacar que em momento algum buscamos
desmerecer quaisquer sujeitos do assentamento em relação ao restante da comunidade, apenas
destaca-se o fato da compra como forma de explicar o distanciamento entre o indivíduo e a
ideologia do Movimento; pois, mesmo as famílias que chegaram ao assentamento através da
compra, são oriundas de lutas contra a exploração das classes superiores.

Fica evidenciada a visão positiva dos sujeitos em relação à inclusão dos traços culturais
do Movimento nas práticas pedagógicas da Educação Infantil como forma de perpetuar a cultura
camponesa e o espírito de luta, valores defendidos pela comunidade e pelo movimento. Nota-
se a preocupação em não se deixar perder de vista a história do assentamento, os valores que
levaram à conquista do espaço onde vivem, e o reconhecimento da importância da luta em prol
a superação da exploração e autonomia frente a sociedade.

É importante ressaltar que as famílias têm cada vez mais a consciência de que suas
crianças são sujeito históricos que possuem capacidades de criação e assimilação de
conhecimento, de cultura. Assim, a Educação Infantil exerce um papel ainda mais importante
frente a estas famílias, que passam também a lutar pelo direito à Educação Infantil.

Um ponto negativo que merece ser problematizado, mas que infelizmente não
surpreende em nenhuma instituição pública do país, são as políticas públicas ineficazes, que
tiram dos órgãos ‘competentes’ certas responsabilidades e as repassam para a comunidade e
para os profissionais. Fica claro na fala das educadoras as dificuldades encontradas ao lidar com
a Secretaria Municipal de Educação e a Prefeitura Municipal de Mirassol D’Oeste, que são
responsáveis pelo oferecimento da Educação Infantil no Assentamento Roseli Nunes. Não
buscamos aqui fazer juízo de valor ou sobrepor uma profissão à outra, mas se educadoras
precisam disponibilizar tempo e materiais para assumir o papel que seria da equipe de
manutenção de infraestrutura (limpeza) o prejuízo é da própria Educação Infantil, pois este
64

mesmo tempo seria empregado na organização e planejamento de atividades, e este valor (gasto
na compra de materiais) poderia ser utilizado na aquisição de materiais pedagógicos.

Portanto, podemos afirmar que o funcionamento da Educação Infantil, tanto quanto de


toda a instituição, em seus diversos aspectos (desde o currículo organizacional à prática
pedagógica na sala de aula) encontra dificuldades no âmbito das políticas públicas. Ou seja, ao
se tratar da manutenção da instituição, dos veículos para transporte escolar e das estradas, que
em determinadas épocas dificultam e atém impossibilitam o acesso à algumas áreas do
assentamento, estamos tratando dessas políticas públicas, que constituem fatores externos, de
fora do assentamento, mas que influenciam diretamente no interior do assentamento. Em
síntese, as decisões tomadas em gabinetes distantes da realidade do assentamento influenciam
diretamente no cotidiano da comunidade (assentamento – escola – Educação Infantil). Enquanto
que no aspecto interno da comunidade, onde obviamente há uma diversidade de pensamentos,
mas ao se tratar de educação existe o consenso em relação à necessidade da manutenção dos
valores e dos costumes da vida campesina. Assim, ao focarmos a Educação Infantil, esse quadro
não é diferente, os aspectos negativos (externos) são enfrentados com disposição e união entre
educadores e famílias.

A visão positiva em relação a manutenção de traços culturais do Movimento no


cotidiano escolar, é vista não apenas como a manutenção dos costumes, mas principalmente
como a manutenção da luta em defesa dos direitos dos trabalhadores rurais e da transformação
social mais ampla.
65

CONSIDERAÇÕES

A escolarização de crianças de zero a cinco anos é uma fase delicada e que exige um
cuidado máximo do educador, pois se trata do primeiro contato da criança com a escola, e
principalmente, uma etapa da vida onde a criança se encontra em pleno desenvolvimento de
suas capacidades. Portanto, se trata de um período em que a criança está aberta a experimentar,
criar e também a assimilar conhecimentos e influências. Diante disso visualizamos, através da
pesquisa, a existência de traços culturais do MST presentes na prática pedagógica da Educação
Infantil.

Considerando a importância das características próprias de cada cultura, como forma de


respeitar e valorizar a sociedade multicultural em que vivemos, podemos ver com ‘bons olhos’
a busca pela reprodução e perpetuação da cultura camponesa dos sujeitos assentados. A vivência
nos assentamentos, por si só já constitui influência cultural sobre os indivíduos que fazem parte
dessa realidade, pois a solidariedade, a união, a democratização das decisões da comunidade,
entre outros fatores, estão sempre presentes nesse tipo de sociedade, e constitui fator primordial
para a sobrevivência da comunidade.

Estes fatores estão presentes também nas escolas, e por elas são disseminados. Mesmo
porque as escolas de assentamentos representam, sempre, o coração da organização da
comunidade assentada. É um espaço educativo institucionalizado, mas que rompe as barreiras
da educação formal. É na escola do assentamento que são realizadas reuniões da comunidade,
eventos beneficentes, esportivos e culturais.

Dessa forma é fácil compreender a presença da cultura do Movimento, que norteia a


forma de vida na comunidade, na organização da escola. Ritos como a realização das místicas
e cantar o Hino com o braço esquerdo levantado e a presença de símbolos como a Bandeira do
Movimento, são comuns nas escolas dos assentamentos vinculados ao MST. E são hábitos que
visam ensinar a criança a valorizar a sua própria origem, não visando fechar os olhos dos alunos
para o mundo fora dos assentamentos, pelo contrário, buscam reconhecer o assentamento em
meio à sociedade, dando bases ao aluno para que se forme integralmente, respeitando as culturas
diversas, mas sem deixar de valorizar sua própria cultura.

Há um dito popular que diz “Educação vem de berço” e é lá mesmo que a educação
deve começar. A criança por mais jovem que seja, sente e percebe o mundo à sua volta. É com
66

esta consciência que a Escola Estadual Madre Cristina expõe a cultura do Movimento a suas
crianças, para que esta possa ser vivida e percebida desde cedo. Assim alguns questionamentos
podem surgir em relação a introdução dos traços culturais do MST na escolarização. Porém,
antes de assimilar e considerar determinados discursos, há de se raciocinar sobre as intenções,
a origem e a finalidade de certas falas.

A reprodução cultural que o Movimento espera de suas escolas volta-se à formação de


sujeitos que sustentarão as práticas do próprio Movimento no futuro. Sob este prisma podemos
estabelecer que tais estratégias visam à perpetuação do próprio Movimento. E, diante dos
valores historicamente defendidos pelo MST, que resultaram nas conquistas das quais a
sociedade atual é testemunha, podemos perceber a importância de estratégias como essas, não
só como forma de cultivar as lembranças das conquistas, mas como forma de manter/perpetuar
a própria luta em prol aos direitos sociais dos menos favorecidos.

A criança do campo, de famílias assentadas, que frequenta a Educação Infantil passa a


reconhecer desde a mais tenra idade a importância de sua comunidade, através das atividades
voltadas ao ambiente e a valorização das atividades/trabalho das famílias do campo. São os
efeitos causados por uma prática pedagógica impregnada por traços culturais da comunidade
circundante. Talvez as escolas urbanas devessem tomar como exemplo a valorização cultural
que as escolas do campo apresentam, dando a seus alunos possibilidades de conhecer o mundo
através de sua realidade e de respeitar as diversas culturas a partir de sua própria.
67

REFERÊNCIAS

BAHNIUK, Caroline; CAMINI, Isabela. Escola Itinerante. IN: CALDART, Roseli Salete, et
al (org.). Dicionário da Educação do Campo. São Paulo: Escola Politécnica de Saúde
Joaquim Venâncio, Expressão Popular, 2012.

BARBOSA, Maria C. S.; FERNANDES, Susana Beatriz. Educação Infantil e educação no


campo: um encontro necessário para concretizar a justiça social com as crianças pequenas
residentes em áreas rurais. Revista Reflexão e Ação. Santa Cruz do Sul. v.21, n. esp.,
p.299315, jan./jun. 2013.

BOGO, Ademar. MST e a Cultura. Guararema: ITERRA, 2000.

BRASIL. Presidência da República. Constituição Federal de 1988. Brasília: 1988.

_______. Presidência da República. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990: Dispõe sobre o


Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília: 1990.

_______. Presidência da República. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996: Estabelece as


diretrizes e bases da educação nacional. Brasília: 1996.

_______. Presidência da República. Decreto nº 7.352, de 4 de novembro de 2010: Dispõe


sobre a política de educação do campo e o Programa Nacional de Educação na Reforma
Agrária – PRONERA. Brasília, 2010.

_______. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Básica. Resolução nº 2, de 28


de abril de 2008. Brasília: CNE/CEB, 2008.

_______. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Básica. Resolução nº 1, de 3


de abril de 2002. Brasília: CNE/CEB, 2002.

_______. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Básica. Resolução nº 4, de 13


de julho de 2010. Brasília: CNE/CEB, 2010.

_______. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Básica. Resolução nº 9, de 17


de dezembro de 2010. Brasília: CNE/CEB, 2009.

_______. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretrizes curriculares


nacionais para a educação infantil. Brasília: MEC, SEB, 2010.

_______. Ministério da Educação. Dúvidas mais frequentes sobre educação infantil.


Brasília, 2013. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=8169duvi
das-mais-frequentes-relacao-educacao-infantil-pdf&Itemid=30192> Acesso em: 22 de junho
de 2017.

CALDART, Roseli Salete. Pedagogia do Movimento Sem Terra: escola é mais do que escola.
Petrópolis: Editora Vozes, 2000.
68

CERVO, Amado L.; BERVIAN, Pedro A.; SILVA, Roberto da. Metodologia científica. 6. ed.
São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2007.

COHN, Clarice. Antropologia da criança. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

DAL RI, Neuza M.; VIEITEZ, Candido G. A educação do Movimento dos Sem-Terra:
Instituto de educação Josué de Castro. Educação e Sociedade. Campinas, vol. 25, n. 89, p.
1379-1402, Set./Dez. 2004.

DOURADO, Joseane Rodrigues. Breve histórico da educação Infantil. 2012. disponível em:
<https://pedagogiaaopedaletra.com/breve-historico-da-educacao-infantil/> Acesso em: 20 de
fevereiro de 2017.

E. E. MADRE CRISTINA. Projeto político Pedagógico 2016. Mirassol D’Oeste: E.E.M.C.,


2016.

FURASTÉ, Pedro A. Normas técnicas para o trabalho científico: elaboração e formatação.


14. ed. Porto Alegre: Brasul, 2007.

GIL, Antônio C. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2002.

_______. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2008.

GUERRA, Eliane Linhares de A. Manual de pesquisa qualitativa. Belo Horizonte: Anima


Educação, 2014.

LAGE, Allene Carvalho. A pedagogia que emerge da luta política do MST. Revista de
Educação Pública. Cuiabá v. 17 n. 35 set./dez. 2008 p. 487 – 508.

MACHADO, Ilma F. Um Projeto Político-Pedagógico para a escola do campo. Cadernos de


Pesquisa Pensamento Educacional. n. 8, vol. 4, jul.-dez., 2009. 2009.

MACHADO, Vitor. O Movimento Sem Terra e a educação escolar: a construção de uma


proposta pedagógica para além dos muros da escola. Mococa: s-ed, 2011.

MINAYO, Maria Cecília de S. (Org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 21. ed.
Petrópolis: Vozes, 2002.

MOLINA, Mônica C (org). Ministério do Desenvolvimento Agrário. Educação do Campo e


Pesquisa: questões para reflexão. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2006.

MONTESSORI, Maria. Mente absorvente. Tradução: Wilma Freitas Ronald de Carvalho. Rio
de janeiro: Nordica, 1949.

MST. Boletim da Educação. Educação no MST: balanço 20 anos. n. 09. São Paulo: Peres, Dez.
2014.

_______. Caderno de formação nº 18: o que queremos com as escolas dos Assentamentos.
3. ed. São Paulo: Secretaria Nacional do MST, 1999.
69

_______. Nossos valores. Col. Pra soletrar a Liberdade. Nº 1. São Paulo: MST, 2000.

_______. O embrião do MST. 2014. Disponível em: <http://www.mst.org.br/nossahistoria/70-


82/> Acesso em: 10 de junho 2016.

_______. Escolas itinerantes. 2014. Disponível em: <http://www.mst.org.br/educacao/>


Acesso em: 10 de junho 2016.

PASUCH, Jaqueline; SANTOS, Tânia M. D. A importância da educação Infantil na


constituição da identidade das crianças como sujeitos do campo. IN: PASUCH, Jaqueline, et
al (Coord.). Oferta e demanda de educação infantil no campo. Porto Alegre: Evangraf,
2012.

OLIVEIRA, Maria I.; LIMA, Elizeth G. S. Guia prático projeto de pesquisa e trabalho
monográfico. 6. ed. Cáceres: Unemat, 2012.

SERRA, Elpídio; SOBRINHO, Alaíde Paulino. A proposta pedagógica do MST e as escolas de


campo. Boletim geografia, Maringá, v. 31, n. 2, p. 143-152, maio/ago, 2013.

SODRÉ, Liana Gonçalves P. Crianças de um acampamento do MST: propostas para um


projeto de educação infantil. Estudos de psicologia. Natal, vol.10, no.2, p. 181189,
mai/ago. 2005.

TARDIN, José Maria. Cultura Camponesa. IN: CALDART, Roseli Salete, et al (org.).
Dicionário da Educação do Campo. São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim
Venâncio, Expressão Popular, 2012.

Você também pode gostar