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CRISTIANA BARRETO
HELENA PINTO LIMA
CARLA JAIMES BETANCOURT
Organizadoras
Fotos: Cristiana Barreto, Edithe Pereira, Glenn Shepard, Sivia Cunha Lima; Wagner Souza
Imagem da capa: Vaso da cultura Santarém, acervo Museu Paraense Emílio Goeldi. Foto: Glenn Shepard.
Kamalu Hai é a gigantesca cobra-canoa que apareceu para os Wauja, há muito tempo, oferecendo-lhes a visão primordial de todos os tipos de
panelas cerâmicas, o que lhes conferiu o conhecimento exclusivo sobre a arte oleira. As panelas chegaram navegando e cantando sobre o dorso
da grande cobra que antes de ir embora defecou enormes depósitos de argila ao longo do rio Batovi para que eles pudessem fazer sua própria
cerâmica. Segundo o mito, esta é a razão pela qual apenas os Wauja sabem fazer todos os tipos de cerâmica (Barcelos Neto, 2000).
Cerâmicas arqueológicas da Amazônia: rumo a uma nova síntese / Cristiana Barreto, Helena Pinto Lima, Carla Jaimes
Betancourt, organizadoras. Belém : IPHAN : Ministério da Cultura, 2016.
ISBN 978-85-61377-83-0
1. Cerâmica – Brasil - Amazônia. 2. Cerâmicas Arqueológicas. I. Barreto, Cristiana. II. Lima, Helena Pinto. III.
Betancourt, Carla Jaimes.
CDD 738.098115
ÍNDICE
APRESENTAÇÃO
APRESENTAÇÃO DO IPHAN - Andrey Rosenthal Schlee 8
APRESENTAÇÃO DO MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI - Nilson Gabas Jr.
APRESENTAÇÃO 9
PREFÁCIO - Michael Joseph Heckenberger 10
INTRODUÇÃO - Cristiana Barreto, Helena Pinto Lima, Carla Jaimes Betancourt 12
INTRODUCCIÓN - Cristiana Barreto, Helena Pinto Lima, Carla Jaimes Betancourt 14
MAP
MAPAA ARQUEOLÓGICO DOS COMPLEXOS CERÂMICOS DA AMAZÔNIA 51
AIRE DES V
“C’EST CURIEUX CHEZ LES AMAZONIENS CE BESOIN DE FFAIRE VASES”:
ASES”:
ALF ARERAS P
ALFARERAS ALIKUR DE GUY
PALIKUR ANA
GUYANA 97
Stéphen Rostain
A CERÂMICA MINA NO EST ADO DO PARÁ: OLEIRAS DAS ÁGUAS SALOBRAS DA AMAZÔNIA
ESTADO 125
Elisângela Regina de Oliveira, Maura Imazio da SilveirA
DOS FFASES
ASES CERÁMICAS DE LA CRONOLOGÍA OCUP ACIONAL
OCUPACIONAL
DE LAS ZANJAS DE LA PROVINCIA ITÉNEZ – BENI, BOLIVIA 435
Carla Jaimes Betancourt
PAR TE III - P
ARTE ARA SEGUIR VIAGEM:
PARA
REFERÊNCIAS P ARA A ANÁLISE DAS CERÂMICAS ARQUOLÓGICAS DA AMAZÔNIA
PARA 541
A CONSER
CONSERVVAÇÃO DE CERÂMICAS ARQUEOLÓGICAS DA AMAZÔNIA 543
Silvia Cunha Lima
GLOSSÁRIO 551
Processos tecnológicos 553
Denominações formais e funcionais das cerâmicas 568
Contextos arqueológicos das ocupações ceramistas 581
Conceitos e categorias classificatórias 589
REFERÊNCIAS 603
ÍNDICE ONOMÁSTICO 654
AGRADECIMENTOS 659
SOBRE OS AUTORES E SUAS PESQUISAS 661
CERÂMICAS DA CULTURA SANTARÉM, BAIXO TAPAJÓS
Joanna Troufflard
RESUMEN
Cerámicas de la cultura Santarém, Bajo Tapajós
Sociedades indígenas que se desarrollaron en el curso Bajo del río Tapajós alrededor del siglo VIII y IX produjeron
cerámicas clasificadas por los arqueólogos pertenecientes a la tradición Inciso-Punteada (1000-1700 dC). Como
ellos constituyeron una rica fuente de información de la cultura Santarém, sus cerámicas han sido estudiadas
por científicos desde finales del siglo XIX. A pesar que existen numerosos estudios arqueológicos sobre la
cultura Santarém, no hay información publicada que pudiera dar una imagen general de los estudios
arqueológicos de los últimos 100 años. Por lo tanto, este capítulo es uno de los primeros intentos para destacar
las contribuciones de las investigaciones arqueológicas de los grupos indígenas que vivieron en esta región durante
la época pre y postcolonial. Esta revisión evidencia un cambio gradual de la perspectiva de estudio en los últimos
años; mientras las primeras investigaciones se centraron en el estudio de la cultura Santarém en términos
espaciales y cronológicos basados el desarrollo de tipologías de cerámica, investigaciones más recientes se han
centrado en combinar estudios de cerámica y paisaje en una perspectiva ecológica-histórica. Estos cambios
teóricos y metodológicos han incrementado nuestro entendimiento de las sociedades indígenas, haciendo
hincapié respecto al impacto de los pueblos indígenas en las transformaciones ambientales.
ABSTRACT
Ceramics from the Santarém culture, Lower Tapajós
Indigenous societies that developed in the Lower Tapajós around the 8th or 9th centuries produced ceramics
classified by archaeologists as from the Incised and Punctuate Tradition (ca. 1000-1700 AD). As they constitute
the richest source of information about the Santarém culture, these ceramics have been studied by scientists
since the end of the 19th century. Although there are now numerous archaeological studies about the Santarém
culture, no published work has given us a general picture of the last 100 years of archaeological research.
Therefore, this chapter is one of the first attempts to highlight the contributions of archaeological research of
indigenous groups that lived in the Lower Tapajós during pre- and post- colonial times. This review shows a
gradual change of study perspective in the last 100 years; while previous research focused on understanding
the Santarém culture in spatial and chronological terms through the creation of ceramic typologies, more recent
research aims to combine ceramic and landscape studies in a historical ecological framework. These theoretical
and methodological changes increased our comprehension of indigenous societies by emphasizing the impacts
of indigenous people on environmental transformations in a long-term perspective.
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Introdução
Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia • BAIXO AMAZONAS E XINGU
A geografia da região
A cidade de Santarém, localizada no Baixo Tapajós, apresenta em sua frente o encontro das águas claras
do rio Tapajós e das águas escuras provenientes do rio Amazonas. É debaixo desta cidade que se encontram
os vestígios das sociedades indígenas que habitaram a região a partir do Pleistoceno antigo e produziram
uma das indústrias cerâmicas mais antigas do continente sul-americano, há cerca de 8.000 anos (Roosevelt
et al., 1991). Os primeiros relatos etnohistóricos sobre a região descrevem que a foz do rio Tapajós era
densamente povoada (Acuña, 1641; Carvajal, 2011 [1542]; Heriarte, 1964 [1874]; Teixeira, 1950 [1639]).
1. Arqueólogos utilizam os termos “cultura Santarém” quando se referem à cultura arqueológica associada aos índios que habitavam a região de Santarém entre
os séculos VIII ou IX e XVI, e usam “fase Santarém” para caracterizar as industrias cerâmicas classificadas dentro da Tradição Inciso Ponteada (Meggers; Evans,
1961). O termo “Tapajó” denomina o grupo indígena majoritário na região durante o período colonial, como foi descrito nos relatos etnohistóricos dessa época
(Quinn, 2004). Enquanto o nome do rio se escreve “Tapajós”, o nome do grupo indígena se usa no singular: “Tapajó”.
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Este dado foi devidamente confirmado pelas pesquisas arqueológicas que se desenvolveram na região
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O geólogo Carlos Frederico Hartt escavou o sambaqui presente em Taperinha, localizado 40 km a leste
Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia • BAIXO AMAZONAS E XINGU
de Santarém, onde encontrou uma cerâmica descrita como tosca (Hartt, 1885). Em Itaituba, ele observou
a cultura material dos “moradores do alto”, constituída por cerâmica decorada, ídolos antropomorfos,
igaçabas e rodelas de fuso (Hartt, 1885). E também descreveu as decorações presentes nas cerâmicas
constituídas por incisões geométricas, impressões de dedos, modelados e cerâmicas com marcas de cestaria
que associou ao uso doméstico (Hartt, 1885: 61).
No início do século XX, o etnólogo germano-brasileiro Curt Nimuendaju conduziu prospecções e escavações
na região. Nimuendaju era associado do Museu Emílio Goeldi, em Belém, e do Ethnographical Museum
em Gothenburg na Suécia. Entre 1923 e 1926, registrou 65 sítios arqueológicos localizados ao sul de
Santarém, nas regiões de Alter do Chão, Samahuma e Arapixuna, na margem sul do Lago Grande de
Vila Franca, e na margem direita do Amazonas, entre o Lago Grande de Vila Franca e o Arapixuna
(Nimuendaju, 1952 [1939]: 9). Pesquisas recentes mostraram que este limite se estende ainda mais para
o sul, pois foram encontradas cerâmicas da cultura Santarém a 230 km de Santarém (Martins, 2012).
Alguns sítios identificados por Nimuendaju com cultura Santarém também possuíam cerâmicas associadas
aos Konduri, habitantes da margem esquerda do Amazonas, contemporâneos dos Tapajó. A delimitação
geográfica entre Tapajó e Konduri foi estimada por Nimuendaju na Serra de Parintins (Nimuendaju,
2004: 155).
Nimuendaju foi o primeiro pesquisador a identificar a concentração de TPA na cidade moderna de Santarém.
No platô de Belterra, ele observou a presença de poços artificiais, tesos e caminhos indígenas (Nimuendaju,
2004, 1952 [1939]). Ele também elaborou um mapa etnolinguístico dos povos indígenas brasileiros onde
mencionou a existência dos Tapajó, principais habitantes do Baixo Tapajós no século XVII (Nimuendaju,
1981 [1944]).
Em relação à cerâmica de Santarém, Nimuendaju observou paralelos estilísticos dessas indústrias com
as cerâmicas provenientes do sul da América Central (Nimuendaju, 1952 [1939]: 12). Ele também concordou
com a perspectiva de Palmatary (1960) que comparou essas cerâmicas às indústrias do Baixo Mississippi,
na América do Norte (Nimuendaju, 1952 [1939]: 12). E associou as cerâmicas densamente decoradas
com contextos cerimoniais e também distinguiu as cerâmicas confeccionadas pelos povos que habitaram
o Baixo Tapajós na época pré-colonial das indústrias da época colonial (Nimuendaju, 2004: 151-153).
Os estudos de coleções museológicas dispersas pelos museus do mundo foram pioneiros para o
conhecimento desta cultura. De fato, a maioria desses trabalhos ocorreram antes que se obtivessem
datações absolutas para os sítios arqueológicos da região, e tinham como objetivo situar essa cultura
em termos cronológicos. Eles também representaram uma imensa contribuição para subsidiar tipologias
cerâmicas usadas pelos arqueólogos até a atualidade. Em termos teóricos, o aumento dos trabalhos
arqueológicos na região também coincidiu com estudos de coleções mais direcionados para o estudo
da complexidade social dos Tapajó.
Helen C. Palmatary (1960, 1939) conduziu o primeiro estudo tipológico das cerâmicas associadas a cultura
Santarém, com coleções presentes nos Estados-Unidos, Europa e Brasil. Esta autora adotou uma perspectiva
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difusionista, por meio de uma classificação que tinha como objetivo encontrar semelhanças entre os
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Pesquisas recentes em sítios localizados
Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia • BAIXO AMAZONAS E XINGU
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museológicas e refletir sobre a organização social do cacicado dos Tapajó. Esta autora concluiu que ambos
Pesquisas arqueológicas no platô de Belterra iniciaram em 2006, com um diagnóstico arqueológico dirigido
por Denise Schaan na BR-163, no trecho Santarém-Rurópolis. Este diagnóstico serviu de base para um
projeto de salvamento arqueológico conduzido no mesmo trecho da rodovia BR-163, entre 2006 e 2012.
O objetivo desse projeto foi de coletar informações sobre os sítios localizados ao longo da rodovia que
ia ser asfaltada. Além do impacto da estrada, a maioria dos sítios ao longo da BR sofrem atualmente os
impactos da agricultura mecanizada.
Em 2011, outro projeto denominado “Selva Cultivada” foi conduzido na região, sob a coordenação de
Per Stenborg e Denise Schaan. Este projeto interdisciplinar desenvolvido por arqueólogos e pedólogos de
origem sueca e brasileira, tem como objetivo estudar as relações das sociedades indígenas com o meio ambiente,
antes e depois do contato dos indígenas com os europeus (Stenborg et al., 2014). Ele tem duas metas:
estudar os artefatos provenientes da região de Santarém que foram coletados por Nimuendaju nos anos
1920 e estão armazenados no Museum of World Culture em Gotemburgo; e conduzir novas escavações na
região (Stenborg et al., 2014). Através desses dois projetos, 111 sítios arqueológicos foram prospectados
em áreas de platô ao longo do rio Tapajós, em áreas de serra, nas encostas de rio e próximo a lagos (Schaan,
2014). Dentre desses sítios prospectados, 68 estão localizados no platô de Belterra (Schaan, 2015).
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Os resultados dessas pesquisas mostraram que enquanto os maiores sítios arqueológicos estão presentes
Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia • BAIXO AMAZONAS E XINGU
na foz do rio Tapajós (o sítio Aldeia mede 70 ha e o sítio Porto 42 ha), há uma proporção maior de
sítios de tamanho superior a 1 ha no platô de Belterra (Stenborg et al., 2014). Existem 28 sítios localizados
no platô que possuem poços escavados pelos antigos indígenas da região. Esta é uma característica dos
sítios de platô, pois nenhum poço foi encontrado nos sítios ribeirinhos.
À primeira vista, os sítios localizados na foz do rio Tapajós e no platô apresentam uma cultura material
similar à cerâmica da Tradição Inciso Ponteada, e feições arqueológicas como pisos domésticos, bolsões e
vasilhas enterradas. Porém, as análises cerâmicas revelaram diferenças nos temperos das cerâmicas provenientes
de ambos locais: enquanto nos sítios ribeirinhos há mais presença de cauixi usado como tempero principal,
nos sítios de platô este tempero é encontrado em menores quantidades e misturado com outros temperos,
como caco moído, rocha triturada, areia e caraipé (Schaan, 2015). Assim, os resultados preliminares mostraram
uma ausência de hierarquia entre os sítios em relação às competências das ceramistas (Schaan, 2015).
Enquanto Gomes (2007) argumenta que sociedades autônomas coexistiam com sociedades hierárquicas
numa escala regional e partilhavam uma ideologia predatória, Schaan (2012) sugere que a organização
sociopolítica dos Tapajó poderia ser entendida através do modelo de “peer polity interaction”, de Renfrew
(1986). De fato, este modelo tem o objetivo de estudar mudanças em complexidade social entre unidade
sociopolíticas independentes (“polities”) através da sua interação em escala regional (Renfrew, 1986).
A cronologia dos sítios localizados em ambas as áreas geográficas revela que o sítio Porto teve uma ocupação
anterior, entre AD 900-1600, aos sítios de platô datados do período pré-colonial tardio a colonial (entre
os séculos XIV e XVIII) (Stenborg et al., 2014: 153).
Existem várias fontes de conhecimento para estudar as antigas sociedades indígenas que se desenvolveram
no Baixo Tapajós por volta dos séculos VIII-IX. As fontes etnohistóricas escritas por exploradores,
administradores coloniais e missionários contêm informações interessantes sobre o cotidiano dos indígenas
que habitaram em Santarém entre os séculos XVI e XIX. Por exemplo, essas fontes descrevem a existência
de vários grupos assentados nas margens sul e norte do rio Amazonas. Os Tapajó e Konduri são descritos
como grupos dominantes na região, com organização sociopolítica e religiosa parecidas (Heriarte, 1964
[1874]). Assim, enquanto os Tapajó teriam dominado a região de Santarém, os Konduri residiam na
região do Nhamundá-Trombetas. Ambos os grupos participavam de um sistema de trocas em nível regional,
ilustrado, por exemplo, pela difusão dos pingentes de pedra verde (Schaan, 2012). Além da existência
desses grupos dominantes, os relatos também mencionam que esses índios não entendiam a língua Tupi.
Este dado, suplementado por análises cerâmicas, conduziu vários pesquisadores a propor afiliações de
origem Arawak para os grupos Tapajó e Konduri (Linné, 1932; Métraux, 1930; Nordenskiöld, 1930).
Esses grupos sofreram um colapso demográfico dramático com a colonização europeia da região, e foram
descritos como grupo extinto no início do século XIX (Martius, 1867 apud Stenborg, 2004: 119). Porém,
pensar na extinção completa desses grupos não deixaria de ser uma visão essencialista de suas identidades,
pois os séculos de colonização foram seguidos por fenômenos de etnogênese definidos como “a adaptação
criativa dos povos indígenas frente a uma história geral de mudanças violentas” (Hill, 1996: 1, ênfase minha).
244
Fase Santarém: formas, iconografia e tecnologia
Figura 1. Distribuição dos sítios arqueológicos associados a ocupação dos Tapajó no Baixo Amazonas (Fonte: Schaan, 2014: 57).
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Alguns vasos da cultura Santarém são encontrados com muita frequência nas escavações arqueológicas,
Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia • BAIXO AMAZONAS E XINGU
porém, em estado de fragmentos. São geralmente interpretados à luz das peças inteiras existentes em
coleções museológicas e são considerados fragmentos diagnósticos da cultura Santarém. Os três tipos
de vasos mais emblemáticos desta cultura – vaso de cariátides, vaso de gargalo e vaso globular – foram
assim denominados por Barata (1950) e descritos mais tarde por Guapindaia (1993), Gomes (2001) e
Schaan (2012).
Os vasos de cariátides são nomeados com base na analogia formal da posição de suas figuras modeladas
com as esculturas femininas que servem de colunas no templo Erechtheion na acrópole de Atenas.
Eles são compostos por um vasilhame de formato redondo à volta do qual se encontram uma combinação
de apêndices zoomorfos (cabeças de urubus) e antropomorfos (Figura 2). Este vasilhame repousa sobre
três figuras antropomorfas (as cariátides) e possui uma base anelar oca, sobre a qual as figuras estão
sentadas. Os apêndices modelados podem apresentar uma única figura que, conforme a perspectiva,
pode ser interpretada como humana ou animal ou uma combinação de ambas. Existem exemplos onde
as três figuras antropomorfas usam suas mãos para cobrir os seus olhos, orelhas ou boca. Há decorações
de incisão na borda e na base.
Figura 2. Vaso de cariátides com iconografia que combina elementos zoomorfos (cabeças de urubus) e antropomorfos (figuras
femininas sentadas) (altura: 18 cm; acervo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. Foto: Wagner Silva).
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Os vasos de gargalo podem ser classificados em dois tipos: o pescoço do vaso funciona como um chapéu
Figura 3. Vaso globular com dois apêndices opostos representando a cabeça e o rabo de uma onça (altura: 40 cm; largura: 48 cm;
acervo Arqueológico da Reserva Técnica Mário F. Simões. MCTI/Museu Paraense Emílio Goeldi. Foto: Fernando Chaves).
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As estatuetas antropomorfas são todas modeladas e foram classificadas em dois grupos principais: pequenas
Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia • BAIXO AMAZONAS E XINGU
estatuetas femininas com base semilunar em posição ereta e grandes estatuetas ocas femininas ou masculinas
em posição sentada (Gomes, 2001). Existem mais estatuetas femininas do que masculinas, mas ambas
apresentam adornos e pinturas corporais. As estatuetas femininas apresentam genitais, seios e por vezes
barriga grávida (Figura 4). Segundo Barreto (2016), devido à sua padronização, essas estatuetas poderiam
representar uma figura feminina específica da elite ou da mitologia dos Tapajó. Com base numa comparação
iconográfica das estatuetas do Marajó e de Santarém, Schaan (2012) descreve as estatuetas da cultura
Santarém como mais realistas e argumenta que, enquanto no Marajó as estatuetas representariam o poder
das elites, em Santarém elas figurariam indivíduos específicos, ligados à organização sociopolítica.
Figura 4. Estatueta antropomorfa feminina representada com barriga grávida (altura: 26,5 cm; largura: 17,5 cm; espessura:
11 cm; acervo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. Foto: Fernando Chaves).
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Pela quantidade de estatuetas femininas desta cultura e as descrições de várias personalidades femininas com
Contextos arqueológicos
As práticas rituais dos antigos ocupantes do Baixo Tapajós são entendidas por meio de dois contextos
arqueológicos principais: bolsões contendo cerâmicas cerimonial, líticos e restos alimentares (Figura 5)
e enterramentos secundários. Cerâmicas coletadas em bolsões podem ser encontradas em três contextos:
(1) intencionalmente quebradas, (2) numa mistura entre cerâmicas rituais e domésticas e (3) vasilhames
inteiros (Gomes, 2010). No primeiro caso, classificado como “contexto de retenção”, os objetos são
duplamente isolados do espaço cotidiano e do contato com os humanos (Gomes, 2010). Esses objetos
associados a grandes cerimonias teriam sido quebrados intencionalmente e isolados como estratégia de
controlar as suas agências sobre os humanos (Gomes, 2010). No segundo caso, classificado como “contexto
de dispersão”, artefatos de uso ritual e cotidiano são encontrados em feições em forma de valas, interpretadas
como lixeiras (Gomes, 2010; Gomes; Luiz, 2013). Este contexto é associado a rituais menores, realizados
sem a presença de especialistas (Gomes, 2010). No terceiro caso, chamado de “contexto de deposição in
situ”, o artefato é encontrado no seu local original de uso.
Os relatos etnohistóricos associam duas práticas funerárias aos índios Tapajó: o endocanibalismo, onde
os ossos pulverizados e misturados com alimentos ou bebidas seriam ingeridos pelos indígenas (Heriarte,
1964 [1874]) e a mumificação dos corpos (Betendorf, 1910 [1661]). Segundo Schaan (2012), essas diferenças
ilustravam provavelmente diferenças de status. Enterramentos secundários têm sido encontrados em vários
sítios da região, como, por exemplo, no Porto (Gomes; Luiz, 2013; Schaan; Alves, 2015), no sítio Carapanari
(Gomes, 2010) e nos municípios de Itaituba, Rurópolis e Aveiro (Martins et al., 2010).
Interpretações recentes sobre a esfera religiosa dos Tapajó baseiam-se em ontologias relacionais. Essas
ontologias que consideram as relações entre humanos e não humanos (animais, plantas, coisas) têm como
objetivo de questionar as dualidades como natureza/cultura, nós/outros, sujeito/objeto, mente/corpo,
propostas pelas ontologias modernistas (Watts, 2013: 1). Nesta perspectiva, Gomes (2012, 2010) e Barreto
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Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia • BAIXO AMAZONAS E XINGU
Figura 5. Parede leste do bolsão F3, sítio Porto de Santarém (Fonte: Schaan; Alves, 2015: 109).
(2016) interpretaram a iconografia das cerâmicas de Santarém à luz do perspectivismo ameríndio (Viveiros
de Castro, 1996). Baseando-se em elementos iconográficos como metamorfose, xamanismo e mitologia
presentes nas cerâmicas, Gomes (2012, 2010) argumenta sobre a existência de traços cosmológicos comuns
aos índios americanos (norte e sul) que perduraram através do tempo. Com base num estudo de caso
das práticas rituais das sociedades antigas do Marajó e de Santarém, Schaan (2015) afirma que existiria
um idioma religioso comum ao nível regional que seria responsável por mudanças sociopolíticas. Assim,
em vez de relacionar a diversidade da cultura material a grupos etnolinguísticos específicos, esta perspectiva
associa as mudanças nas práticas rituais ao crescimento demográfico e territorial dos grupos que foram
expandindo o seu poder político na região.
Interações regionais
Interações regionais entre grupos dos Baixo e Médio Amazonas datam do período Formativo (3800 AP
– 2740 AP) (Gomes, 2011: 276) e podem ser ilustradas pela dispersão da cerâmica Barrancoide (Gomes,
2011; Horborg, 2005; Stenborg, 2009). Além disso, a Tradição Pocó, que se desenvolveu na região do
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Nhamundá-Trombetas por volta de 2000 AP (Gomes, 2002: 287) também existe no Baixo Tapajós. Afiliações
Conclusão
Esta breve revisão bibliográfica de mais de 100 anos de estudos sobre a cultura Santarém evidenciou
mudanças nas orientações teóricas e metodologias dos pesquisadores ao longo do tempo. Os estudos
pioneiros desenvolvidos no final do século XIX e início do século XX tiveram como foco principal entender
a ocupação das antigas sociedades do Baixo Tapajós em termos espaciais e etnolinguísticos. Já os estudos
de coleções museológicas efetuados entre 1939 a 2002, e baseados na análise de peças cerâmicas inteiras
ou semi-inteiras, raramente encontradas em contexto arqueológico, representam uma contribuição
inestimável para a fomentação de tipologias e interpretações iconográficas das peças. As pesquisas atuais
usam a ecologia histórica numa perspectiva regional, diacrônica e interdisciplinar, mas não parecem enfatizar
tanto outra grande preocupação deste paradigma: uma reflexão sobre soluções para problemas relacionados
ao meio ambiente no presente e futuro, com base no conhecimento do passado (Marquardt, 1994).
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A ecologia histórica, assim como a arqueologia da paisagem, tem como objetivo estudar as interações
Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia • BAIXO AMAZONAS E XINGU
entre as sociedades e o meio ambiente, porém ambas apresentam heranças teóricas diferentes (Kantzer,
2008). De fato, enquanto a ecologia história está ligada à arqueologia processual e estuda “os humanos
como parte da paisagem”, a arqueologia da paisagem nasceu da antropologia pós-moderna, e tem o objetivo
de entender as “paisagens como criações das sociedades” (Kantzer, 2008: 57-58, tradução minha). Assim,
talvez por suas limitações materialistas, as abordagens da ecologia histórica têm sido combinadas com
outras perspectivas, como, por exemplo, as ontologias relacionais, que facilitam o estudo das cosmologias
e das práticas rituais das sociedades do passado.
Enquanto não se pode negar a contribuição inestimável das primeiras pesquisas sobre a cultura Santarém,
há de se ressaltar os grandes avanços na compreensão dessas sociedades passadas, por meio de abordagens
históricas com perspectiva de longa duração, que combinam o uso das fontes etnohistóricas, arqueológicas
e etnográficas. De fato, essas pesquisas enfatizam a agência indígena e estudam as mudanças culturais
de uma forma integrada, considerando os estudos cerâmicos junto com a análise das transformações das
paisagens pelas sociedades. Enfim, certos aspectos da cultura Santarém foram menos investigados e serão
certamente explorados por meio de futuras pesquisas com foco nos modelos de organização social, contextos
domésticos onde foram realizadas as atividades cotidianas dessas sociedades e as mudanças culturais ocorridas
no período do contato dos indígenas com os europeus.
Agradecimentos
Agradeço a Cristiana Barreto e Helena Lima, pelo convite para participar deste livro. Sou grata ao Michael
Heckenberger, por sua orientação e todo o incentivo que me dá nesta jornada do doutorado, a professora
Denise P. Schaan, pela leitura crítica do texto, pois os seus comentários foram de uma grande ajuda.
Também agradeço a Tallyta Suenny Araújo da Silva e a Angélica Rodrigues, pelas suas sugestões. Claudine
Vallières pela ajuda com a elaboração do resumo em inglês e Felipe Opazo fez a tradução para o espanhol.
Sou grata às professoras Cristiana Barreto e Denise P. Schaan, por terem me enviado as figuras utilizadas
neste capítulo. Enfim, agradeço a CAPES (Proc. Nº1079/12-3) pelo financiamento que me possibilita
fazer o doutorado na University of Florida e ao Departamento de Antropologia desta universidade, pela
concessão de uma bolsa de pesquisa (2015 James C. Waggoner Jr. Grant-in-Aid).
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