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IBN ARABI/BALYANI

TRATADO DA UNIDADE

Tradução: Níssir

THOT EDITORA
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Título Original: Traité de I'Unité (Ivan Gustavo Angueli)

Coordenação Editorial: Osvaldo R. Condé Filho


Revisão: Alf Eyre
Capa: Martius
Composição: Entrelinha Composição Ltda.
Paginação e diagramação: M. Oliveira Ramalho

A tradução e edição deste livro são dedicadas ao


Pir Ahmed Hussein Lassani (Pakistão) e sua Tarika.

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INTRODUÇÃO

O Tratado da Unidade, também chamado "Epístola da Unidade" (Risatul Ahadiah), foi


ao que tudo indica vertido para uma língua ocidental- o inglês - pela primeira vez em 1901
por Weir. Em 1907 foi traduzido ao italiano e em 1910 ao francês por Ivan Gustavo Angueli,
que morreu na Espanha em 1917. Angueli foi iniciado no Egito pelo Sheik Elish el Kebir,
passando a se chamar Abdul Hadi; nessa mesma Tariquah (caminho, escola espiritual) René
Guenon foi admitido. O Sheik Kebir, além de líder do rito Malikita * na Universidade de AI
Azar (Cairo) era o Mestre da Silsilah (cadeia de transmissão de conhecimentos esotéricos)
fundada pelo Sufi Abdul Hassan ash Shadili no século 13. Sobre o Tratado da Unidade pesa
uma dúvida com relação a seu autor. Ibn Arabi ou Balyani?
Ibn Arabi, chamado "o Doutor Máximo" e "vivificador da Religião", nasceu em Múrcia,
na Espanha, em 1165 d.C. e faleceu na Síria, Damasco, em 1240. O Mestre de Múrcia
escreveu centenas de livros, dos quais cento e cinquenta ainda são conservados. Entre os
escritos de Ibn Arabi se destacam a Epístola da Santidade, Pérolas e Sabedoria e As
Revelações de Meca, que possui mais de 4 mil páginas no original em árabe .
Famosos pensadores e escritores ocidentais, como Dante, foram muito influenciados
por Arabi; a própria Divina Comédia apresenta muitos trechos de estrutura idênticos a
alguns escritos de Mestre de Múrcia. Ibn Arabi foi contemporâneo de Averrois (Ibn Roshd)
que conheceu pessoalmente. Averrois ficou muito impressionado com Ibn Arabi pois este
respondeu intuitivamente a uma questão doutrinária que o preocupava. Arabi foi um
viajante incansável e peregrinou por toda a África do Norte, o Oriente Médio e a Arábia.
Ibn Arabi tinha fortes dons premonitórios e capacidades psíquicas muito
desenvolvidas, tendo experimentado os mais peculiares estados de consciência devido a
seu próprio esforço na busca do auto-conhecimento.
Com relação a Balyani, que segundo Michel Chodkiewiz é o mais provável autor do
Tratado da Unidade, existem informações bem mais escassas. Balyani foi um Sheik de
Shiraz que faleceu por volta de 1288 e os dados disponíveis a seu respeito são fornecidos
por outro grande Mestre, Jami, no livro Nafahat aI Uns. Jami cita algumas passagens e
ensinamentos de Balyani e aqui reproduzimos um dos ditos de Balyani que, diga-se de
passagem, está completamente dentro do espírito do Tratado da Unidade que, seja quem
for seu autor, Balyani ou Ibn Arabi, merece a leitura atenta e o estudo de toda e qualquer
pessoa interessada em filosofia, religião e sufismo.
"Sede os receptáculos de Deus! Se não sois os receptáculos de Deus, não sereis
receptáculos de vós próprios: porque se não sois o receptáculo de vós próprios, sois o
receptáculo de Deus! Direi mais: sois Deus! E se não sois Deus, não sereis vós próprios;
porque se não sois vós próprios, sois Deus !" Balyani
O Editor
* A escola Malikita é uma das escolas de jurisprudência islâmicas.

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EM NOME DE ALLAH,
O CLEMENTE E MISERICORDIOSO

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Glória a Allah(1); perante tal Unidade nada há anterior senão Ele próprio, que é o
primeiro !
Glória a AlIah; ante Sua Singularidade não há um depois, senão Ele, que é o seguinte!
Com relação a Ele não há antes nem depois; nem alto nem baixo; perto ou longe; nem
como, nem o quê, nem onde, nem estado, nem sucessão de instantes, tempo ou espaço,
nem ser. Ele é tal como é. Ele é Singular, sem necessidade da Singularidade.

NOTA: Allah é o nome de Deus, o mesmo Deus tradicionalmente mencionado tanto por
judeus como por cristãos.

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Ele não é nome nem a nomeação, porque Ele é nome e nomeação. Não há nome
senão Ele. Não há nomeação, salvo Ele. Por isso se diz que Ele é o nome, é o nomeado.
Ele é o primeiro sem anterioridade. Ele é o último sem posteridade. Ele é visível sem
exteriorizar-se. Ele é oculto sem esconder-se. Porque não há anterior, nem posterior; não
há exteriorização ou ocultamento senão Ele.

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É necessário compreender este Mistério para não cair no erro dos que creem nas
encarnações de divindade. Ele não está em coisa alguma e coisa alguma está n'Ele. É
preciso conhecê-lo, mas não pela ciência; pela inteligência, a imaginação, a sagacidade, os
sentidos, a visão exterior, a visão interior, a compreensão ou o raciocínio.

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Nada, salvo Ele próprio, pode vê-lO. Nada, exceto Ele próprio, pode tocá-lo.
Nada, a não ser Ele próprio, pode conhecê-lO. Nada distinto d'Ele pode se Lhe ocultar.
Ele se vê e conhece a Si próprio.
Seu véu impenetrável é Sua própria unidade. Ele próprio é Seu próprio véu.
'Seu véu é Sua própria existência.
Sua unidade O vela de forma inexplicável.

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Ninguém O viu, vê, ou poderá vê-lo, jamais. Nenhum profeta enviado, nenhum anjo ou
santo perfeito se aproxima d'Ele. Seu profeta é Ele. E Seu mensageiro também é Ele. Sua
mensagem é Ele. Sua palavra é Ele. Ele mandou Sua ipseidade com Ele próprio. Dele
mesmo para Ele mesmo, sem qualquer intermediário ou causalidade exterior a Ele próprio.
Nenhuma diferença de tempo e espaço ou natureza há entre Ele que envia a
mensagem, a mensagem e o destinatário da mensagem.

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Sua existência está unicamente nos textos da profecia. Entretanto só Ele existe e não
pode deixar de existir pois jamais veio à existência. por isso o Profeta Moham-med (A paz
esteja com ele) disse: "Eu conheço o meu Senhor, através do meu Senhor". O profeta de
Allah quis te fazer compreender que tu não és tu mesmo, senão Ele: Ele e não tu; que Ele
não cabe em ti e tu não cabes n'EIe, que Ele não sai de ti e tu não sais d'Ele.

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O que quero dizer é que tu não és nem possuis tal ou qual qualidade, que não existes e
que não existirás jamais, nem por ti mesmo, nem por Ele, n'Ele ou com Ele. Tu não podes
cessar de ser, porque não és. Tu és Ele e Ele és tu, sem qualquer dependência ou
causalidade. Se conseguires alcançar e reconhecer nesta existência esta qualidade do nada,
então conhecerás a Deus, de outra forma não.

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A maior parte dos indiciados diz que a Gnosis, o Conhecimento de Allah, vem após a
extinção (Fana) da existência e da extinção dessa extinção (Fana el Fana-i) mas essa
opinião é falsa pois parte de um erro manifesto. A Gnosis não exige a extinção da existência
ou a extinção da extinção, simplesmente porque as coisas não têm existência alguma e o
que não existe não pode deixar de existir que não existe agora equivale a dizer que existiu
(antes): Mas se conheces a ti próprio, ou seja, se podes conceber que não existes e portanto
não te podes extinguir jamais, então conhecerás Allah. De outra forma, não...

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Atribuir à Gnosis a extinção (Fana) e a extinção da extinção (Fana el Fana-i) é uma
crença idólatra. Atribuíres a Gnosis à Fana ou Fana el Fana-i é pretender que algo distinto
de Allah possa desfrutar de existência. Isto é negar (Allah) e então és formalmente culpável
de idolatria. O profeta (A paz esteja com ele) disse: Quem conhece a si próprio conhece o
seu Senhor. Se se afirma a existência de algo distinto não se deve falar de sua extinção
porque não se pode falar da extinção daquilo que se há de afirmar.
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Tua existência é nada e nada não é adição alguma a uma coisa temporal ou não. O profeta
(A paz esteja com ele) disse: "Tu não existes agora e tampouco existias antes da criação do
mundo. A palavra agora significa, como presente absoluto, a eternidade sem começo é sem
fim. Mas Allah é a existência da eternidade sem começo e da eternidade sem fim, bem
como a pré-existência. Estes três aspectos da eternidade são Ele. Allah é a existência destes
três aspectos da eternidade sem que Ele deixe por isso de ser absoluto. Se Ele não fosse
assim Sua solidão não existiria. Ele não precisaria de companheiro. Porém é da necessidade
racional dogmática e teológica que Ele não tenha companheiro possível... Seu companheiro
seria aquele que existisse por si próprio e não pela existência de Allah, sendo por
consequência um segundo Senhor Deus, o que é impossível. Allah não tem companheiro,
nem em semelhança nem em equivalência".

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Aquele que vê uma coisa em Allah, de Allah ou em Allah fazendo-a independente de
Allah por Sua própria senhoria, converte essa coisa em companheiro de Allah,
independentemente d'Ele, em Senhor.
Aquele que pretende que uma coisa possa existir com Allah - pouco importa que essa
coisa exista por si mesma ou por Ele (e que ela própria possa extinguir sua existência, ou
extinguir a extinção de sua existência) - um homem tal, digo eu, está longe de ter a menor
percepção do conhecimento de si próprio. Porque aquele que pretende que algo distinto
d'Ele possa existir (pouco importa que seja por si próprio, ou por Ele, ou n'Ele) que possa
desaparecer e extinguir-se e que possa extinguir a extinção... tal homem entra em um
círculo vicioso. Tudo isso é idolatria e nada tem a ver com o conhecimento último (Marifal).
Tal homem é um idólatra e nada conhece de Allah, muito menos de si próprio.

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Se alguém pergunta por que meio se chega a conhecer o "si mesmo", ou seja a alma, e
conhecer Allah, a resposta é: O caminho para esses dois conhecimentos está indicado por
estas palavras: Allah é (existe) e o nada (não-existência) está com Ele. Ele é agora tal como
era. Se alguém disse: "Eu vejo minha alma (meu ser) distinto de Allah e não vejo que Allah
seja minha alma", a resposta é: O profeta (A paz esteja com ele) expressa com o termo
"alma" o "Si mesmo" e não o elemento psíquico de tua existência particular que às vezes se
chama "a alma imperiosa" ou aquela que tende imperiosamente ao mal, ou a alma que
reprova, ou a alma acalmada, etc...
O profeta (A paz esteja com ele) disse também: "Faze-me ver, oh Deus, as coisas tal
como elas são designando por "as coisas" tudo que não é Allah - que Ele seja louvado!

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Com isso o profeta (A paz esteja com ele) quis dizer: "Faze-me conhecer o que não és
Tu a fim de que eu saiba, sobre mim, sobre a verdade, sobre as coisas, se elas são Tu ou
separadas de Ti. Carecem elas de começo e de fim ou foram criadas e vão desaparecer?"
Então Allah lhe permitiu ver que tudo que não é Ele, incluindo o si-mesmo do homem, que
não tem qualquer existência. E ele viu as coisas tais como são: quero dizer que viu que as
coisas são a quididade (a qualidade essencial) de Allah. Fora do tempo, do espaço e de todo
o atributo. (Ou seja, a essência de tudo é Allah).

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O termo "as coisas" pode ser aplicado ou não à alma e a qualquer outra coisa. A
existência da alma e das coisas se identifica à ideia geral de "coisa", pelo que quem
conhece a alma, seu si-mesmo, conhece o seu Senhor. Aquele que tu acreditas ser distinto
de Allah não é senão Allah, mas tu não o sabes.
Tu O vês e não sabes que O estás vendo. Desde o momento em que esse mistério foi
desvelado a teus olhos - que não és distinto d'Ele - saberás qual o fim de ti mesmo, que não
tens necessidade de te preocupar, que jamais deixaste de ser e jamais deixarás de existir...
jamais, como já temos demonstrado.

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Todos os atributos de Allah são teus atributos. Verás que teu exterior é d'Ele, que teu
interior também é d'Ele, que teu começo e fim são d'Ele. E isso incontestavelmente, sem
dúvida alguma. Verás que tuas qualidades são d'Ele e que tua natureza íntima é d'Ele. E isso
sem que te convertas n'Ele ou que Ele se converta em ti, sem transformação, sem
diminuição ou aumento algum.

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"Todo o morto louva Sua face" no exterior e no interior. Isto quer dizer que não existe
o que seja distinto d'Ele, que algo distinto d'Ele não tem existência. Por isso o que parece
distinto d'Ele será necessariamente perdido pois o que fica é Sua face. Dito de outra
maneira: nada há de permanente senão Sua face.

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Um homem ignora uma coisa e depois a aprende. Com isso não é que sua existência se
acaba e sim sua ignorância. Sua existência continua porque não foi trocada pela de outro. A
existência do sábio não se somou à do ignorante nem se produziu uma combinação da
existência individual dos dois. Só a ignorância foi eliminada. Não penses portanto que é
necessário acabar com tua existência, pois então te envolves em tua própria extinção e te
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convertes, por assim dizer, no véu de Allah. Como esse véu é distinto de Allah, deduz-se
que algo distinto de Allah pode vencê-lO repousando seu olhar n'Ele, o que seria um erro e
uma grande mentira.

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Já dissemos acima que a Unidade (Tawhid) e sua singularidade são os únicos véus de
Allah. Por isso é permitido ao Wacil, isto é, aquele que alcançou a realidade, dizer: "Glória a
mim pois minha excelsitude é grande". Tal Wacil não chegou a um grau tão sublime antes
de ter visto que seus atributos são os atributos de Allah e que seu ser íntimo é o ser íntimo
de Allah, sem qualquer transformação de atributos ou transubstanciação do ser íntimo;
sem qualquer entrada em Allah ou saída d'Ele. Tal Wacil vê que não se apaga em Allah, que
não persiste com Allah, que sua alma, isto é, seu proprium, não existe de todo, como havia
existido até então, pois ao se apagar não fica a alma nem existência, exceto a d'Ele.

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O profeta (A paz esteja com ele) disse: "Não insulteis o século porque ele é Allah". Com
estas palavras quis ele dizer que a existência do século é a existência de Allah - que seja
glorificado e louvado. Ele é demasiado elevado para ter um companheiro, um semelhante
ou equivalente qualquer.
O profeta (A paz esteja com ele) disse, segundo uma Hadith (tradição): "Servidor meu;
tenho estado enfermo e não me tens visitado. Tenho tido fome e não me tens dado de
comer. Tenho pedido esmolas e mas tens negado". Com isso se quer dizer que Ele era o
enfermo, o faminto, o mendicante. E, se o enfermo, o faminto e o mendicante podem ser
Ele, também tu e todas as coisas da criação, acidentais ou substanciais, podem ser Ele.
Quando se descobre o enigma de um só átomo, pode-se ver o mistério de toda a
criação, tanto interior como exterior.

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Verás que não é que Allah tenha criado todas as coisas, senão que tanto no mundo
invisível como no visível não há mais algo que Ele, porque em nenhum dos mundos há um
só ponto de existência própria. Verás que Ele não é somente Seu nome como também que
Ele é o nome e aquilo que é nomeado, bem como a existência de ambos. Verás que não é
que Ele haja criado todas as coisas de uma só vez, mas que "Ele é o criador sublime de
todos os dias", por expansão e ocultação de Sua existência e de seus atributos, muito além
de toda a condição inteligível.

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"Porque Ele é o primeiro e o último, o exterior e o Interior.

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Ele aparece em sua unidade e se esconde em sua singularidade.
Ele é o primeiro por perseidade (por si), seu próprio poder.
Ele é o último por Sua eterna permanência.
Ele é a existência do primeiro e do último, do exterior e do interior.
Ele é Seu nome e o que é nomeado. Ele é por Si mesmo... "

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Como Sua existência é inevitável, lógica e dogmática, igualmente se mostra fatal a não-
existência de algo distinto d'Ele. O que imaginamos como distinto d'Ele não é mais que uma
dupla-existência pois a existência d'Ele significa que não existe uma dupla-existência, que
seria semelhante à d'Ele. Nada há distinto d'Ele porque Ele está isento de que o distinto
d'Ele seja distinto dele. Aquele que é distinto d'Ele é Ele mesmo, sem qualquer diferença
interior ou exterior. Aquele que é dessa forma possui atributos sem número ou fim.

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O que é assim qualificado possui inúmeros atributos. O que morre no sentido literal
da palavra se separa de todos os atributos, sejam estes louváveis ou repreensíveis. De igual
maneira o que morre no sentido figurado se separa de todos os seus atributos, louváveis ou
repreensíveis. Allah - que seja bendito e louvado - está em seu lugar em todas as
circunstâncias. A "natureza Intima de Allah" está em sua natureza Íntima; os atributos de
Allah estão em seus atributos. Por isso o profeta (A paz esteja com ele) disse: "Morre antes
de morrer", ou seja: Conhece a ti mesmo (tua alma, teu ser) antes de morrer.”

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Também disse o profeta (A paz esteja com ele): "Meu servidor não cessa de se
aproximar de mim por suas obras abundantes, até que eu o ame. E quando eu o amo, sou
seu ouvido, sua visão, sua língua, sua mão... O profeta (a paz esteja com ele) quis dizer: O
que aniquila sua alma, ou seja, o que se conhece, vê que toda a existência é Sua existência.
Não vê mudança alguma em Sua natureza íntima ou em Seus atributos. Não vê necessidade
alguma de que seus atributos se convertam nos Seus, porque compreende que sua própria
natureza íntima não é senão Ele próprio e que até então havia ignorado Seu ser, ou seja, o
que Ele verdadeiramente é em profundidade.

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Quando tenhas conhecido o que és, verdadeiramente a ti mesmo, terás te
desembaraçado do teu dualismo e saberás que não és distinto de Allah. Apesar de que
aparentemente tenhas uma existência distinta de Allah não conseguirás conhecer a teu
proprium. Serás um Deus distinto d'Ele. Que Allah seja bendito, de maneira que não haja

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um Deus distinto, separado, que não Ele.

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O interesse do conhecimento do proprium (ou seja, o si-mesmo) consiste em que
obténs a certeza absoluta de que tua existência não é uma real idade nem uma não-
realidade, senão que tu não és, não tens sido e não serás jamais.
Compreenderás claramente o sentido da fórmula: Não há Deus se este não é Deus (La
ilaha il"Allah), ou seja, não há um Deus distinto d'Ele, não há existência separada d'Ele, não
há algo "distinto", separado d'Ele e não há Deus se este não é Ele.

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Se alguém objetar: "Tu aboliste teu Senhorio?" eu responderia: "Não aboli Seu
senhorio, porque Ele não cessa de ser um Senhor magnificente nem cessa de ser adorador
magnificado. Ele não cessa de ser Criador nem cessa de ser criado. Ele é agora tal como era.
Seus títulos de criador ou de Senhor magnificente não estão condicionados pela existência
de uma coisa criada, ou de um adorador magnificado. Antes da criação das coisas
existentes Ele possuía todos os Seus atributos. Ele é agora tal, como era".

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Não há diferença alguma em Sua unidade, entre a criação e a pré-existência. Seu título
do exterior implica a criação das coisas e Seu título do oculto ou interior implica a pré-
existência. Seu interior e Seu exterior (ou seja, Sua expansão, Sua evidência) são como Seu
exterior e Seu interior; Seu primeiro e Seu último são como Seu último e Seu primeiro. O
tudo é único e o único é tudo. Ele estava em cada dia ocupado com uma obra, se bem que
Ele é agora tal como foi.

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Na realidade o distinto d'Ele não existe. Tal como era, eternamente, todos os dias no
estado de criador sublime. Não há coisa alguma com Ele em qualquer dia da criação, como
não há na pré-existência coisa alguma e qualquer dia porque a existência das coisas ou não
existência é tudo um. Se não fosse assim Ele teria necessitado da criação de alguma coisa
nova que não estivesse compreendida em Sua unicidade, o que seria absurdo. Seu título de
Único O faz demasiado glorioso para que uma suposição semelhante fosse verdadeira.

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Quando puderes ver teu proprium assim qualificado, sem combinar a Existência
Suprema com um Adversário, companheiro, equivalente ou associado qualquer, então O
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conhecerás tal como Ele é, ou seja, tu O conhecerás realmente. Por isso o profeta (a paz
esteja com ele) disse: "Quem conhece a si próprio conhece a seu Senhor".
Ele não disse: "Quem extingue seu si-mesmo, seu proprium, conhece o seu Senhor"
porque ele sabe e vivencia que nenhuma coisa é distinta d'Ele e por isso continua dizendo
que o conhecimento de si mesmo é a gnosis, ou seja o conhecimento de Allah. Hás de
conhecer o que é teu proprium, ou seja tua existência; hás de saber que no fundo tu não és
tu, mas tu não sabes.

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Hás de saber - o que tu chamas tua existência não é em realidade nem tua existência
nem tua não-existência. Saberás que não és existente nem - não-existente, que não és
distinto do Ser existente nem distinto do nada. Tua existência e teu nada (não-existência)
constituem Sua existência absoluta, aquela que não pode nem deve discutir se é ou não é.

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A substância do teu ser ou de teu nada (não-ser) é Sua existência. Quando vires que as
coisas não são distintas de tua existência e da Sua e quando puderes ver que a substância
de Seu Ser é teu ser e teu nada nas coisas, sem ver coisa alguma que esteja com Ele ou
n'Ele, então isso significa que conheces tua alma, teu proprium. Quando se conhece o si-
mesmo de tal modo, ali está a gnosis, o conhecimento de Deus, além de todo o erro,
dúvida ou combinação de algo temporal com a eternidade, sem ver na eternidade, por ela
ou junto a ela outra coisa senão a eternidade.

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Se alguém pergunta: "Como opera a união, posto que tu afirmas que só Ele é ? Uma
coisa que é uma não se pode unir mais que consigo mesma". A resposta é: Na realidade
não há união nem separação, como não há afastamento ou aproximação. Pode-se falar da
união entre duas coisas, ou mais, e não quando se trata de uma coisa única.
A ideia de união ou de chegada comporta necessariamente a existência de duas coisas,
ao menos, análogas ou não. Se são análogas, são semelhantes. Se não são análogas,
formam oposição. Mas Allah (que seja louvado) está isento de toda a semelhança, assim
como de qualquer rival, contraste ou oposição. O que vulgarmente chamam de "união",
proximidade ou afastamento não são tais coisas no sentido próprio da palavra. Há união
sem unificação, aproximação sem proximidade, afastamento sem ideia de distância.

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Se alguém perguntar: "Que é a fusão sem fusão?
A proximidade sem proximidade ou o afastamento sem afastamento ?" a resposta é:

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Quero dizer que no estado que chamas proximidade não és distinto d'Ele - que seja
louvado! - e tu não és distinto d'Ele, mas não conheces o teu proprium, não sabes és Ele e
não tu. Quando chegares a Allah, isto é, quando conheces a ti mesmo "sem a literatura
sobre o conhecimento", saberás que és Ele e que não saberás de então em diante se és EIe
e que não saberás de então em diante se és Ele ou não. Quando o conhecimento te houver
chegado saberás que conheces Allah por Allah e não por ti mesmo.

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Por exemplo: suponhamos que não saibas que teu nome é Mahmud ou que devas ser
chamado Mahmud - porque o nome verdadeiro e aquele que leva seu nome são na
realidade idênticos. Imaginas que te chamas Mohammad porém após algum tempo de
viver no erro acabas sabendo que és Mahmud e jamais foste Mohammad. Tua existência
segue sendo a mesma, sem ser afetada pelo fato de que o nome de Mohammad te foi
tirado. O que acontece é que soubeste que és Mahmud e nunca foste Mohammad. Mas tu
não deixaste de ser Mohammad pela extinção de ti mesmo, já que deixar de existir (fana)
supõe a afirmação de uma existência anterior. O que afirma uma existência fora d'Ele,
porém, lhe outorga um associado - que Ele seja louvado e Seu nome exaltado. Neste
exemplo Mahmud jamais perdeu algo. Mohammad jamais respirou em Mahmud, jamais
entrou ou saiu dele. Igualmente ocorre com Mahmud em relação a Mohammad. Tão logo
Mahmud soube que é Mahmud e não Mohammad, reconheceu a si próprio, ou seja,
reconheceu seu proprium e isso por si mesmo e não por Mohammad. Este último jamais
existiu e como poderia se informar sobre alguma coisa?

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"O que conhece" e "o que é conhecido" são idênticos e o mesmo sucede com "o que
chega" e "aquele ao qual se chega"; "o que vê" e "o que é visto". São idênticos. "O que
sabe" em Seu atributo. "O que é sabido" é Sua substancia ou "natureza íntima". "O que
chega" é Seu atributo e "aquele que chega" é Sua substância. Porque a qualidade e aquele
que a possui são idênticos. Tal a explicação da fórmula "Quem conhece a si próprio conhece
seu Senhor". Quem capta os sentidos dessa similitude compreende que não há união, fusão
ou chegada, nem separação; compreende que "o que sabe" é Ele e que "o que é sabido"
também é Ele; que "o que vê" é Ele e "o que é visto" também é Ele; que "o que chega" é Ele
e "aquele ao qual se chega" na união também é Ele. Ninguém distinto d'Ele pode juntar-se
a Ele ou chegar a Ele. Ninguém distinto d'Ele pode separar-se d'Ele. Aquele que
compreender esse total e compreender plenamente está isento da maior de todas as
idolatrias.

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Muitos dos iniciados que crêem conhecer seu proprium, assim como seu Senhor e que
imaginam escapar assim das ataduras da existência dizem que a "via" não é praticável ou
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visível senão por meio da "extinção de existência" e por meio da "extinção dessa extinção".
Dogmatizam assim porque não compreenderam as palavras do profeta (que a paz esteja
com ele). Como queriam evitar a idolatria que resulta da contradição, falam da extinção da
existência e também da extinção da extinção e da desaparição. Mas esta explicação cai em
idolatria pura e simples porque qualquer um que pense existir algo distinto d’Ele e que
pode apagar-se à continuação, ou qualquer um que fale da "extinção da extinção" dizemos
nós, tal homem é culpável de idolatria por sua afirmação da existência presente ou passada
de algo distinto d'Ele. Que Allah - seu nome seja louvado! - os conduza e também a nós
pelo verdadeiro caminho.

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Tu pensas que és mas não és e jamais tens existido. Se fosses, serias o Senhor, o
segundo entre dois. Abandona tal ideia porque em nada diferis vós dois quanto à
existência.
Ele não difere de ti e tu não diferes d’Ele; se por ignorância julgas que és distinto d’Ele,
quer dizer que tens uma mente não educada.
Quando tua ignorância cessa, alcanças a paz, porque tua união é tua separação e tua
separação tua união, teu afastamento uma aproximação e tua aproximação uma partida.
Sendo assim, que te tornes melhor, para de raciocinar e compreende pela Luz da
intuição, sem a qual tu te esqueces de Seus raios.
Guarda-te de dar um companheiro a Allah porque em tal caso tu te envileces com o
opróbrio dos idólatras.

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Se alguém disser: "Pretendes que o conhecimento de teu proprium é a Gnosis, ou seja,
o conhecimento de Allah - que o Seu nome seja louvado! -, que o homem é distinto de
Allah, como podes conhecê-IO?" a resposta é: "Quem conhece a si próprio conhece o seu
Senhor". Sabe que a existência de tal homem não é a sua, nem a de outro, senão a de Allah,
sem a fusão de duas existências em uma, sem que sua existência entre em Deus, saia d'Ele,
conviva com Ele ou resida n'Ele. Mas Ele vê tua existência tal como ela é.

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Nada chega a ser que não tenha existido antes e nada deixa de existir pela destruição
ou extinção, ou extinção da extinção. A aniquilação de uma coisa implica sua existência
anterior. Pretender que uma coisa existe por si mesma equivale a crer que essa coisa se
criou a si mesma, que não deve sua existência ao poder de Allah, o que é um absurdo aos
olhos e ouvidos de todos.

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Deves observar que o conhecimento que possui quem conhece seu proprium é o
conhecimento que Allah possui de seu proprium, de si mesmo, porque Seu proprium não é
distinto d'Ele. O profeta (a paz esteja com ele) quis designar por proprium a existência
mesma. Qualquer um que chegue a esse estado de alma em seu exterior e em seu interior
não é distinto da existência de Allah, da palavra de Allah; sua ação é a de Allah e seu
propósito de conhecer seu proprium é o proposito da Gnosis, quer dizer - o conhecimento
de Allah.

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Tu abrigas esse propósito, vês seus atos e teu olhar busca um homem distinto de Allah,
posto que tu te vês a ti mesmo distinto d'Ele. Mas isso provém de que não possuis o
conhecimento de teu proprium. Mas se "o crente é o espelho do crente", nesse caso esse
homem é Ele mesmo por sua substância, ou por seu olho, ou seja por seu olhar. Sua
substância ou seu olho é a substância ou o olho de Allah; seu olhar é o olhar de Allah, sem
diferença alguma: Esse homem não é Ele segundo tua visão, tua ciência, tua opinião,
fantasia ou teu sonho, senão segundo Sua visão, Sua ciência e Seu sonho. Diz-se: "Eu sou
Allah". Escuta com atenção por que não é ele, porém o próprio Allah que por sua boca
pronuncia essas palavras: "Eu sou Allah". É evidente que não alcançaste o mesmo grau de
desenvolvimento mental que ele. De outro modo compreenderias sua palavra, dirias o que
ele diz e verias o que ele vê.

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Resumimos: a existência das coisas é Sua existência sem que as coisas sejam. Não te
deixes enganar pela sutileza ou ambiguidade das palavras, de forma a imaginares que Allah
foi criado. Certo iniciado disse: "O Sufi é eterno", porém ele o disse depois de todos os
Mistérios lhe terem sido revelados e todas as dúvidas ou superstições terem sido
dispersadas. No entanto esse imensurável pensamento só pode convir àquele cuja alma se
tenha tornado mais vasta que os dois mundos. Enquanto àquele cuja alma ainda não tenha
alcançado tal grandeza tal pensamento não é adequado. Porque em verdade esse
pensamento é maior que o mundo sensível e híper-sensível, tomados ambos
conjuntamente.

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Sabe, enfim, que "o que vê" e "o que é visto", "o que dá existência" e "o que existe", "o
que conhece" e "o que é conhecido", "o que cria" e "o que é criado", "o que compreende"
e "o que é compreendido" são todos o mesmo. Ele vê Sua existência por Sua existência,
conhece-a por ela mesma e a obtém por ela mesma, sem qualquer especificação fora das
condições ou normas ordinárias da compreensão, da visão ou do saber. Como Sua
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existência está incondicionada, Sua visão de Si Mesmo, a inteligência de Si-Mesmo e Sua
ciência de Si-Mesmo estão igualmente incondicionadas.

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Se alguém pergunta, "Como olhas o que é repulsivo e o que é atraente? Ou se vês, por
exemplo, uma imundície ou uma carniça, dizes que é Allah?" a resposta é: Allah é sublime e
puro e não pode ser essas coisas. Falamos com ele que não vê uma carniça como uma
carniça ou um monte de esterco como esterco. Falamos aos que veem e não aos cegos. O
que não se conhece é um cego de nascença e até que não se acabe sua cegueira, natural ou
adquirida, não poderá compreender o que queremos dizer. Nossa conversa é com Allah, só
com Allah e não com cegos de nascimento. Aquele que chegou ao grau espiritual que é
necessário para compreender, sabe muito bem que nada existe fora dele. Nossa
conversação é com ele que busca com firme intenção e perfeita sinceridade obter o
conhecimento de seu proprium, o conhecimento de Allah - que seja louvado! - e que em
seu coração guarda em todo o seu frescor a "forma" que o move a perguntar e desejar
chegar a Allah. Nosso discurso não vai dirigido aos que não têm intenção ou finalidade
alguma.

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Se alguém objetar, "Allah-que seja bendito e santificado - disse: 'os olhares não o
podem alcançar, mas Ele alcança os olhares'. Tu dizes o contrário. Onde pois está a
verdade?", a resposta é: Tudo que temos dito está de acordo com a palavra divina: as
palavras não podem alcançá-la, ou seja, ninguém nem as palavras de alguém, pode alcançá-
la. Diz-se que há, que existe alguém distinto d'Ele; deves convir que esse distinto d'Ele pode
alcançá-la. Mas nestas Suas palavras árabes, "os olhares não podem alcançá-la", adverte
Deus o fiel que nada há distinto d’Ele. Quero dizer, alguém distinto d’Ele não O pode
alcançar, porque quem O alcança é Ele, Allah, Ele e nenhum outro. Só Ele alcança e
compreende Sua verdadeira natureza íntima, não outro. Os olhares não O percebem em
absoluto porque são idênticos ao Seu ser.

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Àquele que diz que os olhares não O podem alcançar porque são criados e o criado não
pode alcançar o incriado ou eterno, dizemos que quem afirma tal coisa não conhece seu
proprium. Nada há, absolutamente nada; nem olhar nem coisa alguma, que exista fora
d'EIe, senão que Ele compreende Sua própria existência, sem que esta compreensão exista,
sem "como", sem "outro".

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Conheci meu Senhor através do meu Senhor, sem confusão ou dúvida.
Minha "natureza íntima" é à Sua, realmente, sem falta ou defeito.
Entre nós dois não há tempo e em minh'alma o mundo oculto se manifesta.
Depois de ter conhecido minh'alma sem mistura ou desordem.
Cheguei à união com o alvo de meu amor, sem distâncias longas ou curtas.
Recebi graças sem alguém descer a mim, sem recriminações ou motivos.
Não destruí minh'alma por Sua causa, nem tenho duração temporal que me destrua.

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Se alguém pergunta: "Afirmas a existência de Allah e negas a existência de qualquer
coisa além d'Ele. O que então são as coisas que vemos?" a resposta é: estes discursos se
dirigem aos que não veem algo mais do que Allah. Quanto aos que veem coisas fora de
Allah, nada temos com eles, nem pergunta ou resposta porque a verdade é que, embora
creiam em outra coisa, nada mais que Allah, eles veem em tudo que fitam.

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O que não conhece seu proprium não vê Allah, porque nem todo o recipiente deixa
perceber seu conteúdo. Nós já falamos muito sobre esse assunto. Ir além seria inútil
porque quem não viu já, não verá, apesar de nossos esforços. Não compreenderá e não
poderá alcançar a verdade. O que pode ver, vê, compreende e alcança a verdade; para
aquele que chegou mas ainda não sabe disso basta uma indicação ligeira para que sua Luz
possa encontrar o caminho verdadeiro, caminhar por ele com toda a energia e chegar ao
fim de seu desejo, com a graça de Allah.

51
Que Allah nos dispense, por Sua graça, o que Ele ama e nos acolha com palavras, atos,
ciência! dê luz e nos guie.
Ele tudo pode e atende a todos os pedidos com o que é justo. Não há poder ou força
maior que Allah, o Altíssimo, o Incomensurável!
Que a graça e a paz estejam com o profeta Mohammad, sua família e seus
companheiros.

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