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4 • P2 • Sexta-feira 12 Março 2010

Walter Benjamin
O mais sozinho
dos homens em Portbou
Atrás, a montanha, à frente o mar. De um lado, França, do outro, Espanha. Isto é Portbou, uma
terra que sempre viveu da fronteira e agora vive de Walter Benjamin. Judeu, acossado pelo
nazismo, Benjamin atravessou os Pirenéus a pé. Queria chegar a Lisboa, de onde iria para a
América. Mas em Portbou não o deixaram passar. Em poucos lugares a consciência do que os
homens fazem aos homens pode ser tão solitária. Por Alexandra Lucas Coelho, em Portbou

1. A fronteira
DR
de 1940. Mas quem chega de que vem da estação. Depois, a Rua viveu os últimos dias quando passou
comboio encontra os seus passos do Mercado desce, ladeada por a fronteira. Sei que morreu ali e tinha
Todos os comboios que vão de logo na estação. A empregada da plátanos, e logo à esquerda a Rua uma mala com uns comprimidos
Barcelona para França param bilheteira está tão habituada a que do Mar tem o chão esventrado por para se suicidar.
em Portbou, a fronteira, agora perguntem por Benjamin que já tem obras em curso. É preciso caminhar A célebre mala que teria também
invisível. Por isso, é possível sair de um mapa na ponta da língua. na lama até ao prédio que em 1940 um manuscrito nunca encontrado.
manhã cedo num comboio rápido — Desce aquelas escadas que vão era a pensão Fonda de Francia, onde — Mas não sabemos se foi suicídio
internacional (duas horas) e voltar ao dar à Rua do Mercado, e depois vira Benjamin dormiu a sua última noite. ou foram os nazis — acautela Niebes.
começo da tarde num regional (três à esquerda para a Rua do Mar. Agora é um prédio de habitação, — O memorial lá em cima está muito
horas). Portbou vivia da alfândega e agora três andares recém-pintados de bonito. E depois vá ao cemitério e
Uma das vantagens deste plano vive do seu morto mais célebre. vermelho-escuro, com portadas suba dois pisos, que há lá uma pedra
é que os comboios internacionais Não apenas dele ter morrido aqui, cinzentas. com umas coisas bonitas.
partem da histórica Estação de mas dele ter morrido aqui “em Ao lado da porta, há uma É o que tem valido a Portbou,
França, onde as lajes e as cúpulas circunstâncias trágicas”, como dizem placa. Primeiro, diz “Aqui viveu e a gente que vem por causa de
guardam toda uma memória do painéis espalhados pela vila. morreu Walter Benjamin”, como Benjamin, sobretudo quando já não
século XX, guerra, exílio, fuga, Judeu alemão, acossado pelo se Benjamin se tivesse instalado em faz este frio de faca.
libertação, que acompanha o avanço dos nazis, Benjamin tinha Portbou. E depois tem uma citação — Há que ganhar a vida
comboio à medida que ele avança. 48 anos e uma vida desfeita quando (“Todo o conhecimento é uma forma como pudermos, e o tema de
Girona fica a meio caminho, e a decidiu atravessar os Pirenéus a de interpretação”) com o desenho Walter Benjamin ainda não está
partir daí há bosques de plátanos pé, de modo a fugir à vigilância da dos óculos de Benjamin como se suficientemente trabalhado. Não é
e pinheiros entre masías, as casas polícia francesa colaboracionista. fosse uma banda desenhada. tirar proveito, mas é para a terra ter
O memorial feito por Karavan
rurais catalãs de pedra ocre. Trazia vistos de trânsito para — Agora não estão, só vêm no alguma saída, porque estamos muito
Os Pirenéus aparecem escuros Espanha e Portugal e um visto Verão e na Semana Santa. Estão em mal. O fim da alfândega foi um golpe
e ondulantes do lado direito, e para os Estados Unidos, onde o pelos franquistas ou pela Gestapo? Barcelona — esclarece uma simpática terrível, e tanto para a administração
depois mais altos e nevados do lado esperava um lugar de investigador, Ainda hoje os pormenores do avó de passagem, Paquita Bonet, espanhola como para a catalã
esquerdo. Quando o sol bate na o primeiro que uma instituição que aconteceu não são claros. Há queixo levantado para a fachada. — estamos um pouco esquecidos.
neve, o cume fica incandescente. académica lhe dava. Alcançou incongruências e lapsos. Fizeram tudo de novo. Vem muita Continuando pela Rua do Mar,
Passando Figueres, avista-se o Portbou na companhia de uma Mas a hipótese mais forte, a única gente ver, muitos jovens. E para vamos dar à rambla que desemboca
azul do Mediterrâneo, e em breve refugiada com quem se cruzara, sustentada por um testemunho a terra é algo que atrai o turismo. na marginal.
o comboio abranda para entrar na Henny Gurland, e do filho dela, da época e pelo que se sabe de Antes, Portbou era a alfândega, e Eis a dimensão de Portbou:
estação de Portbou. Joseph. Inesperadamente, a polícia Benjamin, é que se tenha suicidado agora é a terceira idade. Mas quem três ruas paralelas e umas tantas
O refugiado Walter Benjamin — de Portbou impediu-os de seguir, com morfina. sabe tudo é aquela senhora. perpendiculares à volta de uma
hoje lido em todo o mundo como um concedendo-lhes apenas uma noite Seja como for, a sua morte é a do E, despedindo-se, aponta a loja baiazinha, com os Pirenéus atrás das
dos pensadores mais importantes de descanso antes de os recambiar. mais sozinho dos homens, e isso é na esquina, misto de recuerdos com costas.
do século XX —, chegou aqui a pé, Benjamin não viveu para isso. No dia cada vez mais evidente à medida que bebidas. É aí que está Niebes Mallol, Na ponta esquerda da marginal
vindo do lado francês, depois de seguinte estava morto. seguimos os seus passos em Portbou. de 48 anos, entediada de não ver há mais um painel com a fotografia
uma caminhada extenuante pelas Matou-se deliberadamente ou O primeiro painel com o nome entrar ninguém: de Benjamin junto a uma escultura.
montanhas, no dia 26 de Setembro por acidente? Foi assassinado de Benjamin está ao fim da escada — Foi ali que Walter Benjamin Aqui se homenageiam os 470-480 mil
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IMAGEM DISPONIBILIZADA PELA ASSÍRIO & ALVIM
exilados da Guerra Civil Espanhola, e
a tragédia do escritor aparece como
símbolo individual.
A seguir está o quiosque do
turismo, onde a funcionária tem
para venda vários livros relacionados
com Benjamin. E, para oferta, tal
como noutras terras, há mapas e
folhetos, um montinho de fotocópias
agrafadas que são a memorabilia da
morte de Benjamin.
A saber:
— registo do juiz comprovando
a morte de “D. Benjamin Walter
Dr.”, falecido na Fonda de Francia
em consequência de “hemorragia
cerebral”
— relato do juiz quanto às
circunstâncias em que o defunto foi
encontrado e ao que tinha em sua
posse (um relógio “aparentemente
de ouro”; uma nota de 500 francos;
uma nota de 50 dólares; uma nota
de 20 dólares; um passaporte com
vistos; um certificado do Institute
of Social Research de Nova Iorque;
seis fotografias; uma radiografia;
um cachimbo “aparentemente de
âmbar”; óculos; cartas; jornais)
— resumo das despesas tidas com
o morto (médico, 75 pesetas; dona
da pensão, 166,95 pesetas; padre,
93 pesetas; carpinteiro, 313 pesetas;
juiz, 50 pesetas)
— factura da pensão (quarto e
ceia, 12 pesetas; mais quatro noites
cobradas, 20 pesetas; cinco gasosas
com limão, 5 pesetas; quatro
telefonemas, 8,80 pesetas; farmácia,
13 pesetas; vestir defunto, duas
pessoas, 30 pesetas; desinfectar
quarto, lavar colchão, 75 pesetas).
— factura do aluguer de um nicho
no cemitério por cinco anos (93
pesetas).
— factura do médico (“quatro
visitas com injecções, medir pressão
arterial e sangria ao viajante D.
Benjamin Walter, 75 pesetas”)
— factura da carpintaria (caixão,
seis homens para o levar ao
cemitério, mão-de-obra para fechar
o nicho, 313 pesetas).
— visto para a América e uma carta
a confirmar o posto de investigador.
Benjamin gostava de inventários.
Sonhava concluir uma obra só
com citações, em que a simples
correlação das frases iluminaria
a verdade. Mas é difícil saber que
verdade emerge do inventário da sua
morte.
Imune ao frio, nas traseiras do
quiosque do turismo senta-se José,
octogenário de boina.
— Benjamin? Está ali…
Aponta a colina do cemitério, no
lado direito da baía, onde o artista
israelita Dani Karavan escolheu
situar o memorial que fez para
Benjamin em 1992.
— Está bastante deteriorado,
partiram o vidro. Não o acho muito
bonito.
Que sabe José de Benjamin?
— Era um poeta. Um pensador
alemão, judeu. Hospedou-se numa
pensão e a polícia, ou a Gestapo,
foi buscá-lo. Dizem que se matou.
Recordo-me de ouvir falar, eu tinha
10 ou 11 anos. Mas era o tempo do
franquismo e ninguém podia falar à
vontade.
— Que recorda do que ouviu?
— Que se tinha matado.
Depois José fez-se funcionário da
alfândega.
— Havia muitas agências aqui,
agora está tudo fechado. Portbou
passou de 3000 e tal pessoas para
1200.
Basta caminhar ao longo da baía
para ver isso.
Judeu alemão, acossado pelo avanço dos nazis, Walter Restaurante-Bar Espanha, fechado
Benjamin tinha 48 anos quando chegou a Portbou com grades. Art In Restaurante,
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fechado. Restaurante-Bar El Club, seu nome quando escolheu a morte,
fechado. Hostal Juventus, fechado. nesses dias do começo do Outono de
Uma bela casa antiga, entaipada. E 1940”.
esta é a marginal, com a câmara e os A academia gosta de gavetas
bombeiros ao fundo. Seguindo até arrumadas. Mas Benjamin, meio
lá, há setas a indicar o caminho para século antes da Internet, era um
o memorial de Walter Benjamin. espírito em rede, ligando matérias,
Sobe-se então a colina, com o mar criando relações, não sendo
sempre do lado esquerdo, e ao cimo exactamente filósofo, sociólogo,
da rampa mais um painel Walter crítico, jornalista, tradutor, mas
Benjamin, a contar em catalão, colhendo algo de tudo isto para uma
castelhano e inglês como o pensador obra única, a de quem interroga “a
foi enterrado a correr no cemitério verdade cuja chama viva continua a
católico, nicho 563, pago por Henny arder por sobre os pesados toros do
Gurland durante cinco anos, findos passado e as leves cinzas da vida de
os quais passou a uma vala comum. outrora”.
Há uma passagem a dizer que o A sua matéria era a realidade.
espaço deste memorial “está aberto O seu dom “muitíssimo raro”,
ao universo, configurado por tudo resumiu Hannah Arendt, era
o que o pensamento e o sentimento “pensar poeticamente”. E, como faz
possam capturar”. E outra com um poeta, deu forma material ao
“o anjo da história” — aquele que invisível.
avança para a frente mas com o Andava sempre com caderninhos
rosto voltado para trás, presença de capa preta cheios de citações,
central na obra de Benjamin —, aqui que tanto podiam ser poemas como
evocado de forma esperançosa: notícias, cenas de rua ou listas
“A memória é um acto de fé para o de coisas, como nas assemblages
presente.” O texto não fala numa surrealistas. À semelhança
“morte em circunstâncias trágicas”, de Goethe, acreditava num
mas especificamente em “sobredose Urphänomen, “uma coisa concreta
de morfina”, embora não mencione na qual a significação coincidiria
a palavra suicídio. com a aparência, a palavra com a
Voltando costas, o horizonte coisa, a ideia com a experiência”.
abre-se para o recorte prodigioso do E a figura certa para arrancar esta
Mediterrâneo, colinas de um verde verdade era o flâneur, aquele que se
espesso sobre água azul-azul. opõe ao útil, que vagueia entre os
Hannah Arendt, outra pensadora homens, a quem as coisas revelarão
essencial do século XX, veio a o seu sentido íntimo.
Portbou mal soube da morte de Filho de um rico negociante de
Benjamin, e está aqui a frase com arte, educado à mesa com garfos
que descreveu esta colina: “Um dos de ostra, Benjamin cresceu no
lugares mais belos que vi.” mundo da burguesia judaica culta e
Com tempo, hão-de avistar-se assimilada, essencialmente europeia.
gaviões, falcões, corvos-marinhos, E como genuíno flâneur que era,
diz a placa do miradouro, que oscilou sempre entre comunismo
também se chama Walter Benjamin. e sionismo, sem nunca se tornar
E seguindo o caminho até ao militante, ou ir para Palestina, como
cimo, aparece então uma entrada o seu amigo Gerschom Scholem.
em ferro a afundar-se na terra, Depois, perante o avanço do
mesmo na beira do precipício. nazismo, faltou-lhe a habilidade dos
Está feita para o tamanho de uma sobreviventes. Refugiou-se em Paris,
pessoa. O que vemos ao entrar é mas os franceses fecharam-no três
uma escadaria para a água. Não meses num campo de prisioneiros
para uma praia, ou para as rochas, quando Hitler retirou a cidadania aos
mas suspensa sobre a água. Ou seja, judeus. Seguiu-se o Sul de França,
é uma escada entre o céu e o mar, de onde partiu a pé, pelos Pirenéus.
perfurando a colina em diagonal. Estava separado da mulher, perdera
— Bom dia — diz uma voz. todos os seus livros, e sofria do
É um homem que vem do coração.
cemitério, a descer para a vila, e vê a Hannah Arendt não teve dúvidas
forasteira parada à entrada do túnel. de que o que aconteceu em Portbou
Desaparece na curva como o último O registo do juiz que comprova a morte de Benjamin em consequência de “hemorragia cerebral” foi um suicídio.
dos vivos. “Várias razões o levaram a
O vento sopra da terra para o mar.
Ouve-se o vento e vê-se a espuma lá
e sai do outro lado. A partir daqui
são mais 25 degraus até ao vidro que
2. O suicida isso. A Gestapo confiscara o seu
apartamento em Paris, que continha
em baixo, no fundo. E depois uma nos impede de cair para a água. a sua biblioteca […] Como iria ele
sombra projectada no mar, que é o O velho José tinha razão nisto: Não havia “ninguém mais isolado viver sem a sua biblioteca, como
nosso próprio corpo. Impossível não o vidro está todo estalado. Mas do que Benjamin, ninguém tão
Talvez muitos alguéns podia ganhar a vida sem a vasta
descer. podemos ler a citação de Benjamin absolutamente só”, escreveu tenham morto Walter colecção de citações e excertos
Um, três, cinco, sete, nove em alemão, catalão e espanhol: “É Hannah Arendt (Homens em Tempos que se encontrava entre os seus
degraus. mais difícil honrar a memória dos Sombrios, Relógio d’Água, 1991). Benjamin num sentido manuscritos? Além disso, nada o
A luz vai ficando mais escura, o anónimos do que a dos famosos. A Nele se conjugaram “mérito, muito lato e não atraía na América, onde, conforme
som mais fechado. O ferro oxida construção da história é dedicada grandes dotes, falta de jeito e costumava dizer, provavelmente
lentamente nas paredes e no tecto. aos anónimos.” infortúnio”, até ao ponto em que a apenas aplicável a ele ninguém saberia o que fazer dele
Olhando para trás, já não se vê terra, O vento assobia no metal. Os vida lhe apareceu como um “monte além de o passearem pelo país
só um rectângulo de céu lá em cima. ramos batem no tecto. Numa saída, de destroços”. Tão inclassificável
Maria Filomena Molder inteiro, exibindo-o como o ‘último
10, 20, 30, 40. o céu, na outra, o mar. Podemos como pouco prático, era um alvo europeu’.”
A luz vai ficando mais clara, o som descer ou subir. Uma escada tem perfeito da “habitual suspeição Mas “a causa imediata do
mais amplo. Ao 43.º degrau, o tecto sempre duas direcções, mas qual é a académica em relação a tudo quanto suicídio de Benjamin foi um azar
acaba e o céu abre-se por cima da vida e qual é a morte? não seja garantidamente medíocre”. verdadeiramente excepcional”, crê
cabeça. O túnel já furou a montanha E “poucos se lembravam ainda do Arendt.
SEQUÊNCIA DE IMAGENS RETIRADA DO CATÁLOGO DA EXPOSIÇÃO PASSAGENS, DE DANI KARAVAN
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BETTMANN/CORBIS
“Os refugiados [que nesse dia perseguições, migrações forçadas de furar. Eu só queria chegar ao mar,
chegaram a Portbou] teriam de que continuam”. à luz, e foi a natureza que me deu
regressar a França pelo mesmo É raro uma encomenda isso. Depois insisti com o presidente
caminho no dia seguinte. Durante resultar em algo tão poderoso, da câmara para não pavimentar o
a noite, Benjamin pôs termo à vida, mas é assim que o israelita Dani caminho na colina até à oliveira,
e os funcionários, impressionados Karavan, de 80 anos, trabalha. porque as pessoas têm de sentir
com o suicídio, autorizaram os seus “Recebo encomendas, e depois o que Benjamin sentiu ao subir a
companheiros a seguir viagem até vou aos sítios”, resume com montanha.”
Portugal. Algumas semanas mais simplicidade, por telefone, a partir Os próprios materiais surgiram
tarde, o embargo aos vistos foi de Telavive. “Para este memorial, naturalmente: “O vidro no fim do
revogado. Um dia antes, Benjamin recebi um convite da Alemanha, túnel foi para proteger as pessoas
teria passado a fronteira sem em colaboração com o Pujol de cair na água, mas depois decidi
dificuldade; um dia depois já se [então presidente do governo da usá-lo, com a frase dele sobre os
saberia em Marselha que nesse Catalunha]. Disseram-me para ir a anónimos, para homenagear todos
momento não era possível atravessar Portbou e escolher um lugar.” os que fugiram dos nazis e de
a Espanha. Só naquele dia era Primeiro foi à pensão onde Franco.” E o ferro? “Trabalho muito
possível a catástrofe.” Benjamin morreu. “Mas viviam lá com betão branco, e no princípio
No filme Quem Matou Walter pessoas. Então fui ao cemitério. E pensei fazê-lo branco, mas senti que
Benjamin?, de 2007, o realizador vi um redemoinho na água como a natureza não o aceitava, porque a
argentino David Mauas conduz uma nunca vira de forma tão expressiva. pedra ali tem muito ferro, é ruiva. E
exaustiva investigação sobre a morte O mar criava uma espécie de então foi claro que tinha de ser ferro.
do pensador. Além de entrevistar buraco, ora com espuma, ora O ferro veio da natureza.”
académicos na Alemanha, nos calmo, como se a natureza estivesse Alimentado pelo presente,
Estados Unidos ou em Israel, a gritar. O que pensei foi: ‘Bem, a Benjamin “trabalha sobre os
consulta arquivos e vai a Portbou natureza está a contar a história fragmentos do pensamento que
onde fala com muita gente. O ponto daquele homem. Não a posso contar consegue arrancar ao passado e
de Mauas é que não é possível cruzar melhor. Quero trazer as pessoas reunir à sua volta”, escreveu Hannah
provas que assegurem o suicídio. Há para verem isto.’ Portanto, tinha de Arendt, “como um pescador de
o testemunho de Henny Gurland, a criar uma espécie de corredor. E pérolas que desce ao fundo do mar,
refugiada com quem o pensador veio depois nasceram outros elementos, não para o escavar e para o trazer
pela montanha: na manhã seguinte como ter encontrado a oliveira à luz do dia, mas para extrair das
à chegada a Portbou, contou ela, que luta pela vida, e lá em cima a profundezas e devolver à superfície
Benjamin disse-lhe que tomara uma plataforma.” os insólitos tesouros, as pérolas e
grande dose de morfina na noite Dani está a falar do percurso que o coral”, na convicção “de que no
anterior, e pouco depois perdeu parte do seu túnel de ferro. Uma fundo do mar, onde se afunda e se
consciência. O realizador acha isto passadeira também em ferro leva a dissolve o que outrora viveu, certas
insuficiente, sublinha contradições um muro de xisto, de onde temos coisas sofrem uma transmutação e
e buracos em todo o processo, e Hannah Arendt não teve dúvidas sobre o que aconteceu em Portbou de trepar a colina para chegar a sobrevivem sob novas formas”.
lança dúvidas sobre quem eram, e uma oliveira encostada ao muro do Ainda que Dani Karavan não o
para quem trabalhavam, várias das
figuras de Portbou envolvidas, como
3. O redemoinho cemitério. Contornando-o, chegamos
a uma espécie de plataforma onde
tenha pensado, é esse ânimo que
nos resta, aqui, agora, vendo a nossa
o médico. nos podemos sentar diante do sombra no mar, ao fundo do túnel,
O germanista João Barrento acha Várias razões o levaram O cemitério fica ao lado do Mediterrâneo. onde o redemoinho acalma e volta,
o filme interessante e trouxe-o a memorial, ou seja, mesmo sobre o “Foi por etapas. O túnel foi-me como o mal.
Lisboa, quando começou a publicar a isso [ao suicídio]. mar. dado pela topografia. Quando Em Portbou, o mais sozinho dos
a sua tradução da obra de Walter Nichos com flores de plástico, comecei a escavar, percebi que tinha homens somos nós.
Benjamin na Assírio & Alvim (saíram
A Gestapo confiscara como aquele que albergou o corpo
três volumes, há um quarto pronto, o seu apartamento do pensador durante cinco anos,
faltam três). antes da passagem à vala comum.
“Não foi só o David Mauas que em Paris, que continha Ninguém sabe onde, exactamente,
pôs essa hipótese, de não ser um a sua biblioteca […] e por isso a “campa” é simbólica —
suicídio”, relativiza Barrento. “Há mas existe. Subindo as escadas, do
muitas referências ao carácter Como iria ele viver sem lado direito vemos um banco, uma
enigmático daquela morte. Apesar árvore e ao fundo a lápide “Walter
de que Walter Benjamin vinha
a sua biblioteca? Benjamin, Berlim, 1892-Portbou,
extremamente cansado e com Hannah Arendt 1940”, com uma citação dele:
grande desalento, e é muito natural “Não há documento de cultura
que tenha sido ele a tomar aquela que não seja ao mesmo tempo
dose. O suicídio como libertação ou um documento de barbárie.” Em
um gesto de medo em relação ao dúvida em argumento. Mas “porquê cima e à volta, os peregrinos foram
que o esperava. Mas não está nada duvidar de modo tão desconfiado deixando pedrinhas brancas, pretas
provado, e nada impede que alguém dos documentos testemunhais?”, e castanhas, algumas com nomes e
vá remexer naqueles interstícios da pergunta. “A vida e a memória são mensagens.
história.” ariscas e indomáveis, por isso esses Apenas por ser judeu,
Maria Filomena Molder, que tem documentos só podem ser o que Walter Benjamin morreu aqui,
mantido um diálogo constante com são, jamais restituições exactas do absolutamente só, perseguido, sem
a obra de Benjamin, e lhe dedicou que não o é: alguma coisa sempre poder atravessar uma fronteira.
um livro (Semear na Neve, Relógio escapa. Ora, pôr em causa a sua É uma memória do mal maior, o
d’Água, 1999) não gosta do filme, boa-fé é fazer destas testemunhas Holocausto. E 70 anos depois, os
a começar logo pela pergunta do cúmplices de uma conspiração herdeiros dessa memória, que somos
título, Quem Matou Walter Benjamin? política e policial.” todos nós, continuam a impedir
“Talvez muitos alguéns tenham Tudo isto não significa que Quem outros de atravessar fronteiras, a
morto Walter Benjamin num sentido Matou Walter Benjamin? não seja matar e a deixar morrer.
muito lato e não apenas aplicável a “importante”, dado que “permite ver No cimo da colina em Portbou,
ele”, diz. “Muitos judeus e outros como se constrói um filme de tese, somos um diante da morte de um,
perseguidos e acossados pelos nazis que inclui os depoimentos daqueles e é isso que é avassalador. Não há
se suicidavam tomando substâncias que não estão de acordo com ela”. memória colectiva. Toda a memória
tóxicas que transportavam consigo. Mas, na linha do que diz Hannah é individual porque cada homem
Que se saiba, ele não sofria de dores Arendt sobre o mais sozinho dos faz com ela coisas diferentes. A
atrozes que exigissem regularmente homens, é preciso ter presente que memória do maior mal tanto serve o
a ingestão de morfina. Sofria de uma “o pessimismo de Benjamin é uma bem como o mal, depende de cada
doença crónica do coração. Mas constante a partir do fim dos anos 20, homem.
parece que tomava morfina para e cada vez mais sombrio (que nunca Depois disto, descer as escadas,
diminuir mal-estar agudo, medo e o leva a caluniar a vida, em todo o sair pelo portão, voltar àquela
angústia que algumas dores haviam caso), pessimismo no qual se inscreve passagem de ferro entre o céu e
de arrastar. Daí não ser tão estranho uma espécie de desilusão consigo o mar pode ser uma espécie de
que ainda pudesse falar para próprio”, diz Filomena Molder. libertação.
confessar o seu suicídio algumas Uma carta ao amigo Gerschom João Barrento esteve aqui duas
horas depois de tomar uma dose Scholem, de 1932, “mostra bem vezes, e escreveu numa crónica
mais forte de morfina, pois o corpo o que está em causa na vida dele, (revista Ler, 2002) que, ao ligar
já lhe estaria habituado.” uma forma de fracasso irreparável”. “várias fronteiras num lugar de
Esta pensadora crê que o filme E Scholem confirma (no livro fronteira”, este memorial torna-
faz um jogo para “forçar a prova de que escreveu, A História de uma se “símbolo da tolerância, da
uma tese, a saber, Walter Benjamin Amizade), que nessa altura Benjamin necessidade de derrubar todas as
não se suicidou”, convertendo a pensou suicidar-se. barreiras”, num “século de exílios,

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