Você está na página 1de 4

ex—curso

textos à margem: desvios,


derivas, experimentos

série a #1
março . abril 2018

Estudantes
Giorgio Agamben

Passaram cem anos desde que Benjamin, num ensaio


memorável, denunciava a miséria espiritual da vida dos
estudantes berlinenses e exactamente meio século desde que
um libelo anónimo, difundido na universidade de Estrasburgo,
enunciava o tema no título Da miséria no ambiente estudantil
considerada nos seus aspectos económicos, políticos, psicológicos,
sexuais e, em particular, intelectuais. Desde então, o diagnóstico
impiedoso não só não perdeu actualidade, mas é possível
dizer, sem medo de exagerar, que a miséria – ao mesmo tempo
económica e espiritual – da condição estudantil cresceu de
forma incontrolável. E essa degradação é, para um observador
atento, ainda mais evidente uma vez que se tenta escondê-la
através da elaboração de um vocabulário ad hoc que está entre a
gíria das empresas e a nomenclatura do laboratório científico.
Um dado dessa impostura terminológica é a substituição, em
cada âmbito, da palavra “estudo”, que aparece evidentemente
desprestigiada, pela palavra “investigação” [ricerca]. E a
substituição é tão integral que é possível perguntar se a palavra,
praticamente desaparecida dos documentos académicos,
acabará por ser também apagada da fórmula, que já soa
como um naufrágio histórico, “Universidade dos estudos”.
Procuraremos, ao contrário, mostrar que o estudo não é
apenas um paradigma cognitivo sob todos os aspectos superior
à investigação, mas que, no âmbito das ciências humanas,
stones against diamonds
o estatuto epistemológico que lhe compete é muito menos
www.revistapunkto.com contraditório que o da didáctica e o da investigação.
No termo “investigação” tornam-se particularmente evidentes
os inconvenientes que derivam da incauta transferência de um
conceito da esfera das ciências da natureza para as ciências
humanas. O próprio termo remete, com efeito, nos dois
âmbitos, para perspectivas, estruturas e metodologias muito
diversas. A investigação nas ciências naturais implica, acima
de tudo, o uso de equipamentos tão complicados e custosos
que nem sequer é admissível que um investigador individual
possa realizar as suas pesquisas sozinho; além disso, implica
direcções, directivas e programas de inquirições que resultam
da conjuntura de necessidades objectivas – por exemplo, o
aumento do número de casos de tumores, o desenvolvimento
em curso de uma nova tecnologia ou as exigências militares
– e de interesses correspondentes nas indústrias químicas,
informáticas ou bélicas. Nada de comparável acontece nas
ciências humanas. Aqui o “investigador” – que de modo
mais próprio poderia ser definido como “estudioso” – tem
necessidade apenas de bibliotecas e de arquivos, aos quais
o acesso é geralmente fácil e gratuito (quando uma taxa de
inscrição é exigida, ela é irrisória). Neste sentido, os protestos
actuais sobre a insuficiência dos fundos para a investigação
(efectivamente escassos) são destituídos de qualquer
fundamento. De facto, os fundos em causa são utilizados não
para a investigação em sentido próprio, mas para a participação
em congressos e colóquios que, pela sua natureza, têm pouco
a partilhar com os seus equivalentes nas ciências naturais:
enquanto nestes se trata de comunicar as novidades mais
urgentes não apenas na teoria, mas também e acima de tudo
nas verificações experimentais, nada de similar pode acontecer
no âmbito humanístico, onde a interpretação de uma passagem
de Plotino ou de Leopardi não está ligada a nenhuma urgência
particular. Dessas diversidades estruturais decorre que, além
disso, enquanto nas ciências da natureza as investigações mais
avançadas em geral são conduzidas por grupos de cientistas
que trabalham juntos, nas ciências humanas os resultados
mais inovadores são com frequência obtidos por estudiosos
solitários, que passam o seu tempo nas bibliotecas e não gostam
de participar em congressos.

Se esta substancial heterogeneidade dos dois âmbitos


aconselharia, desde logo, a reservar o termo investigação para
as ciências naturais, outros argumentos sugerem a restituição
das ciências humanas ao estudo que as caracterizou ao longo
de séculos. Ao contrário do termo “investigação” [ricerca], que
remete para um girar em círculo sem que se tenha encontrado
ainda o próprio objecto (circare), o estudo, que significa
etimologicamente o grau extremo de um desejo (studium),
encontrou já e sempre o seu objecto. Nas ciências humanas, a
investigação é apenas uma fase temporária do estudo, que cessa
uma vez identificado o seu objecto. O estudo é, pelo contrário,
uma condição permanente. Aliás, pode-se definir o estudo
como o ponto em que um desejo de conhecimento atinge a sua
máxima intensidade e se torna uma forma de vida: a vida do
estudante – ou melhor, do estudioso. Por isso – ao contrário do
que está implícito na terminologia académica, onde o estudante
se situa um grau abaixo do investigador – o estudo é um
paradigma cognitivo hierarquicamente superior à investigação,
no sentido em que esta não pode atingir o seu objectivo se não
for animada por um desejo que, uma vez atingido, só pode
conviver estudiosamente com este, transformar-se em estudo.

Perante tais considerações é possível objectar que, enquanto


a investigação tem sempre em mira uma utilidade concreta, o
mesmo não pode ser dito do estudo, que, enquanto representa
uma condição permanente e quase uma forma de vida,
dificilmente pode reivindicar uma utilidade imediata. Aqui
é preciso inverter o lugar comum segundo o qual todas as
actividades humanas são definidas pela sua utilidade. Por
força desse princípio, as coisas evidentemente mais supérfluas
estão hoje inscritas num paradigma utilitário, recodificando
como necessidades actividades humanas que sempre foram
feitas apenas por puro prazer. Deveria ser claro, de facto, que
numa sociedade dominada pela utilidade são justamente as
coisas inúteis que se tornam um bem a salvaguardar. A essa
categoria pertence o estudo. Aliás, a condição estudantil é para
muitos a única ocasião para fazer a experiência, hoje cada
vez mais rara, de uma vida que se subtrai a fins utilitários.
Por isso, a transformação das faculdades de humanidades em
escolas profissionais é, para os estudantes, ao mesmo tempo
um engano e um massacre: um engano, porque não existe nem
pode existir uma profissão que corresponda ao estudo (e isso
não será certamente a cada vez mais rarefeita e desacreditada
didáctica); um massacre, porque priva os estudantes daquilo
que constituía o sentido mais próprio da sua condição,
deixando que, ainda antes de serem capturados pelo mercado
de trabalho, vida e pensamento, unidos pelo estudo, se separem
irrevogavelmente.

Giorgio Agamben, “Studenti”, 2017. Tradução realizada a partir da versão brasileira


por Vinícius N. Honesko e do original em italiano publicado em Quodlibet. stones against diamonds

Você também pode gostar