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Fundo de memória: Infância e escola em famílias negras de São Paulo

Neusa Maria Mendes de Gusmão**

RESUMO: O presente artigo discute a visão sobre infância e escola presente entre
homens e mulheres de diferentes idades e moradores da cidade de São Paulo. O comum
entre todos, o fato de serem negros e, como tal, partilharem das trajetórias de suas
famílias, como imersas no espaço da cor e da raça. Disto resultam desafios e conquistas
que, por sua vez, revelam perdas e ganhos fundamentais em termos das posições sociais
que essas famílias hoje ocupam.

Palavras-chave: famílias negras, infância, escola, mobilidade social, representação,


memória

Fundo de memória é o título que se impõe nesta breve exposição, em razão do fato de
que a ação transformadora do tempo, como diz Halbwachs, atua sobre as pessoas e faz
com que seja o presente o elemento formador da percepção sobre o passado. Nesta
medida, são fragmentos de memória que se retomam do fundo de cada sujeito social
para dizer das marcas que ficaram de um tempo aparentemente esquecido, mas que lá
está para ser visto pelos olhos de hoje. Portanto, não se fala aqui de um tempo preciso, o
ontem, os anos 50, o início do presente século, ou mesmo a escravidão. Ainda assim,
tudo isso se faz presente para que se possa "ir juntando, pedaço por pedaço", como disse
uma entrevistada, e, assim, "inteirar uma história".

Quem são nossos sujeitos? Dezenove mulheres, entre 19 e 76 anos, e nove homens com
idades entre 29 e 77 anos na época de seus depoimentos, ou seja, em 1987; todos
moradores da cidade de São Paulo. Dez anos depois, este trabalho retoma o arquivo
dessas memórias existentes no CAPH — Centro de Apoio à Pesquisa Histórica —, do
Departamento de História da USP, para refletir sobre seus conteúdos e, de modo
privilegiado, refletir sobre a infância e a escola na visão dessas pessoas. O que há de
comum entre elas?

O comum entre todos os entrevistados é o fato de serem negros e, como tal, partilharem
das trajetórias de suas famílias, como imersas no espaço da cor e da raça em face das
possibilidades, das conquistas e dos desafios que resultaram e resultam em perdas e
ganhos fundamentais em termos das posições sociais que hoje ocupam. Como diz
Florestan Fernandes (1965), a solidariedade doméstica no interior da família negra
possibilita a ascensão social das gerações mais novas. Mas, da mesma forma, as
desigualdades impostas por uma ordem competitiva tendem, segundo Pinto (1987), a
demonstrar como "problemas específicos à condição racial, como preconceito e toda
uma série de representações negativas, acabam se refletindo e interferindo na trajetória
escolar da população negra jovem" (p. 8) e, sem dúvida, refletiram, também, na
trajetória escolar de seus pais e avós.

O que se discute aqui, mais do que é ou foi o processo educacional do sujeito negro, é a
visão que homens e mulheres negros têm de sua relação com a escola e com um período
de suas vidas — a infância vivida na escola. Trata-se, portanto, de compreender as
vivências escolares e os sentimentos em relação a ela; os custos afetivos e efetivos da
experiência escolar. Os sujeitos aqui enfocados falam de suas vidas e do outro lado da
escola — aquele que, no seu sentir as contradições e dificuldades, marca-lhes as
trajetórias vividas.

Os relatos apresentam-se de modo a privilegiar o ângulo que desvenda uma noção de


infância perante dois mundos: o da escola e da educação; o do trabalho e da
sobrevivência. Como diz Ruth Cardoso, espera-se que "ao apresentar a diferença
marcada no espaço e no tempo", se possam retomar "velhos temas que se infiltram e
sugerem indagações..." (apud Kowarick 1988, p. 15)

Vivência escolar: São Paulo do passado e do presente

A necessidade de mão-de-obra qualificada já no final do século XIX buscou em outros


povos e culturas os meios de reorganizar o universo do trabalho, não sem considerar,
como dizem Faria Fº. e Valentim (1992), "que além do vigor e da tenacidade", os
trabalhadores "pertencessem a uma raça considerada superior, que dignificasse não só o
trabalho, mas a própria nação brasileira" (p. 151). Nesse sentido, os ingênuos e libertos
não serviam aos propósitos do trabalho livre se não fossem previamente preparados,
como no caso mineiro, via treinamento e aprendizagem em institutos de ensino agrícola,
como informa Lanna (apud Faria Fº. e Valentim, op. cit., p. 152).

Dessa primeira compreensão do mundo do trabalho emerge uma concepção de educação


e preparação para o trabalho, necessária para negros, cujo objetivo de formação é a
mão-de-obra, não mais que isso. Uma segunda dimensão presente é aquela que
esclarece o interesse da nação — "pertencer a uma raça superior", isto é, branca, de
preferência européia.

O contexto do final do século é, então, o da distinção entre negros e cidadãos e que, ao


caminhar em direção à sua superação — pela educação, pelo trabalho — inclui o negro,
mas o faz, dizem Faria Fº. e Valentim, na condição de "pobre pretinho" e filho da plebe.
Assim, formar um trabalhador a partir do homem branco "livre", segundo os autores, era
uma coisa muito diferente de formar um trabalhador assalariado, a partir do homem
negro e liberto.

Diante desse impasse, os negros precisaram adquirir capacitação para o trabalho


eficiente e responsabilidade no exercício de sua autogestão como homens livres para
que pudessem ser incorporados de modo ativo e efetivo na sociedade brasileira, por via
de sua inclusão enquanto força de trabalho. (Queiróz Jr. 1989, mimeo.)
Por outro lado, no caso mineiro, citado por Faria Fº. e Valentim, evidencia-se como
fundamental que o trabalhador a ser formado compreendesse o papel do elemento
masculino nas relações sociais e nas relações familiares (op. cit., p. 156).

Os elementos dessa equação — trabalho/educação — envolvem as relações de gênero,


especificando os papéis inerentes ao homem e à mulher; e compreendem o universo
racial, impondo limites às possibilidades de inserção social desses sujeitos na sociedade.

Da mesma forma que em Minas, São Paulo, no início do presente século, tem realidade
bastante semelhante no tocante aos elementos em questão. As memórias colhidas entre
membros de famílias negras, suas vivências em termos de filhos, pais e avós, em termos
de mulheres e homens de diferentes faixas etárias revelam um contexto marcado pela
exclusão/inclusão e os ecos de um sistema que, privilegiando o branco, faz da realidade
do negro um grande desafio. Entre eles, o ter que educar-se para superar as marcas e os
estigmas de seu passado como escravo ou dele descendente. Trata-se, pois, de
compreender, como o fez Joaquim Nabuco, citado por Aragão (s.d.), o olhar
preconceituoso e de discriminação que enfrentaram os "pobres da fortuna", negros,
mulatos, mestiços e os livres pobres. Como se sabe,

era preciso instruí-los, preparar os futuros cidadãos para o trabalho, pois a Lei Saraiva
(1880) proibia a participação política dos analfabetos, a seleção não seria mais pela
renda mínima, mas também pela instrução. (Aragão, op. cit., p. 150).

Desde 1870, São Paulo via crescer um número significativo de instituições


educacionais, culturais, escolas paroquiais, associações beneficentes, escola de "artes e
ofício" e outras, todas revelando os interesses em jogo, num momento de transição.
Desde 1860, diz a autora, São Paulo "toma medidas para responder às reivindicações de
empresários que reclamavam da ausência de trabalhadores nacionais minimamente
qualificados" (op. cit., p. 15). Nesse contexto, a educação a par de outros processos
torna-se essencial, seja para as elites nacionais, seja para o homem livre ou tornado
livre, que busca por melhores condições de vida e existência.

Do final do século passado e das primeiras décadas do presente século, pouco se


conhece sobre o sistema educacional em São Paulo. Demartini (1989) revela que, no
início deste século, a rede pública expandia-se e a rede particular crescia por iniciativas
religiosas e leigas. Ainda assim, proliferavam-se em São Paulo as escolas de clientelas
específicas: italianas, espanholas, alemãs, americanas etc..., com uma diversidade de
experiências escolares significativas diante de uma população urbana, ainda pequena. O
que se sabe, diz a autora, é que "a composição da população de São Paulo, nesta época,
a marcava profundamente — e o sistema educacional refletia também esta situação"
(pp. 51-52).

Na memória das famílias negras pesquisadas e, principalmente, entre os mais velhos —


de 55 anos e mais —, as falas demonstram que em São Paulo do passado havia
diferentes tipos de escola: pública, particular, leiga, religiosa, profissionalizante, de
prendas domésticas. Muitas das quais destinadas às mulheres, outras aos homens. Do
primário misto ao separado, seguiam os homens para as escolas técnicas, enquanto as
mulheres buscavam o corte e costura, as "prendas do lar". Como se vê, não muito
distante do contexto da cidade de São Paulo, ainda na escravidão, e apontado por Dias
(1995) "como tradição e costume, em termos da divisão de funções e de tarefas entre os
sexos, rigidamente demarcadas e nitidamente separadas" (p. 53). Desde então, a cidade
mudou, mas pouco se alteraram as relações vividas pelo conjunto da população em
termos de valores e práticas.

Em 1920, a população era composta de estrangeiros, de nacionais, brancos e negros


recém-saídos da escravidão, mas, como diz Demartini, ainda carregando suas marcas. A
cidade portanto, urbanizada e em expansão, "agrupava moradores mais antigos —
brancos, negros e seus descendentes — e mais novos — imigrantes europeus e
orientais" (op. cit., p. 52). Todos disputando um lugar no mercado de trabalho e em luta
pela sobrevivência. A inserção social de cada contingente em face dos demais é
conflitiva e resulta em formas de organização com base na nacionalidade ou na língua.
Da mesma forma, os negros, como um dos grupos mais discriminados da cidade, tentam
organizar-se, como forma de defender-se nesta disputa (Demartini, op. cit., p.53).

Pinto (1987) afirma que será na década de 1920 que, por iniciativas da comunidade
negra, surgirão escolas para negros, ainda que pouco se saiba dessas iniciativas. Ainda
assim, são conhecidos os chamados cursos de alfabetização para adultos e a escola
primária criada pela Frente Negra, bem como as iniciativas por educação no âmbito da
família.

É desta realidade que emergem as "escolas por conta própria", entre elas, nem sempre
bem-sucedidas, as escolas criadas por negros para a população negra. Moura, apud
Pinto (op. cit.), mostra que a abertura dessas escolas e seu desaparecimento podem ter a
ver com a mudança no caráter engajado das associações e entidades que lhes dão
origem, para uma visão mais assistencialista, causando desinteresse pela escola e pelos
cursos que, assim, acabaram fechando. Demartini, em estudo recente com grupos
étnicos japoneses, mostra que, apesar de todas as adversidades, as "escolas de
japoneses" acabaram por se integrar ao sistema educacional público, garantindo a
integração de seus filhos e descendentes. Com isso, aventa a hipótese de que — no caso
dos japoneses — havia um projeto de integração e, acima de tudo, uma concepção de
direitos que obrigou a incorporação. No caso dos negros, pela própria trajetória de
excluídos de participação, a inserção fez-se pela submissão e não pela reivindicação de
direitos, tornando difícil a manutenção de suas iniciativas.

De qualquer forma, o que se percebe junto aos sujeitos investigados é que não revelam
qualquer conhecimento ou vínculo com tais escolas, que surgiram ao mesmo tempo em
que as escolas particulares proliferaram pela cidade e, pelas quais, em algum momento,
a maioria deles passaram. Apenas um dos entrevistados, numa alusão pouco clara, fala
da escola que o irmão criou, possivelmente uma escola para negros, onde, já adulto,
pôde alfabetizar-se.

Aí fui estudar com meu irmão, que ele tinha um colégio chamado "Escola Cruz e
Souza", no Ipiranga (...) ele tinha um colégio e ali eu estudei bastante (...). Ali eu fiz
todo o primário em dois meses...

José Correia Leite, informante de Demartini, diz que tais escolas (para negros) visavam
um projeto mais amplo de conscientização da camada negra e, ao mesmo tempo, eram
uma solução possível aos problemas de escolarização de negros e mulatos na cidade de
São Paulo. Tais problemas iam desde a escolarização tardia, até a ausência de
documentos pessoais e a presença de um responsável, exigido pela escola pública, e que
os negros nem sempre tinham como apresentar, fosse pela orfandade, fosse pelo fato de
terem apenas atestado de batismo "que não tinha valor" (op. cit., p. 53).

Essa afirmação confirma a idéia de Clóvis Moura" (apud Pinto, op. cit), que coloca a
questão no âmbito do indivíduo. São dificuldades de ordem pessoal, de um ou outro
sujeito, que, talvez, uma associação negra de caráter assistencialista pudesse resolver,
mas que não criava alternativa coletiva e politizada. Assim, a hipótese de Demartini
também parece encontrar solo firme quando politiza a questão, demonstrando que
mesmo aqueles que chegavam à escola, nem sempre nela permaneciam.

Entre os pesquisados atuais, percebe-se que os registros das dificuldades pessoais


assemelham-se aos lembrados por Correia Leite, quer pelo número de órfãos reais ou
conjunturais criados por avós, tios ou sem ter alguém por si, quer pelo fato de a
conquista do direito individualizado de estar na escola não garantir a permanência nela.

... quando eu era criança, tava na escola né, e naquele tempo acho que tinha muito
racismo, me expulsaram da escola porque eu tive uma desavença com um garoto, que
era filho do diretor, lá não sei o que, nós pegamos, brigamos, eu fui expulso da escola e
não deixaram eu estudar mais, perdi diversos anos, né.

Após o castigo extremo — a expulsão, registrada no prontuário da vida escolar do aluno


— fora impossível estudar, até que aos 16 anos vai para a escola do irmão — escola de
e para negros —, faz o "primário em dois meses" e vai trabalhar no comércio.

A maioria dos sujeitos investigados fez pelo menos o primário, estando apenas os mais
velhos, e na maior parte as mulheres, na condição de analfabetos. A razão é clara,
mesmo para os mais novos, diz Maria (19 anos):

Meu pai rasgou a minha matrícula na escola e disse que eu não ia estudar mais... mulher
não estuda, lugar de mulher é na cozinha... escola é marido pra mulher...

Entre os alfabetizados, há analfabetos funcionais — sabem escrever (o nome), mas não


sabem ler. Na faixa etária com mais de 55 anos concentra-se o contingente com
primário completo ou incompleto, quase sempre feito e/ou concluído após a infância, na
idade adulta, obrigados que foram a trabalhar "cedo", esquecendo a infância e
assumindo responsabilidades.

Quadro I - grau de instrução


Obs.: Por envolver gerações mais velhas, mantém-se a antiga designação de
escolaridade — ginásio completo corresponde ao 1º grau completo.

Pelo quadro pode-se perceber que na faixa etária de 55 anos e mais, as mulheres estão
em maioria entre os analfabetos e com o primário incompleto, quase o dobro dos
homens da mesma faixa etária. Ressalta-se a excepcionalidade de uma mulher com
colegial completo.

Na faixa etária intermediária — entre 36 e 55 anos — há mulheres, na sua maioria, com


primário completo e ginásio completo. Embora haja mulheres com colegial, os homens
estão mais com primário incompleto. As mulheres apresentam aqui um avanço na
escolaridade.

O dado pode ser representativo, tanto da expansão do mercado de trabalho, quanto da


modernização do horizonte cultural do negro, apontado por Florestan Fernandes para
uma segunda etapa do processo de integração do negro na sociedade. Para o autor, o
fato corresponderia, já, a uma certa ascensão social, bem como a uma mudança de
mentalidade, refletida pela consolidação da família negra e de mecanismos de
solidariedade doméstica com efeitos positivos nas gerações mais novas (Fernandes
apud Pinto, op. cit, p. 8).

Na leitura do quadro percebem-se ainda os efeitos das mudanças comentadas por


Fernandes entre os homens mais jovens, que estão entre o colegial completo e o
superior incompleto, sendo que uma mulher chega a concluir o nível superior e três
homens chegam à universidade, mas não a concluem. Veremos, posteriormente, que
estes homens abandonam seus cursos em razão de ganhos atrativos no mercado de
trabalho.

Cabe, porém, perceber que a recorrente presença da escola quando já adulto ou seu
término após estar casado, viúvo e ter netos ou, então, entre os 14 e 15 anos, recorrentes
na faixa etária de 30/36 anos ou mais, revela as dificuldades de uma escolarização de
longo prazo de que fala Dauster (1991), mesmo para gerações mais novas.

A escolarização de curto prazo é condição para o trabalho, revelando a precariedade do


ensino destinado ao negro. Como diz Rosemberg (1991), "a carreira de educação inicial
de crianças negras é por vezes frustrada — por ela não ter acesso —, acidentada —
porque interrompida, retomada e abandonada — e sofrida, porque tende a ser de pior
qualidade" (p. 30). A escola da criança negra e pobre, diz a autora, é de pior qualidade,
pois os cursos aí ministrados provêm de um menor número de horas diárias de aula (p.
31) ou ainda, como no caso relatado, reduz-se a ensinar a ler e a escrever. Diga-se de
passagem, o mínimo necessário.

Como bem nota uma entrevistada de 63 anos, seus pais preocupavam-se com o estudo
dos filhos, mas na roça o que aprendeu foi pouco — como uma de suas irmãs, que sabia
ler, mas não escrever e, outra que escrevia, mas não sabia ler. Ambas foram aprender na
cidade, depois de casadas e com netos. Essa escola (das irmãs) era assim, "escola que
uma pessoa que sabia mais explicativa", oposta, portanto, à escola rural.

Relações de gênero, trabalho e racismo

Um ponto significativo encontrado entre os entrevistados é o pensamento comum de


que a escola ensina a ler e a escrever — nem a pobre equação ler/escrever/contar da
escola pública e laica se coloca. Queiróz Jr. lembra que, desde o início do século, para
"terem sucesso na concorrência que lhes fazia o trabalhador branco, trazido pela
imigração e tido como o único adequado, os negros tiveram que se moldar às formas de
sociabilidade próprias dos brancos (...) Isso exigia conhecimentos ainda que
rudimentares da língua (...), algum conhecimento de cálculo matemático (...), sem falar
na leitura e na escrita (...), recursos restritos aos círculos privilegiados dos próprios
brancos (...) considerados os empecilhos enfrentados, o esforço para vencer tudo isso
era enorme" (op. cit., pp. 3-4). O fato se agrava ainda mais, quando referido às
mulheres, a quem se dizia que não cabia aprender a ler, devia apenas "aprender de tudo
que uma dona-de-casa deve saber". Nesse sentido, ir à escola "só de menina" era para "a
gente aprender a bordar, a fazer crochê, tricô..." Ou ainda, quando conseguia terminar o
primário — aquisição da "base, né..." — partia em busca das escolas de corte e costura.

O fundamental então, para homens e mulheres, era estar minimamente


instrumentalizado para poder inserir-se no mercado de trabalho. Ao mesmo tempo, o
trabalho impede ou dificulta a escolarização e a profissionalização consideradas de
nível, já que, nas condições históricas vividas pela família negra, se fez necessário
trabalhar cedo. O trabalho torna-se, assim, um valor cultural e econômico, como diz De
Araújo (1996), e, também, um princípio de socialização. O trabalho tem função de
educador, pois ensina a ter responsabilidade e também ensina uma atividade,
compreendendo, aí, atividades partidas entre homem e mulher. No caso das mulheres, o
saber dos afazeres domésticos não necessariamente era pensado como
profissionalização, ainda que pudesse vir a ser.

De qualquer forma, a instrumentalização para o trabalho expressa-se em trajetórias


escolares marcadas por interrupções e retomadas, por repetências e desânimos, comuns
nas dificuldades de escolarização dos negros em geral e, em particular,
diferenciadamente entre homens e mulheres.

...o pessoal daquela época tinha aquele conceito, mulher foi feita para tomar conta de
casa e o homem foi feito para assumir responsabilidades.

Assim,

aquela que não sabia costurar, bordar, tudo que uma dona-de-casa precisa aprender,
então ia lá (na escola) e eles ensinavam...

Para os homens, o comum era cumprir o primário e alcançar as chamadas escolas


profissionalizantes, técnicas. Para as mulheres, não se discutia a escolaridade, apenas o
preparo para as atividades domésticas: cozinhar, bordar, costurar.

Entre os mais velhos e os mais novos dos sujeitos pesquisados, nenhum deixou de ir à
escola. Apesar disso, as falas dos mais velhos revelam que, no universo familiar, sempre
um, apenas, entre os irmãos homens — o mais novo ou o mais velho — atingia a
escolaridade técnica desejada. No caso de irmãs, muitas vezes as oportunidades de
escolarização formal eram nulas.

... eu sendo o mais velho, eu tive a condição di fazê o SENAI, né, agora meus irmãos,
num... na condição assim, di, profissional, com curso profissionalizante, não tiveram,
né...

O mesmo informante diz:

... a minha irmã, por exemplo, ela num..., ela fez assim um curso de corte e costura,
pra'aquela coisa do dia-a-dia, né? (...) Já num foi uma coisa assim pra, pra... como
profissão... Outra (irmã), já teve assim, um pouco mais de escolaridade, mas também
não foi avante, porque teve que trabalhá, uma coisa ou outra (grifo nosso), também
num, num conseguiu nenhuma formação... O caçula (homem)... ficô praticamente no
primário, né...

Das falas inferem-se alguns pontos para a compreensão da realidade negra. Estudar
significa adquirir uma formação profissionalizante; isso faz com que a escolaridade e o
adestramento para o mercado de trabalho estejam estreitamente relacionados como
objetivo do sujeito negro, em particular do sexo masculino, atribuindo-se a ele, de modo
explícito ou não, determinados papéis na sociedade e na família. Percebe-se que, no
presente século, ainda estão em vigor o pensamento e a proposta do século passado para
os chamados "ingênuos e libertos" com relação ao advento do trabalho livre. Da mesma
forma, percebe-se, desse mesmo projeto, a exclusão da mulher em nome de sua posição
no âmbito das relações familiares.
A escolaridade restrita ao "fazer o primário" é claramente insuficiente. No caso dos
quatro irmãos já citados, apenas um se profissionaliza através de cursos do SENAI;
outros três têm que optar — uma coisa ou outra —, isto é, ou estuda, ou trabalha.
Trabalhar ou estudar são realidades excludentes. Quem não estuda, não tem o devido
preparo e, "... sem ter um curso, assim, mais elevado..." — só primário —, acaba por
sofrer conseqüências em sua vida e na de seus filhos e família.

Para os mais velhos, com 55 anos e mais, a escola apresenta-se primeiro como
dificuldade, já que "eram poucos os que chegavam até ela" e, até 1950, "... a gente não
tinha opção", a alternativa era profissionalizar-se, ainda que isto significasse penalizar
outros membros da família. No entanto, para aquele que aí chega, fortalece um projeto
familiar que aspira para seus próprios filhos, que é ir além do curso técnico. O desejo de
progresso pessoal e familiar irá concretizar-se nas trajetórias escolares prolongadas dos
filhos, muitos dos quais chegam à universidade e começam a trabalhar bem mais tarde.
A escolaridade entre os sujeitos pesquisados aumenta significativamente nas gerações
mais novas, entre homens e mulheres, ainda que, em maioria, estas cheguem mais ao
colegial completo e os homens, em maioria, à universidade.

Assim se expressa um entrevistado que conseguiu assegurar tal trajetória:

... de certa forma eu consegui... o que eu tinha em mente né, de construir, di dá condição
pra que meus filhos estudassem e ... meu filho, por exemplo, ele foi trabalhar
praticamente aos 19 anos (...). Minha filha também fez curso... di letras né, formada em
professora de alemão, né.

A conquista da escolaridade mais elevada dos filhos mostra que "tudo isso aí é... um
sucesso que a gente teve e em base ao trabalho..." A possibilidade de uma ascensão
familiar com base no binômio educação-trabalho revela-se no fato de que os pais do
informante "num tiveram escolaridade i mi deram uma profissão, né? Agora eu acho
que o mínimo que eu teria qui dá a eles (filhos) era além... tê uma condição mais
elevada pra podê existir um progresso, dentro dessa condição de família..."

Como diz Rosemberg (op. cit.), é preciso trazer para a frente do palco a família, em se
tratando da condição de educação inicial, "pois é esta quem escolhe, a partir de normas
culturais de seu segmento social e das oportunidades que lhe são oferecidas, a
modalidade educativa para seus filhos pequenos" (p. 26).

No caso do informante já citado, tendo ele a oportunidade de se profissionalizar,


entende que (os filhos) têm que fazer "um prezinho, num preparatório" e aí "vai (a
escolarização) até os 30, 40 anos..." para "existir um progresso, dentro dessa condição
de família..." No entanto, a própria trajetória desse informante e de sua família nuclear
revela-se como exceção no âmbito da família extensa. Seus irmãos, que não foram além
do primário, vivenciam condições de vida mais próximas da maioria negra, que sequer
completa a escolaridade mínima.

A educação é, assim, espaço ambíguo de vivências e lutas contraditórias — é


importante no processo de mobilidade social, como meio de ascensão (Hasembalg
1983; Hasembalg e Silva 1988; Rosemberg 1991; Fernandes 1965), mas, fazendo
nossas as palavras de Rosemberg, também é parte de uma história de experiências
educacionais frustrantes e de segunda mão.
Muitas histórias contam sobre os que enfrentaram a exclusão escolar como experiência
e a discriminação e o preconceito como realidade. Para estes, a escola permeia o
discurso como um desejo permanente e um valor que, ao mesmo tempo é visto como
difícil de se realizar. Na vida vivida, sempre há um motivo ou uma razão a determinar o
contrário do que é sonhado.

... Que sonho! Ah! E adorava ser pianista (...) Então falava para a minha mãe. Eu quero
estudar! E minha mãe falava assim, que filho de pobre não pode sonhar né, em ser
pianista, que pianista pra pobre era fogão. Então tinha mais é que aprender a cozinhar.

Como mulher, a criança era mais necessária na cozinha ou cuidando de irmãos menores.
Diz uma entrevistada, "... pra estudar, pra ir na escola, também não dava. Porque se eu
fosse pra escola, como mais velha, as crianças tinha que ficar sozinha. Ela (a mãe) tinha
também que trabalhar. Então não dava mesmo!..."

Um informante conta que a mãe fez um sacrifício para ele estudar.

O colégio era pago e minha avó também fez sacrifício para ela (mãe) estudar (...), mas
como o pessoal daquela época, eles tinha aquele conceito, mulher foi feita pra tomar
conta de casa e o homem foi feito para assumir outras responsabilidades (...) ela (a mãe)
sempre teve vontade de estudar, mas a situação de meu avô era um pouco difícil e aí, o
meu avô deu todo apoio para ele (o tio) estudar.

No caso das mulheres mais velhas, além da dificuldade de ter escola na roça, muitas não
aprenderam a ler porque "o pai não deixou"; e não deixava, pois "mulher que sabe ler é
só pra escrever para o namorado". Fato este que não se colocava para os irmãos —
homens — e não se coloca para os sobrinhos, hoje. Assim, como mulher, conseguir
chegar ao 4º ano primário "já era muita coisa".

No caso do homem, um entrevistado lembra que a ida para a escola só foi possível
quando já era rapaz, com seus 17 anos. Estudava à noite e trabalhava durante o dia.
Quando foi para a escola, a luz era de candeeiro de querosene e a fumaça atrapalhava os
olhos, impedindo as pessoas de ficarem muito tempo na escola e, assim, demoravam
para aprender a leitura. Na verdade, morava na roça e lá não tinha escola. A escola
pública, como a de hoje, diz ele, só chegou agora que ele e os outros estão velhos e "já
não tá indo para a escola".

Entre homens e mulheres há, portanto, uma diferença significativa. No caso dos
homens, são eles que atingem maior escolaridade e o fazem porque recebem o apoio dos
pais e quase sempre contam com bolsas de estudo. Um dos entrevistados diz que o pai
trabalhava em casa de família e o patrão conseguiu várias bolsas de estudo para ele, com
isso pôde começar na escola pelo pré.

Desde o pré, então eu era o único (preto) que tinha, praticamente...

Mesmo assim, diz ele,

a gente que trabalha com alunos, a gente nota isso (o preconceito), quanto mais tenra a
idade, menos o conflito aparece, ele só vai aparecer quando a idade aumenta...
De todas as falas percebe-se a emergência de alguns fatos expressos entre o sonho e a
realidade: as relações de gênero, o trabalho e o racismo.

O racismo e o preconceito têm sido sentidos desde sempre, no entanto, entre os


pesquisados, é claro que no ginásio e no colegial eles se fazem maiores e mais
conscientes. Uma das evidências de sua existência é a presença ínfima de negros dentro
da escola. Na lembrança de homens e mulheres, eles quase sempre eram "... o único
preto", "tinha mais um, um patrício só, tinha um né...", "eu era o único pretinho na
sala...", "tinha poucos negros na faculdade..."

O primário raramente se coloca como momento de preconceito, discriminação — "... até


a 8ª série foi uma convivência muito humana, todo mundo muito amigo. Depois nunca
mais eu tive amigos como eu tinha até a 8ª série...". O ginásio e o colegial tornam-se
momentos cruciais de descoberta da diferença e da experiência do preconceito. Diz um
entrevistado:

...quando eu tava fazendo o segundo ano colegial foi um dos motivos (o preconceito) de
eu abandonar (a escola), eu tava com 14 anos, por aí, eu nunca tinha repetido de ano.

Outro diz:

Quando cheguei na faculdade eu já tinha essa experiência, então eu fui meio ressabiado,
um pouquinho, mas não foi aquele choque, tinha um pessoal meio distante, mas você
sabia que sempre acontece...

Uma mulher com mais de 75 anos fala da fazenda onde negros e italianos trabalhavam.
Tinha escola, mas não para as "pessoas de cor". "Nunca fui à escola, não. Nunca. (...) A
verdade é a seguinte: não era pra quarquer um". Conta que muitas vezes falavam
claramente: "Esse não entra (na escola) porque é de cor". Outros diziam às mães que
não tinha vaga e complementa: "Mas bem que tinha!! (...) Era geeeeraaaaal, o
preconceito. Nossa como tinha preconceito! Tinha demais!"

Outra entrevistada comenta que fora no ginásio que começara a perceber as coisas, a
perceber as diferenças que marcam muito. A escola estadual era muito procurada, havia
seleção; e ela, como boa aluna, estava sempre no primeiro grupo, o que causava inveja e
"richa com a gente". Para a mãe, ela era culpada pelas brigas, mas lembra-se que foi na
escola que sentiu a diferença por morar na casa dos outros — os patrões da mãe — e
por ser negra. Numa situação de conflito, chegou a cortar com gilete uma colega de
classe.

Ao estudar com bolsa e em colégios pagos, muitas vezes o aluno (ou aluna) negro
defronta-se com segmentos sociais diferenciados, e por vezes, onde a presença
estrangeira — italianos, alemães, japoneses — era, desde meados do século, muito
grande.

...onde eu estudo tem muita gente rica sabe, não que eu ache ruim ser rico, não é isso,
mas se é uma pessoa assim meio ignorante e tem dinheiro, então pisa em todo mundo e
é meio racista também, porque além de tudo, só tem mais de origem alemã. Ali foi um
sufoco para mim! Puxa vida, o que que uma cor de pele muda a pessoa? Qual o... uma
pessoa assim eu não sei... o sangue deve ser azul, o coração deve ser redondo. (...) Daí
eu ficava superisolada. Todos brancos sabe, e só eu, nossa foi um sufoco!

O caso em questão ocorre já em anos mais recentes, com aluna de magistério, de 16


anos e que diz que seu pé "queimava cada vez que tinha que entrar na sala (de aula), eu
sabia que eles me olhavam torto". A discriminação, porém, não ficava apenas nisso. Na
aula de educação física, um colega diz: "Dá essa bola marrom para a... porque é da cor
dela!" Ela então responde: "Eu não sou marrom, eu sou negra. Eu não sou preta nem
marrom, eu sou negra e assumo minha negritude numa boa!" O colega então responde:
"Então fica com essa bola e as brancas são nossas!"

Ser machucada profundamente, diz a entrevistada, era coisa que acontecia com
freqüência. Ao lanchar com uma amiga no bosque da escola, ouve um colega dizer:
"Nossa, como é que pode? Negro antes ficava na cozinha e agora lancha aqui no
bosque..." Fatos como esse fizeram com que quisesse abandonar a escola, sair de lá de
qualquer jeito, mas aí, diz ela, "não saí, eu lutei (...) eu aprendi a enfrentar todo mundo,
todo tipo de problema, sabe?" No entanto, reagir e lutar não é fato tão comum. Comum
é abandonar a escola em que se está, ficar sem estudar, retornar, às vezes, anos depois,
em outra escola, para tudo se repetir. Mesmo quando se chega à universidade, quase
sempre particular, a discriminação retorna e se acentua para os poucos que aí chegam,
demarcando um lugar em separado e a dificuldade de concluí-la.

A discriminação em torno da cor estende-se também às relações de gênero, acentuando


que o lugar da mulher é a cozinha, o espaço doméstico. Nessa concepção, a alternativa
para a mulher não é estudar, mas trabalhar e casar.

"De criança tinha loucura para ir para a escola, mas não conseguia. Era a mais velha e
tinha que cuidar dos irmãos menores para a mãe trabalhar" e, aí, casou. Só depois da
separação, diz a entrevistada, pensou em voltar a estudar e uma série de circunstâncias
não permitiu. Hoje sente-se velha e deixa tudo como está.

As mulheres, em sua maioria, estudam após uma separação ou viuvez, na idade adulta e
na cidade.

Tem as minhas irmãs que elas (...) iam na escola à noite, né, (...) uma sabia ler. Depois
elas casaram, tudo. Depois com filha casada, com neto, tudo, foram aprender e agora
tiraram o diploma, tiraram o certificado!

Uma outra irmã

não conseguiu aprender e também não teve força de vontade (...) mais ou menos ela
sabe assinar, fazer o nome dela só, não sabe assim, ler nada. Mas ela é danada! Ela se
mexe, aqui em São Paulo, ela vai pra tudo quanto é lugar, mas só perguntando,
perguntando...

A ausência de uma formação contínua e de qualidade para os negros em geral e, neste


caso, para as mulheres negras faz com que estas busquem a escolarização tardia. Antes
de tudo, porém, analfabetas, semi-analfabetas ou analfabetas funcionais, são elas que
conduzem a vida familiar e alcançam autonomia, apesar e independentemente da escola.
Ir, pois, à escola, quando já se "tem neto", é apenas uma forma de dar realidade ao
sonho que a escola representa e não acreditar que ela seja condição de vida. Antes de
mais nada, é o mundo do trabalho na cidade, como empregada ou outra condição, que
além de criar condições de sociabilidade, garante "...um dinheirinho guardado, né... só
depois eu fui à escola..."

Escola, infância e trabalho

O trabalho surge como imposição de vida que afeta e determina drasticamente o fim da
infância, independentemente da idade que se tenha, e, também, o fim da escola como
lugar de aprendizagem, já que sempre há que se optar — ou estuda ou trabalha. A
opção, na verdade, inexiste, pois, para o negro brasileiro, o trabalho se faz inevitável.

De Araújo (op. cit.) comenta que historicamente a criação da criança branca, de elite, e
a da criança negra foi diferente. À criança branca havia um papel determinado dentro da
sociedade e para a criança negra outro: o de que, adquirindo condições físicas, fosse
normal e desejável que passasse a contribuir com a manutenção da família. Primeiro sob
o olhar de seu dono, na escravidão, explorando ao máximo sua força de trabalho e,
depois, em face das dificuldades de sobrevivência da família negra pós abolição,
tornando necessário o trabalho infantil.

Muitas mulheres do grupo mais velho lembram que aos 9, 10 anos já trabalhavam na
roça, em casa e mesmo como pajem ou ajudando nas tarefas domésticas em casas de
famílias que, assim, "ajudavam na criação". Outras lembram que "era só na roça e
trabalhá e comê", e, assim, quando tentam aprender a ler, a escrever, "já tava passada".
Entre os mais novos, ir à escola, parar por ter que trabalhar, muito depois retomar os
estudos é um movimento freqüente e comum. Como diz uma entrevistada:

Entrei (na escola) com 7 anos, fiz o primário em São Paulo, daí a situação ficou meio
"ruça" (difícil) e tive que trabalhar cedo.

No caso dos homens mais velhos, trabalho e escola nem sempre respondem por "parar
de estudar", respondem mais por uma "perda da infância" ou de "parte da vida", já que
para o homem há uma certa continuidade entre escola e trabalho.

As descontinuidades quase sempre ficam por conta da troca de horário em que se


estuda, geralmente o matutino pelo noturno, quando não se tem mais condição e se
necessita trabalhar, antes de se formar.

No entanto, também ocorre mudar para a noite, quando acontece de ter "um distúrbio",
ou seja, sofrer um acentuado processo de discriminação e preconceito. No caso de um
entrevistado, diz ele: "... aí parei, não fui mais, aí no outro ano voltei, pedi transferência
para um colégio estadual."

A trajetória escolar torna-se, assim, típica do chamado "abandono escolar" ou


"exclusão" com repetências, maus resultados escolares e desinteresse pela escola. A
escola, por sua vez, torna-se o locus de experiências negativas e relacionamento difícil.
Com isso, ora se está na escola, ora se está afastado e fora dela. No movimento de
paradas, repetências e retornos nota-se, porém, que tais intervalos são menores para os
homens e maiores para as mulheres, sendo que estas mais raramente chegam à
faculdade, mesmo quando pagas, e, se chegam, nem sempre a concluem.

O único aspecto comum, portanto, entre homens e mulheres negras é o fato de que, para
eles, a escola é o locus onde tomam consciência do racismo, da discriminação e do
preconceito.

Florestan Fernandes (apud Pinto) afirma que muitas vezes as famílias negras tinham
ambições educacionais, mas preferiam abafá-las a expor os filhos aos limites existentes
no contexto social pós abolição. Convenciam os filhos a desistirem dos estudos por
receio às decepções que iriam sofrer (op. cit., p. 8).

Do mesmo modo, Pinto, citando o autor, afirma que o preconceito é, por vezes,
responsável pela não consideração da escola e da educação como meta a ser atingida,
gerando desestímulo e conformismo em face da escola, dos esforços de ascensão social
e mesmo da profissionalização. Pelos dados aqui levantados, pode-se afirmar o
contrário — que as constantes idas e vindas e mesmo a conquista da escolaridade, já
quando adulto, significam resistência e insistência em razão de que os negros, como os
brancos, têm na escola um valor, mesmo que seu espaço lhe seja adverso.

Assim, as trajetórias de vida, tal como a trajetória escolar, mostram a escola como um
lugar de brancos e o negro, dentro dela, como exceção. A escola é, então, lugar de
expressão do racismo. Nenhum dos entrevistados fala em aprendizagem, conteúdos,
didáticas. Na maioria, suas lembranças são de conflito e de luta em torno da condição da
cor e da raça e também da pobreza, mas a ela sempre voltam.

Uma entrevistada mostra significativamente que a escola é lugar de lembrança de sua


pobreza — a roupa de saco que vestia, o modo como as crianças a olhavam e como,
depois de algum tempo, lhe traziam lanche ou pedacinhos dele para ela comer. Comia
até mais do que quem levava lanche e "assim, fui levando a minha vida, né?".

A dupla condição que envolve o sujeito negro na escola — ser negro e ser pobre —
explica o por que estudar com bolsa, e com dificuldade, em escolas pagas, entre
diferentes e sendo diferente em função da cor. A luta e a consciência ou, então, a
submissão e o paternalismo tornam-se parte do cotidiano do sujeito negro e, em ambos
os casos, o negro é posto diante de si mesmo e do outro — o branco —; descobre aí, as
possibilidades de uma identidade própria ou de sua negação.

O cotidiano escolar, que ignora as questões de raça e gênero (Faria Fº, Valentim),
demonstra a existência da desqualificação pela condição racial e opera em conjunto com
os mecanismos de classe:

Ninguém nasce 'feito' ou 'pronto', mas é feito nas relações de produção, de raça e de
gênero. Nestas relações são formados o trabalhador e o burguês, o negro e o branco, o
amarelo, o homem e a mulher. (p. 150)

Muitos são os mecanismos produtores das desigualdades e os processos vividos pela


instituição escolar (Benevente et alli 1994) e no seu interior. A escola resulta, então, em
experiências que, segundo Serrano (apud Benevente), revelam-se "como uma prisão ou
um campo de batalha" que "tem seguramente conseqüências na formação social de cada
um" (p. 33). A escola "Terra Prometida", segundo Bourdieu (1990), torna-se difícil de
alcançar em razão de muitos obstáculos.

Daí que, retomando os dados do Quadro I, sobre grau de instrução, apesar do pequeno
universo aqui tratado, não ser sem expressão e significado o caminho compartilhado e
percorrido pelos sujeitos negros — dos mais velhos aos mais moços —, revela aí, uma
tomada de posição, uma conquista e a possibilidade de uma consciência mais ativa.

No entanto, como ainda persistem diferenças no tocante a negros e brancos de mesma


escolaridade no mercado de trabalho, beneficiando estes últimos em detrimento
daqueles, tudo leva a crer que "a aquisição da instrução para a população negra não é
tudo", como diz Pinto (op. cit., p. 32). Segundo a autora, ainda há um longo caminho a
percorrer para lograr uma posição na sociedade. Embora de acordo com tais idéias, cabe
ainda resgatar o valor da luta e da presença negra — do passado e do presente, no
interior da sociedade brasileira. Como tal e à guisa de fecho, diz Queiróz Jr.:

Entendo que no fato de ter saído desse limbo social a que foi compelido, dominando
uma língua em cuja evolução no Brasil entram tantos termos e expressões pejorativas ao
negro, amoldam-se às instituições sociais que se beneficiaram de sua exclusão;
assimilando atitudes e dominando procedimentos formulados para dominá-lo;
incorporando-se ao trabalho livre e seus benefícios, que se instauraram com a sua
marginalização, com o acesso penosamente aberto ao campo das artes e, ainda mais
penosamente, aos meios da intelectualidade e da política — com sua presença ativa,
eficiente e rigorosamente equivalente à do branco é que o negro se vem credenciando ao
reconhecimento nacional como integrante legítimo e eficiente da sociedade nacional. E
não só isso, mas também um integrante social até mesmo imprescindível porque de sua
atuação passa a depender muito, à luz das conquistas já obtidas pelo negro —
recentemente também no texto constitucional —, a emergência do potencial
democrático de uma sociedade que experimentou a condição de colônia e praticou a
escravidão. Numa tal sociedade está contido o acervo inestimável dessas experiências
utilizáveis na superação de deficiências atuais com vistas à conquista de um futuro
histórico mais harmonioso e criativo. (op. cit., pp. 4-5)

A posse necessária de capital social, cultural e econômico, que possibilita a mudança de


status e assegura condições efetivas de participação social, tem sido, desde sempre, o
desafio para famílias negras em suas trajetórias pessoais e coletivas. Os dados revelam
aqui, a existência dessa luta e de conquistas que, mesmo sendo desiguais, descontínuas
e limitadas, credenciam o sujeito negro como integrante da sociedade nacional, e exige
de todos o reconhecimento de uma ordem social mais justa e democrática.

Childhood and schooling in black families in São Paulo

ABSTRACT: This article discusses the childhood and schooling of men and women of
different ages, living in the city of São Paulo. They all share one common factor - being
black and, as such, share the trajectory of their families, once merged in the same space
of colour and race. Thereof come challenges and conquests in terms of the social
positions that these families have at the present moment.

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* O presente artigo é resultado parcial da pesquisa "Famílias Negras em São Paulo:


Vivências, representações e luta — 1890/1980", financiada pelo CNPq, coordenada pela
autora e que contou com a colaboração da equipe de bolsistas formada por Paula Elaine
Covo, Ângela Aparecida Rangel e Cláudia Adriana Fonseca.

** UNICAMP/NAP - CERU/USP

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