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RESUMO: O presente artigo discute a visão sobre infância e escola presente entre
homens e mulheres de diferentes idades e moradores da cidade de São Paulo. O comum
entre todos, o fato de serem negros e, como tal, partilharem das trajetórias de suas
famílias, como imersas no espaço da cor e da raça. Disto resultam desafios e conquistas
que, por sua vez, revelam perdas e ganhos fundamentais em termos das posições sociais
que essas famílias hoje ocupam.
Fundo de memória é o título que se impõe nesta breve exposição, em razão do fato de
que a ação transformadora do tempo, como diz Halbwachs, atua sobre as pessoas e faz
com que seja o presente o elemento formador da percepção sobre o passado. Nesta
medida, são fragmentos de memória que se retomam do fundo de cada sujeito social
para dizer das marcas que ficaram de um tempo aparentemente esquecido, mas que lá
está para ser visto pelos olhos de hoje. Portanto, não se fala aqui de um tempo preciso, o
ontem, os anos 50, o início do presente século, ou mesmo a escravidão. Ainda assim,
tudo isso se faz presente para que se possa "ir juntando, pedaço por pedaço", como disse
uma entrevistada, e, assim, "inteirar uma história".
Quem são nossos sujeitos? Dezenove mulheres, entre 19 e 76 anos, e nove homens com
idades entre 29 e 77 anos na época de seus depoimentos, ou seja, em 1987; todos
moradores da cidade de São Paulo. Dez anos depois, este trabalho retoma o arquivo
dessas memórias existentes no CAPH — Centro de Apoio à Pesquisa Histórica —, do
Departamento de História da USP, para refletir sobre seus conteúdos e, de modo
privilegiado, refletir sobre a infância e a escola na visão dessas pessoas. O que há de
comum entre elas?
O comum entre todos os entrevistados é o fato de serem negros e, como tal, partilharem
das trajetórias de suas famílias, como imersas no espaço da cor e da raça em face das
possibilidades, das conquistas e dos desafios que resultaram e resultam em perdas e
ganhos fundamentais em termos das posições sociais que hoje ocupam. Como diz
Florestan Fernandes (1965), a solidariedade doméstica no interior da família negra
possibilita a ascensão social das gerações mais novas. Mas, da mesma forma, as
desigualdades impostas por uma ordem competitiva tendem, segundo Pinto (1987), a
demonstrar como "problemas específicos à condição racial, como preconceito e toda
uma série de representações negativas, acabam se refletindo e interferindo na trajetória
escolar da população negra jovem" (p. 8) e, sem dúvida, refletiram, também, na
trajetória escolar de seus pais e avós.
O que se discute aqui, mais do que é ou foi o processo educacional do sujeito negro, é a
visão que homens e mulheres negros têm de sua relação com a escola e com um período
de suas vidas — a infância vivida na escola. Trata-se, portanto, de compreender as
vivências escolares e os sentimentos em relação a ela; os custos afetivos e efetivos da
experiência escolar. Os sujeitos aqui enfocados falam de suas vidas e do outro lado da
escola — aquele que, no seu sentir as contradições e dificuldades, marca-lhes as
trajetórias vividas.
Da mesma forma que em Minas, São Paulo, no início do presente século, tem realidade
bastante semelhante no tocante aos elementos em questão. As memórias colhidas entre
membros de famílias negras, suas vivências em termos de filhos, pais e avós, em termos
de mulheres e homens de diferentes faixas etárias revelam um contexto marcado pela
exclusão/inclusão e os ecos de um sistema que, privilegiando o branco, faz da realidade
do negro um grande desafio. Entre eles, o ter que educar-se para superar as marcas e os
estigmas de seu passado como escravo ou dele descendente. Trata-se, pois, de
compreender, como o fez Joaquim Nabuco, citado por Aragão (s.d.), o olhar
preconceituoso e de discriminação que enfrentaram os "pobres da fortuna", negros,
mulatos, mestiços e os livres pobres. Como se sabe,
era preciso instruí-los, preparar os futuros cidadãos para o trabalho, pois a Lei Saraiva
(1880) proibia a participação política dos analfabetos, a seleção não seria mais pela
renda mínima, mas também pela instrução. (Aragão, op. cit., p. 150).
Pinto (1987) afirma que será na década de 1920 que, por iniciativas da comunidade
negra, surgirão escolas para negros, ainda que pouco se saiba dessas iniciativas. Ainda
assim, são conhecidos os chamados cursos de alfabetização para adultos e a escola
primária criada pela Frente Negra, bem como as iniciativas por educação no âmbito da
família.
É desta realidade que emergem as "escolas por conta própria", entre elas, nem sempre
bem-sucedidas, as escolas criadas por negros para a população negra. Moura, apud
Pinto (op. cit.), mostra que a abertura dessas escolas e seu desaparecimento podem ter a
ver com a mudança no caráter engajado das associações e entidades que lhes dão
origem, para uma visão mais assistencialista, causando desinteresse pela escola e pelos
cursos que, assim, acabaram fechando. Demartini, em estudo recente com grupos
étnicos japoneses, mostra que, apesar de todas as adversidades, as "escolas de
japoneses" acabaram por se integrar ao sistema educacional público, garantindo a
integração de seus filhos e descendentes. Com isso, aventa a hipótese de que — no caso
dos japoneses — havia um projeto de integração e, acima de tudo, uma concepção de
direitos que obrigou a incorporação. No caso dos negros, pela própria trajetória de
excluídos de participação, a inserção fez-se pela submissão e não pela reivindicação de
direitos, tornando difícil a manutenção de suas iniciativas.
De qualquer forma, o que se percebe junto aos sujeitos investigados é que não revelam
qualquer conhecimento ou vínculo com tais escolas, que surgiram ao mesmo tempo em
que as escolas particulares proliferaram pela cidade e, pelas quais, em algum momento,
a maioria deles passaram. Apenas um dos entrevistados, numa alusão pouco clara, fala
da escola que o irmão criou, possivelmente uma escola para negros, onde, já adulto,
pôde alfabetizar-se.
Aí fui estudar com meu irmão, que ele tinha um colégio chamado "Escola Cruz e
Souza", no Ipiranga (...) ele tinha um colégio e ali eu estudei bastante (...). Ali eu fiz
todo o primário em dois meses...
José Correia Leite, informante de Demartini, diz que tais escolas (para negros) visavam
um projeto mais amplo de conscientização da camada negra e, ao mesmo tempo, eram
uma solução possível aos problemas de escolarização de negros e mulatos na cidade de
São Paulo. Tais problemas iam desde a escolarização tardia, até a ausência de
documentos pessoais e a presença de um responsável, exigido pela escola pública, e que
os negros nem sempre tinham como apresentar, fosse pela orfandade, fosse pelo fato de
terem apenas atestado de batismo "que não tinha valor" (op. cit., p. 53).
Essa afirmação confirma a idéia de Clóvis Moura" (apud Pinto, op. cit), que coloca a
questão no âmbito do indivíduo. São dificuldades de ordem pessoal, de um ou outro
sujeito, que, talvez, uma associação negra de caráter assistencialista pudesse resolver,
mas que não criava alternativa coletiva e politizada. Assim, a hipótese de Demartini
também parece encontrar solo firme quando politiza a questão, demonstrando que
mesmo aqueles que chegavam à escola, nem sempre nela permaneciam.
... quando eu era criança, tava na escola né, e naquele tempo acho que tinha muito
racismo, me expulsaram da escola porque eu tive uma desavença com um garoto, que
era filho do diretor, lá não sei o que, nós pegamos, brigamos, eu fui expulso da escola e
não deixaram eu estudar mais, perdi diversos anos, né.
A maioria dos sujeitos investigados fez pelo menos o primário, estando apenas os mais
velhos, e na maior parte as mulheres, na condição de analfabetos. A razão é clara,
mesmo para os mais novos, diz Maria (19 anos):
Meu pai rasgou a minha matrícula na escola e disse que eu não ia estudar mais... mulher
não estuda, lugar de mulher é na cozinha... escola é marido pra mulher...
Pelo quadro pode-se perceber que na faixa etária de 55 anos e mais, as mulheres estão
em maioria entre os analfabetos e com o primário incompleto, quase o dobro dos
homens da mesma faixa etária. Ressalta-se a excepcionalidade de uma mulher com
colegial completo.
Cabe, porém, perceber que a recorrente presença da escola quando já adulto ou seu
término após estar casado, viúvo e ter netos ou, então, entre os 14 e 15 anos, recorrentes
na faixa etária de 30/36 anos ou mais, revela as dificuldades de uma escolarização de
longo prazo de que fala Dauster (1991), mesmo para gerações mais novas.
Como bem nota uma entrevistada de 63 anos, seus pais preocupavam-se com o estudo
dos filhos, mas na roça o que aprendeu foi pouco — como uma de suas irmãs, que sabia
ler, mas não escrever e, outra que escrevia, mas não sabia ler. Ambas foram aprender na
cidade, depois de casadas e com netos. Essa escola (das irmãs) era assim, "escola que
uma pessoa que sabia mais explicativa", oposta, portanto, à escola rural.
...o pessoal daquela época tinha aquele conceito, mulher foi feita para tomar conta de
casa e o homem foi feito para assumir responsabilidades.
Assim,
aquela que não sabia costurar, bordar, tudo que uma dona-de-casa precisa aprender,
então ia lá (na escola) e eles ensinavam...
Entre os mais velhos e os mais novos dos sujeitos pesquisados, nenhum deixou de ir à
escola. Apesar disso, as falas dos mais velhos revelam que, no universo familiar, sempre
um, apenas, entre os irmãos homens — o mais novo ou o mais velho — atingia a
escolaridade técnica desejada. No caso de irmãs, muitas vezes as oportunidades de
escolarização formal eram nulas.
... eu sendo o mais velho, eu tive a condição di fazê o SENAI, né, agora meus irmãos,
num... na condição assim, di, profissional, com curso profissionalizante, não tiveram,
né...
... a minha irmã, por exemplo, ela num..., ela fez assim um curso de corte e costura,
pra'aquela coisa do dia-a-dia, né? (...) Já num foi uma coisa assim pra, pra... como
profissão... Outra (irmã), já teve assim, um pouco mais de escolaridade, mas também
não foi avante, porque teve que trabalhá, uma coisa ou outra (grifo nosso), também
num, num conseguiu nenhuma formação... O caçula (homem)... ficô praticamente no
primário, né...
Das falas inferem-se alguns pontos para a compreensão da realidade negra. Estudar
significa adquirir uma formação profissionalizante; isso faz com que a escolaridade e o
adestramento para o mercado de trabalho estejam estreitamente relacionados como
objetivo do sujeito negro, em particular do sexo masculino, atribuindo-se a ele, de modo
explícito ou não, determinados papéis na sociedade e na família. Percebe-se que, no
presente século, ainda estão em vigor o pensamento e a proposta do século passado para
os chamados "ingênuos e libertos" com relação ao advento do trabalho livre. Da mesma
forma, percebe-se, desse mesmo projeto, a exclusão da mulher em nome de sua posição
no âmbito das relações familiares.
A escolaridade restrita ao "fazer o primário" é claramente insuficiente. No caso dos
quatro irmãos já citados, apenas um se profissionaliza através de cursos do SENAI;
outros três têm que optar — uma coisa ou outra —, isto é, ou estuda, ou trabalha.
Trabalhar ou estudar são realidades excludentes. Quem não estuda, não tem o devido
preparo e, "... sem ter um curso, assim, mais elevado..." — só primário —, acaba por
sofrer conseqüências em sua vida e na de seus filhos e família.
Para os mais velhos, com 55 anos e mais, a escola apresenta-se primeiro como
dificuldade, já que "eram poucos os que chegavam até ela" e, até 1950, "... a gente não
tinha opção", a alternativa era profissionalizar-se, ainda que isto significasse penalizar
outros membros da família. No entanto, para aquele que aí chega, fortalece um projeto
familiar que aspira para seus próprios filhos, que é ir além do curso técnico. O desejo de
progresso pessoal e familiar irá concretizar-se nas trajetórias escolares prolongadas dos
filhos, muitos dos quais chegam à universidade e começam a trabalhar bem mais tarde.
A escolaridade entre os sujeitos pesquisados aumenta significativamente nas gerações
mais novas, entre homens e mulheres, ainda que, em maioria, estas cheguem mais ao
colegial completo e os homens, em maioria, à universidade.
... de certa forma eu consegui... o que eu tinha em mente né, de construir, di dá condição
pra que meus filhos estudassem e ... meu filho, por exemplo, ele foi trabalhar
praticamente aos 19 anos (...). Minha filha também fez curso... di letras né, formada em
professora de alemão, né.
A conquista da escolaridade mais elevada dos filhos mostra que "tudo isso aí é... um
sucesso que a gente teve e em base ao trabalho..." A possibilidade de uma ascensão
familiar com base no binômio educação-trabalho revela-se no fato de que os pais do
informante "num tiveram escolaridade i mi deram uma profissão, né? Agora eu acho
que o mínimo que eu teria qui dá a eles (filhos) era além... tê uma condição mais
elevada pra podê existir um progresso, dentro dessa condição de família..."
Como diz Rosemberg (op. cit.), é preciso trazer para a frente do palco a família, em se
tratando da condição de educação inicial, "pois é esta quem escolhe, a partir de normas
culturais de seu segmento social e das oportunidades que lhe são oferecidas, a
modalidade educativa para seus filhos pequenos" (p. 26).
... Que sonho! Ah! E adorava ser pianista (...) Então falava para a minha mãe. Eu quero
estudar! E minha mãe falava assim, que filho de pobre não pode sonhar né, em ser
pianista, que pianista pra pobre era fogão. Então tinha mais é que aprender a cozinhar.
Como mulher, a criança era mais necessária na cozinha ou cuidando de irmãos menores.
Diz uma entrevistada, "... pra estudar, pra ir na escola, também não dava. Porque se eu
fosse pra escola, como mais velha, as crianças tinha que ficar sozinha. Ela (a mãe) tinha
também que trabalhar. Então não dava mesmo!..."
O colégio era pago e minha avó também fez sacrifício para ela (mãe) estudar (...), mas
como o pessoal daquela época, eles tinha aquele conceito, mulher foi feita pra tomar
conta de casa e o homem foi feito para assumir outras responsabilidades (...) ela (a mãe)
sempre teve vontade de estudar, mas a situação de meu avô era um pouco difícil e aí, o
meu avô deu todo apoio para ele (o tio) estudar.
No caso das mulheres mais velhas, além da dificuldade de ter escola na roça, muitas não
aprenderam a ler porque "o pai não deixou"; e não deixava, pois "mulher que sabe ler é
só pra escrever para o namorado". Fato este que não se colocava para os irmãos —
homens — e não se coloca para os sobrinhos, hoje. Assim, como mulher, conseguir
chegar ao 4º ano primário "já era muita coisa".
No caso do homem, um entrevistado lembra que a ida para a escola só foi possível
quando já era rapaz, com seus 17 anos. Estudava à noite e trabalhava durante o dia.
Quando foi para a escola, a luz era de candeeiro de querosene e a fumaça atrapalhava os
olhos, impedindo as pessoas de ficarem muito tempo na escola e, assim, demoravam
para aprender a leitura. Na verdade, morava na roça e lá não tinha escola. A escola
pública, como a de hoje, diz ele, só chegou agora que ele e os outros estão velhos e "já
não tá indo para a escola".
Entre homens e mulheres há, portanto, uma diferença significativa. No caso dos
homens, são eles que atingem maior escolaridade e o fazem porque recebem o apoio dos
pais e quase sempre contam com bolsas de estudo. Um dos entrevistados diz que o pai
trabalhava em casa de família e o patrão conseguiu várias bolsas de estudo para ele, com
isso pôde começar na escola pelo pré.
a gente que trabalha com alunos, a gente nota isso (o preconceito), quanto mais tenra a
idade, menos o conflito aparece, ele só vai aparecer quando a idade aumenta...
De todas as falas percebe-se a emergência de alguns fatos expressos entre o sonho e a
realidade: as relações de gênero, o trabalho e o racismo.
...quando eu tava fazendo o segundo ano colegial foi um dos motivos (o preconceito) de
eu abandonar (a escola), eu tava com 14 anos, por aí, eu nunca tinha repetido de ano.
Outro diz:
Quando cheguei na faculdade eu já tinha essa experiência, então eu fui meio ressabiado,
um pouquinho, mas não foi aquele choque, tinha um pessoal meio distante, mas você
sabia que sempre acontece...
Uma mulher com mais de 75 anos fala da fazenda onde negros e italianos trabalhavam.
Tinha escola, mas não para as "pessoas de cor". "Nunca fui à escola, não. Nunca. (...) A
verdade é a seguinte: não era pra quarquer um". Conta que muitas vezes falavam
claramente: "Esse não entra (na escola) porque é de cor". Outros diziam às mães que
não tinha vaga e complementa: "Mas bem que tinha!! (...) Era geeeeraaaaal, o
preconceito. Nossa como tinha preconceito! Tinha demais!"
Outra entrevistada comenta que fora no ginásio que começara a perceber as coisas, a
perceber as diferenças que marcam muito. A escola estadual era muito procurada, havia
seleção; e ela, como boa aluna, estava sempre no primeiro grupo, o que causava inveja e
"richa com a gente". Para a mãe, ela era culpada pelas brigas, mas lembra-se que foi na
escola que sentiu a diferença por morar na casa dos outros — os patrões da mãe — e
por ser negra. Numa situação de conflito, chegou a cortar com gilete uma colega de
classe.
Ao estudar com bolsa e em colégios pagos, muitas vezes o aluno (ou aluna) negro
defronta-se com segmentos sociais diferenciados, e por vezes, onde a presença
estrangeira — italianos, alemães, japoneses — era, desde meados do século, muito
grande.
...onde eu estudo tem muita gente rica sabe, não que eu ache ruim ser rico, não é isso,
mas se é uma pessoa assim meio ignorante e tem dinheiro, então pisa em todo mundo e
é meio racista também, porque além de tudo, só tem mais de origem alemã. Ali foi um
sufoco para mim! Puxa vida, o que que uma cor de pele muda a pessoa? Qual o... uma
pessoa assim eu não sei... o sangue deve ser azul, o coração deve ser redondo. (...) Daí
eu ficava superisolada. Todos brancos sabe, e só eu, nossa foi um sufoco!
Ser machucada profundamente, diz a entrevistada, era coisa que acontecia com
freqüência. Ao lanchar com uma amiga no bosque da escola, ouve um colega dizer:
"Nossa, como é que pode? Negro antes ficava na cozinha e agora lancha aqui no
bosque..." Fatos como esse fizeram com que quisesse abandonar a escola, sair de lá de
qualquer jeito, mas aí, diz ela, "não saí, eu lutei (...) eu aprendi a enfrentar todo mundo,
todo tipo de problema, sabe?" No entanto, reagir e lutar não é fato tão comum. Comum
é abandonar a escola em que se está, ficar sem estudar, retornar, às vezes, anos depois,
em outra escola, para tudo se repetir. Mesmo quando se chega à universidade, quase
sempre particular, a discriminação retorna e se acentua para os poucos que aí chegam,
demarcando um lugar em separado e a dificuldade de concluí-la.
"De criança tinha loucura para ir para a escola, mas não conseguia. Era a mais velha e
tinha que cuidar dos irmãos menores para a mãe trabalhar" e, aí, casou. Só depois da
separação, diz a entrevistada, pensou em voltar a estudar e uma série de circunstâncias
não permitiu. Hoje sente-se velha e deixa tudo como está.
As mulheres, em sua maioria, estudam após uma separação ou viuvez, na idade adulta e
na cidade.
Tem as minhas irmãs que elas (...) iam na escola à noite, né, (...) uma sabia ler. Depois
elas casaram, tudo. Depois com filha casada, com neto, tudo, foram aprender e agora
tiraram o diploma, tiraram o certificado!
não conseguiu aprender e também não teve força de vontade (...) mais ou menos ela
sabe assinar, fazer o nome dela só, não sabe assim, ler nada. Mas ela é danada! Ela se
mexe, aqui em São Paulo, ela vai pra tudo quanto é lugar, mas só perguntando,
perguntando...
O trabalho surge como imposição de vida que afeta e determina drasticamente o fim da
infância, independentemente da idade que se tenha, e, também, o fim da escola como
lugar de aprendizagem, já que sempre há que se optar — ou estuda ou trabalha. A
opção, na verdade, inexiste, pois, para o negro brasileiro, o trabalho se faz inevitável.
De Araújo (op. cit.) comenta que historicamente a criação da criança branca, de elite, e
a da criança negra foi diferente. À criança branca havia um papel determinado dentro da
sociedade e para a criança negra outro: o de que, adquirindo condições físicas, fosse
normal e desejável que passasse a contribuir com a manutenção da família. Primeiro sob
o olhar de seu dono, na escravidão, explorando ao máximo sua força de trabalho e,
depois, em face das dificuldades de sobrevivência da família negra pós abolição,
tornando necessário o trabalho infantil.
Muitas mulheres do grupo mais velho lembram que aos 9, 10 anos já trabalhavam na
roça, em casa e mesmo como pajem ou ajudando nas tarefas domésticas em casas de
famílias que, assim, "ajudavam na criação". Outras lembram que "era só na roça e
trabalhá e comê", e, assim, quando tentam aprender a ler, a escrever, "já tava passada".
Entre os mais novos, ir à escola, parar por ter que trabalhar, muito depois retomar os
estudos é um movimento freqüente e comum. Como diz uma entrevistada:
Entrei (na escola) com 7 anos, fiz o primário em São Paulo, daí a situação ficou meio
"ruça" (difícil) e tive que trabalhar cedo.
No caso dos homens mais velhos, trabalho e escola nem sempre respondem por "parar
de estudar", respondem mais por uma "perda da infância" ou de "parte da vida", já que
para o homem há uma certa continuidade entre escola e trabalho.
No entanto, também ocorre mudar para a noite, quando acontece de ter "um distúrbio",
ou seja, sofrer um acentuado processo de discriminação e preconceito. No caso de um
entrevistado, diz ele: "... aí parei, não fui mais, aí no outro ano voltei, pedi transferência
para um colégio estadual."
O único aspecto comum, portanto, entre homens e mulheres negras é o fato de que, para
eles, a escola é o locus onde tomam consciência do racismo, da discriminação e do
preconceito.
Florestan Fernandes (apud Pinto) afirma que muitas vezes as famílias negras tinham
ambições educacionais, mas preferiam abafá-las a expor os filhos aos limites existentes
no contexto social pós abolição. Convenciam os filhos a desistirem dos estudos por
receio às decepções que iriam sofrer (op. cit., p. 8).
Do mesmo modo, Pinto, citando o autor, afirma que o preconceito é, por vezes,
responsável pela não consideração da escola e da educação como meta a ser atingida,
gerando desestímulo e conformismo em face da escola, dos esforços de ascensão social
e mesmo da profissionalização. Pelos dados aqui levantados, pode-se afirmar o
contrário — que as constantes idas e vindas e mesmo a conquista da escolaridade, já
quando adulto, significam resistência e insistência em razão de que os negros, como os
brancos, têm na escola um valor, mesmo que seu espaço lhe seja adverso.
Assim, as trajetórias de vida, tal como a trajetória escolar, mostram a escola como um
lugar de brancos e o negro, dentro dela, como exceção. A escola é, então, lugar de
expressão do racismo. Nenhum dos entrevistados fala em aprendizagem, conteúdos,
didáticas. Na maioria, suas lembranças são de conflito e de luta em torno da condição da
cor e da raça e também da pobreza, mas a ela sempre voltam.
A dupla condição que envolve o sujeito negro na escola — ser negro e ser pobre —
explica o por que estudar com bolsa, e com dificuldade, em escolas pagas, entre
diferentes e sendo diferente em função da cor. A luta e a consciência ou, então, a
submissão e o paternalismo tornam-se parte do cotidiano do sujeito negro e, em ambos
os casos, o negro é posto diante de si mesmo e do outro — o branco —; descobre aí, as
possibilidades de uma identidade própria ou de sua negação.
O cotidiano escolar, que ignora as questões de raça e gênero (Faria Fº, Valentim),
demonstra a existência da desqualificação pela condição racial e opera em conjunto com
os mecanismos de classe:
Ninguém nasce 'feito' ou 'pronto', mas é feito nas relações de produção, de raça e de
gênero. Nestas relações são formados o trabalhador e o burguês, o negro e o branco, o
amarelo, o homem e a mulher. (p. 150)
Daí que, retomando os dados do Quadro I, sobre grau de instrução, apesar do pequeno
universo aqui tratado, não ser sem expressão e significado o caminho compartilhado e
percorrido pelos sujeitos negros — dos mais velhos aos mais moços —, revela aí, uma
tomada de posição, uma conquista e a possibilidade de uma consciência mais ativa.
Entendo que no fato de ter saído desse limbo social a que foi compelido, dominando
uma língua em cuja evolução no Brasil entram tantos termos e expressões pejorativas ao
negro, amoldam-se às instituições sociais que se beneficiaram de sua exclusão;
assimilando atitudes e dominando procedimentos formulados para dominá-lo;
incorporando-se ao trabalho livre e seus benefícios, que se instauraram com a sua
marginalização, com o acesso penosamente aberto ao campo das artes e, ainda mais
penosamente, aos meios da intelectualidade e da política — com sua presença ativa,
eficiente e rigorosamente equivalente à do branco é que o negro se vem credenciando ao
reconhecimento nacional como integrante legítimo e eficiente da sociedade nacional. E
não só isso, mas também um integrante social até mesmo imprescindível porque de sua
atuação passa a depender muito, à luz das conquistas já obtidas pelo negro —
recentemente também no texto constitucional —, a emergência do potencial
democrático de uma sociedade que experimentou a condição de colônia e praticou a
escravidão. Numa tal sociedade está contido o acervo inestimável dessas experiências
utilizáveis na superação de deficiências atuais com vistas à conquista de um futuro
histórico mais harmonioso e criativo. (op. cit., pp. 4-5)
ABSTRACT: This article discusses the childhood and schooling of men and women of
different ages, living in the city of São Paulo. They all share one common factor - being
black and, as such, share the trajectory of their families, once merged in the same space
of colour and race. Thereof come challenges and conquests in terms of the social
positions that these families have at the present moment.
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