Você está na página 1de 60

Destaque

Comiche exorta
munícipes a
juntarem-se a
família literária
MOÇAMBIQUE • ANO 01 • EDIÇÃO 01 • DIRECTORA ISABEL MACIE • EDITOR AMOSSE MUCAVELE

Narrar
um país
através
de vozes
femininas
A 6a edição da Feira do Livro de
Maputo, foi dedicada ao tema “(Re)
pensar a criação literária em tempo de
pandemia” e teve Paulina Chiziane como
escritora homenageada, a primeira
moçambicana a publicar um romance.
O encontro literário, organizado pelo
Conselho Municipal de Maputo, reuniu
cerca de 30 autores de 9 nacionalidades.

Alda Moreira
Brincar: ler e
transformar o
mundo

Regina
Dalcastagnè
Sobre literatura,
resistência e
afectos
EDITORIAL

Vitalidade
e a essência
da aposta na
cultura
Eneas Comiche
Presidente do Conselho Municipal de Maputo

C
om esta Revista damos início a uma publicação se- nas fronteiras partilhadas e nos olhares cruzados de difer-
mestral que terá como propósito informar, acom- entes autores de várias geografias literárias, o que o escri-
panhar as actividades planeadas antes e depois da tor português João Nuno Azambuja sustenta no debate em
Feira do Livro de Maputo. Simultaneamente, este será o veí- torno do tema: Literatura e resistência, para uma história do
culo informativo sobre intercâmbios, edição, debates, ideias, possível, lê-se:
entrevistas, concursos e outras acções de relevo a acontecer “É perante estas ameaças que todos nós e a literatura em
ou que já tiveram lugar na Feira, como é o caso desta edição particular, como parte importante das manifestações do ser
retrospectiva da Feira do Livro de Maputo 2020, a primeira humano, temos de resistir”.
edição 100 % on line. Recorde‐se que, Paulina Chiziane foi a escritora home-
A realização da Feira do Livro de Maputo pelo Concelho Mu- nageada na sexta edição da Feira do Livro de Maputo, autora
nicipal de Maputo, marca um novo momento cultural para a de Balada de amor ao vento (1990), Ventos do apocalipse,
cidade das acácias. O certame que nas seis edições já mostra (1993), O sétimo juramento (2000), Niketche (2002), O alegre
a vitalidade e a essência da aposta na cultura, como factor de canto da perdiz (2008), entre outras. A romancista conhecida
desenvolvimento e progresso social do país. Um aconteci- por fazer de sua arte uma forma de resistência. Afirma Pauli-
mento ímpar que a cada ano se converte num estímulo deci- na Chiziane em entrevista a professora brasileira Cintia Küt-
sivo para acção cultural e turística da cidade capital. ter, “Eu, venho de uma época em que a escrita era um lugar
Assim, a Feira do Livro de Maputo, a cada edição se afirma dos homens. E verdade que existiram mulheres que escre-
como uma das maiores, a mais antiga e a mais exemplar fes- veram antes de mim a Gloria de Sant’anna que era portugue-
ta literária dos países africanos de língua portuguesa. Sub- sa, fez contos, a Lilia Momplé, fez contos, a Noémia de Sousa,
linhe-se, que Moçambique tornou‐se o lugar mais seguro fez poesia... disso nunca mudou”.
onde os escritores e intelectuais de várias nações aportam Em Dialécticas literárias em tempos de crise: que ideias para
suas utopias. o futuro? mesa bastante concorrida, o poeta moçambicano
Ao longo destas páginas, o leitor estará a emigrar em in- Armando Artur, entende e defende que “ O futuro da literatu-
úmeras reflexões sugeridas pela programação, construindo ra estará sempre associado aos processos históricos dum país,
um universo paralelo de questões e respostas que integram em particular, ou do mundo, em geral. Eu penso que, sem tur-
paulatinamente a defesa do tema central da Feira do Livro bulências sociais e existenciais, pode ser difícil produzir-se lit-
“(Re)pensar a criação literária em tempo de pandemia”. Tra- eratura, tal como a concebemos. Falo de turbulências visíveis
ta‐se, aliás, de um dos múltiplos interesses, tal como afirma e invisíveis, duas dimensões das crises, a partir das quais o
a professora brasileira Regina Dalcastagné, na sua magistral escritor descreve ou reinventa o seu mundo. Vale então sub-
conferência inaugural, intitulada: Sobre Literatura, resistên- linhar e prognosticar que a literatura continuará associada ao
cias e afectos, “Acredito que a retomada da literatura que compasso dos processos e realidades sociais”.
vem acontecendo aqui durante a pandemia também está
atrelada a isso. É uma retomada que significa resistência”.
A grande importância e significado desta edição, reside Boa leitura
Sumário
4 5
Comiche exorta
Maputo recebe livros
munícipes a
enviados por Arcos de
juntarem-se a
Valdevez
família literária

6 11 14 16
Sobre literatura, Feira do livro de Maputo Paulina Chiziane: Literatura e resistência,
resistência e entre as incertezas e as a voz para além para
afectos - Regina resistências-Amosse do Índico - Lucas uma história do possível -
Dalcastagnè Mucavele Muaga João Nuno Azambuja

18 26
“Os acasos determinam às Dialécticas literárias em
vezes as nossas reações” - tempos de crise: que ideias
Cíntia Acosta Kütter para o futuro? - Armando Artur

29 32
Brincar: ler e transformar Os contos e poemas se
o mundo - Alda Moreira escrevem no feminino - Lizete António
Nhantumbo

41 43
LITERATURA:
O exercício para Cartas para Paulina
além do livro - Chiziane - Luana
Lucas Muaga Antunes Costa

48 51
A literatura é o palco Alguns compassos
de criação de mundos para uma “sinfonia” literária -
alternativos - Ana Mafalda Leite Sara Jona
Destaque

CMM
Eneas Comiche, Presidente do Conselho Municipal de Maputo

Comiche exorta munícipes a


juntarem-se a família literária
Cerca de trinta autores de Moçambique, Angola, Brasil, Cabo Verde, Argentina,
Guiné Bissau, Portugal, Espanha e Timor - Leste participaram no maior encontro
literário do país, a Feira do Livro de Maputo 2020, que decorreu sob o lema “(Re)
pensar a criação literária em tempos de pandemia”.

N
a cerimónia de abertura da Feira Por sua vez, a Ministra da Cultura e Tur- nando desta maneira Maputo a cidade
do Livro de Maputo, o Presidente ismo, Edelvina Materula, disse que o mundial do livro.
do Conselho Municipal de Maputo Município de Maputo ao realizar anual- Edelvina Materula revelou que o Gover-
exortou aos munícipes a juntarem-se a mente a Feira de Maputo não só assume no vai continuar a apoiar o CMM na real-
família literária de forma segura e sensata. a responsabilidade social mas contribui ização de Feiras, festivais e outros eventos
Eneas Comiche disse “esta edição almeja sobremaneira para implementação culturais.
identificar leituras e escritas para alimen- da política cultural de Moçambique, Durante a Feira, que decorreu nos dias
tar sonhos e utopias como forma de nos no âmbito do livro e da literatura. Por 22,23 e 24 de Outubro 2020, realizaram-se
aproximarmos continuamente, nós, es- outro lado, a Ministra explicou que a debates, exposição virtual de livros, cru-
critores, editores, ensaístas ou simples Feira de Maputo é fonte de inspiração zamento entre literatura e outras artes
leitores, pensando na crise como pretex- para que num futuro próximo se possa bem como a homenagem a escritora
to para autosuperação”. realizar uma Feira Internacional, tor- Paulina Chiziane.

4 FEIRA DO LIVRO
Destaque
CMM
Cristina Manguele, João Pignatelli, Mª Amélia Paiva, Eneas Comiche, Lúcia Comiche e Isabel Macie (da esqª para dtª)

Maputo recebe livros enviados


por Arcos de Valdevez
O Município de Arcos de Valdevez (Portugal) ofereceu oito paletes de livros ao Mu-
nicípio de Maputo. Os mesmos chegaram há dois meses, no decorrer das celebrações
da sexta edição da Feira do Livro de Maputo.

N
a capital do país, o Presidente de maio de 2020, conforme determina- desde o ensino básico ao ensino su-
do Conselho Municipal de Ma- do pela UNESCO. “O Município de Arcos perior e, simultaneamente criar boas
puto, Eneas Comiche, agradeceu de Valdevez demonstrou desde logo relações entre Maputo e Arcos de Val-
a iniciativa através de uma cerimónia interesse por essa importantíssima devez.
na qual os dois concelhos estiveram data, bem como, em estreitar relações
ligados por videoconferência. Para tal, com outros países desta vasta comuni-
foi estabelecida uma ligação vídeo dade linguística. Assim, através da Bib-
onde os dois edis, Eneas Comiche e lioteca Municipal, decidiu lançar uma
João Manuel Esteves, na presença da iniciativa com o objectivo de oferecer à
Embaixadora de Portugal em Moçam- Cidade de Maputo livros actuais e em
bique, do Director do Instituto Camões bom estado de conservação, focando
e de outros representantes de ambos várias temáticas e destinados a diver-
os países, de acordo com Blogue do sas idades.
Minho, manifestaram o seu empenho Através da oferta de livros ao Município
em trabalhar em prol da promoção da de Maputo, o Município de Arcos de
língua portuguesa e da educação. Valdevez pretendeu contribuir para a
Ainda segundo a mesma fonte, a cer- promoção da cultura e ciência em lín-
imónia foi o culminar de um proces- gua portuguesa junto dos munícipes
so que teve como âncora a primeira maputenses, nomeadamente estu-
MAV

João Manuel Esteves


edição do Dia da Língua Portuguesa, 5 dantes de todos os níveis de ensino.

FEIRA DO LIVRO 5
Sobre literatura,
Ideias

resistência e afectos
Professora titular livre de literatura brasileira da Universidade de Brasília e pesqui-
sadora do CNPq. Coordena o Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contem-
porânea e edita as revistas Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea e Vere-
das, da Associação Internacional de Lusitanistas. Publicou os livros Literatura e
exclusão (organização com Laeticia Jensen Eble; Zouk, 2017); Sérgio Sant’Anna:
um autor em cena (organização com Ângela Maria Dias; Editora UFF, 2016).

Texto: Regina Dalcastagnè

Amália Gonçalves/Secom UnB

Regina Dalcastagnè

E
m um momento tão difícil, à liberdade do outro. Agradeço, então, Delgado. Li sobre o assassinato, em
quando choramos nossos mor- a possibilidade de compartilhar deste Muidumbe, dos 52 jovens que se re-
tos e enfrentamos nossas crises, momento e aproveito para felicitar a cusaram a ser recrutados por grupos
um encontro como este, dedicado Feira do Livro de Maputo pela home- extremistas, e sobre tantos outros hor-
aos livros e à cultura é expressão de nagem a Paulina Chiziane, uma grande rores nos últimos meses. Confesso que
resistência e de amizade, é uma ten- escritora, muito querida pelos leitores pouco sei da história de Moçambique,
tativa de juntar forças e ferramentas e, especialmente, pelas leitoras brasile- e dessa história em particular. É que ela
para criar espaços onde possamos iras. Sua obra fala a todas nós. não aparece em nossos jornais, afinal:
imaginar o futuro, um lugar onde a es- E gostaria, também, de me soli-
perança tenha guarida. É disso, afinal, darizar com o povo moçambicano pe- “Os mortos de Muidumbe não des-
que se trata a literatura, de um convite los terríveis acontecimentos de Cabo consolam o mundo

6 FEIRA DO LIVRO
o mundo está assoberbado com outros

Ideias
mortos
o mundo urge para os outros mortos
o mundo não tem empatia com os mor-
tos de Muidumbe”.

Mas a poesia de Nelson Saúte (cujo


trecho acabei de citar), de Armando Ar-
tur, de Amosse Mucavele, e de outros,
me levou até lá. E por isso eu choro pe-
los mortos de Cabo Delgado.
Mas me alegro, também, com a
música, o teatro, a dança, com as ar-
tes plásticas, com a fotografia, com a
literatura de Moçambique – um país

https://pt.wikipedia.org/wiki/Nelson_Sa%C3%BAte
onde jamais pisei. Desde que fui con-
vidada para falar na Feira, tenho pas-
sado muito tempo tentando imaginar
o país a partir das redes sociais, em um
verdadeiro exercício de confinamento.
Li reportagens, busquei informações,
estatísticas, assisti a vídeos, vi fotos
turísticas, até receitas, mas, como não
poderia deixar de ser, é a literatura que
me permite uma aproximação maior. Li
muita poesia, contos, alguns romances,
textos que falam de feridas e dores, an- Nelson Saúte
tigas e recentes, mas também de espe-
rança e de luta.
Procurei escritores/as pelas redes so-
ciais, procurei professores/as, jornalis- não passava de uma gripezinha, que
tas culturais, artistas – pessoas brilhan- só os velhos e os já doentes morreri-
tes que me mostraram suas obras, mas am (como se isso fosse aceitável). Seus
não só. Pessoas que, ao comentar o dia apoiadores negam as mortes, propag-
a dia, ao compartilhar informações que am fake news, fazem campanha contra
julgam relevantes, contribuem genero- as medidas sanitárias para a contenção
samente para o alargamento do mundo Mas os livros do vírus, fazem campanha contra uma
possível vacina chinesa, porque “os co-
de alguém que está isolada no coração
do Brasil. Então, meu muito obrigada a
são necessários, munistas querem dominar o mundo e
todas e todos vocês. Em tempos de tan- ainda, para alterar nosso DNA com ela”.
Vivemos momentos difíceis no Brasil
tas mentiras, de tanta manipulação, eu
escolho ouvir sua palavra. ajudar a entender hoje. A educação, a ciência e o conhec-
Em Brasília, as escolas e universi- o tempo presente. imento são achincalhados, as artes e a
cultura são abertamente menospreza-
dades estão fechadas desde meados
de março. Eu mesma não cheguei a me Daí as inúmeras das. Só como um exemplo, há algumas
semanas um casal de idosos se fez fil-
encontrar com meus alunos uma úni-
ca vez neste ano. As aulas agora são à
coletâneas mar xingando, rasgando e queimando
distância, diante de uma pequena tela, literárias sobre em uma churrasqueira livros de Paulo
Coelho, tudo porque ele criticou o gov-
sem o risco do contato, sem as vanta-
gens do contato. Tenho alunos deprim-
o cotidiano na erno. Uma cena macabra.
idos, alunas que perderam familiares pandemia; mas Portanto, a crise que vivemos hoje
não começou com a pandemia, é uma
para o coronavírus, que perderam em-
prego, que não conseguem acompan- também sobre crise política muito séria, que nos des-
har os cursos porque tudo saiu do lu-
gar.
o golpe vivido gasta terrivelmente desde 2016, com
o afastamento da presidente legitima-
Já ultrapassamos (no começo de em 2016 e suas mente eleita, Dilma Rousseff. E uma
crise ética, que faz com que o pior dos
outubro) o terrível número de 155 mil
mortos pelo coronavírus no Brasil –
repercussões hoje brasileiros – seu racismo, seu machis-
com a certeza de que não precisaria mo, sua homofobia, seu autoritarismo –
ter sido assim. O presidente da repúbli- brote com muita força e se exiba quase
ca minimizou a doença, dizendo que sem contenção. Para entender um

FEIRA DO LIVRO 7
Ideias

Ricardo Laf/divulgação
Adriane Garcia

pouco do que está acontecendo por calar, e eles vem tentando, trabalhamos feito com as agências lotéricas no Bra-
aqui sugiro que leiam nossos melhores com o mínimo e sobreviveremos. sil, que passaram a receber uma por-
poetas, nossos melhores escritores/as, E isso pode ser observado já no uni- centagem quando o governo decidiu
professores/as, intelectuais e artistas verso dos livros. Em meio a uma crise que poderíamos apostar pela internet.
que pensam criticamente as desigual- política, econômica e sanitária, não há Mas não esperamos nenhuma medi-
dades e injustiças que nos assolam. dúvidas de que a venda de livros sof- da nesse sentido desse governo, que
Imersos em tudo isso, seguimos re- reria, como todo o mercado voltado à despreza os livros. Afinal, como diz o
sistindo em muitas frentes. Como diz a cultura. Mas, felizmente, já começam presidente Jair Bolsonaro, livros não in-
poeta brasileira Adriane Garcia: a aparecer os primeiros sinais de recu- teressam, “livros tem letras demais”. Até
peração no Brasil, um país que pouco por isso, a proposta do governo agora
Mesmo não havendo esperanças lê, é fato, mas com nossas dimensões é de taxar os livros em cerca de 12%, o
Agiremos como se houvesse continentais, o pouco é significativo. que poderia gerar um acréscimo de até
Jamais a adesão total Em abril, no auge do isolamento no 20% no valor final para o consumidor.
Ao mal, ao funesto, ao terror país, a venda de livros caiu 50%. Em Lembro que foi anos 40, por iniciativa
julho, segundo pesquisa do Sindicato do então deputado Jorge Amado, que
Liberdade continuará pronunciada Nacional dos Editores de Livros, as ven- os livros no Brasil passaram a ser isen-
Sobre ou sob as mordaças das tiveram um aumento real de 4% tos de impostos. Taxá-los implicaria
Daremos trabalho, sempre em relação ao mesmo período do ano uma possível queda na venda de livros
Como hidras de duas cabeças passado – aumento puxado sobretudo na mesma proporção: 20%.
pelo comércio digital: e-books e ven- Desemprego, alta do dólar, dúvidas
Decepem-nos duas, nasceremos das pela internet. sobre a situação econômica, tudo se
quatro E aqui surge o problema. Sabemos soma nessa crise, apontando cenários
Temos o treino, a expertise, a bem que a saúde do mercado do livro ruins para o livro no Brasil. Ao mesmo
inteligência depende de toda uma cadeia: escri- tempo, há muita coisa acontecendo,
Dos secularmente derrotados. tores, editores, distribuidores, livreiros, muito para os especialistas sobre o
leitores. Com as vendas pela internet, mercado e sobre o campo literário
As crises nos deixam no vácuo, nos as livrarias físicas sofrem. Muitas, as brasileiro se debruçarem. Em termos
tiram o chão, mas também nos convo- maiores, já estavam em dificuldades de literatura, há alguns anos estamos
cam à ação, nos impelem ao movimen- antes, quebrando e quebrando edi- acompanhando o surgimento e for-
to. Na área cultural, necessitamos de re- toras junto, por falta de pagamento. talecimento de pequenas editoras, as
cursos, e florescemos quando existem As pequenas estão com muitas difi- vendas diretas, o financiamento cole-
verbas, editais de financiamento públi- culdades para continuar abertas. Pre- tivo de livros, a divulgação por outros
co, compras de livros para bibliotecas cisaríamos de políticas públicas para meios para além dos tradicionais – jor-
públicas e escolas. Mas se tentam nos salvar as livrarias, talvez algo como foi nais e revistas.

8 FEIRA DO LIVRO
Vemos também a melhoria da quali- presente. Daí as inúmeras coletâneas no Nordeste brasileiro, que, todos os

Ideias
dade dessas edições, além da eventual literárias sobre o quotidiano na pan- anos, recebe estudantes de diferentes
legitimação de autores publicados por demia; mas também sobre o golpe vivi- países africanos.
pequenas casas editoriais, e mesmo às do em 2016 e suas repercussões hoje; Passam pelas mãos de editores e
próprias custas – livros que vêm rece- livros de autoria de grupos marginal- livreiros, de editoras e livreiras, que
bendo prêmios literários importantes. izados, que têm tanto para dizer. Fora apostam na comunicação entre nossos
Há ainda a formação de novos leitores o conjunto significativo de obras que mundos.
e a consequente criação de novos nich- vêm sendo publicadas sobre a ditadura Passam pelos responsáveis pelas re-
os de mercado. Penso que a formação mais recente, vivida por nós entre 1964 vistas literárias e acadêmicas, que dão
desse novo público leitor passa pela a 1985, porque sabemos bem o que visibilidade a essas produções, de lado
recente democratização das univer- nos espreita. a lado.
sidades públicas, que duplicaram o E os livros também nos oferecem, Passam pelas palavras de nossos es-
número de vagas para estudantes e quando a leitura é compartilhada, um critores e escritoras, aqui e aí. Pessoas
que instauraram as cotas, para pobres, sentimento de coletividade que nos que são, tantas vezes, pontes.
para negros, para indígenas. foi roubado pela impossibilidade de ir Entendo que nossa luta, hoje, é por
Essa melhoria na formação acadêmi- às ruas nos expressar, seja em grandes manter essas conquistas, ampliá-las,
ca permite, e mesmo exige, a presença manifestações, seja em encontros porque claramente ainda há muito o
de novos produtores culturais, de escri- com os amigos. E, quem sabe, liv- que se fazer. Se a cultura, a solidarie-
toras e escritores vindos de outros gru- dade, o gesto amigo não são valori-
pos sociais, até pouco tempo bastante ros podem ser um espaço de artic- zados pelas nossas instituições, pre-
silenciados na sociedade brasileira. ulação de ideias e de forças para a cisamos agir pelas margens, atuando
Começando pelas mulheres (que escre- luta que nos espera. em pequenos grupos, pelas brechas,
vem faz séculos, mas eram pouco val- Sei que nem preciso dizer isso para pelas pequenas editoras, pelas revistas
orizadas, pouco lidas), mas passando cidadãos que enfrentaram tão recen- digitais, pelos encontros possíveis. Só
também pela autoria periférica, negra, temente uma guerra pela independên- assim enfrentaremos as crises que nos
indígena, LGBT. Grupos que desejavam cia usando também a literatura como abalam, e avançaremos.
se ver representados em nossa litera- arma. Sabemos bem do poder das pa- Porque, por mais cansados, por mais
tura e que, cada vez mais, encontram lavras e da importância de ter domínio desesperançados que possamos ficar
formas próprias de fazer isso. Ganha, sobre elas. Sabemos também que usa- nesses momentos, é preciso lembrar
é claro, a literatura brasileira como um mos a língua do dominador e que pre- que os pequenos gestos, as pequenas
todo. Afinal, novas perspectivas sociais cisamos transformá-la constantemente conquistas no campo da cultura se acu-
exigem novas formulações estéticas para o nosso próprio uso. mulam e que jamais poderão tomá-las
para dizer de si e do outro. Embora Portugal nunca tenha queri- de nós. Às vezes só precisamos de um
Acredito que a retomada da literatura do que Brasil e outras colônias se olhas- tempo para respirar fundo e continuar
que vem acontecendo aqui durante a sem, se vissem em suas possibilidades e a luta por aquilo em que acreditamos.
pandemia também está atrelada a isso. similitudes – a começar pela semelhan- Comecei me referindo às minhas
É uma retomada que significa resistên- ça entre nossos povos, sua subjugação pesquisas informais sobre Moçambique.
cia. Resistência às tentativas de silen- e suas lutas – acredito que temos muito Confesso que houve um momento em
ciamento, resistência à banalização da a aprender juntos, antes e agora. Enten- que eu abandonei os textos, as polêmi-
morte, mas também à banalização da do que nossas relações culturais sempre cas políticas, as reportagens mais pe-
vida de trabalhadores, de mulheres, aconteceram a partir do esforço concen- sadas sobre o terrorismo no norte do
de negros, de indígenas, da população trado de alguns indivíduos, e de alguns país, enfiei o pé na areia virtual e fiquei
LGBT, de velhos e crianças, de doentes, conjuntos de indivíduos. muito tempo me divertindo com aquele
de pessoas com deficiências, de imi- No Brasil, elas passam pelo trabalho hipopótamo nadando na praia deserta,
grantes pobres. incansável de professores e pesquisa- na Ponta do Ouro (no sul de Moçam-
Temos inúmeras necessidades ago- dores nas universidades, que se em- bique), em abril deste ano. É uma cena
ra (até de comida, porque a fome, que penham efetivamente em conhecer linda, uma criatura magnífica como que
havia sido afastada, volta a assombrar sua História, sua cultura, sua literatura, dizendo: “este mundo também é meu”.
o Brasil), mas também precisamos de em uma perspectiva, cada vez mais, Foi então que me lembrei que já
cultura, e de livros. não colonial. tinha sido apresentada à literatura
Talvez porque os livros sejam Passam pela luta daqueles que con- moçambicana, da forma mais afeti-
necessários para ajudar a enfrentar o seguiram aprovar a lei de inclusão dos va que se pode imaginar. Meus so-
distanciamento social. Quando já não estudos da história e da cultura africana gros, os escritores Salim Miguel e
aguentamos limpar a casa, fazer pão e e afro-brasileira como obrigatórios nos Eglê Malheiros, editavam uma revista
compartilhar fotos pelas redes sociais, currículos escolares brasileiros. cultural chamada Sul, nos anos 1950,
assistir séries de televisão e debates on- Passam pelo incentivo que foi dado a na pequena e periférica ilha de San-
line, os livros voltam a ser bons e silen- pesquisas sobre África nos governos do ta Catarina, no sul do Brasil (a revista
ciosos companheiros. Partido dos Trabalhadores, bem como existiu por 10 anos e foram publica-
Mas os livros são necessários, ain- pela criação, na mesma época, da Uni- dos 30 números). De lá, começaram
da, para ajudar a entender o tempo lab, a Universidade da Integração Inter- a estabelecer relações com escritores
nacional da Lusofonia Afro-Brasileira e intelectuais de diferentes países af-

FEIRA DO LIVRO 9
Ideias

Edições Novembro
Luandino Vieira

ricanos, trocando textos, ideias, livros, Abranches foi se refugiar, tentando es- dos no Campo de Concentração do Tar-
compartilhando paixões e apreensões. capar dos tentáculos da PIDE, a Polícia rafal (em Cabo Verde), como António
Não eram tempos de internet, de Internacional e de Defesa do Estado Jacinto, por exemplo.
e-mail, de WhatsApp. Toda a comuni- de Portugal. Foram quase dez anos de Talvez o que mais me emocione nes-
cação se dava pelo correio tradicional, correspondência, só tenho em mãos sas cartas seja a possibilidade de en-
por cartas, que levavam tempo a chegar as cartas que chegaram, uma meta- contro com um homem que não viveu
e podiam ser censuradas. Estou falan- de da história em delicado papel seda a literatura como um projeto à parte,
do dos anos 1950. Eram longas corre- azul-claro. A primeira carta é de maio mas como uma paixão que se combi-
spondências com pessoas como Antonio 1952; a última, enviada pela sua espo- nava a outras e repercutia em atuação
Jacinto, Luandino Vieira, Mário Lopes sa, um poema escrito no hospital logo política e afetiva.
Guerra, Viriato da Cruz, Orlando Mendes, antes de sua morte, em junho de 1961. Não é difícil nos identificarmos com
Domingos de Azevedo, Dulce dos San- Nestas cartas, além de textos própri- uma pessoa assim, somos muitos como
tos, Domingos Ribeiro Silveira, Manuel os e de impressões e sugestões sobre ele hoje, basta olhar em volta, em
Felipe de Moura Coutinho... entre outros. a literatura, Abranches enviava escri- Moçambique, aqui no Brasil – e isso é
Vinham pedidos de livros de todo tos alheios, recomendando-os for- muito significativo.
tipo, inclusive obras marxistas, mas temente. Em uma das cartas há uma Quantas novas gerações de agentes
com muitas orientações para o envio: boa lista de nomes: Natércia Freire (de culturais, de escritores, de escritoras, de
era preciso arrancar as capas, cortar Portugal), Filinto de Menezes (de Cabo editores e editoras nesses 70 anos que
os livros em partes, embrulhar esses Verde), António Jacinto, Humberto da nos separam? Quantas revistas literárias
pedaços em jornais, mandar separada- Silvan, Leston Martins e Mário Antó- e romances e volumes de poemas, de
mente, para tentar escapar à apreensão. nio Fernandes de Oliveira (de Angola), contos, crônicas, livros infantis, quadrin-
Vinham também livros de poesia Domingos de Azevedo, Bertina Lopes, hos? Quantos estudos sobre toda essa
para o Brasil, e depois, alertas: guardem Duarte Galvão e Noêmia da Sousa (de produção? Quantos contatos e pontes
os livros aí, porque toda a edição foi Moçambique). Vários desses autores estabelecidos entre nós? E, neste mo-
queimada no país de origem. foram efetivamente publicados nos mento mesmo, quantos debates online
Vinham mensagens carinhosas, de- números seguintes da revista Sul, sen- permitindo que nos conheçamos?
salentadas, esperançosas, que se esten- do divulgados entre os brasileiros, os Com todos os nossos problemas,
deram por anos. hispano-americanos, os lusófonos afri- com todas as dificuldades que en-
Há um conjunto de cartas que me canos e entre os europeus por onde a frentamos, com todas as nossas fal-
emocionam particularmente. Tinham revista circulava. has, acredito que nós somos o sonho
como remetente o português Au- E assim o diálogo crescia, se desen- daqueles homens e mulheres dos anos
gusto dos Santos Abranches, escritor, volvia e em pouco tempo já estavam 50, 60, 70... E penso que, por eles tam-
jornalista, artista plástico e agitador fazendo piadas, perguntando dos filhos bém, precisamos continuar sonhando.
cultural, dono de uma livraria em Co- que nasciam, contando das apreensões Que a literatura nos conduza.
imbra. Eram endereçadas da antiga pelos amigos que desapareciam,
Lourenço Marques, hoje Maputo, onde provavelmente presos, alguns confina- Brasília, 6 de outubro de 2020.

10 FEIRA DO LIVRO
de Fundo
PanoDestaque
Editorialmediterrania
@anadigital

facebook
Ana Elisa Ribeiro Euridice Monteiro Ana Manso

Feira do livro de Maputo


entre as incertezas e as
resistências dos leitores
“O Município de Maputo, ao realizar anualmente a Feira do Livro de Maputo, não só
assume a sua responsabilidade social, mas contribui sobremaneira na implementação
da Política Cultural de Moçambique no âmbito da Literatura e Livro. O livro educa e
forma o Homem. Livro e Cultura”, Edelvina Materula, Ministra da Cultura e Turismo.

Texto: Amosse Mucavele

E
m meio a incerteza e alguma ex- vez no espaço virtual, dada a vigência frase: “Digo-vos, porém, que cada mun-
pectativa para o sector cultural, da pandemia da Covid-19 que grassa do tem a sua beleza”.
a sexta edição da Feira do Liv- o mundo. Mesmo no meio de tantas A sessão de elogio a homenageada
ro de Maputo, que decorreu no meio restrições, a literatura voltou a estar no esteve a cargo de diferentes professores,
do surto da COVID 19, entre os dias centro das atenções na cidade das acá- pesquisadores, editores e amantes da
22,23 e 24 de Outubro de 2020, com o cias e no mundo simultaneamente. obra da escritora, com intervenções
tema, (re) pensar a criação literária em Desde 2015, que a edilidade da cap- dos moçambicanos, Cremildo Bahule,
tempos de pandemia, homenageou ital moçambicana organiza a Feira do Dionísio Bahule, Celso Muianga, Nel-
a escritora Paulina Chiziane, primeira Livro de Maputo, com vista a celebrar son Lineu, os brasileiros Savio Roberto
moçambicana a publicar um romance, e promover a literatura moçambicana, Fonseca de Freitas, Áurea Santos, Luana
e reuniu autores, editores, jornalistas, e não só, nas suas variadas formas de Antunes Costa, Iris Amâncio, Tania Lima,
investigadores e críticos de 8 países. actuação, ligando-a com outras áreas Jorge V. Valentim e Eliane Debus, estes
Pelo sexto ano consecutivo o Con- artísticas e de conhecimento. estiveram em foco no eixo programáti-
selho Municipal da Cidade de Maputo, A sexta edição, com um figurino dif- co A CAMINHO DA FEIRA, seguindo os
voltou a acolher a Feira do Livro de Ma- erente, totalmente virtual, homena- depoimentos da actriz Ana Magaia, Sa-
puto, com a mesma proposta de sem- geou a escritora moçambicana Paulina lomé Cabo e do músico Cheny Wa Gune.
pre, alargar o espaço de reflexão em Chiziane, pelos seus 30 anos de criação A estes juntaram-se, como autores
torno da relação leitor e autor, desta literária, por isso assentou-se na sua convidados da Feira, os cabo-verdianos,

FEIRA DO
FEIRA DO LIVRO
LIVRO 11
9
Pano de Fundo
Danny Spínola e Eurídice Monteiro; a
argentina Marcela Rosalez; o timorense
Luis Cardoso, os portugueses, João
Nuno Azambuja, Marília Miranda Lopes,
Alda Moreira e Cristina Tanquelim; os
espanhóis Esteve Bosch de Jaureguízar
e Ana Manso; os moçambicanos,
Armando Artur, Rogério Manjate, Teresa
Manjate, Gilberto Milice, Eduardo
Quive, Lucílio Manjate, Nelson Lineu,
Jessemusse Cacinda, Cri Essencia, Ana
Mafalda Leite e Sara Jona; as brasileiras,
Ana Elisa Ribeiro, Regina  Dalcastagnè,
responsável pela habitual conferência
inaugural; os guineenses Tony Tcheka
e Kátia Casimiro. Num total de trinta,
como forma de alargar horizontes,
Eunice Mandlate, Angelina Chavango, Grande Homem, Cristalino
cruzar as geografias literárias, unindo a Manjate, Firmina da Neta e Lucrécia Paco
pluralidade de duas expressões ibéricas
e apostar na internacionalização
das literaturas dos países de
língua portuguesa, em particular a
moçambicana. O certame deu conta
ainda de quatro lançamentos de
novos livros (os angolanos Adriano
Mixinge, Luís Kandjimbo, a brasileira
Magda Pinto e o moçambicano
Minyetani Khosa, que se estreia no
campo da literatura), os concursos
literários de conto e de poesia nas
escolas e as inúmeras iniciativas
paralelas, coordenadas pelas diferentes
instituições parceiras, tais como:
PARTICIDADE, Escola Portuguesa de
Moçambique, Centro Cultural Franco‐
Moçambique, Fundo Bibliográfico da
Língua Portuguesa, entre outras.
A coordenação da Feira considera Vencedores do Concurso Literário de Conto e poesia
que mesmo sendo uma organização
diferente, num ano atípico, que condi-
cionou o uso das plataformas virtuais, a
realização do evento esteve na linha do
que tem defendido a política cultural
da edilidade. A coordenadora da Fei-
ra do Livro de Maputo realça, “Fomos
apanhados desprevenidos com a pre-
sente crise da pandemia da Covid-19
e estávamos preocupados em produ-
zir um evento de grande envergadu-
ra, cuja complexidade, chamou-nos
atenção a solidariedade e a descoberta
das potencialidades da comunicação
on-line e quando a crise passar, estare-
mos a trilhar novos caminhos”.
“A primeira edição on-line trouxe‐nos
muitas dúvidas e receios, mas também
muita vontade de expandir o espaço da
criação, com recurso ao digital no lugar
Edelvina Materula, Ministra da Cultura e Turismo.
do presencial e foi uma grande festa”,

12
10 FEIRA DO LIVRO
Pano de Fundo
sublinha Cristina Manguele, directo-
ra de Serviços Municipais de Arquivo,
Documentação e Bibliotecas, que não
esquece o espaço do leitor e do autor,
estes que em muito sentiram‐se penal-
izados pela crise pandémica. Ainda as-
sim, assegura que “O evento quis tam-
bém identificar leituras e escritas em
tempos de emergência, potencializar
sonhos e utopias críticas ao novo nor-
mal, como forma de abrir portas para
outros mundos. Nomeadamente entre
os escritores e leitores, privilegiando
nesta sexta edição a produção de con-
sciências literárias da crise, suas meta-
morfoses, incertezas e ambiguidades
discursivas ao novo normal”.
Neima Madaugy, chefe das bibliotecas
municipais garante que “Tratando‐se de
um problema global, toda a cadeia cul-
tural encontra-se afectada, a literatura
representa actos e formas de resistência Adérito Magaia e Cristina Manguele

RM
nos momentos mais duros e dramáticos
para a humanidade”. E sublinha, “ten-
tamos extrair conclusões desta última Nesse sentido, houve uma expecta-
crise mundial, para depois projectar no tiva muito forte na Feira virtual, desde
futuro a dupla tarefa de descrever os a eliminação das distâncias, a procura
efeitos da incerteza provocados pela permanente de contactos nas redes
pandemia, de narrar as mudanças ocor- sociais e o diálogo intercultural assente
ridas na sociedade e olhar a literatura nas fronteiras invisíveis. De modo que
como uma modalidade de consciência
social em tempos de crise”. Inscrever Maputo a organização em quatro meses atingiu
a cifra de 40 mil visualizações. O que
Inscrever Maputo na agenda mundi-
al como uma “Cidade literária” recon-
na agenda mun- aumentará a procura da cidade de Ma-
puto como destino turístico, a procura
hecida internacionalmente, continua a dial como uma da literatura e autores moçambicanos
ser um dos propósitos da organização.
A par disso, a iniciativa pretendeu pro-
“Cidade literária” e dos países dos escritores convidados.
Das mesas redondas, com a partic-
mover a reflexão e o debate sobre o reconhecida inter- ipação de escritores, professores, in-
tema: (re)pensar a criação literária em
tempos da pandemia. nacionalmente, vestigadores e editores, perfila(ra)m
temas cujo fio condutor era (re)pensar
A coordenação da Feira apontou a continua a ser um a criação literária em tempos da pan-
mobilização de parceiros para a re- demia, desdobraram‐se em três sessões:
transmissão das sessões, o que aumen- dos propósitos “Cartografias literárias, mobilidades vir-
tou em muito o alcance desta edição.
Chegou a novos e outros públicos. Por
da organização. tuais e alteridades; “Dialécticas literárias
em tempos de crise: que ideias para o
isso, entende que “A Feira do Livro de A par disso, a ini- futuro?”; e “Literatura e Resistência: Para
Maputo, nas edições futuras abraçará o
formato virtual, mesmo com as sessões
ciativa pretendeu uma história do possível”.
Assim, se fez a história no meio das
presenciais, não abandonará a trans- promover a re- incertezas e resistências, a música e o
missão on-line, é nosso desejo, atingir
uma cifra de 10 mil visualizações por flexão e o debate teatro não ficaram a leste do certame,
as actrizes Lucrécia Paco, Eunice Mand-
debate” assegura Crsitina Manguele.
O evento, classificado pela orga-
sobre o tema: (re) late, Angelina Chavango e os músicos
Grande Homem (voz), Firmina da Neta
nização como “resistência cultural” pensar a criação (voz), Cristalino Manjate (piano) e Cel-
conduziu novas linguagens, desafios,
soluções e formas de fazer a Feira e
literária em tem- so Durão (timbila) recolocaram a actu-
alidade das mulheres que emprestam
sobretudo como nos adaptar às novas pos da pandemia. as suas estórias às personagens criadas
circunstâncias, que englobam riscos e pela Paulina Chiziane, uma ode poética,
uma especificidade de promoção mar- dramática, extremamente concebida
cada pela universalidade, vitalidade, para representação eterna da maior fes-
atemporalidade e reinvenção. ta do livro e da leitura de Moçambique.

FEIRA DO LIVRO 13
11
Debate

GRIOTS
Alberto Mathe, Fatima Bezerra, Paulina Chiziane e Dionísio Bahule

A CAMINHO DA FEIRA

Paulina Chiziane:
a voz para além do Índico
SAINDO de África e navegando pelo Oceano Atlântico está o continente americano e
os seus mistérios. Está também a escritora moçambicana Paulina Chiziane a sobre-
por-se na terra que não é somente do samba, onde figuras como Machado de Assis,
Jorge Amado, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Manoel de Barros,
entre outros, viram o seu amor pela literatura eternizá-los: Brasil.

Texto: Lucas Muaga

A
escritora do Índico aparece supervisão de muitos amantes da liter- fora do lazer, há professores que usam
como uma “intrusa”. Introm- atura naquela federação latino-ameri- as suas obras na sala de aula para des-
ete-se numa batalha das boas cana. vendar os mistérios do Índico, de África
com a sua doce literatura. É uma autora E não é apenas esta história que in- e de Moçambique, em particular. Esta é
que encanta e atrai leitores que acabam teressa ao atento leitor brasileiro. “Ni- também alvo de estudos académicos.
por encontrar na escrita de Moçam- ketche”, um dos livros mais profundos É isto que fez e continua a fazer o
bique a satisfação que procuram quan- no que se refere à poligamia neste lado professor de Literatura Portuguesa na
do buscam por novos horizontes. Índico, ainda ocupa o seu espaço nas Universidade Federal de Paraíba, no
A considerada primeira romancista prateleiras brasileiras. Brasil, Sávio Roberto de Freitas, que es-
da história do nosso país, com a pub- Paulina não tem sido uma escrito- tudou “Baladas de Amor ao Vento” para
licação do romance “Baladas de Amor ra lida simplesmente para preencher duas teses importantes da sua carreira
ao vento”, em 1990, tem estado sob a horas livres ou simples deleite, pois, académica, concluindo assim o mestra-

14
12 FEIRA DO LIVRO
Debate
Luana Antunes Costa
Luana Antunes Costa

do e o doutoramento. na literatura de Paulina Chiziane, que ante de uma autora com mais de 30
Aliás, estamos a falar de alguém que lembra o passado colonial do país, é a anos de uma carreira.
sempre que pode elabora ensaios e língua portuguesa, visto que a mesma “Baladas de Amor ao Vento” é, aliás,
pesquisas em volta da literatura dos não tende a seguir o modelo ocidental. um dos livros mais importantes da
Países Africanos de Língua Oficial Por- “A única coisa do colono nela é o idio- história do país, não somente por ser
tuguesa (PALOP). ma”, refere. o primeiro romance escrito por uma
Sávio Roberto de Freitas, que inte- Não haveria, deste modo, outra ma- mulher, mas por se mostrar intacta e
grou o evento inicial do rol de pro- neira de a autora homenagear o seu recomendável até hoje. “Acredito que
gramas que antecedem a “verdadeira” país nos quatro cantos do mundo vão passar mais anos”, vaticina.
Feira do Livro de Maputo, destaca que senão esta de levá-lo entre as páginas Ao ser homenageada na presente
um dos aspectos mais interessantes da dos seus livros. edição da Feira do Livro de Maputo,
obra de Paulina Chiziane reside no fac- Anota ainda que, escrever, para Pauli- Paulina Chiziane é lembrada, segundo
to de narrar as suas histórias usando a na, seria como pôr asas na bandeira de o professor brasileiro de literatura, num
escrita, mas levando o leitor a sentar-se Moçambique e içá-la no estrangeiro. país onde nunca deve ser esquecida.
à volta fogueira para escutar um “karin- Sávio Roberto de Freitas diz ainda
gana wa karingana”. que a escritora aparece a reivindicar o DAR VOZ A QUEM NÃO A TEM
“Ela convida-te a ‘ouvir a história’, esquecimento de alguns países dentro AINDA no território brasileiro, outras
numa narração perfeita”, disse o profes- de África, como se estivesse a encarnar vozes se unem para dizer que a escrito-
sor, que, embora assuma uma paixão o poeta moçambicano Rui de Noronha, ra não pára de fazer sucesso no país de
especial pelo livro “Baladas de Amor ao apelar que o continente deve des- Machado de Assis.
ao Vento”, explica que a escritora che- pertar do sono e caminhar. Por exemplo, categórica, a professo-
gou ao Brasil através do “Niketche”. Esta “Ela representa muito bem o seu país ra e estudiosa brasileira Luana Antunes
obra, lançada em 2002, daria, ano se- por onde propaga a paz através da lit- Costa, do Instituto de Linguagens e Lit-
guinte, à escritora o Prémio Literatura eratura”, considera. Este pensamento eratura da Universidade de Integração
José Craveirinha, instituído pela Asso- é ainda sustentado pelo académico Internacional da Lusofonia Afro-Bra-
ciação dos Escritores Moçambicanos quando diz: “O mundo deve parar para sileira (UNILAB), afirma que cresceu a
(AEMO) e a Hidroeléctrica de Cahora ouvir Paulina falar”. ler Paulina Chiziane e defende que a
Bassa (HCB). A grandeza dos escritores também autora traz “personagens complexas
Ainda assim, o pesquisador brasileiro se verifica com a durabilidade da sua que mostram sombrios abismos”, sen-
considera “Baladas de Amor ao Vento” obra e é este aspecto que, na sua opin- do uma escritora activista, ciente do
como uma verdadeira obra-prima da ião, acontece(rá) com a romancista papel da literatura como influenciado-
autora. moçambicana. ra de mentes.
Um dos poucos elementos existentes Lembra-nos também que se está di- Divagando em assuntos como a poli-

FEIRA DO LIVRO 15
13
Debate
gamia e a situação da mulher em di-
versas vertentes, a autora é admirada
por dar voz a quem não a tem. Fala em
nome de todas as mulheres oprimidas
e denuncia um mundo prenhe de in-
justiças, onde para “existir é preciso es-
quecer que é mulher”.
É neste sentido que esta ainda foi
atrás de outras pessoas interessadas
na obra da moçambicana, como Luana
Costa, também docente na UNILAB e
com especial interesse na literatura
dos PALOP.
A mesma já esteve, em 2017, com
a romancista-mor de Moçambique
numa mesa de literatura. Refere
que desde essa altura nunca
mais se descolou dela, tendo
passado a ser sua fiel compan-
heira, uma espécie de segun-
da pele.
Luana Antunes Costa
foi ainda mais longe: nas
suas aulas incluiu a auto-
ra moçambicana. Criou
o seu próprio plano de
ensino no qual Paulina
Chiziane é uma das
“princesas”. Esta é a
forma que a docen-
te encontrou para
“evangelizar ”as
letras deste
lado do Índico
naquele lado do
Atlântico.
Através das obras da romancista
moçambicana, a brasileira disse que zação na afirmação das
pôde saber que um dos desafios da mulheres em África. “A lit-
emancipação do mundo é um “patriar- eratura de autoria femini-
cado reinando”. scer grandes nomes da literatura de na nas sociedades pós-co-
Outra voz é de Iris Amâncio, que co- Moçambique, como Hélder Muteia, loniais apresenta-se como
loca a romancista moçambicana no Eduardo White e Armando Artur, só um processo representativo na história
mesmo estandarte da escritora Caroli- para citar alguns exemplos. das mulheres”, disse.
na Maria de Jesus, uma precursora da Este é o quinto livro da escritora e Neste sentido, há aqui uma denun-
literatura negra no Brasil que é, ainda narra a história de duas personagens, ciante que não se cala e busca por
assim, desconhecida na “Terra do Sam- Delfina e Maria das Dores que ainda justiça, usando a escrita como “uma fer-
ba”. carregam as consequências negati- ramenta de denúncia e de quebra de
“INTRUSA” NUMA LITERATURA vas da colonização em Moçambique mitos e preconceitos reforçados pelos
DOMINADA POR HOMENS e noutros países africanos. A autora discursos patriarcais”, continuou.
PAULINA Chiziane não é só “Baladas recupera o papel feminino na consol- Os aspectos acima referidos podem
de Amor ao Vento” e “Niketche”. Pu- idação de uma sociedade mais justa e ser reforçados, conforme diz Áurea
blicou mais de uma dezena de livros. igualitária. Costa, ao perceber-se que “a presença
Dentre os quais, “O Sétimo Juramento” Esta obra também encantou os bra- de mulheres na literatura canónica ofi-
e “O Alegre Canto da Perdiz”, que saiu sileiros, como é o caso da professora de cial é muito reduzida”.
pela editora portuguesa “Caminho”, em literatura no Instituto Federal do Piauí, Avança ainda que a luta pela inde-
2008. Tal como outros, este último livro Áurea Santos, que resume esta publi- pendência e as guerras civis também
também “atravessou” o Atlântico. cação na “Memória para uma resistên- escondem a luta pela afirmação das
De Moçambique, carrega em dema- cia feminina”. mulheres moçambicanas e africanas,
sia a província da Zambézia, espaço Esta docente destaca o facto de Pau- que são elevadas através de produções
geográfico que, na vida real, viu na- lina não ignorar as sequelas da coloni- literárias.

16
14 FEIRA DO LIVRO
Debate
deveres. “Ela abriu-se para a descon-
strução de preconceitos”, disse.
Para o editor, não se pode esquecer
uma escritora do calibre da romancista,
sendo que este pode ser um dos erros
que poderá estar a ser cometido no país.
Ainda assim, sendo esta a realidade, ou
não, que se vive entre nós, Celso Muian-
ga diz que se vai a tempo de inverter o
cenário, tornando os textos desta autora
mais acessíveis, sobretudo nas escolas.
É aqui, afirma, que se vê “o défice”.
Lembra ainda que livros como
“Baladas de Amor ao Vento”, que
integram a lista de “clássicos” da
literatura moçambicana, foram
escritos e publicados num dos
períodos mais difíceis da nossa
história.
“Houve dificuldades para
que o livro aparecesse. São
elementos que fazem olhar
para a sua obra com res-
peito”, explica.
“A nossa academia di-
minuiu-se em relação
ao número de obras
“Nas suas publicadas nos últi-
criações literárias, mos anos”, consid-
Paulina aborda a era.
condição feminina. As acções de
Há muitas mulheres activismo de
escritoras que escre- Paulina não são, diz
vem textos na tentativa Muianga, apenas direccio-
de promover a discussão nadas às mulheres. “Liberta também
através da literatura, mas os homens para assumirem personagens
Paulina faz isso com muita femininas”, o que já acontecia, embora
perfeição”, considera. não com a mesma intensidade”. Mesmo
assim, as suas obras poderão “servir para
DESCONSTRUIU a afirmação de várias mulheres”.
PRECONCEITOS (2015). e “O Canto dos Escravizados”
NEM sempre é necessário atravessar (2017).
o Atlântico para ouvir e perceber a gran-
deza de Chiziane. Há, cá em Moçam-
bique, pessoas como Celso Muianga,
que trabalhou com a escritora enquan-
to editor da Ndjira. Actualmente, faz o
mesmo trabalho na Fundação Fernan-
do Leite Couto, onde tem dedicado
uma especial atenção para “as novas
vozes da literatura moçambicana”.
Ele acredita que a nova geração de
autores tem muita coisa a aprender
com a escritora. E diz concordar com
os outros intervenientes sobre a lei-
tura que fazem da nossa romancista.
Até porque para ele, Paulina Chiziane
é, mesmo, uma activista especial que
cumpre a sua tarefa usando o papel
Celso Muianga
e a caneta para promover direitos e

FEIRA DO LIVRO 17
15
Ideias

Zô Guimarães ̸ Folhapress
João Paulo Cuenca

Literatura e resistência, para


uma história do possível
João Nuno Azambuja nasceu em Braga, em 1974, e é licenciado em História e Ciências
Sociais. Participou, por sua iniciativa, em diversas explorações arqueológicas pelo país
ao longo de vários anos. Militou, mais tarde, nas tropas paraquedistas como coman-
dante de pelotão, após um breve período como professor de História. Regressado à
vida civil, dedicou-se à escrita e fundou, em Braga, um bar de inspiração celta, onde se
realizaram concertos memoráveis das melhores bandas ibéricas desse género musical.
O seu primeiro romance, Era Uma Vez Um Homem, ganhou o Prémio Literário UC-
CLA (União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa) em 2016. Após o sucesso de
Os Provocadores de Naufrágios, surge o seu terceiro romance, Autópsia.

Texto: João Nuno Azambuja

O
caso do escritor brasileiro João global está em declínio. Aquilo que to- coronavírus constitui mais um motivo de
Paulo Cuenca, perseguido pela dos pensávamos que era uma conquis- luta, porque o neoliberalismo se aprove-
teocracia brasileira por causa ta progressiva revela agora um com- ita desta doença para mais uma ofensiva
de uma frase considerada ofensiva, é portamento regressivo. É perante estas contra a liberdade, fomentando a doutri-
paradigmático dos nossos tempos. Um ameaças que todos nós — e a literatura nação dos indivíduos pelo medo e pela
relatório divulgado recentemente pela em particular, como parte importante intimação, no sentido de cada um se
associação britânica Artigo 19 mostra das manifestações do ser humano — controlar a si mesmo, servindo o esforço
que a liberdade de expressão a nível temos de resistir. A pandemia do novo catequista dos governos.

18
16 FEIRA DO LIVRO
Ideias
Beira.pt
João Nuno Azambuja

Nietzsche tem uma bela frase que diz: na Feira do Livro de Maputo, disse algo
«O que é a felicidade? É o sentimento de contra a corrente: afirmou que o contac-
que uma resistência foi vencida». O que to físico é essencial, é inerente à nossa
se nos opõe, o que se apresenta con- condição de seres humanos. Nós agora
tra nós, excita-nos a vontade de lutar, estamos perante uma pandemia que
de nos sentirmos vivos, de combater a nos dificulta o contacto, até é proibido,
opressão. A vida, assim como o ato priva- É perante estas e eu desejo que ninguém desaprenda o
do de escrever, como exteriorização da gesto de dar a mão, de estar presente, de
nossa força, é superação. ameaças que to- vencer a ameaça de uma doença menos
Há quem diga que não estamos num
momento de fazer arte pela arte, con-
dos nós — e a liter- castradora do que a desinformação.
Paulina Chiziane dá-nos um exemplo
siderando a opção meramente estética atura em partic- de resistência. Resiste a considerar-se
do artista, porque para contrariarmos
as tendências impositivas temos de ular, como parte romancista, por não querer obedecer às
normas europeias do romance. É como
as denunciar abertamente nas nossas importante das se algo do colonialismo persistisse e ela
manifestações; mas eu considero que a sinta que deve ser afastado.
arte pela arte é uma das realizações su- manifestações do Veja-se o exemplo da Bolívia, país mer-
premas da liberdade, e ao exercê-la es-
tamos a demonstrar a nossa vontade de
ser humano — te- gulhado em desavenças políticas. A pop-
ulação indígena deste país ainda hoje
ser livres, contra essas mesmas tendên- mos de resistir é marginalizada pelos descendentes
cias niveladoras do pensamento que dos europeus que lá vivem. Poderá essa
pretendem eliminar a espontaneidade. população dizer que o colonialismo aca-
Por aqui vemos a importância resis- bou? É muitas vezes a literatura que nos
tente da literatura, que é caminho ab- lembra que eles existem e são discrimi-
erto, tendo o poder de falar de tudo, o nados.
que para muita gente é incómodo. Não Paulina Chiziane disse certa vez que o
há nada que esteja fora do seu âmbito, e mundo é uma morada de loucos. O es-
a linguagem poética é a expressão mais critor talvez seja verdadeiramente louco,
pura desta liberdade. É emoção. por pretender encontrar, na sua ficção
Os escritores dizem verdades doloro- que espelha a realidade, o papel do ser
sas, porque esmiúçam, aventuram-se humano neste mundo. Vivemos dentro
em todos os domínios da vida. Sara Jona, de um livro de Kafka à procura da saída.

FEIRA DO LIVRO 19
17
Destaque

Maria Teresa Salgado,Paulina Chiziane e Cíntia Kütter

“Os acasos determinam às


vezes as nossas reações”
Doutora em Letras Vernáculas subárea - Literaturas Portuguesa e Africanas, pela Uni-
versidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Cíntia Acosta Kütter, pesquisadora, e
professora de Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade Federal Rural da
Amazônia.
Texto: Cíntia Acosta Kütter

S
eu interesse versa principalmente Esta entrevista faz parte da tese de fala do seu percurso literário, da sua for-
nos seguintes temas: gênero, bil- doutorado da pesquisadora e foi publi- mação humana, sobre mulheres e sua
dungsroman feminino, memória, cada primeiramente na Revista Diadorim participação na FRELIMO.
trauma e literatura produzida por escri- (Revista 19, v.1, 2017). Paulina Chiziane, escritora homenage-
toras africanas e afro-brasileiras. Actual- Em episódios curtos e interligados, a ada na sexta edição da Feira do Livro
mente integra o Grupo de Pesquisa “Es- escritora moçambicana, a mais destaca- de Maputo, autora de Balada de amor
critas do corpo feminino” (UFRJ/UNILAB). da e internacionalmente reconhecida, ao vento (1990), Ventos do apocalipse

18 FEIRA DO LIVRO
20 FEIRA DO LIVRO
Entrevista
o livro, quer dizer, era como se estivesse
a mexer um objeto sagrado. Daí comecei
a ler e a tendo que apanhar para frente,
e já fiz de tudo, assim, de roubos de liv-
ros, para pode ler, e quantas vezes não
fizemos isso, em feiras, em livrarias, em
Durante o dia, às tabacarias, fizemos isso mas pela leitu-
ra. Eu não estava a perceber muito bem
vezes participava para onde me conduzia essa maneira de
nas brincadeiras estar, e pronto, dei por mim registrava
memórias. A primeira coisa que eu fiz
dos outros, mas foi o diário dos sonhos, que me custou
muita sova em casa, porque eu sempre
eu sempre fui da atrasava a escola. Acordava de manhã e
noite. Todos dor- a primeira coisa que fazia era sentar para
registrar o sonho, em um diário, e quan-
mem, eu fico len- do chegava a hora de ir para escola não
do um livro, fico tinha ainda tomado banho, enfurecia
meu pai que teve que ter uma mão dura
ouvindo música e, para controlar, então, perdi esse diário,
sempre gostei de porque meu pai queimou. Mas hoje eu
lhe dou razão (risos), então essa foi uma
ser assim das minha primeiras manifestações de
vontade de escrever. Mas eu pintava,
gostava de pintar, assim nessa beira dos
doze anos, eu gastava tudo que era pa-
pel pintando e me deu também muita
Universidade Federal Fluminense

sova porque estava a gastar o papel,


que devia ser para estudar. Éramos oito
filhos com um pai que era alfaiate de
rua, então não havia muitos recursos.
Então eu fui experimentando várias ma-
neiras de estar, e acabou vingando a es-
crita, porque eu ficava a escrever e meu
pai acreditava que eu estava a estudar
(risos), então pronto. E foi assim que aca-
bei ficando com a escrita, era mais bara-
to, não gasta papel e o pai nem sempre
(1993), O sétimo juramento (2000), Ni- Não sei (risos). Sinceramente, não sei. desconfiava daquilo que eu fazia. Deixei
ketche (2002), O alegre canto da perdiz Porque eu acho que sempre existiu a es- de fazer o diário dos sonhos, que fazia de
(2008), As andorinhas (2009), Nas mãos critora, a minha natureza tem haver com manhã, mas comecei a rabiscar durante
de Deus (2013), Por quem tocam os isso. Eu gosto de viver em grupo, mas a noite, e acordava tarde na mesma, mas
tambores do além (2013), Ngoma Ye- também gosto de viver sozinha, desde essa era uma guerra que meu pai nun-
thu (2015) e O canto dos escravizados pequena. Durante o dia, às vezes partici- ca venceu, eu nunca consegui acordar
(2018), os publicados entre 2013-2015, pava nas brincadeiras dos outros, mas eu cedo. Porque as mulheres da noite era
em regime de co-autoria. A romancista sempre fui da noite. Todos dormem, eu sempre , sei lá, dos meus delírios...
conhecida por fazer de sua arte uma for- fico lendo um livro, fico ouvindo música
ma de resistência, concedeu esta entrev- e, sempre gostei de ser assim. Mesmo Você já afirmou que não é feminis-
ista à pesquisadora em 25 de março de com o trabalho de casa: engomar a rou- ta, mas concede o protagonismo de
2017, no Rio de Janeiro. pa, esfregar, eu sempre fazia o trabalho a suas obras as mulheres. Esse “lugar”
noite. E gosto de estar com muita gente, de protagonismo e de resistência da
Primeiro, gostaria que você nos mas estou sempre só. Isso me permite personagem Sarnau em seu primeiro
falasse um pouco como a literatura observar, e quando chega a noite pra romance Balada de amor ao vento
surgiu na sua vida. Você já mencionou lembrar tudo o que observei, comecei (1990) surgiu de forma proposital ou
em outras entrevistas “ter se inspira- a fazer notas bem pequenina, e fui an- como você diz “a escrita veio e tomou
do em sua avó”; “nas histórias que ou- dando. E quando naquela fase da vida o seu lugar”?
viu a volta da fogueira”; “que iniciou o em que o livro começa a exercer uma Eu nem sabia, quer dizer, eu conhecia
curso de linguística na universidade”, certa magia! Eu pegava num livro e sen- as teorias de emancipação da mulher,
etc. Mas em que momento surge a es- tia o êxtase de estar a pegar num livro. mas a palavra “feminismo” ainda não me
critora Paulina Chiziane? O que te im- Então a minha infância foi isso, não tinha tinha soado aos ouvidos. Eu contei uma
pulsionou para esse movimento? muitos livros, mas a minha relação com história apenas, e a história de uma mul-

FEIRA DO LIVRO 19
FEIRA DO LIVRO 21
Entrevista
her que é aquilo que eu sei, mais nada. muito chocada. E então tranquilamente muitas que estiveram na luta armada. E
Depois de publicar o livro foi que com- eu ia visitando a velhota, levava aquela a situação não é muito diferente, então
ecei a compreender a dimensão do fem- garrafa de vinho que ela gostava (risos), são essas heroínas, no verdadeiro senti-
inismo, daí comecei a perceber algumas e ela ia me contanto as histórias, incrível! do que não tiveram nome porque são
leituras e fui consolidando algumas ide- A Zambézia tem muito disso. mulheres.
ias sobre o feminismo. Mas foi assim, a
vontade de contar uma história de uma Quando a personagem fala: Meu Pelo visto até hoje são heroínas
mulher, e em todos os meus livros falo objetivo é branquear o negro da sem nome.
de mulheres, e a razão é tão simples, eu minha pele, em contrapartida nós te- Sem nome e vão morrer com a sua
estou sempre rodeada das minhas ami- mos o caso da neta, mulata, que não história. Pouco escolarizadas a maior
gas, da minha família, mesmo da minha possui um “lugar”, porque para os ne- parte delas e mesmo que tenham a
família, minhas irmãs, minhas primas, gros ela é branca e para os brancos ela possibilidade, ou a capacidade de es-
então, o mundo que eu conheço, mel- é negra. Qual é o espaço do mulato? crever, não sei esses livros serão algu-
hor, é o mundo das mulheres. Foi por Esse é o outro lado. Para mim foi in- ma vez publicados. Há um fenômeno,
isso que as coisas saíram desse jeito. teressante descobrir a imagem do mes- em Moçambique agora, que aqueles
tiço, porque eu sempre via, eles não nos que fizeram a guerra contra os portu-
Em seu romance O alegre canto da ligam muito, pelo menos em Moçam- gueses, agora estão a escrever as suas
perdiz (2008), somos apresentados a bique. O mulato não liga muito ao negro, memórias, mas aquelas memórias para
três gerações de mulheres que bus- tá quase sempre em grupos de mulatos. mim tem um sabor assim, de um far-
cam, a seu modo, resistir ao regime Mas eu nunca tinha percebido o que ia damento.Todos escrevem coisas iguais
patriarcal, a violência e a elas mes- dentro da alma. Foi esse trabalho me fez e não há nada que se escreva difer-
mas. O que motiva uma mãe a prosti- ver o quão sofredores são. ente, porque senão o chefe não gos-
tuir sua filha, e esta, que por sua vez, ta, perdem os seus privilégios. Então é
vender a sua filha? Estas mulheres Paulina, eu gostaria de perguntar daquelas literaturas que...é interessante
que repetem o colonialismo, além de sobre uma obra pouco referida até ler, mas não me dizem muito. Porque to-
estarem a vender a “própria carne” es- hoje, O livro da paz da mulher ango- dos repetem a versão oficial da história,
tariam a vender suas almas? Foi esse lana (2008) que foi uma recolha feita e a mulher por muito que escreva tem
o seu objetivo ao apresentar essas por você e Dya Kassembe, com o sub- medo de dizer: “Olha quem dirigia os
mulheres, mostrar esse outro lugar título de “heroínas sem nome”. De lá combates era eu, o comandante que
ocupado por elas? pra cá, essas heroínas tem aparecido era homem fugia porque tinha medo.”
O alegre canto é a verdadeira ima- ou ainda continuam sem nome? Então, talvez, daqui a algum tempo, de-
gem do colonialismo. Tanta repressão É uma questão melindrosa. O livro é pois dessas pessoas morrerem, porque
ao ponto de criar-se este santo mundo de Angola, eu não posso falar muito so- esses generais ainda estão vivos, se elas
de alta rendição porque, pronto aquelas bre a questão angolana, mas não é mui- começam a denunciar...
mulheres achavam que não tinham val- to diferente da questão moçambicana.
or nenhum, que só podiam dar algum Uma das senhoras que eu entrevistei A participação da mulher na guer-
valor se servissem ao opressor. Então o vendia amendoim na rua. Portanto, ela ra ainda é pouco abordada?
colonialismo é isso mesmo. E para dizer era uma vendedora ambulante de rua, Muito pouca, quer dizer, há uma
que o processo de libertação da mente que foi uma combatente da guerrilha abordagem oficial muito romântica do
vai levar muitas gerações. Nós já não pela independência. E, ela diz tranquila- tipo : “a mulher participou na guerra”, “a
temos a bandeira colonial, mas ficamos mente: “olha, o meu colega que era o co- mulher é uma heroína”, “ porque nós te-
com graves sequelas em nossas mentes. mandante responsável por aquele cam- mos que promover a mulher”. A mulher
Como que o livro surge? Eu vivia na Zam- po, ele que devia guarnecer o campo, é uma heroína, mas quem é a heroína?
bézia e conheci esta família, esta velhota segurança, etc. Quando havia ataques Onde está o nome dela?
que teve dois maridos: um branco e um dos portugueses, ele fugia, porque
negro, e teve filhos negros e mestiços. ele tinha medo”. Mas essa mulher, que E essas mulheres hoje, onde estão
Conheci, mas conheci através do filhos porque tinha lá os filhos dela e os fil- elas?
mestiços, que são donos de restau- hos das outras mulheres, ela virava uma Tá na cozinha, estão vendendo amen-
rantes. E, de repente aparece a cozin- leoa. Então, todos os combates naquela doim nas ruas, estão no campo, no tra-
heira e a faxineira, que são irmãs dela, e região foram dirigidos por ela. E quando balho tradicional das mulheres. Mas
eu perguntei: que se passa? É tua irmã? E chegou a altura de patentear alguém, as foram mulheres que fizeram a guerra.
a faxineira de uma empresa? Sim. Então patentes não foram para ela, porque ela
comecei a perseguir a história. era mulher, foram patentear o homem Como foi essa experiência de tra-
que sempre fugia. E na altura em que balhar em parceria e o que motivou
A irmã é negra? fizemos as entrevistas, ele já era um gen- você e Dya Kassembe a desenvolver
Sim, sim. Comecei a perseguir a eral muito rico, mas a mulher que dirigiu esse projeto?
história, e fui dar a mãe, que ainda tinha a guerra, estava vendendo na esquina. Foi um trabalho encomendado, da
orgulho em dizer que durante toda vida Então, foi uma coisa que me chocou. E Ajuda Popular da Noruega que tra-
só bebia vinho do porto do marido bran- voltei a Moçambique, comecei a con- balhava em Angola na desminagem.
co. Ai que realidade! Naquele dia fiquei versar com outras mulheres, que são Então, havia uma parte social, que o

22
20 FEIRA DO LIVRO
Entrevista
Cíntia Kütter
Cíntia Kütter e Paulina Chiziane

chefe deles tinha que fazer recolher trevistas? E seu pai nunca te surpreendeu?
as histórias dessas pessoas que partic- Somando os dias todos, eu acho que Pegou uma vez, levei uma sova!
iparam dessa guerra, cuja a desmina- as entrevistas levaram mais ou menos (risos). Mas o trabalho estava feito. En-
gem estava a ser feita por eles. Então, uns cinco meses e o processamento do tão, foi assim, tranquilamente eu sem-
escolheram a mim e a Dya Kassembe, texto, porque aquilo foi um trabalho pre tive amizades masculinas, desde
e fomos andando, fomos a trabalhar, mesmo coletivo, com as mulheres, pequena. Eu acho que o problema é
foi muito bonito, mas o livro não teve eram grupos de mulheres angolanas. exatamente esse, eu lia mais do que as
muito impacto. Porque nós, nas nossas Então, o projeto durou um ano, então outras mulheres, isso ainda acontece
entrevistas, fomos imparciais entrev- eu ia, vinha, ia, vinha. Conheci Angola até hoje. E pronto. Fugia de casa, fugia
istamos mulheres da UNITA, mulheres quase de norte a sul nesse projeto, foi pela janela.
do MPLA e isso não foi muito bom. interessante, mas o livro não sei dele.
Porque ou tínhamos que escolher mul- Naquela época como era a partici-
heres da UNITA, com todas as conse- Você afirmou em palestra conferi- pação feminina na FRELIMO? Tinham
quências, ou tínhamos que trabalhar da recentemente ter feito parte da muitas mulheres no movimento?
só com mulheres do MPLA, nós fizemos FRELIMO e sobre seu papel dentro Uma coisa foi a luta armada nas matas,
um trabalho onde colocamos todas as do partido. O que motivou uma moça outra coisa foram os grupos clandestinos
mulheres e no fim produzimos o livro. tão jovem na época a participar de urbanos. No grupo era assim, mais ou
Não teve muita aceitação. Sei que logo forma tão ativa desse movimento? menos vinte no grupo e mulheres eram
a seguir, uma outra equipe, do partido Não sei, mas por outro lado, eu lia quatro, só. Sim, dezesseis, eram rapazes.
do poder, que partiu para o campo de muito desde pequena, então tinha mui-
urgência para entrevistar as “heroínas tas referências na cabeça. E contrastava A que você atribui isso Paulina?
verdadeiras”, e publicou-se com mui- com muitas meninas num tempo que A época, estávamos em plena época
ta pompa, um livro, não sei como se não tinham acesso a leitura, então eu colonial, a tradição e a própria estrutura
chamava, mas acho que era uma coi- conversava mais com rapazes do que colonial, porque a mulher na estrutura
sa como “As heroínas verdadeiras de com meninas, por conta do nível de es- colonial o lugar é de subordinação. En-
Angola”, mas enfim, isso é uma outra tudos e intelectual que tinha. Então, de tão, a minha tradição também, a região
história. Não sou angolana, eu....(risos) repente os rapazes fazem a oferta: que também, e eu era atrevida, chama-
tal essa noite sairmos para fazer um de- vam-me «Maria-rapaz», porque nunca
Quanto tempo levaram essas en- terminado trabalho? me consideravam mulher.

FEIRA DO LIVRO 23
21
Entrevista

CMM
Paulina Chiziane

Você via esse apelido como um elo- Yethu (2015), você opta pela estrutu- E o que te levou a escrever Nas mãos
gio ou não? ra de co autoria. O que te motivou a de Deus (2013) que foi o primeiro es-
Não. Não ligava. Eu desafiava, subia mudar sua estratégia de escrita? Isso crito a quatro mãos?
em árvores, fazia tudo o que as mulheres repercutiu de que forma no mercado São várias coisas. É muito interessante
não faziam a essa altura. editorial? Fale-nos um pouco sobre entrar na psiquiatria, foi uma grande es-
esses projetos, ainda pouco conheci- cola de vida. Nós temos a ilusão de que
Paulina, o que você lia nessa épo- dos no Brasil, e como essas propostas somos humanos, ilusão daquelas cois-
ca? surgiram. as bonitas, românticas que nós temos.
“6 balas”. Espera, eram aquelas coisas As editoras formais não aceitaram, os Quando se entra na psiquiatra que a
de “6 balas”,...bang-bang....depois apare- temas não iam muito com as suas políti- gente entende a verdadeira essência
ceu o “Coelhinho pelado”, acho era bra- cas editoriais, então tive que procurar do ser humano. É o filho que abandona
sileiro, não? “Fotonovelas” e os Disney alternativas. Há uma editora que se cri- a mãe, porque teve uma crise psicótica;
que já são mais antigos. Mas também ou só para publicar um livro e já morreu é a mãe que espanca o próprio filho,
havia muito Jorge Amado, nós lemos (risos). Na mão de Deus, criou-se uma porque o filho teve uma crise psicótica;
Jorge Amado em livros de bolso, em liv- editora só para publicar o livro, depois é a família que se junta, que se separa,
ros maiores, em tamanho assim, taman- trabalhei com um outra, e depois vou quer dizer, a doença mental é um dos
ho a quatro, mas livro de bolso era mui- trabalhar com uma outra, porque esses maiores dramas. A medicina faz o mel-
to, muito forte. Então tava acessível, não temas questionam muita coisa e com hor, mas há uma série de preconceitos
sei porque, mas o sistema colonial liber- muita profundidade, então não que- a volta da pessoa que tem uma crise
ava o Jorge Amado, para nós, Vinicius de riam correr o risco. Agora, passado al- psicótica. Eu entrei em crise,mas depois
Moraes também, eram dois autores que gum tempo, os livros viraram sucesso e a crise passou, levou muito mais tempo a
circulavam, os outros só depois da inde- algumas dessas editoras já estão inter- recuperação. A recuperação da memória,
pendência. essadas em publicar, porque viram que a recuperação dos movimentos do corpo
afinal, esses assuntos são, como se diz, é que levou mais tempo, mas a crise em
Em seus últimos três projetos: Nas é produto para mercado, por exemplo, si durou pouco tempo. E voltei a mim, e
mãos de Deus (2013), Por quem tocam Ngoma Yethu, circula....aí meu Deus! naqueles momentos que estava sentada,
os tambores do além (2013) e Ngoma Circula! aproveitei a ocasião para conversar com

24
22 FEIRA DO LIVRO
Entrevista
muita gente, e tentar perceber o mundo lhe acontecer se fizer alguma coisa. En-
que há por detrás de doença. São ver- tão eu acho que a Europa, as religiões
dadeiros dramas. Lembro-me de uma que se chamam de universais é que
moça que entrou,violada sexualmente, trouxeram este modelo que colapsou.
não se sabe por quem, e nas mãos ela Mas continua a persistir.
tinha marcas de que tinha sido amarra-
da com arames, ferros, estava cheia de
feridas e nas costas tinha levado chicote.
Eu li O quarto de E até que ponto isso também não é
reflexo dessa história da colonização.
Porque deu-lhe uma crise, ela cometeu despejo, da Car- Olha, o que eu posso dizer é que as lu-
qualquer coisa, mudança de compor-
tamento, a pessoa não sabe o que faz.
olina, e há um tas de libertação africanas, dos países de
língua portuguesa, trouxeram consigo o
Então o pai amarrou, o irmão espancou e texto dela que me feminismo marxista que libertou as mul-
alguém sexualmente violou. Isso dentro
da família! Então, quando aquela menina
comove muito, heres portuguesas. Então o movimento
das mulheres em Angola, em Moçam-
entra ela devia ter dezessete, dezesseis... quando ela deseja bique, etc, trouxe algo que despertou
dezessete anos, eu olhei para ela e deix-
ei estar até ela ficar melhor. Eu tive alta,
feliz aniversário a a consciência da própria mulher portu-
guesa que era tão reprimida como nós.
mas eu voltava para conversar com os velha Alice? Olha,
amigos que eu tinha feito. Sentava perto
dela, para ouvir a história dela, e depois
não consegui ler Na cena brasileira, a escritora Caro-
lina de Jesus, tem sido alvo de muitas
vim a saber que ela estava grávida. Uma mais para além críticas, no sentido de que sua obra “
gravidez que ela não sabe de onde veio,
se foi o irmão, se foi o pai, se foi um viz-
desse texto, porque não deve ser considerada literatura”.
Sua obra O quarto de despejo (1960)
inho, se foi alguém que saltou a cerca, quando cheguei fora traduzido para mais de 13 lín-
então são tantos os dramas, porque in-
felizmente temos uma tradição que diz
ali parei, porque guas e estudado no mundo inteiro,
abordando a temática dos que vivem
que a doença mental, enfim, podem ser minha dor foi mui- “a margem”. Em suas obras, suas per-
espíritos maus, maldições, espíritos, isso
é o que a tradição diz. Depois aparecem
to forte, e tenho um sonagens também são fruto dessa
margem onde buscam resistir e so-
as igrejas evangélicas: “É o diabo! É o grande respeito breviver. Você se identifica com essa
diabo! Se apossou da pessoa!”, e depois
temos a própria medicina. Bom, a pes-
por essa mulher escritora?
Eu não sei se tenho esse direito de me
soa chegou eles pegam dão o que tem pelas suas origens identificar com outras pessoas, porque
a dar e depois a pesquisa do problema.
Foi interessante porque no meu caso, eu
e pela luta que ela eu acredito que cada pessoa é singular.
Eu li O quarto de despejo, da Carolina, e
saí sem diagnóstico, quando eu voltar travou para sobre- há um texto dela que me comove mui-
ainda vou procurar um psiquiatra para
saber o que era. Pronto, quando se che-
viver e o registro to, quando ela deseja feliz aniversário
a velha Alice? Olha, não consegui ler
ga é tal coisa é psicose, é crise psicótica, é que ela fez mais para além desse texto, porque
tendência de esquizofrenia, é tendência quando cheguei ali parei, porque minha
de demência, vai se andando a procura. E dor foi muito forte, e tenho um grande
então, é a religião, é a tradição, é a ciência respeito por essa mulher pelas suas
tudo isso cria um conflito a volta do mes- origens e pela luta que ela travou para
mo indivíduo. Essa menina foi espanca- sobreviver e o registro que ela fez. E eu
da porque era preciso mandar embora o Nesse contexto as mulheres são faço esse questionamento: O que é lit-
diabo, o irmão espancou selvaticamente, sempre culpabilizadas. eratura? Quem criou? Quem inventou?
agora aquele que a violou não sei bem o Eu acho estranho. Para mim, isso é Para que serve? Então, a Carolina Maria
que queria tirar. E quem a amarrou tam- um colapso do pensamento ocidental, de Jesus construiu um espaço e produ-
bém acreditou que tinha um espírito do pensamento judaico cristão, porque ziu um movimento que vinha da sua
maligno nela, enfim, a menina simples- para o europeu a mulher é a face da eva, própria alma, um movimento de muito
mente teve um transtorno. Ela ficou bem, ela que é culpada, no nosso caso, em valor. Agora, quem são os outros para
ficou grávida, depois da doença teve que Moçambique, mesmo com as tradições questionar? E colocar etiquetas sobre
suportar a gravidez anônima e ficou com do Moçambique mais interior, mais pro- o sentimento humano, é por isso que
marcas muito feias nos braços, teve que fundo, que é patriarcal é semelhante de vez em quando eu me zango com
fazer fisioterapia. Isso é um exemplo dos aos ritos judaico cristãos onde a mulher as academias, porque preocupados em
milhares que existem. Então, eu comecei tem que ser culpabilizada. E eu conheço colocar etiquetas e nomes, e arrumar em
a perguntar: o que é uma mãe? o que é casos em que a mulher era espancada, gavetas, às vezes perde-se o melhor a
um pai? o que são relações familiares? É simplesmente espancada. Pergunta-se vida tem. Eu não estou a imaginar o que
um livro muito deprimente exatamente ao marido: porque espancou a mulher? tenha sido a vida dura daquela mulher, e
por causa disso, este vai e vem, e a pes- E ele diz: olha, não fiz nada, mas eu estou aqueles que sabem o que é literatura e
soa no lugar de melhorar até piora. a espancá-la para ela saber o que pode que sabem escrever em todos os meios,

FEIRA DO LIVRO 25
23
Entrevista

Luana Antunes Costa


Conceição Evaristo, Paulina Chiziane e Luana Antunes Costa

não sei se teriam capacidade de inter- nam às vezes as nossas reações. Tive uma balho do diabo ou não? E então, a nossa
pretar a vida com a real dimensão da crise psicótica, fiz um tratamento médi- conversa começa assim. E ela diz: olha,
Carolina Maria de Jesus. Então de vez em co, mas havia outra medicina alternativa, chamam-me diabólica, os evangélicos,
quando eu digo: acadêmicos, vão a fava! que ela domina que são as plantas que eu fui buscar a planta, quem criou essa
Para mim, Carolina Maria de Jesus escre- prepara. E pronto, depois do tratamento planta, foi Deus ou foi o diabo? Foi Deus,
veu e quem escreve chama-se escritor, o médico, que eu cumpri, comecei a fazer então tu escolhes, faças juízo do que
resto é história. Agora, eu colocar-me no um tratamento com as ervas, e para mim tu quiseres, mas se tu ficasse bem com
lugar dela, não sei, não seria capaz, eu foi mais saudável porque não me dava uma planta, foi quando eu pedi: por fa-
acho a Carolina uma mulher suprema. cabo do corpo. E surpreendeu-me o fato vor, mostra-me a planta! Ela me disse: Ja-
O mundo que ela viveu, os preconceitos de que cada vez que vai colher a planta, mais te darei! Eu protejo essa planta que
que ela rompeu, a guerra que ela travou não, que colhe a planta, não; cada vez vem sendo protegida desde os tempos
eu não me sinto com estrutura, nem ca- que prepara, eu não sei que planta é, mais antigos, porque a imposição colo-
pacidade de chegar aos pés dela. Sem- não mostrou-me, cada vez que prepara: nial, portanto chamam-nos diabos, mas
pre tive casa, sempre tive pão e sempre reza. Chama Deus, chama Jesus, chama vem sempre a correr para vir buscar aqui
tive amparo. E o pouco que eu faço, eu antepassados. Então eu dizia: olha, que o que é nosso conhecimento. Não dou!
faço até muito pouco, deveria fazer mais, eu saiba todo mundo diz que vocês são Já fiz isso, mostrei uma planta a alguém,
porque tive condições para existir. A Car- o diabo. Então, começou a desenrolar que foi logo a correr aos brancos que
olina estava só. E eu respeito essa força muita conversa. Por fim, quando eu já levaram, processaram, patentearam. Tir-
interior que ela tinha, educou-se a si estava melhor, quando estava bem, eu aram de nós o conhecimento, que para
mesma e tornou-se o que ela é....Jesus! disse: olha é preciso fazer justiça, porque além de nos humilhar, excluir, ganham
Os acadêmicos, por favor, que parem de são muito poucas as pessoas que com- dinheiro com o saber dos nossos ante-
incomodar. preendem o vosso trabalho. Vocês tem passados. Não te dou a planta! E eu en-
coisas más, isso é um problema vosso, tendi.
Em sua última obra Ngoma Yethu mas o que eu percebi é que vosso tra-
(2015),em co autoria com a curandei- balho é baseado na prece, sempre rezan- Em entrevista publicada em 11/7/16
ra Mariana Martins, vocês elencam do. E aprendi coisas muito interessantes no site “Geledés”, há uma fala sua afir-
questões como: colonialismo, curan- com ela. Porque ela diz: olha, tu é quem mando que você está a “se despedir
deirismo e cristianismo. Fale-nos um tem que dizer se o que te faço é diabóli- de seus leitores”. Com essa afirmação
pouco mais sobre essa obra e como co ou não. O efeito que tu sentes é bom? você se refere a projetos a “duas
Mariana Martins entrou em sua vida. Eu digo: olha é uma maravilha essa plan- mãos”? Você pretende continuar en-
Os acasos (risos) os acasos determi- ta! E ela me pergunta: Curar-te é um tra- gajada em projetos de co-autoria? Ou

26
24 FEIRA DO LIVRO
FEIRA DO LIVRO
Entrevista
pretende parar de escrever?
Eu não sei exatamente (risos) o que
vai acontecer, mas a atividade de escrita
tem as suas, como se diz, suas questões
de saúde. Eu já não posso mais ficar tan-
to tempo no computador, eu trabalho
trinta minutos, depois tenho que fazer
um intervalo de dez minutos. Então, vou
fazendo uma literatura aos bocadinhos,
já não é com aquela dinâmica antiga.
Mas isso não me impede de publicar
trabalho, mas é uma outra questão tam-
bém. De vez em quando é importante a
gente dar um basta as pessoas que in-
comodam, porque assim de repente a
sociedade moçambicana, não, uma boa
parte dos moçambicanos achavam que
eu era propriedade pública que podiam
fazer e desfazer. Quem quer escrever, es-
creve; quem quer dizer, quem não quer
não diz. Eu vivi em situações muito in-
comodas, assim, do tipo: a Paulina está
sempre a viajar, ela está a tirar o lugar
a nova geração. Eu disse: a, é? Só isso?
Tchau! Vai tu escrever!A porque o tra-
balho dela, não é,o gosto de muita gen-
te era dizer: a Paulina julga-se escritora,
mas ela não escreve nada, o trabalho
dela não tem qualidade. A é? Vai tu, es-
creve! A mais vai dar confusão, não, esse
tipo de pronunciamentos cria um tipo
de opinião pública muito incômoda. Eu

CMM
Isabel Macie, Alice de Abreu e Paulina Chiziane
vivi muito tempo incomodada com isso,
chegou um dia que eu disse: meu ami-
go, tchau! Vou embora! A mas...Chega
de guerras !Querem me dar, aqui papel
caneta, comprem, façam, produzam, e
então mandei assim, as favas! Mas foi da grande publicação, vou trabalhando sa parar e respeitar. O que aconteceu foi,
interessante que a partir dali as pessoas devagar (risos). bateram numa conversa do Whatsapp:
murmuram, conversam, dizem o que quem vai ser o próximo prêmio Camões?
lhes vai na alma, mas depois recuam, E como tu falaste: Fazer aquilo que Então uns diziam: a Paulina vai ser.
refletem sobre o que se passa. Chega gosto, no tempo que posso. Porque não sei o quê, não sei o quê. Out-
de abusos. O trabalho é meu, o tempo Sim, eles tem que respeitar o trabalho ros diziam: não pode ser, porque não sei
é meu, o que vocês tem que saber da das pessoas, pelo menos em Moçam- o quê, não sei o quê. Uma coisa muito
minha vida, então quem quiser que se ir bique. Eu venho de uma época em que suja, chega a ofender assim essa mulher
ao facebook, encontraram um erro gráfi- a escrita era um lugar dos homens. É passa a vida a circular pelo mundo o que
co, um erro ortográfico no trabalho dela, verdade que houveram mulheres que é que ela vai mostrar? Eu olhei para aq-
assim as coisas mais incríveis. Eu disse escreveram antes de mim a Glória de uilo assim, epa, isso é uma zona quente,
não, boba de festa eu não fui, o que eu Sant’anna que era portuguesa, fez con- é preciso cortar isso com um machado.
fiz foi por amor, chega! Vá vocês! Então tos, a Lilia Momplé, fez contos, a Noémia Fiz a minha declaração e toda essa onda
vem esta agressão pública, mas eu acho de Sousa, fez poesia... disso nunca de Whatsapp, Facebook, não sei o quê,
que foi muito bom e eu acho que outros mudou. Existem muitas pessoas que caiu. Então, todos me procuram: Paulina,
escritores vão se beneficiar disso. Eu até começaram a perseguir a minha carreira e agora, e agora? Porque até jornais já es-
disse: olha, eu não disse que era escrito- só para destruir, chegou o um ponto de tavam nisso, não, preferi cortar, e assim
ra, eu nunca disse, eu disse que contava dizer chega não quero guerra com nin- se seu publicar... É engraçado que nen-
histórias e contei e encantei, por isso a guém, vou escrever aquilo que me der hum jornalista voltou para me pergun-
guerra que vocês fazem não tem alma, o na cabeça, como sempre. tar mais nada, porque eles sabem o que
que vocês querem aqui? Saiam de mim estavam a tramar, eles querem vender
e pronto. Então foi mais ou menos assim E por favor continue “incomodan- o jornal, vez em quando inventam um
a sequência desse mal estar, mas sem do” e inspirando outras escritoras. escândalo, então percebi logo e preferi
dúvidas que eu já não vou fazer a corrida Mas a sociedade moçambicana preci- cortar.

FEIRA DO LIVRO
FEIRA DO LIVRO 25
27
Ideias

CMM
Armando Artur e Jessemusse Cacinda

Dialécticas literárias em
tempos de crise: que ideias
para o futuro?
Poeta e ensaísta moçambicano, publicou: Espelho dos Dias (1986), O Hábito das Manhãs
(1990), Estrangeiros de Nós Próprios (1996), Os Dias em Riste (2002) e A Quintessên-
cia do Ser (2004) – Prémio Nacional de Literatura José Craveirinha.

Texto: Armando Artur

E
u tenho cá para mim que os booms E tenho dito, inclusivamente, que, para se são de índole emocional, existencial,
literários acontecem sempre em a literatura, tal como a própria vida nos identitário, climático ou epidemiológico,
tempos de crises. Estes ocorrem ensina, todos os tempos são tempos de como a doença que a humanidade en-
justamente quando a literatura, pela sua conturbação, de contrariedades, tem- frenta neste momento, desde que esses
natureza, busca retratar, relacionar, esta- pos estonteantes. No entanto, não im- tempos nos possam emprestar algumas
belecer rupturas, ou mesmo consertar porta se tais crises são de cariz político, reminiscências de esperança e felici-
dialecticamente as fissuras do mundo. económico ou social, ou simplesmente dade, no plano individual ou colectivo.

28
26 FEIRA DO LIVRO
A selva faz de ti sinistro eremitério, dino Muianga, Suleiman Cassamo, Filim-

Ideias
E se olharmos para a própria história onde sozinha, à noite, a fera anda rugin- one Meigos, Marcelo Panguana, Carlos
da literatura, encontraremos exemplos do… Paradona, entre outros, cujo feito princi-
que atestam, em certa medida, o meu Lança-te o Tempo ao rosto estranho pal foi a ruptura estético-temática, com o
raciocínio. Temos o caso da “Geração império que então estava em voga como, por ex-
Perdida” que, face às crises geradas E tu, ao Tempo alheia, ó África, dormin- emplo, a chamada literatura laudatória e
pela primeira guerra mundial e, logo a do… panfletária que, exaltando as conquistas
seguir, pela recessão, produziu alguns Desperta. Já no alto adejam corvos revolucionárias, discurava, por assim
dos grandes nomes da literatura do sé- Ansiosos de cair e de beber aos sorvos dizer, o lado estético da criação literária.
culo XX. Aqui podemos trazer, à guisa de Teu sangue ainda quente, em carne Eis aqui um excerto de “UALALA-
exemplo, Ernest Hemingway, John dos sonâmbula… PI” de Ungulani Ba Ka Khosa:
Passos, William Faulkner, entre outros. Desperta. O teu dormir já foi mais que “(…) Mas ficai sabendo, seus cães, que
Um pequeno extracto de “SAR- terreno… o vento trará das profundezas dos
TORIS” de William Faulkner: Ouve a Voz do teu Progresso, este outro séculos o odor dos vossos crimes e
“... e desde que a essência da Primavera é Nazareno viverão a vossa curta vida tentando af-
a solidão, uma vaga tristeza e um senti- Que a mão te estende e diz-te: — África, astar as imagens infaustas dos males
mento de frustração atenuado, suponho surge et ambula! dos vossos pais, avós, pais dos vossos
que se consegue uma purificação mais (in «Literatura moçambicana: as dobras avós e outra gente da vossa estirpe.
profunda quando se lhe acrescenta um da escrita», de Fátima Mendonça -2008). Começareis a odiar os vossos vizinhos,
pouco de nostalgia como preventivo. increpando-os pelos males que pa-
Em casa encontro-me sempre a recordar Ou este de José Craveirinha: decerão nas palhotas sem idade (…)”
as macieiras ou azinhagas verdejantes Grito Negro (In “UALALAPI”, 1987)
ou a cor do mar noutros sítios e entris- Eu sou carvão! Escutemos também este poema de Ju-
tece-me não poder estar em toda a E tu arrancas-me brutalmente do chão venal Bucuane:
parte ao mesmo tempo e que a Prima- e fazes-me tua mina, patrão.
vera não seja toda a mesma Primavera, Eu sou carvão! RECUSAM
como a boca das senhoras, de Byron.” E tu acendes-me, patrão,
(In “SARTORIS”, 1958, EDITORA ULISSEIA, para te servir eternamente como força Recusam
pg. 393). motriz que esta flor desabroche,
Outrossim, temos a geração do pós mas eternamente não, patrão. deflagre de esplendor
segunda guerra mundial (a que eu cha- Eu sou carvão e encha os olhos do mundo de espanto!
mo de geração da Guerra Fria), onde en- e tenho que arder sim; Adiam apenas
contramos escritores como Sartre, Pablo queimar tudo com a força da minha a explosão telúrica
Neruda, Gabriel Garcia Marques, Júlio combustão. destas pétalas recalcadas...
Cortázar, Wole Soyinka, entre tantos out- Eu sou carvão; Abrir-se-ão cheias de cor
ros. tenho que arder na exploração num dia de sol!
No caso de Moçambique, podem- arder até às cinzas da maldição (In “REQUIEM com os olhos secos”, 1987)
os anotar os precursores da literatura arder vivo como alcatrão, meu irmão, E este de Eduardo White:
moçambicana, como são os casos de até não ser mais a tua mina, patrão. Da Ínfima gota
Rui de Noronha, Noémia de Sousa, José Eu sou carvão. A tarde se destende toda nua
Craveirinha, Luis Bernardo Honwana, en- Tenho que arder Unicamente no pó ou nas coisas que me
tre outros, que são produto da resistên- Queimar tudo com o fogo da minha bastem
cia colonial, da contestação da dom- combustão. Então, eu me afasto despido e tão eviden-
inação estrangeira em Moçambique. Sim! te
Alguns destes até são transversais aos Eu sou o teu carvão, patrão. Como a límpida clareza do grito
períodos críticos subsequentes, como (In “Karingana Ua Karingana, 1982) E sou de repente
os da luta de libertação nacional e do A ave apedrejada
pós-independência, períodos esses car- Já no período pós-independência regis- A ave ferida
acterizados por grandes transformações tamos o surgimento da geração “Char- Com as asas largas
políticas, económicas e sociais. rua” da qual eu próprio faço parte, que Largas e compridas
Vejamos este poema “África, surge et se faz à luz na década 80 do século XX, Fugindo célere ao arremesso.
ambula” de Rui de Noronha: emergindo de um contexto históri- (In “AS PALAVRAS AMADURECEM”, CAD-
co particularmente conturbado para ERNOS “DIÁLOGO”, 1988)
Dormes! e o mundo marcha, ó pátria do Moçambique. Este movimento literário
mistério. não se circunscreve somente aos fun- Embora não fazendo parte do grupo
Dormes! e o mundo rola, o mundo vai dadores da Revista com o mesmo nome, “Charrua”, eu incluo também Mia Cou-
seguindo… como Hélder Muteia, Juvenal Bucuane, to, Calane da Silva, entre outros, cujas
O progresso caminha ao alto de um Ungulani Ba Ka Khosa, Tomas Vieira obras traduzem, de certo modo, aquilo
hemisfério Mário, Eduardo White, Pedro Chissano, que sustento nesta alocução. A geração
E tu dormes no outro sono o sono do teu Idasse Tembe, pois alarga-se igualmente “Charrua” versus geração “80”, como um
infindo… aos escritores como Paulina Chiziana, Al- todo, reflectiu e muito bem, nas suas

FEIRA DO LIVRO 29
27
Ideias

CMM
Nataniel Ngomane, Jorge Ferrão, Samuel Mudumela, Edelvina Materula e Eneas Comiche

obras, a crise desses anos, caracterizada Um amor por si, vale tanto, tores de diferentes gerações e espaços
também pela escassez no mercado de vale mais que nada, vale tanto como a geográficos, em tempos de crise, é o de
quase tudo, pela desestruturação social, vida, estabelecer permanentemente ruptur-
consequentes dos 16 anos de guerra civil. exprime a cor da sua sede, as com o seu tempo. Tal como afirma o
ao alto dois pássaros a voar. brasileiro Leomir Cardoso Hilário: “... a
Mais adiante encontramos ainda as ger- O amor não merece as pedras negação do mundo vigente abre espaço
ações literárias pós “Charrua”, isto é, as da que todos os dias lhe atiramos. para a possibilidade de outro mundo.
década 90 do século XX, e posteriores, que Em vez de acusares a inconstância com Com esta noção, pretendo reafirmar, no
comportam movimentos literários como é que o invocas, quadro histórico actual marcado pela
o caso do “Xiphefo”, representado por Gui- se amas, e não te correspondem, crise estrutural, a especificidade, po-
ta Júnior, e outros autores que, sendo reg- desde já não lhe ponhas freios, tencialidade e relevância da literatura
ulares em termos de publicação, deixaram não uses travões nem borracha. para a produção de uma crítica radical
traços dessas crises nas suas obras, tais Pelo Contrário, do presente”. O futuro da literatura es-
como Adelino Timóteo, Sangare Okapi, desse pouco lucro que te dão as estrelas tará sempre associado aos processos
Aurélio Furdela, Lucílio Manjate, Rogério contenta-te até, históricos dum país, em particular, ou
Manjate, Mbate Pedro, Japone Arijuane, que o amor é assim mesmo, do mundo, em geral. Eu penso que, sem
Hirondina Joshua, Álvaro Taruma, entre sempre a transportar a dor ao âmago. turbulências sociais e existenciais, pode
outros. Estes são alguns desses escritores (In “Os segredos da arte de amar”, 1998) ser difícil produzir-se literatura, tal como
que nas suas obras estão patentes marcas a concebemos. Falo de turbulências
da busca duma identidade nacional, das E ainda do Japone Arijuane: visíveis e invisíveis, duas dimensões das
contrariedades da vida, dentre as quais, as 1. crises, a partir das quais o escritor de-
das guerras sucessivas que o país tem vin- O machuabo em mim screve ou reinventa o seu mundo. Vale
do a experienciar na sua história recente. não é senão um então sublinhar e prognosticar que a
Aqui temos um poema de Adelino Timó- matchangana disfarçado literatura continuará associada ao com-
teo: a sonhar-se makonde passo dos processos e realidades sociais.
com engenho da sua arte
1. se esculpir ndau Assim foi, assim é, e assim será sempre,
Reparo no amor com virtude de um n’siro na fé pois essa é a razão pela qual ela se real-
pássaro pintar a crença makwa iza, consequência directa ou indirecta
que quer voar em direcção adormecida nos chewas, da perfeita imperfeição do mundo em
à larga linha do horizonte, nyungues e yaos que vivemos. Quero augurar então que
com tanta gente aqui neste país que o da minha diáspora. a apartir de 2021, em Moçambique e
anuncia (In: ‘’Dentro da pedra ou a metamorfose noutros lugares do mundo, testemunha-
e o desperdiça a feri-lo em disputa, do Silêncio”, 2014) remos grandes booms literários, como
a magoá-lo, a alvejá-lo, corolário da grande crise epidemiológi-
quando o mesmo pode ser uma dilecta O substracto comum nas literatu- ca que hoje assola a humanidade, cau-
criação do peito. ras produzidas por estes e outros au- sada pela Covid-19.

30
28 FEIRA DO LIVRO
Ideias
Câmara Municipal de Lisboa, Américo Simas
Alda Moreira

Brincar: ler e transformar


o mundo
Nasceu no Porto no século passado. Cria e desenvolve projectos de educação, partici-
pação social, património cultural e natural em cinco continentes, numa união que se
chama UCCLA. Trabalhou anteriormente no Teatro, edições e cinema - Artistas Unidos.

Texto: Alda Moreira

O
s futuros ex-pequenos leitores pessoas e brincando. profunda e conscientemente o mundo
são agora grandes em imag- E nós adultos, distraídos que esta- em redor, com permeáveis fronteiras
inação, curiosidade pelo mun- mos, tentamos encaixar a criança numa entre imaginação e realidade. Esse con-
do, vontade de brincar e aprender. qualquer ordem convencional - ver a cri- hecimento deve ser reconhecido e pro-
Os adultos dizem demasiadas vezes às ança como um erro a ser corrigido, como tegido.
crianças: quietos, calados, cada um no alguém incapaz. Cada criança, quando entra pela pri-
seu lugar, sem brincar! - e assim tentam Os adultos de referência da criança - meira vez na escola ou na biblioteca tem
ensinar, com um enorme desperdício na família, na escola, na biblioteca con- já um imenso conhecimento e cultura
do potencial de aprendizagem das cri- stroem ou destroem tantas capacidades. que deve ser escutado e respeitado para
anças, silenciando a capacidade natural A sua ação é memorável e marcante em que possamos construir aprendizagens
que toda a criança do mundo possui toda a nossa vida futura. significativas, não violentas e próximas
para aprender: questionando, experi- No entanto a criança conserva conhe- da cultura e da língua de cada um. Com-
mentando, imaginando, sendo curiosa cimentos que nós já perdemos: na sua preender o que nos é dito, conseguir ex-
pelo mundo, aprendendo com outras relação com a natureza, descobrindo pressar um pensamento – se isto nos é

FEIRA DO LIVRO 31
29
Ideias

CMM
Aluno da Escola Sec. da Lhanguene

vedado na aprendizagem, como vamos o fogo também. Mas temos de inventar


aprender a escrever e a ler? de novo, todos os dias, estas rodas e es-
tas centelhas de estímulos intelectuais,
DESENVOLVER A ORALIDADE de carinho, de alegria e de aceitação
Primeiro, e sempre, desenvolver a oral- - sim, porque faz falta ainda, em todos
idade e o conto oral. os lugares, aceitar verdadeiramente a
A zebra nasce zebra, o leão nasce leão, Construir, escolher criança.
o elefante nasce elefante. O ser humano
é ser humano porque há outros seres as nossas palavras AS PALAVRAS SÃO O CORPO DO
humanos. e textos - a nossa PENSAMENTO
Como na filosofia africana ubuntu: “eu Valorizar as histórias que as crianças
sou porque nós somos” ou “ser-com-os- própria narrativa, inventam e escrevem, para lá do crivo do
outros”, a construção do ser humano e constrói a cidada- erro, é abrir a porta ao gosto pela leitu-
da humanidade não existe sem a apren- ra, a um diálogo profundo com os livros.
dizagem cultural, que na sua base e fun- nia. Também com os que podemos criar.
damento tem a LINGUAGEM. Ninguém Construir, escolher as nossas palavras
aprende a falar sozinho. e textos - a nossa própria narrativa, con-
A linguagem é o que permite hu- strói a cidadania.
manizarmo-nos. Escutar alguém, falar Aprender e aperfeiçoar a escrita, fazê-
com alguém é tratar alguém como pes- a imagem, o espetáculo, a desigualdade lo com gosto, motivando para uma ação
soa, como semelhante, sem o diminuir e o lucro dominam – persistir, contar que não seja penosa – expressar, super-
ou oprimir. histórias é um enorme desafio. ar, escrever, escrever: textos curtos, no-
A construção do ser humano começa Existir um tempo, um espaço de recol- tas diárias, cartas, descrições de lugares
quando nos sentamos em roda e ouvi- himento e partilha, um espaço e um e de horas do dia preferidas, notícias, o
mos histórias. Essa narração constrói-nos tempo emocional, inteligente em que som da escola, o que fizemos de manhã,
e é um prazer. nos sentamos com as crianças da nossa conversas que ouvimos no chapa, a cap-
No mundo atual, repleto de voragens casa, da nossa rua, da nossa escola e não ulana que mais gostamos e o que faze-
– de vidas humanas diminuídas e des- fazemos nada: apenas nos sentimos, ou- mos com ela, uma pergunta que nunca
tituídas de direitos, da predação e da vimos e vemos com atenção e… conta- vimos respondida, autobiografias criati-
catástrofe ambiental e climática, sem mos histórias. vas, a árvore maior que conhecemos, a
tempo e cada vez mais sozinhos, onde Dizem que a roda já foi inventada, que avó, uma recordação de quando éramos

32
30 FEIRA DO LIVRO
Ideias
CMM
Grupo Descendentes da Poesia, Shélsia Chiul e N’ wantshukunyani Khanyisani

mais pequenos, …
Fica para a vida: compreender, escol-
her palavras, reescrever, treinar, voltar
atrás e escrever melhor, vencendo o “não
sou capaz” e o medo do castigo, da aval-
iação cega que só realça o erro e tenta

Câmara Municipal de Lisboa, Américo Simas


uniformizar “estilos”.

LER NÃO SERVE PARA NADA, SÓ PARA


SERMOS LIVRES
Leitura lúdica, coletiva, descolarizada
– mexer nos livros mesmo quando ainda
não sei ler, familiarizar-me com os livros e
a leitura, querer participar, apropriar-me
desta alegria, explorar o funcionamento
da língua.
Ler desenvolve a linguagem, o pens- Animação de leitura
amento crítico, a cognição, as relações
afetivas, a cidadania… inventar livros de
qualidade que possam celebrar, recon- Provocar o encontro entre pessoas e versar sempre no fim – fazer perguntas,
hecer e também representar e legitimar livros – levar crianças a livros, levar livros estimular o diálogo, sem certo nem er-
as histórias do povo, as diversas cultur- a crianças, construir essa relação de me- rado, sem ditar a “moral da história”, po-
as e memórias, a diversidade, autoria e diação, provocando esse maravilhamen- dendo expressar, analisar, relacionar, re-
criação contemporânea. to, essa descoberta. sumir e assim, pela nossa voz, aprender
Os livros, a leitura estão ainda muito Para isso: conhecer bem os livros e as melhor acerca do que ouvimos. Também
afastadas do quotidiano (em qualquer suas múltiplas possibilidades criativas e com os outros na pluralidade de ideias.
classe social, mesmo entre aqueles que críticas, preparar o ambiente: caloroso, Dar um sentido individual e coletivo
podem comprar livros). seguro e amigo, em roda para nos sen- ao que estamos a fazer.
Se o acesso ao livro não começa em tirmos, vermos e ouvirmos melhor, des- Persistir, pensar, refletir, construir cole-
casa pode começar na escola, na biblio- contraído e atento, o ritual do encontro tivamente, apesar de todos os obstácu-
teca, na rua. (entre pessoas e livros), contar e con- los, esta rotina feliz.

FEIRA DO LIVRO 33
31
Concurso
MAPUTO, CIDADE REINVENTADA

Os contos e poemas se
escrevem no feminino
Foi no âmbito da Feira do Livro de Maputo, que decorreu o Concurso Literário de
Conto e Poesia, subordinado ao tema “Maputo, cidade reinventada”.

Texto: Lizete António Nhantumbo

Com a participação de estudantes do pela escrita e pela leitura, a expressão Gaspar Mahululuane Muabsa (poesia)
segundo ciclo de escolas secundárias e criação literária, o diálogo cultural e a e Helder Samuel Ngulele (conto), sãos
oriundas de diversos distritos munici- cidadania com a participação das esco- estudantes que se destacaram na elabo-
pais, nomeadamente: Escola Secundária las e dos jovens estudantes de Maputo. ração de contos e poemas, ao vencerem
da Catembe, Escola Secundária de O concurso envolveu a colaboração da os concursos dos prémios literários de
Lhanguene, Escola Secundária de Mal- Associação dos Escritores Moçambi- “Conto” e “Poesia” produzidos no circuito
hazine, Escola Secundária Francisco canos, AEMO, Fundo Bibliográfico da da Feira Internacional do Livro de Mapu-
Manyanga, Escola Secundária Inhaca Língua Portuguesa, FBLP e Associação to.
Sede, Escola Secundária Noroeste 1, Es- Moçambicana da Língua Portuguesa, O júri foi composto por três membros,
cola Secundária Eduardo Mondlane e AMOLP. Gilberto Milice, Sangare Okapi e Cremil-
Escola Secundária Josina Machel. Esménia Amélia Fabião Dzimba (poe- do Bahule.
Este concurso literário, promovido sia), Nilza Mapulango (poesia), Egineta
pela edilidade da cidade capital, tem João Tumbua (conto), Arminda Guil- NB: Reservada a originalidade dos tex-
como objectivo desenvolver o gosto herme Cumbane (conto), Antonieta tos escritos pelos estudantes.

Eneas Comiche, Lídia Daniel e vencedora Vencedores do Concurso Literário

Matteo Angius e vencedora Lúcia Comiche e vencedora

34
32 FEIRA DO LIVRO
Poesia Que sendo se torna difícil de derrotá-lo
Completamente insensível
O nosso quotidiano verificou alterações
ESCOLA SECUNDÁRIA O inimigo está por todo lado, em
DO NOROESTE 1 Várias situações
Não posso mais sair
Ficar em casa é também forma de se
Antonieta Gaspar Prevenir
Mahululuane Muabsa Máscaras e levar as mãos a cada
5 minutos também
12a classe Assim não transmitimos o vírus a nin-
guém
Esse vírus deixou-nos descontentes
Mas também ensinou-nos a ser
Resistentes
O NOVO CORONAVÍRUS Mundo todo E agora que ser pacientes
Espalhou-se como poeira Porque ainda não existe cura
A Pandemia do coronavírus Dizimou vidas de qualquer maneira Infelizmente
Maputo cidade reinventada Mas a quem ainda acha que essa
Tudo começou do nada Doença não verdadeira O mundo hoje veste preto
Na China, ninguém achava que tinha
Eu ainda sinto medo
Muita relevância Ah,3a Guerra Mundial Mas tenho a certeza absoluta
Nunca antes houve igual De que venceremos essa luta
Até que o vírus se espalhou pelo Um inimigo invisível

e o dobro ou triplo de infectados em


menos de 24 horas.
ESCOLA SECUNDÁRIA Dói!!
Dói!!
DA CATEMBE Dói!!
Mas o que dói mais?
Esménia Amélia O facto da minha mãe não poder vender
a sua couve
Fabião Dzimba porque o conselho municipal destruiu
11a classe sua banca
no Mercado Xipamanine?
Dói!!
Dói!!
Dói!!
MAPUTO CIDADE REINVENTADA Mas o que dói mais?
O facto de não poder sentar numa
Carteira
Ninguém sabe como começou ou como como seremos honrados, e beneficiar de conhecimento
irá terminar mas é momento de encarrar pois a hora e não tenho televisão em casa para
mas a humanidade está em pânico, é esta. acompanhar telescola?
não sabemos onde vamos parar Foste tu Covid, Dói!!
Veio como o vento, mudou o mundo, Corona vírus um nome que a minha avó Dói!!
não se sabe ao certo se é para o certo ou nunca irá pronunciar correctamente, Dói!!
incerto, nem se sabe qual é o correcto Mas o que dói mais?
só sabe-se que trouxe mudanças. Nem se o caminho que levamos é recto. O facto de terem reduzido o número de
Antes Mesmo da sua chegada ao país, Vieste até nós corona trabalhadores na empresa
Não podíamos fazer-nos chegar as insti- Invadiste nossa cidade e o meu pai estiver incluído?
tuições de ensino, Cidade de Maputo Dói!!
aprender, ter, sentir o gosto do conhec- Maputo!! Dói três vezes e mais
imento Maputo!! O aumento do desemprego
Enfim chegou a nossa hora, Maputo!! mas ainda existe uma esperança
não sabemos se é mesmo uma honra, ou Três vezes Maputo Muitos estão a se apoiar durante esta

FEIRA DO LIVRO 35
33
Concurso
pandemia. pamanine e Zimpeto, Mudanças positivas
São os que abrem as mãos trouxe-nos algo de bom Há doenças que são mais que doenças,
é o cansaço dos que cansaram de ver Há quem diria que oferecem algumas recompensas,
crianças “o ambiente agradece, Maputo cidade nenhuma doença é indispensável,
que habitam nas ruas da cidade de Ma- agradece” nenhuma doença é confortável
puto Reduziu a movimentação principal- e nenhuma doença é definitiva.
as que se escondem da chuva debaixo mente na grande cidade, Por isso quando o perigo passar
da ponte Maputo-Katembe “o ambiente agradece” voltaremos a reunir-se, circular nas
Dói!! Reduziu a produção de resíduos sólidos avenidas da cidade,
Dói três vezes e mais “ o ambiente agradece” é claro que faremos luto pelas perdas,
Ver o sol nascer a partir da janela O fechamento das fábricas faremos novas escolhas,
mas ainda existe uma esperança resultado da redução dos gases polu- sonharemos e criaremos novos modos
As pessoas se curaram, vivíamos de for- entes na atmosfera para viver
ma ignorante, “ o ambiente agradece” A pandemia da covid-19 não trouxe só
sem consideração ou coração É evidente que toda cidade de Maputo problemas
começamos a pensar de formas diferentes, concorda que por conta desta pan- mas trouxe mudanças, está a reinventar
lemos livros, fazemos artes, meditamos, demia, Maputo,
oramos, passamos tempo juntos apesar do isolamento social e falta de nem que um dia tudo isso passe, deixará
e até conhecemos nossas sombras preparo marcas,
Não estamos como devíamos estar, Algo bom surgiu, a solidariedade, união uma história para contar as próximas
a destruição dos mercados estrela, Xi- familiar, gerações

ESCOLA SECUNDÁRIA
DA CATEMBE

Nilza Mapulango
11a classe

MAPUTO CIDADE REINVENTADA

O covid -19 Tu conseguiste abalar o mundo num pis- Antes inspirar era sinal de gozar de boa
Por onde tu vieste car de olho saúde
Por onde tu vais Tu mataste brancos, negros, pobres, ri- Hoje é sinal da sua entrada
Tu matas sem ter piedade cos , magros e gordos sem ter piedade Antes eram beijos, abraços, festas, xi-
Fechaste empresas , escolas , travaste Ò covid-19 tiques , passeios
construções Antes reclamava-mos Mas tu
Ò covid -19 Por falta de dinheiro Mas tu
Tu matas sem ter piedade Hoje temos e não temos como gastar Covid -19
Mataste médicos, enfermeiros, polícias, Tu conseguiste manter cada caranguejo Conseguiste nos manter em jaulas
curandeiros sem ter piedade no seu buraco Um temendo o outro
Òò covid-19 Ò covid -19 Òòòò covid-19

36
34 FEIRA DO LIVRO
Concurso
Contos
Um inimigo
inofensivo

As ruas da cidade de Maputo estavam quase vazias,mercados encerrados e esco-
las fechadas,já não se viam aquelas bancas de tomate nem aqueles alunos de pre-
to e branco indo a escola,as coisas haviam mudado,um ser vivo super pequeno
havia mudado a história da humanidade”
Esmenia e seu pai José caminhavam pela cidade das acácias, estavam parecendo um
caos de tanto vazio!
- Pai a cidade está tão vazia!(comentou Esmenia maravilhada)
- as coisas mudaram minha filha (respondeu José)
ESCOLA SECUNDÁRIA - este vírus mudou as nossas vidas!(comentou a menina)
DA CATEMBE - bem,os nossos antepassados tem nos protegido!(respondeu José bem confiante)
- sério, mas se eles morreram como conseguem nos proteger? (exclamou a menina)
- minha filha, olha nós na Catembe estamos protegidos, essa doença é para ricos!
Helder Samuel Ngulele - humhum(resmungou a menina rindo)
12a classe - o que você está rindo menina?
- pai o vírus não escolhe ninguém, ele afecta quem não se protege!
- eu não acredito,os meus antepassados me protegem, não sei você!
- está bem pai,vamos! Temos que fazer compras suficientes, temos mais 30 dias de
quarentena!
- sim filha!
Passaram um tempo visitando os mercados,alguns já estavam vazios e noutros os
preços subiram,a humanidade ganhou um novo inimigo que por mais pequeno que
ele seja mudou tudo!
- Os mercados estão vazios pai e os preços são altos!(comentou a menina)
- e o que faremos filha,morreremos de fome!
- os antepassados vão nos dar comida(disse a menina rindo)
- você não esta bem! (respondeu José rindo)
- melhor nos protegermos do que confiar nos mortos!
- eu ainda confio (insistiu José)
- está bem pai!

FEIRA DO LIVRO 37
35
Concurso
Chegados à aldeia, estavam com plásticos cheios de mantimento para mais uma
jornada de quarentena quando viram um grupo de aldeões reunidos e o chefe de
quarteirão estava discursando.
- pai vamos ouvir? (perguntou curiosa a Esmenia)
- sim vamos!
Falando o chefe de quarteirão dizia”queridos compatriotas estamos sendo afetados
por uma doença que esta matando no mundo todo, então temos que nos prevenir,
como disse o presidente na TV, vamos ficar em casa”
Sussuros,reclamações e protestos se ouvia do povo que reclamava o fato de ter que
ficar em casa.
“E como vamos sustentar nossas famílias?...Nós perdemos emprego...vamos morrer
de fome....Ai meu pai!...Nós vivemos saindo,não tem como viver dentro de casa!.. Es-
sas e outras eram as reclamações do povo e eram entendíveis. Continuaram recla-
mando até que ouviram lá do fundo uma voz pequenina dizendo” Oi,eh, me deixem
falar!,era a Esmenia pedindo a palavra!
Ela passou a multidão e ficou em frente dela,pegou o microfone e como um adulto
começou a discursar” caros cidadãos, estamos sendo afetados por um vírus, um ser
muito pequeno e quase inofensivo,este é o nosso inimigo e nós podemos vencê-lo!
“Como?,inofensivo?.. Ele está matando o mundo todo!(continuou reclamando o
povo).
- caros cidadãos (continuou Esmenia), o nosso inimigo é um vírus pequeno que nós
nem conseguimos vê lo,ele é tão pequeno que nós só precisamos lavar as mãos con-
Passaram um tem- stantemente, usar máscaras quando estivermos em lugares aglomerados,marcar
po visitando os distância de pelo menos um metro e meio e seguir todas as medidas de prevenção
e assim podemos vencê lo.
mercados,alguns O povo bateu as palmas para a pequena menina e parabenizou a pela sua con-
já estavam vazios tribuição!
e noutros os preços - qual é o primeiro passo?
- eh, o que faremos primeiro? (Perguntava o povo agitado)
subiram,a humani- Esmenia respondeu:
dade ganhou um - Vamos colocar água e sabão nas paragens, nas ruas,nos mercados e quem passar
novo inimigo que por lá vai lavar suas mãos. E vamos evitar nos saudar com as mãos! A vida mudou,
mas se nós seguirmos a dinâmica dela,iremos vencer!!
por mais pequeno Fechou o discurso!
que ele seja mudou José recebeu sua filha de forma carinhosa e quase esqueceu os antepassados!
tudo! - estou orgulhoso filha!
- obrigado pai!
As coisas mudaram na bela cidade das acácias e em todo mundo mas a vida con-
tinua!

38
36 FEIRA DO LIVRO
Concurso
Covid-19

H
á muito, muito tempo numa terra distante surgiu uma doença chamada co-
rona vírus era uma completa novidade para aquele povo, não havia nenhum
conhecimento da causa da doença e muito menos da devida cura.
Provocando muito medo no povo, a terra ainda em desenvolvimento procurando os
melhores doutores, cientistas e estudantes para tentar solucionar o problema, assim
depois de vários estudos só conseguiram descobrir a causa mas não a cura.
A medida que o tempo passava a doença entre as pessoas ia se alastrando, fazendo
com que as pessoas entrassem em pânico, provocando muita agitação.
Os homens daquela terra estavam numa busca incansável por uma solução, pela
melhora, então começaram a estudar meios de pelo menos acalmar, controlar, de
ESCOLA SECUNDÁRIA se precaver, de diminuir o impacto, de proteger o seu povo. E sabendo as causas da
DO NOROESTE 1 doença foi fácil arranjar meios de se prevenir.
Descobriram que podiam usar máscaras, lavar as mãos com água e sabão, que po-
diam desinfetar as mãos com álcool em gel e o pior evitar quaisquer que fosse o
Egineta João Tumbua contacto físico com as pessoas mas como a doença só tinha a se alastrar descobriram
12a classe que a melhor e a mais difícil forma de se prevenir e diminuir o aumento dos doentes
era ficando em casa.
Naquele tempo a humilde terra parou, para se proteger e proteger os seus tinham
que abdicar da vida normal, era necessário a força e ajuda de todos mas na terra nem
todo o povo tinha consciência da gravidade do assunto, e por conta do sustento das
famílias não aceitavam o facto de ter que deixar tudo e ficar em casa para sobreviver,
alguns ate tinham uma ignorância de questionar os porquês de lavar as mãos com
sabão, e se o sabão ajuda porque não faziam uma vacina ou medicamento com ele,
varias famílias então fingiram que nada estava acontecendo e mantiveram as suas
vidas na normalidade.
Foi então que tudo piorou o desconhecido se tornou terror, angustia a dita uma sim-
ples tosse se tornou um completo pesadelo naquela terra, as pessoas começaram a
morrer.
Os líderes, os governantes mal sabiam oque fazer mas tinham que arranjar qualquer
que fosse uma solução, por mais que fosse temporária só para tentar diminuir o im-
Naquele tempo pacto que já estava cada vez mais incontrolável.
a humilde terra O líder decidiu que ninguém mais podia sair de casa e decretou como uma lei oficial
e quem ousa-se ir contra sua lei seria preso. A grande questão era como iam sobre-
parou, para se viver sem trabalhar tendo em conta que a doença não avisou a sua chegada e com
proteger e pro- a partida indeterminada, ninguém tinha poupança ou mantimentos guardados era
teger os seus tin- um pavor.
Não podiam medir esforços para superar, o líder arranjou meios de ajudar o seu povo
ham que abdicar regulando o trabalho, no sentido de prevenir as pessoas já num estado bem avança-
da vida normal, do a doença.
era necessário a O povo tinha que se adaptar a essa nova vida que parecia que não ia voltar ao normal,
tendo que abdicar de lazeres ou do bom, para o necessário. As crianças tinham muita
força e ajuda de dificuldade em compreender a situação mas por motivos de força maior as famílias
todos mas na terra que presavam muito a estabilidade, foram explicando, cantando, proibindo ate que
nem todo o povo as crianças começaram a entender a necessidade de ficar em casa, para ajudar a to-
dos porque já não era um problema particular, todos eram suspeitos praticamente,
tinha consciência não havia cara, estatura física ou psicológica ou mesmo condições económicas todos
da gravidade do podiam apanhar.
assunto, Naquela terra que sempre foi estável, alegre, prospera……passou a ser cinzenta, as
ruas estavam vazias, não havia barulho, o medo assombrava os todos.
As pesquisas continuavam todos não mediam esforços para superar, descobrir a
solução, os estudantes, os profissionais, cientistas, criavam experimentos não para-
vam, os médicos continuavam a lutar, o líder e os governantes continuavam a tentar
ver meios de manter a terra com incansáveis estratégias, orações tudo era bem-vin-
do.

FEIRA
FEIRA DO
DO LIVRO
LIVRO 39
37
Concurso
Naquele tempo só se fala da doença, era algo novo todos estavam muitos alarmados.
A união daquele povo os ajudava eles permaneceu nas suas casas, ouviram as indi-
cações dos doutores. Transmitiram alertas na televisão, jornais, revistas, tentaram ex-
plicar todas as formas de prevenção, espalharam muito a informação com a colabo-
ração de todos, os casos começaram a diminuir mas não de uma forma considerável
continuaram a estudar, a falar sobre a doença para o povo e da grande necessidade
de se prevenir.
Quando chegaram no fundo do poço onde o povo, os lideres, os médicos, profis-
sionais, cientistas e estudantes já não viam saída mantiveram o esforço e a Fé sem
esperanças continuaram o trabalho foi então que um dos laboratórios depois de
um ano de pesquisa e experimentos falhados descobriram uma vacina o “curpoos
“de acordo com eles poderia ser a solução, a vacina contra o corona vírus mas nada
estava solucionado ainda tinham muito que se organizar, mais experimentos por
fazer, quais seriam os primeiros pacientes a serem testados como de principio mes-
mo com a divulgação da cura ainda era necessária a ajuda de todos, a paciência e a
permanência do povo nas suas casas, o uso dos métodos de prevenção, a luta e a
busca incansável do melhor, com aqueles homens trabalhadores e com o povo que
se manteve obediente os bons resultados começaram a surgir daquela vez a vacina
era realmente a certa.
Começaram a curar as pessoas, a adesão a vacina era muita então não mediam inves-
timentos, recursos e estudos, os casos começaram a diminuir mas dessa vez de uma
forma considerável, entre o povo ainda existia medo mas surgiu uma Fé maior, uma
esperança, uma luz, continuaram dedicados a melhora, a medida que o tempo foi
passando mais curados surgiam, finalmente havia boas notícias naquela terra.
O líder acho melhor que continuassem nas suas casas mesmo com as melhoras, para
que evitassem um novo surto da doença, assim foi dois anos inteiros se dedicando a
melhora em busca da normalidade, ate que conseguiram, naquela terra já não havia
nem se quer um caso activo do corona vírus. O terror virou história com a grande
colaboração do povo superaram o maior problema que já existiu naquela terra.
O primeiro testado com a cura o idoso de 91 anos contou na televisão, como men-
sagem de agradecimento disse; unidos vencemos, separados perdemos todos por
um só amor, a vida.
Moral; nada é tão certo, não sabemos oque pode acontecer amanhã mas escolha
sempre ouvir.

40
38 FEIRA DO LIVRO
Concurso
A jovem ntombi

E
ra uma vez, há muito tempo e longe daqui, uma jovem chamada Ntombi, ela
vivia com os seus pais em Goba, que fica depois de Boane.
Os meses foram se passando, e o país tive sérios problemas! E era o vírus de
Covid-19 que assolou o Moçambique todo e o mundo.
A jovem longe de pensar que o vírus atingiria o nosso país ficou preocupada pois a
Ntombi tinha muito medo de morrer.
As escolas, as barracas e igrejas foram encerradas. Um certo dia a Ntombi saia com
as suas amigas até Changalane para dar um passeio e se divertir mas la ela se apa-
ixonou por uma jovem chinês que nem ela conhecia o nome dele e muito menos a
nacionalidade. A Ntombi vivia numa casa precária que se alimentavam da colheita
ESCOLA SECUNDÁRIA da pequena machamba que la tinha ao redor de sua casa.
DO NOROESTE 1 Ela percorria 7 km para chegar a escola, e como em Goba não tinha energia, a
Ntombi não sabia o que acontecia fora e dentro do país, há não for através da esco-
la, porque os seus professores transmitiam todo á eles, mas com as escolas encerra-
Arminda Guilherme das e sem televisão ela não tinha noção do que acontecia.
Cumbane Durante o passeio em Changalane, ela não tirava o olhar do jovem chinês que lá
estava. Mas para a surpresa dela o jovem chinês aproximou-se a Ntombi e falou
12a classe com ela. Mesmo o jovem chinês pediu o número da Ntombi e ela disse o que não
podia lhe dar porque não tem telefone.

O jovem chinês, achou a Ntombi bonita e alegre, encantando‐se naquele estante


por ela. E ele perguntou para a Ntombi, onde tu vives e a Ntombi respondeu, eu
vivo em Goba a 30 km de Changalane.
Assim os dias foram se passando, um certo dia a Ntombi ia comprar pães para o
matabicho e a caminho da padaria , ela viu o jovem chinês que por coincidência
ele estava lá a procura dela.
Perto da padaria, havia um banco e lá ficaram a conversar. Perguntou Ntombi, tu
és moçambicano? E o jovem respondeu, eu sou chinês e vim para moçambique
visitar o meu avô.
O jovem segurou a mão de Ntombi, declarou‐se e pediu em namoro e como a
Ntombi estava apaixonada por ele, ela aceitou o pedido de namoro.
Passaram-se dias, eles se encontrando e passando…mas a Ntombi começa a ficar
doente com febre dor de cabeça vómitos etc. Os pais davam a Ntombi remédio
O jovem segurou que preparavam com as ervas mas a Ntombi só piorava. Então os pais decidiram
a mão de Ntombi, leva la ao posto de saúde mais próximo chegando la os médicos viram que o esta-
do da Ntombi era muito crítico e foi de imediato transferida a Boane para receber
declarou-se e pediu cuidados intensivos dos médicos. A Ntombi cada dia que passava só piorava lhe
em namoro e como fizeram os exames e para a surpresa dos pais o exame deu positivo a Covid-19. Os
a Ntombi estava pais assustados com os resultados dos exames procuraram saber da Ntombi como
é que ela contaminou-se mas mesmo ela não sabia como. A Ntombi só chorava de
apaixonada por tanto medo que ela tinha de morrer.
ele, ela aceitou o Um certo dia o jovem Chinês, foi até a padaria onde pediu em namoro a jovem
pedido de namoro. Ntombi e lá encontrou as amigas da Ntombi que lhe disseram que ela estava doente
e encontrava-se internada em Boane. O jovem chinês de imediato pediu ao seu pai
que lhe acompanhasse até ao hospital para ver a jovem Ntombi. Chegado ao hos-
pital o jovem chinês pediu aos médicos para ver a sua amada mas não foi possível.
Então os médicos perguntaram ao jovem chinês se era algum parente da Ntombi e
ele disse que é o namorado dela, os médicos disseram ao jovem chinês que deve-
ria fazer o exame da Covid-19 porque a Ntombi esta contaminada pelo vírus. E ele
aceitou…depois de algumas horas os resultados saíram e ela estava contaminado
pelo vírus, na verdade ele e quem contaminou a Ntombi. o médico aconselhara-o
a ficar em isolamento domiciliar até ele se recuperar porque o estado dele não era
muito critico como o da Ntombi.
Então a Ntombi ficou sabendo que o seu amado jovem chinês estava contaminado

FEIRA DO LIVRO 41
39
Concurso
e que ele é que transmitiu o vírus a ela então ela resolveu afastar se do jovem chinês,
porque a Ntombi tinha muito medo de morrer.. E depois de um mês a Ntombi e o
jovem chinês receberam a vacina que lhes curou da Covid-19, assim como os outros
que estavam contaminados. E finalmente eles já não tinham mais o vírus e o mundo
todo não tinha. E o jovem chinês decidiu pedir a mão da Ntombi em casamento.
Ntombi e o jovem chinês casaram- se e tiveram uma grande festa de casamento,
também viveram muitas aventuras juntas. Quanto mais amor eles se davam, felizes
eles eram!

POESIA- 10 LUGAR- ESMENIA AMÉLIA FABIO DZIMBA


20 LUGAR- ANTONIETA GASPAR MUABSA
30 LUGAR- NILZA MAPULANGO.

CONTO- 10 LUGAR- ARMINDA GUILHERME CUMBANE


20 LUGAR-EGINETA JOÃO TAMBUA
30 LUGAR-HELDER NGULELE

CMM

Vencedores do Concurso, direcção do CMM e parceiros

42
40 FEIRA DO LIVRO
Debate
LITERATURA

O exercício para além


do livro
Ler um livro para as crianças é muito mais do que acompanhar um conjunto de frases.
Há um exercício para além do texto, uma narrativa exterior que deve ser explorada.

Texto: Lucas Muaga

Câmara Municipal de Lisboa, Américo Simas

Animação de Leitura

E
xistem processos que, embora das publicações, é acompanhada de im- reclamações em torno da crise de leitura
pareçam simples, devem ser se- agens animadas. O acto de leitura acaba, nos mais novos. É algo que, para ser ex-
guidos por ajudarem os petizes a assim sendo, por se igualar ao de apre- plicado, acaba por ser tema de debates
compreender a essência do que se procu- ciar desenhos animados. nacionais e internacionais.
ra transmitir de modo a, futuramente, con- É como se a literatura não quisesse Este aspecto não escapou à Feira do
struírem a sua própria estante literária. perder a batalha para a televisão ou Livro de Maputo 2020, que decorreu no
Sobre isso, já foram dados alguns qualquer outro dispositivo de ecrã, prin- mês de Outubro. O evento que homena-
passos, através da ilustração, uma das cipalmente, neste período dominado geou a primeira romancista moçambi-
principais características da literatura pelas novas Tecnologias de Informação cana Paulina Chiziane decorreu, pela pri-
infanto-juvenil, um género desafiado a e Comunicação (TIC’s). meira vez, no formato virtual e numa das
criar um mundo “cor-de-rosa” para públi- A estrada é, ainda assim, muito longa. mesas temáticas centrou-se na iniciação
co-alvo. Em muitos casos, estes livros são Isto, porque embora nasçam todos os à leitura para crianças.
escritos em duas - ou mais - mãos. dias mais livros de índole infanto-juve- Não se contentando apenas com con-
A escrita, por causa do destinatário nil, também continuam recorrentes as versas, a Feira entrou no Centro Cultural

FEIRA DO LIVRO 43
41
Debate
Franco-Moçambicano (CCFM) e divertiu no que se encontra em contextos mul- oralidade é o grande berço da leitura”,
as crianças com histórias infanto-juve- tilingues, que, na sua infância, tem uma considera.
nis, viajando em autores como Orlando língua materna diferente da que vai en- Para fazer com que a criança cheg-
Mendes, cuja obra inclui textos especial- contrar na sala de aulas. É preciso criar ue ao livro, é necessário desenvolver
mente escritos para “as flores que nunca referências e vocabulários na interacção”, “um conjunto de jogos de linguagem”.
murcham”, como diria Samora Machel, o considera Milice. Essas brincadeiras, considera a autora,
fundador da nação. Os pais e encarregados de educação “começam muito antes da escola, sendo
Era um aperitivo para o debate também são chamados a fazer parte fundamental haver uma participação do
maior do dia, intitulado “Formação de da tão sonhada “cidade de livros”, assu- entorno no desenvolvimento linguístico
Pequenos Leitores a Partir da Animação mindo o papel de “animador de leitura”, desta criança porque então não há pens-
de Leitura”, que virtualmente trouxe a através de actividades lúdicas como a amento”.
Maputo duas contadoras de estórias dramatização de textos.
portuguesas, abalizadas na matéria. Tra- Este processo pode ser encarado COMPREENDER AS CRIANÇAS
ta-se de Cristina Taquelim, a convite do como uma espécie de reencontro com As crianças são um tipo especial de
Camões - Centro Cultural Português em as verdadeiras raízes africanas. Afinal, es- público e precisam de um tratamento
Maputo e Alda Moreira, técnica da União tá-se diante de povos que “foram sempre diferenciado. Ao menos, este é o ponto
das Cidades Capitais de Língua Portu- agrafos e que tem a tradição oral como de vista de Alda Moreira, que também
guesa, um dos parceiros internacionais base de aprendizagem e as histórias são pela UCCLA, tem ligações com Moçam-
deste certame. contadas de geração em geração a volta bique e em particular com o “pessoal” do
Elas sentaram-se à mesma mesa com da fogueira”. Conselho Municipal de Maputo.
Gilberto Milice, que falou em nome do Concorda que ignorar o meio social
Fundo Bibliográfico de Língua Portugue- A ORALIDADE É O GRANDE BERÇO dos petizes tem sido um dos maiores
sa (FBLP), num debate moderado pelo DA LEITURA erros cometidos por autores infanto-ju-
escritor e jornalista Eduardo Quive. A questão da oralidade foi a abor- venis, afinal, ela defende que este grupo
Milice mostrou-se defensor de um dada pela escritora e contadora de es- deve ser profundamente compreendi-
pensamento fora da caixa, porque, se- tórias, Cristina Taquelim, sublinhou, ser do, caso seja sincera a pretensão de criar
gundo disse, não basta escrever livros necessário ensinar às crianças que, tal uma sociedade alicerçada pela leitura.
infanto-juvenis. “É necessário garantir como outros brinquedos, o livro é um “É preciso que se respeite a criança,
que os mesmos cheguem às crianças. grande elemento de diversão, ao mesmo porque todo o conhecimento que ela
Sem isso, não se pode cultivar nelas o tempo que defende que, para além do já traz para a escola, não pode ser ig-
gosto pela literatura”, comentou Gilberto livro, está o ambiente social dos petizes. norado”, avança quem explica que este
Milice, salientando ser este um dos ob- Regressa à questão ligada aos ob- processo, quando não bem observado,
jectivos da sua instituição. stáculos linguísticos, por se estar, em chega a ser mau e traumático.
Na sua intervenção, defendeu ainda muitos casos, a escrever livros infanto-ju- Não conformar-se, diz, é a saída, uma
a necessidade de Moçambique inve- venis numa língua que não é do domínio vez que, a novidade deve caracterizar os
stir numa literatura multilingue, argu- do destinatário. criadores, porque as crianças gostam de
mentando que, para além do livro, existe “Uma das coisas que se colocam na ser surpreendidas, o que não pode acon-
o contexto social em que as crianças es- relação da criança com a leitura tem a tecer com desenvolvimento do espírito
tão inseridas e que deve ser respeitado. ver com a língua e a primeira que a gen- de comodismo.
A vantagem desse tipo de literatura, te conhece é a do leite”, considera. “Sei que a roda e o fogo já foram in-
avança, deriva do facto de dar oportuni- Segundo Cristina, a não observância ventados há muito mais tempo por nós,
dade para se explorar a riqueza étnica deste elemento pode ter consequências os seres humanos. Então, temos que ten-
que caracteriza o continente africano, o drásticas nas crianças e afastá-las dos tar inventar uma roda e um fogo novos”,
que, por si só, desafia os autores a fazer- livros, porque elas “se confrontam com sonhou.
em um estudo de campo e produzir uma uma forma de dizer (as coisas) comple- Sobre o conto oral, ela diz que o mes-
literatura que não exclua as línguas na- tamente diferente”. mo deve ser usado para desenvolver o
cionais. É nesta perspectiva que o exercício da gosto pela leitura, começando por aquilo
“É preciso criar condições para o alu- escrita não deve excluir a cultura oral. “A que nós temos de mais rico e humano.

44
42 FEIRA DO LIVRO
Ideias
CMM
Eneas Comiche e Paulina Chiziane

CARTAS PARA PAULINA CHIZIANE

Vozes-mulheres pela
manutenção da vida no mundo
Doutora em Letras (Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa), pela
Universidade de São Paulo (2014), tendo concluído estágio doutoral na Universidade
Paris Nord 13 (Villetaneuse/França) e estágio pós-doutoral na Universidade Federal do
Rio de Janeiro (2016). É professora adjunta do Instituto de Linguagens e Literaturas da
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB/CE).

Texto: Luana Antunes Costa

“- Menina, tu és uma águia! Tu pertences ao céu e não à


terra. Abre as tuas asas e voa!” (Paulina Chiziane)

N
o ano em que a humanidade rurais e zonas periféricas do estado do pessoas pretas, pobres, indígenas, mul-
foi atacada pelas incertezas, Ceará, no Brasil, se reuniram, ainda que heres, crianças, enfim, heróis e heroínas
lamentos e devastidão provo- virtualmente, para resistir ao caos, para sem nome. Eu falo, como professora da
cados pela pandemia da COVID-19, criar estratégias contra a precarização da Universidade da Integração Internacion-
meninas-mulheres, vindas do Conti- vida que, no eixo Sul-Global, agudizou al da Lusofonia Afro-brasileira, uma uni-
nente Africano, vindas das localidades a situação de sobrevida de milhares de versidade que se localiza no interior do

FEIRA DO LIVRO 45
43
Ideias

Facebook
Giza Gertrudes

estado do Ceará, produto de um sonho Dessa experiência pedagógica, surgiu as nossas histórias como indivíduos e
de integração entre o Brasil e os países af- uma vivência em comunidade femini- povos, contra o acirramento das dispu-
ricanos de língua oficial portuguesa. Falo na, marcada por nossas diferenças, mas tas no campo político, pelas assimetrias
como mulher negra, mãe, como coorde- também marcada pelo que temos em de poderes presentes em nossas comu-
nadora do grupo de pesquisa e extensão comum, nossas histórias compartilhadas nidades, a sua rebelde pedagogia de e
universitária, “Sobre o Corpo Feminino “ e nossos encontros, plurais, com a obra para o futuro nos alcança, assim como
Literaturas Africanas e Afro-brasileira”, que de Chiziane. De minha parte, posso dizer nos alcançam as palavras de Paulina, o
desde 2017 reúne meninas-mulheres, lid- que o texto de Paulina me guia há mui- tom manso e forte de sua voz, o azul
eranças em formação e professoras. Falo tos anos, antes mesmo de eu decidir o profundo de seus olhos que nos fazem
como testemunha de uma mudança que caminho da docência, antes de perceber enxergar a nós mesmas como águias,
vejo e pressinto a cada encontro com qual era o meu lugar no mundo como como potências. Pelo tanto que o seu
essas pesquisadoras, cujas trajetórias de uma mulher-negra de origem periféri- corpo literário nos proporciona como
vida e desejo por transformações sociais ca, nascida em um país onde o racismo desafio e conhecimento, a Paulina Chiz-
e políticas em seus países de origem e e as demais heranças do colonialismo iane enviamos as nossas vozes-mul-
nas teias da África Global me fazem crer impedem à população negra brasileira heres, aqui representadas pelas cartas
que o poder das mulheres, daquelas que o gozo aos básicos direitos humanos. De escritas por Giza Gertrudes, feminista
nos precederam e daquelas que virão, é mãos dadas com Paulina e suas histórias, cabo-verdiana, aluna do mestrado em
aquilo que sustenta a vida, em suas mais que são minhas também, conheci Mapu- Sociologia da Universidade Federal de
diversas expressões, na comunidade to, me reconheci nas ruas da Baixa, reen- São Carlos, por Sley Silva, aluna do cur-
global. contrei o Índico, que me guia até hoje e so de especialização interdisciplinar em
Foi então nesse ano de medo e de es- me ajuda a atravessar outras águas pelos Literaturas Africanas de Língua Portu-
panto, que esse pequeno grupo, ciente territórios da diáspora. Vejo, então, que guesa da UNILAB e Cíntia Kütter, profes-
de seu compromisso com a sua reali- a escrita literária de Paulina Chiziane, sora da Universidade Federal Rural da
dade social e política, decidiu se reunir, desde o seu primeiro romance, Balada Amazônia. Essas cartas endereçadas a
virtualmente, no contra-fluxo das que- de amor ao vento (1990), ao Canto dos Paulina Chiziane presentificam o nosso
das de energia e da falta de acesso à in- escravizados (2017) inscreve, no tempo encontro com a autora, uma forma de
ternet, tão comuns às localidades rurais dos homens e das mulheres do mundo, gravarmos na pedra o reconhecimento
e periféricas do nosso estado, e escol- uma pedagogia de futuro, para fazer na- e a força geratriz que sua obra e sua pre-
her como mestra-guia a autora Paulina scer o futuro hoje, em suas pluralidades. sença nos proporcionam. Sim Paulina,
Chiziane e como alimento para a nossa Contra o assassinato dos tempos e da somos águias e reinventaremos, conti-
fome de futuro, o conjunto de sua obra. vida humana, contra as sombras sobre go, os horizontes.

46
44 FEIRA DO LIVRO
Ideias
São Carlos, 05 de outubro de 2020.
Paulina,
Não sei se saberia traduzir em palavras o que sua escrita representa para
mim.
Palavras que cortam como faca, Palavras que curam feito medicina.
Uma vez eu li, que tu disseste que “Contar uma história significa levar as
mentes no voo da imaginação e trazê-las de volta ao mundo da reflexão.”
É assim que me sinto com relação a forma que tuas palavras me atraves-
sam.
Li “Niketche”recentemente. Foi um voo.
Minha mente viajou pela vida de cada uma das personagens e desejei sen-
tar próximo a ti, com uma fogueira por perto e te ouvir.
Ouvir das suas viagens por Moçambique, das mulheres que cruzaram seu
caminho e das histórias que elas te contaram.
Sua “escrevivência“ me inspira e quando tu falas que “escreves para exist-
ir“ eu digo que tua escrita atribui significado para várias questões da minha
vida.
Eu leio mulheres negras para existir e re-existir nesse mundo que renova em
misoginia e invisibiliza a vida das mulheres.
Sua arte atribui dignidade à vida das mulheres, fazendo justiça a histórias
que nunca nem foram ouvidas.
Sua obra para mim é empatia, sororidade, arte, poder negro, força, cotidia-
nos de esperança, amor e raiva também.
Mas sobretudo esperança em uma vida que se reinventa em condições
inimagináveis para meus olhos viciados.
Gratidão por ser essa mulher que transcende fronteiras e abre caminhos.

Giza Gertrudes

FEIRA DO LIVRO 47
45
Ideias

Redenção, 07 de outubro de 2020


Paulina Chiziane,
a ti eu peço licença e ofereço gratidão. Queria agradecer primeiro por seres
uma das mulheres responsáveis a me ensinar a amar a mim mesma. Ao te
ler, te sinto cura e renovação, pois a tua liberdade revolucionária me mostra
que há outros caminhos que pavimentam a luta coletiva de nossas meninas
e mulheres negras.
Quando te escuto - voz calma e aveludada -, Chiziane, eu percebo em ti a
sabedoria e a sagacidade de uma mulher que sabe onde quer chegar e, por
isso, compreende todo o terreno antes de dar o seu passo longo e firme. E a
tua firmeza constrói uma passagem de ensinamentos para que todas nós,
Atlânticas Negras, possamos trilhar posteriormente.
Te lendo, eu te percebo sacerdotisa que transforma luta-substantivo em lu-
tar, verbo conjugado por nós mulheres além-mar de forma tão precisa, infe-
lizmente.
A sacerdotisa que habita em ti faz-me querer seguir o rasto das andorinhas
que, sempre juntas, alcançam a liberdade. Você, assim como Dandara dos
Palmares e Carolina Maria de Jesus - em um Brasil passado que é também
presente - me ensina a importância de estar em movimento, de continuar um
movimento. Você me ensina também a importância do falar... do falar com o
olhar, com o corpo, com a alma.
Eu te sei mulher negra africana em movimento, esse movimento que sabe-
mos não ter começado em você e sabemos não parar em mim, porque ele
veio de antes de nós, e vai além. Você me faz ter certeza que somos o agora
por conta do passado que carregou no presente.
Sinto na tua criação uma autorização energética de um renascimento: um
passado que fala em nossos corpos sobre um futuro que será para nós mul-
heres negras um presente-temporal e um presente-dádiva. A tua insurgência
me embala nos gritos de nossas liberdades.

Sley Silva

48
46 FEIRA
FEIRADO
DOLIVRO
LIVRO
Ideias
Belém, 03 de outubro de 2020
Querida Paulina,
Espero que esta carta de encontre bem e com saúde no Índico. Aqui do outro lado
do Atlântico as coisas andam complicadas: nossa natureza pegando fogo, o Covid
ganhando status de gripe e nossa política cada dia mais imparcial a todos estes
problemas...uma tristeza. Mas hoje te escrevo para te agradecer. Se hoje “cresci”
e me tornei uma pesquisadora engajada, devo isso a senhora e ao seu “Balada
de amor ao vento” que veio com o vento da ancestralidade até minhas mãos ao
acaso, apesar de não acreditar em acasos, mas em propósito. O teu propósito
ao escrever esse livro, o meu ao lê-lo e o da ancestralidade em nos unir para que
de mãos dadas fossemos uma força maior capaz de chegar a outras mulheres.
A tua literatura mudou minha vida lá em 2006! Lembro do meu filho ainda com
seus 6 anos (hoje já com 17) dizendo: “minha mãe pesquisa a Paulina, sabia? Ela
é lá de Moçambique!”, cuja noção geográfica de Moçambique passou a ter sta-
tus de intimidade. Foi assim que iniciamos nossa ciranda: eu de mãos dadas com
meus filhos, eles de mãos dadas com você nessa grande gira de amor e gratidão.
O segundo filho, brincava com a capa do “Alegre canto da perdiz”, enquanto eu
escrevia a tese ele balbuciava: “passarinho mamãe!” Te conto isso para reafirmar
que eu, mesmo sendo uma mulher atlântica, brasileira, do sul do país, compartil-
ho da aventura de ser pesquisadora num país que não valoriza nossas PESQUI-
SADORAS, mães, companheiras, professoras que lutam por um mundo melhor
onde mulheres como eu e você e todas as que nos cercam tenham oportunidade
de saber que elas não estão sozinhas. Hoje vivo no norte do país, onde o nome
de Paulina Chiziane, Conceição Evaristo e Carolina Maria de Jesus ainda são pou-
co conhecidos para alguns e completamente desconhecidas para outros. Pensei:
como assim? Não pode!!! Como resposta a minha inconformidade de educadora
pensei uma disciplina, a qual ministro na universidade, e vejo o brilho nos olhos de
jovens e adultos quando falo dessas mulheres potentes, quando falo de você! Por
isso e por tantas outras coisas te agradeço por fazeres parte da minha caminhada
acadêmica, de vida e de afeto. Obrigada querida Paulina.

Cíntia Kütter

FEIRA
FEIRA DO
DO LIVRO
LIVRO 49
47
A literatura é o palco
Ideias

de criação de mundos
alternativos*
Poeta, ensaísta e crítica literária, com Doutoramento em Literaturas Africanas, sua
área principal de investigação. Nasceu em Portugal, mas cresceu e fez os primeiros
estudos universitários na Universidade Eduardo Mondlane, de Maputo, Moçambique.
É Professora Associada com Agregação da Universidade de Lisboa, pesquisadora do
ISEG do CEsA, com bolsa da FCT.

Texto: Ana Mafalda Leite

Kapulana Editora

Ana Mafalda Leite

Gostaria de começar com um agradec- escritora merecidamente homenagea- que participei e saliento a outra presenta
imento muito especial ao Conselho Mu- da por esta edição da Feira do Livro de feminina na mesa, a da escritora Cri Es-
nicipal de Maputo e aos Organizadores Maputo. sência. Gostaria de dizer que a minha in-
desta Feira do Livro pelo convite para Repensar a criação literária em tem- tervenção se orientou entre a palavra de
participar neste evento, pela primeira pos de Pandemia é o tema geral que escritora e a de professora e crítica.
vez, transmitido e partilhado digital- orientou esta reunião de artistas, livros, A primeira parte do título temático
mente. Uma partilha em directo que nos adultos e crianças, lançamentos, reflex- da mesa Literatura e Resistência remete
deu a oportunidade também de assistir ões. Literatura e Resistência, Para uma de imediato para as significações da pa-
à festa em honra de Paulina Chiziane, História do possível é o tema da mesa em lavra Resistência. Carregada de sentidos

50
48 FEIRA DO LIVRO
predominantemente ideológicos esta bressair a sua materialidade de escrita, o estável, mas no que se move. Sinto que

Ideias
palavra afirma-se como uma atitude desejo de partilhas e projectos culturais estou do lado do vento e da vaga.”
perante a opressão, a ameaça social e e literários conjugados. Hoje mais do que Nos dias que correm cada vez
individual, o status quo, o caos, o medo, nunca, por via da internet e das platafor- menor é a estabilidade entre os indivídu-
a morte. Por outro lado, a palavra Litera- mas digitais, as fronteiras são móveis. os que estão em constante deslocamen-
tura enquanto criação é uma das respos- Mas basta olharmos para uma colecção to, sentindo-se “desalojados” em toda
tas à opressão, à violência, ao medo, isto de selos dos anos sessenta ou do início parte. O ponto de partida da reflexão
porque a literatura é o palco de criação do século XXI; as quedas dos muros e sua é o movimento, como nova condição
de mundos alternativos. construção, que alegoricamente uma de nosso imaginário humano. Diría-
Assim a Resistência é simultanea- série como a Guerra dos Tronos também mos que, paradoxalmente, a pandemia
mente social e existencial e enquanto evoca, os atlas e mapas mostram-nos a acelerou esse movimento em termos
palavra associada ao termo Literatura movências fronteiriças, as alterações dos digitais e imaginários. Os deslocamen-
pode ser também pensada como repre- espaços. As fronteiras são assim marcas tos podem ser a chance inesperada de
sentando o acto de nascimento de todas e desenhos em mutação pela História e uma nova definição do homem, que
as literaturas africanas, e refiro aqui em pela política, desfazendo impérios, re- não se reconhece apenas no território
especial o nascimento e afirmação da lit- construindo identidades, repondo e pul- que ocupa, mas no espaço-tempo que
eratura moçambicana. verizando espaços terrestres. ele liberta pela palavra, e pelas imagens,
Expliquemos: a resistência a uma Enquanto linha divisória, o fronteiro fora das fronteiras, em zonas francas da
experiência colonial numa primeira fase, é o que fica defronte, e assimila a divisão imaginação.
a resistência a uma guerra civil numa com a junção. Por isso podemos afir- Trata-se de um deslocamento de
segunda fase, a resistência criativa das mar: a fronteira é muito poética. É um natureza ontológica e simbólica: de-
gerações mais jovens, em tempo de paz espaço eminentemente poético porque slocamento do sentido e do ser, na
e de novos conflitos regionais e mundi- conjuga todas as oposições, revolucio- experiência da alteridade, que retrata
ais, aos desafios entre modernidade e nando e conflituando. A movência é fragmentariamente o mundo nómada e
tradição, integrando inovadoramente assim uma característica da própria lin- ambulante em que vivemos, de refugia-
a construção de novas utopias e de guagem poética. Os criadores e poetas, dos, de populações migrantes, que tenta
criação de sinergias. caminham avessos a qualquer fronteira escapar da morte, da miséria, da ausên-
A resistência na literatura moçam- muito definida: linguística, sintáctica, de cia de chão. E os mediterrâneos podem
bicana é também à opressão de género, significação, de género, de imposição, ser índicos, nas cidades e vilas violenta-
de classe, de estatuto social, enquanto de poder. Oscilam entre uma palavra das do norte, cuja movência sobressal-
afirmação da palavra literária para to- profética de aúgure e o dom da trans- tada vem habitar o coração dos poetas.
dos e em todas as áreas temáticas, para formação do sonho em sonoridades ex- A Literatura moçambicana, em es-
as crianças, com a literatura infanto-ju- tensas. Transformam a água em vinho, pecial para as mais jovens gerações,
venil, com a abertura à ficção científica e saúdam a alegria como o Rubayat de parece-me também ser um campo
e à policial para os que desejam aven- Omar Khayyam. Não há fronteiras entre literário de inovação, espaço de resistên-
turar-se em espaços da imaginação, à a água e o vinho, a terra e o mar, o tempo cia, de recriação e de reescrita das for-
ficção histórica, reinventando critica- e o espaço. A página branca percorrida mas mais antigas, necessariamente fun-
mente passados culturais e históricos. pela tinta da escrita desnivela e trans- dadoras da ideia de nação.
Por outro lado com a expansão forma qualquer fronteira em espaço de Após o gesto inaugural no início do
da ficção, que explora outros espaços transmutação. século XXI do escritor Rogério Manjate
geográficos, a norte, centro e litoral do Assim, vários tipos de especifici- ao criar a primeira revista literária digi-
país, e também às geografias das diá- dades fronteiriças - nacional, pessoal, tal, MaderaZinco, no campo literário e
sporas, verificamos uma resistência ao racial, de género (nas duas acepções) cultural moçambicano assistimos hoje à
localismo e uma abertura à mobilidade - tendem a ser dissolvidos na literatura, proliferação de muitas novas pequenas
dos imaginários regionais e transnacio- como acontece nos textos migrantes, editoras (algumas digitais), a blogs, sites,
nais da literatura moçambicana. Com sem território fixo, que exibem uma clubes de leitura em diferentes pontos
as diversas formas de fazer poesia, com- intensa porosidade de fronteiras, em do país (Clube de Leitura de Angoche,
prometida e amorosa, ou a que medita diálogo multidisciplinar com diversas animado pelo poeta Lino Mukurruza
sobre as suas formas, bem como com artes e linguagens, problematizando, é um exemplo entre vários), a diversas
o surgimento das vertentes do ensaio dessa forma, o próprio espaço de criação Associações Culturais, como exemplar-
literário, filosófico, religioso, antro- literária e colocando em questão a ideia mente o caso de Xitende, e a um núme-
pológico, a literatura, julgo poder afir- de pertencimento, especificidade e au- ro crescente de potenciais autores que
mar, enquanto acto de resistência, é sem tonomia artística. Parece-me ser esta ambicionam o conhecimento, a escrita,
dúvida uma contínua meditação sobre também umas das formas de resistência o projecto literário (cite-se neste quadro
os fenómenos culturais da contempora- do tempo presente da mais recente liter- o Projecto em plataforma whatsapp Tin-
neidade em Moçambique. atura moçambicana, que expande como dzila).
Esta resistência como abertura diria o poeta sírio-libanês Adonis “O ar- Curiosamente também o cenário
mostra também que a poesia não tem co-íris do instante”. Diz o poeta: “Embora de multiplicação editorial parece ter
fronteiras e o seu espaço, nem utópico, seja solicitado pela busca do sentido, ou crescido durante o tempo da Pandemia,
nem tópico, mas antes atópico, se coloca de um sentido, adivinho que a minha e simultaneamente fomos assistindo à
fora do espaço situável, e por isso faz so- identidade não se estabelece no que é publicação virtual de diversas antologias

FEIRA DO LIVRO 51
49
Ideias

newsaiep
Cri Essencia

e livros, à criação de espaços de reflex- escritores, local e globalmente, criando Resistência. Hoje já não apanhamos um
ão sobre a Literatura e outras artes, na publicações conjuntas, obras e projectos avião para estarmos presentes numa fei-
AEMO, na Revista Literatas, nos Centros variados numa permuta diversificada. ra do livro, para irmos falar a uma univer-
Culturais do país, como por exemplo Muito autores por seu turno aprove- sidade estrangeira, para partilhar con-
o Português, o Brasileiro, o Francês e o itaram essa vivência conventual para hecimento, para registar o lançamento
Alemão, na Fundação Fernando Leite escreverem novas obras e refletirem de um novo livro. A experiência da Pan-
Couto, alguns exemplos entre várias in- no gesto criativo como desobediência demia traz-nos uma outra história, a do
stituições culturais que têm quotidiana ou insurgência vital perante a ameaça Possível: estarmos presentes à veloci-
ou semanalmente animado a discussão da morte. Resistência. E fizeram-no em dade da internet em qualquer espaço
e apresentação de espectáculos e lança- obras colectivas, irmanando-se em re- do planeta, deslocarmo-nos nos nossos
mentos virtuais. sistência e criação de uma história do imaginários, partilharmos escrita, ansei-
Um outro exemplo desta animação possível no presente histórico. os, alegrias, dúvidas, perplexidades. Par-
reflexiva sobre a literatura, enquanto Também o apelo à leitura cresceu, tilharmos Literatura, mercado editorial,
instituição, é a recentemente criada a em parte pelo isolamento, em parte festa literária.
Festa da Literatura de Língua Portugue- como forma criativa, mostrando para- A criação de estórias, poemas, filo-
sa, Templos de Escrita, em que um dos doxalmente que ser leitor é gostar de sofias, nasce neste nosso mundo actu-
curadores, Amosse Mucavele, é moçam- partir, de viajar, conhecer mundos, mes- al - que dinamiza o local com o global
bicano; o evento que vem religando mo que seja no mais recôndito lugar, – como um lugar de resistência e de
escritores, editores, professores, no es- aquele que nos habita e habitamos. A mobilidades imprevistas, trocas e partil-
paço dos diferentes países de língua leitura exige migração com retorno rápi- has. O facto de esta Feira ser organizada
portuguesa, num esforço conjugado de do ou sem retorno, exige tempo para digitalmente é um sinal dessa resistência
criação de pontes, revela-se um espaço uma viagem sem bagagem, à boleia do como abertura e partilha. Com efeito, a
de troca intelectual e criativa. livro. As práticas de leitura dramatizada organização virtual desta Feira de Mapu-
De forma aparentemente contra- e de apresentações de livros nas dif- to é mais um excelente exemplo da Re-
ditória a Pandemia, ao mesmo tempo erentes plataformas digitais (youtube, sistência da Literatura e da constituição
que nos afastou temerosamente para as instagram, facebook) foram recursos no presente histórico desta História do
nossas casas, criando distanciamento so- encontrados como formas de resistência Possível.
cial em todas as áreas criativas, afectou ao isolamento, para a partilha de leitura Felicito vivamente a coragem in-
também muito particularmente todo o e de escrita. ovadora dos organizadores e agradeço
mercado criativo, que não cessa, contu- Nunca estivemos tão imóveis e tão a honra do convite em fazer parte do
do, de reagir alternativamente, criando acelerados, tão separados e tão próx- evento.
mobilidades inesperadas pela internet, imos, pura ironia! E penso que esta é
formas de aproximar e juntar artistas e uma resultante da Literatura enquanto *título da nossa responsabilidade

52
50 FEIRA DO LIVRO
“LUGAR BOM E LUGAR NENHUM”

Ideias
Alguns compassos
para uma “sinfonia” literária*
“Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas,
só faltava uma coisa – salvar a humanidade.”
José de Almada Negreiros (1921). In A Invenção do Dia Claro. Lisboa: Olisipo .
“Antigamente / (antes de Jesus Cristo) / os homens erguiam estádios e templos / e
morriam na arena como cães. // Agora… / também já constroem Cadillacs.”
José Craveirinha (1974). “Civilização”. In Karingana ua Karingana, Lourenço Marques:
Académica.

Texto: Sara Jona

Facebook

Sara Jona

INTRÓITO de crise: que ideias para o futuro?”. participantes tecerá considerações éti-
Começo o meu texto citando dois poe- São as dúvidas e o medo sobre o tem- cas, com as quais, certamente, acredita
mas que, em meu entender, respondem po vindouro que inspiram o nosso diálo- que podem ajudar a enfrentar o que
à grande incógnita que nos reúne em go. São estas questões nunca respondi- nos espera, mas nenhum dos painelis-
torno do assunto de um dos paineis da das, desde que o mundo existe e que não tas trará uma fórmula acabada. Isso não
Feira do Livro de Maputo, edição 2020. O terão uma solução com as intervenções tem sido possível, tal como ilustram os
tema é “Dialécticas literárias em tempos nesse debate. Entretanto, cada um dos poemas e tal como temos vivenciado.

FEIRA DO LIVRO 53
51
Ideias

Sandra Tamele

BCI
Ambos os textos revelam que ainda há Em Os Sete Saberes Necessários para com a dimensão humana, isto é, sobre o
muito a se fazer pela humanidade e pelo a Educação do Futuro, Morin (2002), facto de o homem ser feito de múltiplas
futuro. Por outras palavras, temos que ir aponta os caminhos que deverão nor- identidades: física, biológica, psíquica,
cuidando da humanidade para a salvar. tear o ensino no século XXI, a saber: as cultural, social e histórica, que devem
Mas o trabalho será sempre inacabado. cegueiras do conhecimento: o erro e a ser levadas em consideração no ensino,
ilusão; os princípios de um conhecimen- por serem indissolúveis e por coexist-
PRESSUPOSTOS to pertinente; ensinar a condição huma- irem em toda a raça humana, ou seja, os
Será, também, a partir do pensamen- na; ensinar a identidade terrena; afrontar homens são iguais e é preciso que isso
to de Edgar Morin (2002), de Zygmunt as incertezas; ensinar a compreensão e a esteja claro na contextualização local
Bauman (2007) e de Yuval Noah Hara- ética ao género humano. ou específica de cada fenómeno. Assim,
ri (2020), que tentarei construir o meu No primeiro conceito, o autor aler- chegamos à quarta premissa, na qual o
pensamento. Morin, porque nos sugere ta-nos para a importância de se ir con- autor nos sugere que uma crise de um
como o futuro pode ser gerido em ter- struindo em permanência o conheci- país arrasta consigo todos os países, ou
mos educativos; Bauman, por nos alertar mento, para evitarmos ilusões. Quer dizer seja, a terra, no seu todo, é a nossa casa
para a gestão da incerteza e da utopia que o conhecimento nos transcende. E comum, os problemas de uns são os
que é a vida ou o conhecimento sobre é, também, o que sugerem as epígrafes problemas de todos. Estes dois últimos
o mundo. Em síntese, ambos os autores do presente texto. No segundo, há um paradigmas complementam-se. E com o
se referem, nas suas obras, às questões convite para que o conhecimento seja quinto, somos convidados a abandonar
do futuro. Encontrei, também, através de apreendido em função de problemas as concepções deterministas sobre o
uma abordagem à obra de Yuval Harari, globais, que depois possam ser particu- mundo, dado que não há como predizer
a ideia de que as escolhas que fizermos, larizados localmente. Quer isto dizer que o futuro. Seguindo para o sexto ponto,
actualmente, em relação à pandemia é importante estabelecer-se relações somos ensinados sobre a necessidade
global do coronavírus, mudarão as nos- que permitam a leitura e a troca de in- de aprender a compreendermo-nos
sas vidas futuras. E é em função das formações de dados que sejam comuns, como humanos, há que ultrapassar a
ideias destes autores que elaborarei a para depois os fragmentar em partes que barbárie, a xenofobia, os desprezos, os
pretensão de uma “sinfonia” na criação possam responder a contextos específ- racismos, etc. De alguma forma esta
literária para os dias que vêm pela frente. icos. O terceiro conceito confronta-nos noção surge como alicerce para a com-

54
52 FEIRA DO LIVRO
Ideias
Trinta Zero
Editora Trinta Zero

preensão do quarto paradigma. No séti- sua obra Tempos Líquidos, no capítulo que, no contexto pós-pandemia, é im-
mo somos chamados para a urgência de que aborda a utopia e a incerteza. Se- portante que os planos económicos se-
sermos democráticos. A nossa condição gundo o autor, foi no séc. XVI “que as jam feitos de modo global, uma vez que
de indivíduos numa dimensão ternária: rotinas antigas e aparentemente eter- o problema é global. Segundo ele, deve
espécie-sociedade-indivíduo, que, para nas começaram a se desintegrar”. E foi existir solidariedade entre países pobres
além de nos conceder uma autonomia nessa mesma altura em que, a partir de e países ricos. O seu ponto de partida
individual, cobra-nos em obrigações Sir Thomas More, se começou a utilizar é o de que as mudanças nos próximos
pessoais, por um lado, e sociais, por out- a palavra utopia, para designar novos tempos não terão apenas a ver com os
ro, para com a espécie humana. sonhos. Segundo explica o autor que sistemas de saúde mas, também, com a
Há em síntese, na concepção deste tenho vindo a citar, significa, grosso economia, com a cultura, com a política
autor, a ideia subjacente de que o futuro modo: lugar bom e lugar nenhum. En- e com a ciência. A crise presente marca,
é uma incógnita que deve ser abordado, tretanto, os seguidores de Sir Thomas certamente, uma nova era para as nos-
considerando a ideia de unicidade da More, conforme afirma Bauman, foram sas vidas.
espécie humana que habita um lugar propalando a ideia de impossibilidade No entender de Harari, será uma era
comum que é a terra e que, para além de se viver um mundo sem utopia. E a marcada pelo controle total dos ci-
das preocupações individuais, há a ne- utopia na sua óptica é: “uma imagem de dadãos, porque se passará a viver num
cessidade de se estabelecerem trocas e um outro universo, diferente daquele mundo digitalizado. Além disso, deverá
conhecimento, uma vez que, por serem que conhecemos ou de que estamos a haver uma escolha entre o isolamento
seres pluri-identitários, os Homens de- par. Além disso, ela prevê um universo nacionalista ou a solidariedade global,
vem, cada vez mais, cultivar valores éti- originado inteiramente da sabedoria e sendo que essa solidariedade consiste
cos, de compreensão, de cidadania, que devoção humanas.” (Bauman: 2007:102- no facto de que os países desenvolvidos
sejam democráticos, visando proteger o 103). E é um conceito encoberto de in- construirão soluções cientificamente
planeta e a sua espécie. Os determinis- certezas, com o qual se deve ligar caute- aceitáveis para debelar o vírus, para a so-
mos são um fenómeno falho na sua es- losamente. brevivência do planeta, para si próprios
sência. O devir é árduo. As vidas dos seres humanos encon- e para os países pobres e estes últimos,
A questão da incerteza é também tram-se entrelaçadas, conforme nos em nome dessa sobrevivência, outra
estudada por Bauman (2007:100), na sugere Yuval Harari (2020), ao afirmar escolha não terão, senão a de colaborar

FEIRA DO LIVRO 55
53
com a recepção de tais soluções. integrada no Grupo Leya), MOLIJU, Lit- Em Moçambique, quanto a nós, e tanto
Ideias

É já sabido que a actuação do vírus eratas, AEMO, JV, Plural, Chil, Kuvaninga quanto se pode constatar, ainda carece-
pode ir mudando de foco, de países ricos – Cartão d’Arte e Imagem Real. Deste mos de acesso ou criação de acervos dig-
para pobres e vice-versa. Entretanto, a conjunto, apenas a Trinta Zero Nove itais. Da entrevista feita a Sandra Tamele,
ideia de se viver num mundo digital vigia- e a Ethale Publishing é que se encon- acima referida, a mesma afirmou:
do parte de ambas as partes: governo-in- tram representadas na Feira do Livro de Gosto de pensar que a internet e todas
divíduos e vice-versa. Há nisso vantagens, Frankfurt, edição de 2020. as plataformas de comunicação digital
segundo o autor. A par disso, o maior É uma feira criada a 18 de Setembro são o nosso bilhete para viajar e che-
risco que se corre é ter de se confiar mais de 1949 e tem sido amplamente pub- gar a outros mercados, oportunidades
na ciência, do que em teorias da conspir- licitada. Este ano, foi eminentemente e talvez até leitores. Este ano tem sido
ação. E a troca de informação entre países digital, dada a emergência sanitária que difícil e exigiu muito dos organizadores
será importante para o avanço desta. o mundo atravessa. Da entrevista que das feiras. É uma lufada de ar fresco ver
fiz a alguns representantes de editoras, Frankfurt totalmente digital depois do
QUE FUTURO?: PRODUÇÃO contatei que a possibilidade de partic- cancelamento de Bologna, Londres e
E RECEPÇÃO LITERÁRIAS ipar nessa feira, passava por ter uma Liepzig. Tenho aprendido muito com co-
Colocados esses pressupostos teóri- Banda larga de internet suficientemente legas do México, Brasil, Espanha e África
cos, parece-me que as “sinfonias” no âm- potente e capacidade para digitalizar do Sul sobre formatos de livros inclu-
bito da produção e da recepção literárias materiais ou de os colocar em arquivos sivos, soluções de logística e até refina-
passarão, certamente, por adoptarmos digitais. Por consciência de que muitos mento da imagem e marketing da ETZN
algo que temos vindo a repudiar há países não teriam essa possibilidade, (3009), portanto faço um balanço muito
alguns anos: o contexto digital. Mas é a organização da feira abriu a possibi- positivo.
necessário haver sistematização e mas- lidade de algumas editoras serem for- A questão que se coloca e que me
sificão do conhecimento, e para que tal madas para o efeito, conforme o referiu, parece ficar por resolver, quanto a isso
aconteça, num país como Moçambique, Sandra Tamele, editora na Trinta Nove em Moçambique é que o domínio aca-
temos de nos preparar para um processo Zero, em entrevista datada de 15 de Ou- bado de referir é de uma quantidade
demorado, dado que o ingresso às tec- tubro, na qual referiu: ínfima da população e, consequente-
nologias e aos dados digitais ainda é um “Eu e mais 19 jovens editores estamos mente de editoras.
problema por ser resolvido. a participar do programa de bolsas e Aliado a esse facto, existe ainda a des-
No que à literatura e ao acesso ao liv- a usufruir de formação sobre direitos, vantagem confirmada de que o acesso
ro diz respeito, basta pensamos que os metadados e digitalização do negócio. ao livro, tanto digital, quanto físico, é ain-
nossos maiores arquivos literários, a Bib- Não porque não tenhamos capacidades, da um grave problema e que, por essa e
lioteca Nacional de Moçambique (Cfr. O mas reconhecem que nadamos contra a por outras razões, a literatura não é um
País, nr. 4112185, pg. 13, de 01 de out. corrente em mercados sem leitores esta- fenómeno de massas. No entanto, é pon-
2020), em Maputo, e a Brazão Mazula, belecidos ou onde são poucos. Tenho a to assente que, se por um lado, já nos ap-
da Universidade Eduardo Mondlane, mesma abordagem das grandes edito- ropriamos da utilização do livro digital,
não têm todas as entradas bibliográficas ras, a escala é que é muito diferente”. por outro, ainda existe quem o negue, a
digitalizadas em catálogos. Ora, se essas Esta constitui a solidariedade pretexto da sedução pelo folhear do liv-
são as maiores, de referência não só pe- necessária de que fala Yuval Noah. Por- ro e do cheiro do papel. Acresce a tudo
los tamanhos, como pela dimensão dos tanto, embora a Trinta Nove Zero não isto a dificuldade de ligação ao livro digi-
seus acervos que contêm, o que será das seja tão carente, maior parte das edito- tal, pelos motivos já apontados.
restantes existentes no país? Além des- ras moçambicanas, apenas pôde assistir Uma grande discussão, no concernen-
sas instituições de alto gabarito, a Rádio ao que os outros faziam na feira, sem te à passagem para o ambiente virtual,
Moçambique, ao comemorar os seus 45 poder participar, tendo se perdido uma coloca-se quanto à recepção de obras
anos de existência, este ano, segundo possibilidade de publicitar a produção literárias. Haverá ou tem já estado a
referiu um dos seus representantes (Cfr. literária ou a possibilidade de tradução acontecer uma migração (necessária)
jornal domingo, nr. 1990, pg. 15, 04 out. de mais autores. para se criar hábitos de leitura de livros
2020), um dos grandes desafios que ain- No contexto do que acabei de men- digitais? As feiras do livro já são realiza-
da enfrenta é a digitalização da sua infor- cionar, não descuro, entretanto, a colo- das em ambientes virtuais, referimo-lo
mação e o uso de tecnologias de difusão cação de Rosário (2014), no seu texto O anteriormente e está a acontecer na pre-
actualizadas à presente era. livro como fonte do saber na era digital, sente edição da Feira do Livro em Mapu-
Além disso, em Moçambique têm es- que é importante ter em consideração a to (existem vendas de livros on line, bem
tado a operar, entre outras as seguintes ideia de que o acesso ao conhecimento como, estantes virtuais); o acto de contar
editoras ou braços editoriais: Alcance, pode-se processar de diversas maneiras, histórias e os clubes de livro, já decorrem
Brinduka, Trinta Zero Nove, Selo Jo- não apenas através do livro, como tam- em ambientes virtuais, os concursos
vem, Índico, Escola Portuguesa de bém através da palavra oral, derivada do literários e as oficinas de literatura já têm
Moçambique, Xidjumba, Oleba, Fund- conhecimento sistematizado de geração lugar no ciber-espaço. Os lançamentos
za, Fundação Fernando Leite Couto, para geração e dos formatos digitais de livros ou webinares em torno do livro
Gala-Gala, TDM e FUNDAC (que não o como vídeo-jogos, entre outros acervos e da Literatura, também.
sendo, publicaram obras resultantes dos digitais. O que, nos dias que correm, em Em meu entender, para que a assina-
seus concursos literários), Cavalo do Mar, que a informação se multiplica e se mod- tura de autógrafos passe a ser realizada
Ethale Publishing, Ndjira (actualmente ifica a todo o momento, não é suficiente. virtualmente, basta que o autor do livro

56
54 FEIRA DO LIVRO
Ideias
escreva o texto-autógrafo nesse ambi- literária, seremos convocados a apren- os problemas se encontram interligados.
ente e que digitalize a sua assinatura, der com Morin, quando nos alerta para A sociedade precisará de ser (re)educada
para que esta possa ser colada no livro a ideia de vivermos numa casa comum para essa nova abordagem e a literatura
de quem pede o autógrafo. Encontra- e de sermos da mesma espécie humana tem um grande papel a desempenhar
mo-nos a um passo muito curto para lá e que, por isso, precisamos de aprender nesse processo. Mas ficarão em desvan-
chegar. Mas, é claro, que muitos ficarão a nos compreendermos e a nos prote- tagens países como Moçambique, nos
de fora. germos, para além de ser importante ex- quais a tecnologia ainda é um entrave;
Ainda no que respeita aos hábitos de pandir ideias de democraticidade, para o que não significa que se deixará de
leitura, há, em ambientes virtuais mais uma melhor cidadania. Assim, a Litera- escrever. Mas a literatura continuará re-
avançados, a possibilidade de, com re- tura será chamada a re-educar o mundo. stringida a uma circulação muito circun-
curso a uma caneta digital, podermos Será convocada a (re)escrever temáticas scrita. Se já existiam excluídos, haverá
marcar ou sublinhar os livros digitais ao que sugiram ou que façam represen- ainda mais.
lê-los. A releitura necessária ao livro pas- tações que estimulem uma maior soli- A literatura poderá, ainda, trabalhar
sará por esse processo. Marcadores de dariedade para a preservação da espécie as representações simbólicas que aju-
livros não faltarão, porque essas canetas humana, bem como a um maior inter- darão a humanidade no acolhimento
têm a possibilidade de colorir as telas câmbio na solução de problemas, visto das novas descobertas científicas. A par
digitais. serem os mesmos, ocorrendo algumas disso, coexistirão ainda no país, por mui-
O grande problema que se colocará, excepções derivadas de cada contexto to tempo, a produção e a recepção de
e que já existe relativamente à recepção político, económico, cultural e geográf- literatura em formato digital e físico. As
do livro, é o acesso ao mundo digi- ico. Haverá que se estabelecer um escolhas que fizermos, a longo prazo, di-
tal. Para além de a literatura já ser um equilíbrio entre uma Literatura univer- tarão o lugar no qual o país se colocará.
fenómeno burguês, tendencialmente salizante, que aborda questões comuns, Entretanto, grande parte da mudança
sê-lo-á ainda mais, pelo facto de que mas também a localista, que assinala será ditada pelo poder económico e pela
o acesso à internet ainda o ser. Então determinadas particularidades contex- vontade política, sendo estes poderes a
teremos que trabalhar a inclusividade, tuais. decidirem se o livro, e por consequência
posto que a exclusão digital é um dado Quanto à representação de objectos a literatura, sejam, ou não, objectos de
adquirido, quer para os países em vias de simbólicos, a literatura sempre escre- primeira necessidade. A resposta a isso
desenvolvimento, quer também para os veu sobre o passado, o presente e o fu- ainda se coloca no âmbito da incerteza.
países desenvolvidos, ainda que de uma turo, isso não me parece que mudará. O suposto “lugar bom”, actualmente,
forma mais branda. Há que estudar no- Provavelmente, considerando as ideias é o ditado pelas novas tecnologias. É
vas formas de acesso à Literatura. de Morin, Bauman e Harari, mude a per- para lá que o mundo se encontra a mi-
A harmonia digital já é uma realidade spectiva, a partir da qual se analisa ou se grar, com dificuldades e com exclusão
para a maior parte dos escritores no representa a constância de fenómenos ou não. É para Moçambique “lugar nen-
mundo. É ínfima a quantidade de escri- sociais no mundo. A certeza ou o deter- hum”, a julgar pela presente condição de
tores que ainda escrevem à mão. Os liv- minismo relativo a alguns acontecimen- info-excluidos, ressalvando o iniciado
ros hoje são todos produzidos (escritos tos será ou já se encontra modificada, trabalho da Trinta Nove Zero, na pro-
e impressos) em ambientes digitais. Ex- uma vez que as cartografias geográficas dução de livros em brile; pelo que, uma
istem ainda os áudio-livros. Portanto, do se encontram alteradas. O clima mudou, “sinfonia” literária ainda carecerá de per-
ponto de vista da produção literária, já a vida passará a ser mais digital do que correr um longo caminho. A presente
podemos afirmar que grande parte dos em presença, as relações humanas mu- feira de livro digital, com todo o esforço
países ou dos escritores se encontram a darão, a gregaridade do ser humano que foi feito, incluindo os investimentos
trabalhar em ambientes digitalizados. passará a ter novas abordagens; o mun- que foram necessários, não passa de um
Ainda do ponto de vista da produção do tornou-se uma aldeia global na qual evento para burgueses.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUMAN, Zygmunt (2007). Tempos Líquidos. Rio de Janeiro: Zahar.


HARARI, Yuval (2020). The word after coronavirus. Finantial Times. March.
MORIN, Edgar (2002). Os Sete Saberes para a educação do futuro. Lisboa: Instituto Piaget.
ROSARIO, Lourenço (2014). O Livro como fonte do saber na era digital. In Singularidades III. Maputo: Alcance.
LAISSE, Sara. Entrevista a Sandra Tamele – sobre a participação de editoras moçambicanas na feira do livro de Frankfurt, edição
de 2020.
*Sara Jona Laisse, docente na Universidade Politécnica. Contacto: saralaisse@yahoo.com.br.

FEIRA DO LIVRO 57
55
PROPRIETÁRIA
Conselho Municipal de Maputo

PRESIDENTE
Eneas Comiche

DIRECTORA
Isabel Macie
(Vereadora do Pelouro de Cultura e Turismo)

DIRECTORA DE INFORMAÇÃO
Cristina Manguele
(Directora Municipal dos Serviços de Arquivo,
Documentação de Biblioteca)

CHEFE DE REDACÇÃO
Neima Madaugy
(Chefe de Departamento de Bibliotecas)

EDITOR
Amosse Mucavele

COLABORAM NESTA EDIÇÃO


Lucas Muaga, Regina Dalcastagnè, Armando
Artur, Luana Antunes Costa, João Nuno
Azambuja, Cíntia Acosta Kütter, Alda Moreira,
Sara Jona Laisse, Ana Mafalda Leite.

COLABORADORES PERMANENTES
Ângela Mário Neve Tui, Liberato Sabino
Nhaquila, Albertina Lurdes Bata, Telma João
Cossa, Afra Augusto Muchanga, Clara Milisse,
Artino Amaral Cumbane, Lázaro João Lichucha,
Vanuza Almeira Ricardo, Leocárdia Cheila
Fernando Capelo Banze, Lídia Daniel Chilaúle,
Lizete António Nhantumbo, Luís André
Sumbane, Elisa Timóteo Cossa, Percina Salomão
Cuco Nhampar, Isaura Paulo Cossa.

ARTE E DESIGN
ÓPTICA TEXTO, LDA.

APOIO À PRODUÇÃO
SUAIMAGEM

CONTACTO
feiradolivromaputo@gmail.com

58
56 FEIRA DO LIVRO
Em jeito de fecho
Cimentando
os olhares
do futuro

F
oi com enorme alegria que Maputo viu a sua Feira do Livro
adaptar‐se às restrições decretadas devido à pandemia da
Covid‐19. A 6ª edição “ 100 % digital”, em homenagem a es-
critora moçambicana, Paulina Chiziane, contou com a participação
de trinta autores de 8 países, que marcaram com as suas sólidas pre-
senças no certame, onde conforme o próprio tema escolhido “(re)
pensar a criação literária em tempos de pandemia”, ampliaram e
acrescentaram ao programa uma dimensão transfronteiriça e inter-
cultural.
Por isso, na possibilidade de olharmos o livro como factor de re-
sistência, num espaço impar, exigiu de nós, imaginação, destreza,
criatividade, alteridade, afecto e acima de tudo, a redefinição das
representações de várias ordens, tais como: fronteiras, cidadania,
consciência literária e identidade(s) da cidade de Maputo .
E, no entanto, a qualidade e a repercussão desta edição, nota-
Isabel Macie bilizou‐se pela permanente procura de estórias, experiências, re-
Vereadora do Pelouro de Cultura e Turismo
sistências e culturas comuns, enriquecendo e completando olhares
e intervenções cívicas “ Por isso, precisamos de aprender a nos com-
preendermos e a nos protegermos, para além de ser importante
expandir ideias de democraticidade, para uma melhor cidadania.
Assim, a Literatura será chamada a re‐educar o mundo”, sintetizou
Sara Jona na sua comunicação.
Importará ainda reafirmar que, apesar das restrições impostas
pela pandemia, a Feira do Livro de Maputo, construiu um espaço
contínuo de reflexão mais amplo sobre a democratização e a aces-
Importará ainda reaf- sibilidade ao livro e a leitura,” esta edição almeja identificar leitu-
ras e escritas para alimentar sonhos e utopias como forma de nos
irmar que, apesar das aproximarmos continuamente, nós, escritores, editores, ensaístas
restrições impostas pela ou simples leitores, pensando na crise como pretexto para autossu-
peração”, assim, classificou Eneas Comiche, Presidente do Conselho
pandemia, a Feira do Liv- Municipal de Maputo, na cerimónia da abertura.
ro de Maputo, construiu Por outro lado, testemunhou‐se a plena conjugação do papel da
Cultura, a promoção do Turismo, o desenvolvimento das artes e do
um espaço contínuo de pensamento na edificação de uma “Cidade Criativa”.
reflexão mais ampla so- Maputo propôs-se o enorme desafio de assumir a herança par-
bre a democratização e a tilhada, procurando elevar a um novo figurino, onde a pluralidade,
as experiências de vozes e geografias literárias se apresentam como
acessibilidade ao livro e a síntese da consolidação do esboço das perspectivas e desafios fu-
leitura turos da preservação da memória literária.
Assim se vai completando o desígnio do tributo a diversidade
cultural e de assumir Maputo como destino cultural a partir deste
infindável território de fronteiras invisíveis, que é a literatura.
A realização anual da Feira do Livro, pelo Conselho Municipal de
Maputo é também um símbolo de uma “Cidade Criativa” no geral e
“Cidade Literária” em particular.
Até ao próximo futuro estaremos aqui a cimentar livros e leituras.

FEIRA DO LIVRO 59
Viquipèdia

ORGANIZAÇÃO PATROCÍNIO

Você também pode gostar