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O CAVALINHO E O VELHO MOCHO Apos um trabalho de parto muito doloroso e muito longo, uma espléndida égua parda conseguiu dar o seu potro ao mundo. Lambeu-o todo para o limpar e, ao fazé- -lo, apercebeu-se de que infelizmente o seu potrozinho tinha a pata traseira ligeiramente atrofiada. O seu companheiro, 0 chefe grande e forte cavalo de cor preta luzidia, ficou muito decepcionado por ter um filho com aquela deficiéncia, mas a m&e égua pouco ou nada se importou. Para ela, o filho, com a sua pequena anomalia, era o mais lindo dos cavalinhos do mundo. Como é€ costume, 0 potrozinho logo se pds de pé sobre as suas quatro patas, mas ao caminhar tinha um problema: coxeava. Os outros cavalos e potros faziam troga dele e até Ihe puseram a alcunha de o Coxo. O nosso potrozinho, o Coxo, era todo branco com uma marca negra entre os olhos, em forma de estrela. Asua mae, com todo 0 amor, disse-lhe: —N&o te preocupes, meu filho, essa tua marca negra entre os olhos 6 uma estrela e ela ha-de guiar-te sempre: estou certa de que has-de ultrapassar o teu pequenino problema. O potro respondeu, tristemente: ~ Mas, 6 mae, nao é nada um Pequeno problema! Eu nunca poderei correr como os outros cavalos! Eu nao consigo, e eles esto sempre a fazer troga! Chamam-me 0 Coxo! Sinto-me posto de parte! E ame, maravilhosa como sé as mes sabem ser, disse-Ihe: — Nao te preocupes, meu filho, tenho a certeza de que isso ha-de ser ultrapassado. Confia em ti e con- fia em mim: havemos de arranjar uma solugdo, e seras como os outros. Um dia, estava a égua no prado, com o seu filho- te Coxo ao pé de si, quando passou uma aguia no céu. A égua relinchou 0 mais alto que pdéde para chamar a atengdo da guia, que acabou por a ouvir. Pousando ao pé deles, perguntou: — Porque me chamaste tu? — Eu preciso de ti, minha amiga dguia. Eu sei que bem longe de nés, numa floresta, no cimo de uma grande montanha, vive um mocho muito velho. A minha mae ja me falava dele. Sei que esse mocho é um bom médico e que ele podera tratar o meu filho. Por favor, procura-o, © quando o encontrares vem avisar-me, que eu quero ir visita-lo com o meu filho. A guia aceitou 0 pedido de imediato e, batendo as suas fortissimas asas, levantou voo. Passados apenas dois dias, a égua, espantada, viu a aguia regressar e, tranquilamente, pousar ao pé dela. Apenas uns minutos antes, estava a égua sozinha e triste a pensar: «Que destino podera ter o meu filho, coxo, numa manada de cavalos? Seguramente, salvo milagre, ele nunca podera suceder ao seu pai com aquela deficiéncia.» A aguia, vendo-a tao triste, perguntou-lhe: ~O que se passa contigo? Porque estas tu tao triste? - Estou desolada porque nao quero dizer ao meu filho que com a sua deficiéncia ele nunca podera vir a ser o chefe dos cavalos! Ele nunca podera suceder ao pai, e isso déi-me tanto como s6 uma mae pode entender. E a aguia disse: — Alegra-te! Trago-te uma boa noticia: ja sei onde vi- ve o mocho que procuras. Se tu e 0 teu filho me seguirem, eu levo-vos até ele: quando me virem pousar no topo de uma enorme arvore, vao até ela e encontrar&éo 0 mocho Mas cuidado, que ele nao ouve! Mas continua com todo o seu saber! A égua sé teve tempo de dizer: — Espera um minuto, por favor, que eu chamo ja o meu filho. Relinchando da forma especial que 0 seu filho tao é muito velho, quase nao vé, quase bem conhecia, como que a dizer «vem, meu amor, que 19 eu vou cuidar de ti», a égua chamou 0 seu filho, que logo apareceu no seu trote de cavalo coxo. ~— Filho, acompanha-me: vou levar-te ao velho mo- cho! O melhor médico de cavalos! E virando-se para a aguia disse-Ihe: — Voa, mas n&o muito depressa, porque sendo o meu filho e eu teremos dificuldade em acompanhar-te. - N&o te preocupes, que eu sei - retorquiu a aguia. Entéo ergueu-se nos ares e, devagarinho, foi-lhes mostrando 0 caminho. A gua e o seu filho coxo cavalgaram lentamente durante dois dias, até que por fim viram a Aguia pousar no topo da maior arvore da pequena floresta, no cimo de uma montanha. A m&e égua percebeu que era ali que vi- via 0 mocho de que lhe tinha falado a sua falecida mae. Segundo esta, ele seria 0 médico mais extraordinario do mundo animal... A égua relinchou de alegria e esperanga para agra- decer a aguia, e disse ao seu filho: — Vem, nao tenhas medo, eu sei que vamos con- seguir, e a tua estrelinha negra vai ajudar-nos. Tu vais ter sorte na vida. Aproximando-se lentamente da arvore, a mae égua olhava com atengao para ver se conseguia ver o mocho. De stbito, numa das ramagens médias da arvore, vis- lumbrou um grande mocho: J tinha as penas a volta dos 20 olhos todas brancas, assim como as de cima da cabega. Via-se pelo seu olhar que era j4 um mocho bem cansado e bem velho mas muito bom e sabio. A égua disse ao filho: —Espera um minuto. E aproximou-se, relinchando baixinho como que a suplicar e a pedir desculpa por incomodar. O mocho, que ja via mal, ouviu um cavalo a aproximar-se e abriu os olhos. Embora vivendo de noite e possuindo olhos de visao nocturna, o que viu foi suficiente: viu uma magnifica égua parda a aproximar-se e viu sobretudo nos olhos da égua uma tristeza misturada com um profundo amor e com uma esperanca infinita. E 0 sabio mocho perguntou- -lhe, embora ja o soubesse: —Diz-me, porque vens até mim? ~Vim porque a minha boa mae, que ja nao esta en- tre nds, sempre me falou da tua existéncia e sempre me disse que eras o melhor médico do mundo para todos os animais, e sobretudo para nés, os cavalos. Venho pedir-te ajuda. ~Conheci bem a tua dedicada m&e e éramos bons amigos. Mas o que se passa contigo? E a égua logo Ihe explicou: ~ Passa-se que eu sé tenho um filho, que nasceu ha um ano, mas ele nasceu com um pequeno problema no membro posterior esquerdo. A pata nao esta bem firme, tem uma anomalia, 0 que o impede de correr e de ser tao forte como os outros. A continuar assim, 0 meu filho, que tem um grande coragao, nunca podera suceder ao seu pai como chefe da manada dos cavalos! O mocho olhou bem para os olhos da. égua e disse-lhe: — Chama o teu filho, eu sei que ele esta por perto. A gua relinchou do modo que sempre fazia quando queria chamar carinhosamente o filho. O potro, a medo, aproximou-se, coxeando devagarinho, e colocou-se ao lado da sua mae. Ent&o 0 velho mocho, olhando bem para ele, disse: — Da uma volta em torno da tua mae para que eu veja como andas e examine bem a tua pata. Deixa-me descer da arvore para observar melhor. Eo mocho, num voo rapido, aproximou-se da égua e do seu filho e pés-se a analisar como o potro andava, troteava, galopava, e rapidamente viu que tinha solugéo para o problema. Voltando para o galho na sua arvore, disse aos dois: ~ Escutem-me bem, porque ja nao me resta muito tempo de vida. Estou muito velho e can- sado e ja cuidei de muitas geragdes de cavalos, e tu seras certamente o Ultimo que tratarei: estava a tua espera porque sabia que virias, e desde ja te posso garantir que tu seras um grande chefe. — Como? - perguntou o potrozinho. - Como poderei ser eu um grande chefe e um dia suceder ao meu pai? Sendo coxo, nao consigo cavalgar como os outros! Como vai ser possivel? Como? - N&o te preocupes — disse 0 mocho. — Eu estava & tua espera. Tu és 0 cavalo branco com uma estrela negra na testa, filho de uma mae exemplar. O teu pai 6 um chefe que bem conhego: tenho-o observado a noite, e ele é um bom chefe. Embora seja exigente e por vezes rude, ele ama-te muito. Anda um pouco preocupado com a tua situagao, 0 que € normal, pois pensa no futuro da sua manada e esta dividido quanto a decis&o a tomar, entre o seu amor de pal € o seu dever de chefe! E estou aqui para resolver o teu problema e o teu dilema: Ouve-me bem! Todos os dias de manha, durante trés horas, tu vais andar na lama que fica a cerca de duas horas a norte do sitio onde vocés vive. Eu proprio vou mostrar-vos onde é. Mas vais ter de fazer isso durante um ano. Apés um ano, a tua pata ha-de estar tao forte como as outras, e entao tu poderas cavalgar e mostrar tudo o que vales. Teras é de fazer isso sem ninguém saber, a nao ser a tua mae. Sera duro, teras de sofrer, mas 0 teu sacrificio sera recompensado! E assim foi. Logo que a noite chegou, 0 mocho levantou voo. Felizmente era noite de luar, e a égua eo seu filho foram-no acompanhando devagar, até chegar a0 pantanal cuja lama faria, segundo o mocho, téo bem pata do potro. Foi ent&o que o mocho Ihes disse: - Ea ultima vez que nos vamos ver. O meu tempo esta a chegar ao fim, mas nao Podia partir sem primeiro tratar de ti. Nao tenhas medo, ndo te preocupes, tudo vai acabar bem. Acredita na tua estrela porque tu nasceste Para suceder ao teu pai. Tem confianga em ti, e tudo vai resultar. Mas faz o que te digo: um ano! E sempre trés horas todas os dias no lodo, ouviste-me bem? 24 — Ouvi, ouvi. -Acreditas? —Acredito, acredito! A mae égua disse ent&o: — Nao te preocupes, mocho sabio, eu estarei por | perto. | O velho e sabio mocho levantou voo e com as suas asas acariciou a cabeca do potro e a da sua mae, dizen- do-lhes: —Fiquem tranquilos, tudo vai acabar em bem. Quan- to amim, é tempo de descansar para a eternidade, adeus e até um dia. E foi assim que durante um ano, trés horas por dia, 0 potro se espojou na lama do pantanal, com particular atengao para a sua fraca pata. As suas pernas foram ganhando forga, e a \_ pouco e pouco a sua pata defeituosa foi-se moldando, moldando, até atingir a perfeigao das outras trés. Com muito esforgo e sacrificio, apoiado pela me, o nosso potro conseguiu! Num ano, nem mais um dia, transformou-se num magnifico cavalo. Foi entao ter como pai e disse-lhe: — Pai, eu estou bem e posso enfim correr, de igual para igual, com os potros da minha idade. ~ Mas como, filho? Tu queres mesmo correr? ~Pai, por favor, faga.o que Ihe estoua pedir: organize uma corrida, eu estou pronto. ~ Estas mesmo pronto? — perguntou o pai. — Faz 0 que o nosso filho te pede — intercedeu a mae = organiza uma corrida de cavalos, para todos os cavalos jovens da nossa manada! O nosso filho quer mostrar-te aquilo de que é capaz E assim foi, Para enorme espanto de todos, nessa corrida em que todos os cavalos acabaram por participar, © nosso potro, agora com dois anos, demonstrou a sua raga e também que era digno de suceder ao seu pai. Quando acabou a corrida, relinchando de alegria, aproximou-se dos pais e, beijando primeiro a mae, disse ~ Mae, sem ti nada teria sido possivell Depois, chegando-se ao pé do pai. ~ Pai, eu sei que o pai andava triste e que me ama. Agora estou pronto para andar ao seu lado, e um dia, quando o pai assim o entender, eu estarei preparado para assumir 0 comando. 26 E o pai, com um orgulho desmedido na voz, res- pondeu: — Sim, meu filho, é verdade! Pego-te desculpa por ter duvidado. Estas magnifico e seras, na altura certa, um grande chefe. Dou gracas a Deus por teres tido a mae que tiveste. Eamiéae disse: = Nao fui eu! Foi o mocho! -O qué? Como? — perguntou 0 pal. —~O mocho, 0 velho mocho de que a minha mae me falava quando éramos jovens. — Ah! — disse o pai. - Bem sei! Eu vi-o passar tantas vezes a noite por cima de mim, mas nunca consegui falar com ele! Sei que era nosso amigo, mas ja era tao velhinho... _ E verdade — disse a égua. — Agora ele foi descan- sar, mas 0 que ele tinha prometido cumpriu-se, e 0 NOSSO filho esta magnifico. — E rematou: — E se féssemos correr os trés? — Vamos, somos uma verdadeira familia, unida! Eos trés, pondo-se a galope, relincharam de alegria e satisfagao por se terem reencontrado. Os pais sentiam- -se felizes por terem de volta o filho com que sempre ti- nham sonhado e que um dia, estavam certos, seria um chefe da manada bom e justo. 3 E algures | no céu, 0 velho mocho, na sua nuvem azul, sorria, pensando: «Acabei bem a minha carreira como médico! Agora espero por eles, & quando chegarem aqui ainda havemos de ter muitas historias para contar...»

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