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Os números que contam a história:

demografia e vida social na Freguesia de Porto Seguro em 1836.

Em 12 de outubro de 1837, o padre José Tibúrcio de Santana encaminhou à


Presidência da Província da Bahia um documento intitulado “Mappa popular da
Freguezia de Nossa Senhora da Penna de Porto Seguro”. Resultado de uma “tarefa
fastidiosa e longa”, este mapa estatístico apresentava dados quantitativos da população
da vila de Porto Seguro, classificando seus moradores por meio da identificação étnica e
condição jurídica. Por trás dos números apresentados é possível desvendar a vida social
da Freguesia, refletindo sobre o conjunto de relações sociais vividas por seus
moradores.
A Freguesia de Porto Seguro era bastante extensa, fazendo fronteira ao norte
com a Povoação de Santa Cruz e ao sul com Vila Verde. Além da Igreja Matriz,
existiam outras três igrejas filiais, sendo uma delas situada no Arraial d´Ajuda. Para
cuidar dos templos religiosos, moravam na Freguesia três sacerdotes: um português e
membro do clero secular e os outros dois capuchinhos italianos. Ao todo, os sacerdotes
davam atenção espiritual e civil a 2084 fregueses, que representavam o total de
moradores da Vila de Porto Seguro.
Estes habitantes formavam uma vila multi-étnica e repleta de desigualdades. No
mapa estatístico do padre José Tibúrcio foi registrado oito categorias étnicas (brancos,
pardos, cabras, caribocas, mamelucos, índios, criolos e africanos), subdivididos em dois
tipos de estatuto legal (livres e cativos). A classificação de um indivíduo em uma destas
categorias étnicas dependia não somente da cor da pele, mas, também, levavam-se em
consideração outras características físicas e sociais, tais como as redes de compadrio e
parentela e a inserção no mundo dos brancos. Entretanto, a condição de escravo recaia
apenas sob indivíduos “de cor”, excetuando-se, portanto, os brancos.
A Freguesia de Porto Seguro possuía uma população escrava relativamente
reduzida. Dos 2084 habitantes, apenas 429 eram cativos, representando um total de
20,4% da população. Neste mesmo período, os grandes centros urbanos e produtivos da
Província da Bahia, como Salvador e Cachoeira, tinham uma média de 45% da
população como escravos. A diferença de números pode ser explicada por dois fatores:
primeiro, a economia de Porto Seguro era predominantemente voltada para a atividade
da pesca; segundo, a estagnação econômica da região e as dificuldades portuárias
impossibilitaram a inserção da vila na rota do comércio de escravos.
O comércio da Freguesia de Porto Seguro tinha na garoupa seu principal
produto. Segundo descrição do viajante Maximiliano, cada embarcação demorava de
quatro a seis semanas no mar. Em média, cada barco capturava de 1500 a 2000 peixes,
sendo uma pequena parte consumida pelos moradores locais e o restante exportada para
Salvador. O trabalho agrícola, por sua vez, ocupava lugar secundário, existindo apenas
um engenho de aguardente e algumas plantações de mandioca. Ainda de acordo com
Maximiliano, a maior parte da farinha de mandioca consumida em Porto Seguro vinha
da Povoação de Santa Cruz. Este tipo de economia permitia uma reduzida mão-de-obra
escrava, pois a principal atividade lucrativa da vila era executada por meio de trabalho
livre ou semi-escravo, realizado por índios, pardos, mamelucos, criolos, cabras e
caribocas.
O mapa estatístico também possibilita adentrar no curioso mundo das relações
interétnicas em Porto Seguro. Segundo os dados apresentados pelo padre José Tibúrcio,
a segunda maior parcela da população era mestiça (34,3%), sendo distribuída entre as
categorias de pardos, cabras, caribocas e mamelucos. Chama atenção a predominância
da descendência indígena, uma vez que mamelucos, pardos e caribocas são resultados
da mistura de índios com brancos, mulatos e negros, respectivamente. Esta característica
étnica pode ser resultado da política pombalina aplicada na região na segunda metade
do século XVIII, quando se obrigou o convívio e a união entre índios e não-índios. Vale
destacar que ainda em 1836 existia na Freguesia de Porto Seguro um montante de 123
índios.
As relações interétnicas não se resumem ao casamento entre etnias distintas. É
preciso notar que cada grupo étnico ocupava um lugar determinado na produção social.
Dos 429 escravos existentes na Freguesia, 53 eram pardos, 25 eram cabras, 158 eram
criolos e 193 eram africanos. A maior parte dos indivíduos livres, excetuando-se os
brancos (765 pessoas), era distribuída entre indivíduos mestiços: 512 pardos, 38 cabras,
35 caribocas, 52 mamelucos, 123 índios, 111 criolos e 19 africanos. Sendo assim, os
indivíduos “de cor” ocupavam o lugar do trabalho, sendo objeto da exploração,
expropriação e opressão dos brancos.
Os números escritos pelo padre José Tibúrcio de Santana não se limitam a uma
simples descrição quantitativa da Freguesia de Nossa Senhora da Pena de Porto Seguro.
Eles também contam a história da vila, apresentando informações interessantes sobre o
cotidiano, as relações sociais de produção, as relações interétnicas e a composição
social. Por meio destes números tivemos contato com uma vila multi-étnica, com
predominância de descendentes indígenas, que possuía uma sociedade hierarquizada,
caracterizada pela exploração e opressão aos indivíduos “de cor”.

Francisco Cancela – professor de história e doutorando em História Social na UFBA

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