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UMA BREVE ARQUEOLOGIA – ANOTAÇÕES SOBRE CRÍTICA NA ANTIGUIDADE

Wellington Ferreira Lima

Por que interpretar? Quando a prática interpretativa de um texto se faz necessária? A


partir de que ponto a experiência do texto prescinde da impressão imediata (como a da
música para um leigo) para exigir uma busca de sentido que extrapola o efeito sensível? Os
capítulos seguintes deste livro, cada um deles, conduzirão seus esforços à prática
interpretativa em diferentes formas, em diferentes objetos. A necessidade dessa prática é a
motivação deste (e de muitos outros livros) e, antes destes exercícios, propriamente ditos,
as próximas páginas tentarão conduzir o leitor a uma pequena reflexão sobre as origens
dessa prática na nossa cultura escrita, hegemonicamente greco-romana-cristã.
Como nos propomos a encontrar um sentido, digamos, arqueológico da prática, o
rastreamento histórico do significado da palavra poderia nos ajudar? Interpretar deriva do
latim interpres (medianeiro, mediador), daí a prática do intérprete como o intermediário
entre um sensível e um inteligível. Esse sentido chama atenção para um sentido oculto, ou
implícito no texto, já que o acesso a ele não pode se dar diretamente. Esta consideração já
nos lança a um momento outro que aquele descrito por Georg Lukács como a era da
epopeia. Pelas ideias desse autor marxista, a interpretação como passagem do empírico para
o racional só pode acontecer após a quebra de unidade entre alma e universo. Interpretar
poderia ser a tentativa de religar esta unidade perdida. Voltaremos a essa idéia dentro em
pouco.
Os gregos usavam para a prática interpretativa três diferentes palavras, todas ainda
correntes em nosso vocabulário: filologia, crítica e gramática. A primeira palavra tem
circunscrição difícil. Filólogo aparece em Platão (Legg.) como oposição à braquílogo
(taciturno, de pouca fala), significando, pois, falador. Noutra obra (Rep.), ela aparece em
contextos em que poderíamos usar “douto”, “erudito” ou, mesmo, “filósofo”. Isso pode nos
fazer pensar sobre as práticas simposiastas em que se transformam os exercícios sobre os
textos homéricos, como afirma Jean-Cristophe Jolivet.
Toutefois, au fil du temps, la pratique des quaestiones
philologiques et mythographiques connaît dans le monde
romain la même évolution que dans le monde hellénistique ;
d’une activité nettement philologique, elle devient passe-
temps lettré, souvent dans un cadre symposiaque et se fige
également en méthode d’apprentissage scolaire;1

A palavra crítica deriva do verbo krinein, separar, por extensão, decidir. O exercício
da crítica nasce de discernir significados primitivos para os textos, decidir o que eles, de
fato, significariam primitivamente e o que não procederia.
A origem da gramática é largamente conhecida. Gramática, derivado de gramma,
letra. A gramática origina-se como estudo dos textos escritos. O que para nós,
contemporaneamente, veio a significar a descrição ou sistematização de regras linguísticas,
tinha um âmbito muito mais extenso, preocupando-se com a descrição linguística séculos
mais tarde de sua origem, entre os alexandrinos.
Essas etimologias apontam para momentos ou para facetas da prática interpretativa,
mas não os explicam. Podemos perceber que os termos remetem a esta ou aquela forma de
saber do mundo antigo, mas ainda não encontramos a origem da necessidade desses
saberes. Vamos operar uma abordagem mais propriamente histórica para cercar melhor a
questão.
De certa forma, as palavras (filologia, gramática e crítica) têm uma especialização de
sentido ao se aproximar da literatura. Segundo T. S. Eliot, “Falar de poesia é para nós uma
parte, uma extensão da experiência que temos dela.”2. A fala de Eliot nos chama a atenção
para um ponto importante do exercício crítico: ele é parte da experiência, não de qualquer
texto, mas do texto literário. Se partirmos de uma ideia que se tornou corrente no século
XX, a ideia de que a literatura é a consciência da linguagem, a crítica é a tomada de
consciência dessa consciência. Interpretar um texto torna-se parte da experiência do texto
quando nos damos conta de que esse texto se concretiza como uma consciência de

1
JOLIVET, J-Cristophe. (2008:3). “No entanto, ao longo do tempo, a prática das quaestiones filológicas e
mitográficas conhece no mundo romano a mesma evolução que no mundo helenístico; de uma atividade
naturalmente filológica, ela se torna passatempo letrado, muitas vezes um âmbito simposiasta e se fixa
também em método de aprendizagem escolar.”
2
ELIOT, T. S.. apud MESCHONNIC, Henri. Em prol da poética. In COSTA LIMA, Luiz. (2002: 40)
linguagem, quando nos damos conta desse chamar atenção para a linguagem em seus
diversos níveis. Desta especificidade, partimos para nosso brevíssimo histórico sobre as
primeiras manifestações do exercício crítico literário.
É de conhecimento relativamente comum que primeiras manifestações literárias
nascem dos mitos antigos. Um olhar sobre essa passagem de mito à poesia será nosso
primeiro passo para entender o surgimento da crítica como parte da literatura propriamente
dita.
A literatura ocidental tem como seu ponto de partida um hemistíquio homérico:

Mênin aeide, Thea, Peleiadeo Aquileos...3

A estrutura que se tornou conhecida como “Invocação à Musa” nos manuais literários,
por sua recorrência em toda a produção épica posterior, merece, em Homero, uma
particular observação4, uma vez que as epopeias seguintes retomavam o modelo homérico,
enquanto os modelos deste não podem ser outros senão os da tradição oral pan-helênica.
Homero inicia a obra circunscrevendo, numa só palavra, o leitmotiv do canto (a cólera), e,
num imperativo, chama a musa a cantar. A invocação da musa aparece como uma das
marcas da tradição oral e mítica grega. As culturas arcaicas indo-europeias dispõem, cada
uma, de uma figura particular responsável por transmitir as histórias antigas: escaldos, vates
ou, no caso dos gregos, os aedos. Os textos pronunciados por esses homens possuem,
sempre, um caráter diferenciado, relacionado a alguma característica divina desses cantos,
advindos, de alguma forma, do sagrado.
O próprio Homero, na Odisséia, nos apresenta dois aedos: Demódoco e Fêmio. O
primeiro deles se apresenta na corte do rei Alcínoo, na Feácia. Demódoco narra com
precisão o ocorrido em Troia, fazendo Ulisses ir às lágrimas e revelar seu disfarce, embora
não estivesse na famosa guerra. Doutra parte, Fêmio, em Ítaca, narra um Ulisses – que à
ocasião já se encontrava em sua terra natal – morto no retorno para casa. Diferencia esses
dois cantores a sua relação com a Musa. Enquanto Fêmio se declara autodidata, tendo um

3
HOMERO. Il. I, 1, “A ira canta, Deusa, do pelida Aquiles”
4
Daremos a esta leitura um caráter meramente apresentativo da questão, para uma detalhada e brilhante
análise sobre a Musa, nos textos homéricos e hesiódicos, em sua relação com as marcas da produção literária
recomenda-se BRANDÃO, J. Lins. Antiga musa (arqueologia da ficção). Belo Horizonte, FALE/UFMG,
2005.
deus que faz brotar seus cantos, e canta obrigado pelos pretendentes, Demódoco é
convidado do rei e canta apenas aquilo que a “Musa pois o impeliu a cantar”5. A Musa,
filha da Memória e de Zeus, traz um canto extático carregado da plenitude divina que
presentifica o narrado.
Os mitos aparecerão em diversos rituais em que se invoca a força essencial ‘daqueles
tempos’, como entre os Santali6, em que o guru recita o mito cosmogônico apenas duas
vezes na vida de cada indivíduo: quando de sua emancipação social e em seus funerais. 7
Nos Kumulipo8, os dançarinos de hula cantam durante a gestação dos príncipes, trazendo a
potência criadora das origens para a gestação do novo soberano. Ficam evidentes as
propriedades da enunciação das histórias dos Entes e da cosmogonia, inclusive, como
técnica fisiológica além de iniciação – ou origem – para o espírito. A enunciação do que foi
feito in illo tempore é de certa maneira sua repetição, a repetição do momento da criação e
a invocação de seu poder.
Os mitos representam, em sua volta ao passado, acesso aos segredos das origens e,
portanto, o poder sobre as coisas criadas, além de o poder para realizar novamente aquilo
que serviu de “modelo exemplar de todas as atividades humanas significativas”.9
Enquanto palavra que realiza, significa e ordena o mundo (o que poderíamos chamar
de função pragmática do mito ou práxis mítica), mythos confunde-se com logos (do verbo
legein, em seu sentido de primitivo de “deitar à vista”). As narrativas míticas da cultura oral
pré-homérica dispensavam qualquer tipo de interpretação, uma vez que deitavam à vista
tudo sem qualquer necessidade de intermédios. O sentido do mito reside em sua própria
locução.
Se o mito tinha sua realização plena enquanto palavra no ato da enunciação, as
canções dos aedos se configuram como uma hipertrofia da função ilocucionária da
linguagem, elas são um fazer que, ao mesmo tempo, pertence e extrapola o campo

5
Hom. Od. VIII, 73.
6
A antropologia dos povos aborígenes do Pacífico ou da América tem sido um recurso importante para
aproximações com a cultura européia pré-filosófica.
7
ELIADE (1963):27.
8
“hino genealógico ligando a família real, á qual pertencia, não somente aos deuses do povo inteiro,
adorados em comum com os grupos polinésios aliados, não somente aos chefes divinizados nascidos no
mundo vivente, os Ao, dentro da linha familial, mas ainda às estrelas do céu, às plantas e aos animais úteis à
vida terrestre” BECKWITH, Martha Warner. The Kumulipo. A Hawaiian Creation Chant. apud ELIADE.
(1963:26).
9
ELIADE (1963):25.
linguístico. O cantar, vindo das Musas, lembremos, filhas da memória (Mnemosine) e do
poder ordenador do mundo (Zeus), “acontece” ao mesmo tempo que narra, ele traz ao
presente as transformações daqueles entes sobrenaturais (heróis ou deuses) que atuaram in
illo tempore. Este mito é como uma narrativa sempre inacabada, que se realiza apenas no
presente, no canto que une o ato do passado e seus produtos empíricos.
As narrativas homéricas, carregadas de marcas dessa oralidade (como as estruturas
repetidas) são as últimas testemunhas da tradição com que, paradoxalmente, rompe no ato
de sua composição. Uma vez a narrativa no novo meio, a Musa e o aedo estão excluídos do
processo que passa a poder fundar-se na relação público/papiro, sem intermédio de
qualquer terceiro.
A escrita representa um corte no modo tradicional de transmissão das narrativas. A
transmissão desses textos (agora, escritos), na especificidade dessa troca de material será
importante para nossa reflexão e cabe, portanto, que dediquemos algumas linhas à
transmissão do texto homérico através do tempo.
Os textos homéricos estão presentes no cânon literário desde, pelo menos, o século VI
a.C., o que nos oferece abundância de fontes. O texto de que dispomos, hoje, vem do
trabalho edótico feito em diversos códices e papiros, os mais antigos datados dos últimos
anos antes da era cristã. Não temos registros dos textos de Homero da época em que estes
teriam sido produzidos ou em época imediatamente posterior, à exceção de algumas
referências em cerâmica e, quiçá, Hesíodo, se considerarmos intertextualidade direta e não
coincidência de tradições recebidas a semelhança entre o verso 27 da Teogonia – “idmen
pseudea polla legein etymoisin homoia,”10 – e o verso 203 do XIX livro da Odisséia –
“iske pseudea polla legôn etymoisin homoia”11 –, o que poderia nos remeter à pista de uma
possível transmissão de Homero mais representativa já nos tempos de Hesíodo (± 700 a.
C.); de qualquer forma, temos referências, não objetos propriamente analisáveis.
O que provavelmente chamaria a atenção de um leitor contemporâneo desavisado é o
volume de comentários às margens dos poemas propriamente ditos. A título de exemplo
apenas12, podemos citar como aparecem os códices homéricos da Idade Bizantina. Nesses
10
Na tradução de Jaa Torrano: “sabemos muitas mentiras dizer a fatos semelhantes.”
11
Em tradução de J. Lins Brandão: “representava muitas coisas mentirosas dizendo coisas semelhantes a
fatos”
12
Um levantamento bastante minucioso da matéria pode ser encontrado no num volumoso trabalho de quase
20 anos (os volumes são publicados entre 1969 e 1988) de Hartmut Erbse, Scholia Graeca in Homeri Iliadem.
Embora seja um livro alemão (Walter de Gruyter & Co.), todo o trabalho é redigido em latim e grego, o que
códices, podemos distinguir escólios de duas categorias, no mínimo. À primeira, é comum
dar-se o nome de Scholia minora ou Didymi ou, simplesmente “D” (embora esses scholia
recebam o nome do gramático alexandrino, hoje, há consenso de que as anotações não
tenham sido feitas por ele, mas o nome permaneceu por convenção e tradição).
Encontramos, basicamente, três tipos de anotações (ou comentários) nesta categoria:

i. explicações de palavras raras;


A composição do texto homérico é bastante complexa. Muita tinta já foi usada
debatendo-se sobre a questão, e os pontos em que há relativo consenso são que a matéria
que o constitui fora dada a priori pela tradição oral pré-existente na Hélade e que Homero
(seja lá “quem” ou “o que” tenha sido) reuniu os diversos cantos (que compõem, no texto
de que dispomos hoje, os muitos episódios das epopeias) costurando-os13 ao redor do tema
central de cada uma das epopéias, quais sejam, a ira de Aquiles e o herói ardiloso. O
resultado disto é a multiplicidade do texto homérico dentro de uma unidade narrativa. Uma
das multiplicidades que encontramos na Ilíada é a de variedades linguísticas. É
indispensável que nos lembremos sempre de que a Grécia, como uma nação, ou os gregos,
como um povo, não são simplificações fáceis de se fazer. As regiões da península foram
ocupadas, sucessiva ou concomitantemente, por grupos diferentes. Isso resultou numa
variedade rica de dialetos que, de certa forma, estão presentes no texto de Homero. A Ilíada
é majoritariamente composta pelos dialetos jônico e eólico; em menor proporção, o ático e
o arcado-cipriota participam do poema, mas os trabalhos mais recentes de tradução dos
textos micênicos apontam até mesmo para resquícios deste idioma em formas sobre as
quais antes pesavam dúvidas. Ora, o micênico é uma língua em declínio desde o século XII
a.C., escrito num alfabeto silábico (o linear B) diverso do usado pelas comunidades gregas
do período arcaico ou dos períodos seguintes. Associemos a isto a condição de que, como
um canto que viria do numen, os cantos dos aedos provavelmente não se expressariam por
uma linguagem que se confundiria com o cotidiano, mas certamente por uma linguagem
que, pelas escolhas lexicais ou formais, fosse carregada da grandiloquência e da solenidade
que se espera de um canto atemporal.

torna a leitura muito difícil à maioria dos leitores.


13
Lembremos que uma tradução possível para rapsodo é “costurador de cantos”.
Tudo isso nos faz pensar que, logo que o texto escrito começasse a circular e a leitura
apresentasse as exigências de compreensão que a experiência estético-religiosa das
audições não possuíam, as perguntas sobre o significado de determinadas palavras
incomuns fosse questionado, como, por exemplo, se a palavra aiolos poderia, ou não,
significar “variado”.
Há mais referências a práticas semelhantes, inclusive em outros poetas de épocas
posteriores. Com efeito, boa parte dos poetas da antiguidade era de eruditos que se
dedicavam a, digamos, uma ciência literária avant la lettre14. A título de ilustração, cito que
Porfírio nos dá testemunho dessa prática em Calímaco:

“não se deve ficar incomodado se algum dos homéricos


escapa à observação da maioria dos estudantes de hoje em dia
vendo que a diferença entre harmatrochia e hamatrochia
escapou mesmo à observação de Calímaco que tem a
reputação de ser muito preciso e douto.”15

ii. interpolações ou narrações;


Também conhecidas por ἱστορίας (historias), as anotações nos códices trazendo
informações sobre determinados lugares e personagens míticos são valiosas fontes para
estudos mitográficos. Muitas informações encontradas nestes scholia são as únicas
referências a determinadas variantes de algumas narrativas míticas, como por exemplo,
uma versão para a breve estada de Teseu e Ariadne na ilha de Dia, encontrada em anotações
à Odisséia atribuídas a Eustáquio. Graças a essas marginálias, temos notícia de uma versão
em que Ariadne é morta pela deusa Ártemis em Naxos, por Dioniso a ter denunciado de
impiedade ao se unir a Teseu em lugar sagrado.16 Em outro escólio, este atribuído a
Ferécides, temos a única atestação escrita de uma versão desse mito que encontramos em
algumas cerâmicas datadas do início do século V a.C., uma versão em que aparece a figura
de Afrodite prometendo a Ariadne que Dioniso desposaria a princesa cretense, um papel da
deusa difícil de se deduzir apenas pelo dado iconográfico.

14
Estrabão chama Philetas de Cós de poeta e crítico no livro XIV de suas Geographica.
15
PORPFIRIO. Questões Homéricas. 15, 7ss. Estabelecido por John A. MacPhail Jr.
16
CALAME, Claude.1990:106.
Como no caso anterior – o das uerba rariora – constatamos que os eruditos tentavam
suprir uma possível deficiência de compreensão do texto homérico dando ao leitor
informações vocabulares e enciclopédicas (lembrando muito o que fazemos nas edições
contemporâneas com as notas de rodapé) das quais muito provavelmente o leitor comum já
não dispunha.
Apesar de já nos encontrarmos no âmbito do exercício da crítica textual, não seria
totalmente apropriado dizer que se trata de uma prática de interpretação. O trabalho crítico,
nesse passo, ainda está ligado à descrição do fenômeno textual, talvez, diríamos, no âmbito
da análise, mas ainda não estamos interpretando no sentido de encontrar um significado
oculto do texto, mas estes scholia apenas resgatam elementos que o tempo teria tornado
ininteligíveis.

iii. interpretações escolares;


Aqui começamos, talvez, a questão a que nos propomos pensar. As margens possuem
restos de leituras que, segundo Erbse (quae pueri Athenienses Homeri intellegendi causa
inde a quinto a. Chr. N. saeculo in schola discebant) 17, os meninos de Atenas, já desde o
século V a.C. faziam nas escolas. Isto nos chama atenção para a preocupação de uma
compreensão do texto não espontânea no século V a.C.. O texto, importante na paideia
grega, dispunha de entendimentos que, se às vezes se resumem à paráfrase, já começam a
demonstrar, cada vez mais, intervenções dos leitores sobretudo nos trechos em que, por
razões principalmente culturais, o poema homérico não correspondia mais ao ethos
helênico.

O terceiro grupo dentre os scholia Didymi já, de certa forma, prenuncia a segunda
categoria de scholia nos códices bizantinos: os Scholia Grammatica ou Maiora. Nesta
categoria encontramos anotações mais propriamente exegéticas, em que leituras de autores
antigos (sobretudo alexandrinos, como Aristarco, Nicanor ou Dídimo) buscam interpretar
por diversos meios – em Porfírio, por exemplo, busca-se interpretar as questões com
explicações a partir de quatro tópicos: dicção, costume, tempo ou carácter – os “problemas”
que o texto homérico apresentava, i.e., as passagens em que algo parecia incongruente aos

17
Op. cit. XI.
leitores atenienses e alexandrinos. Em Porfírio, os problemas eram formulados nos
seguintes termos: ilógico (alógon), impossível (adýnaton), impróprio (apréres), contrário
(enantion) ou conflituoso (mákhetai).
O muro dos aqueus (livro VII da Ilíada) é uma passagem que ilustra o que dizemos:
houve muito incômodo por parte dos críticos antigos no que se referia a esse muro, que,
apenas no décimo ano de guerra, os gregos se propuseram a construir (contrariando o mais
óbvio, que é a construção de defesas tão logo o terreno esteja dominado). Ainda mais
intrigante é o contraste entre sua construção (VII, 435-9) e sua destruição (XII, 25). Por que
razão a divindade levaria nove dias para destruir uma obra que os aquivos levantaram em
apenas um? Dois críticos, Crates de Mileto, e antes dele Calístrato, 18 propuseram a mesma
solução: a de que o texto precisaria de uma espécie de correção. “Nove dias”, na verdade,
deveria ser lido como um só dia, uma vez que Homero usa ordinariamente uma estrutura
em que após a expressão “por nove dias” sucede-se “mas no décimo dia...”.
Homero, como o mais importante escritor da Antiguidade 19, oferecia perguntas
semelhantes a esta que se multiplicavam e atingiam as mais variadas esferas: poetas,
filósofos e até imperadores. Suetônio testemunha como essas questões faziam parte dos
interesses do letrado imperador romano Tibério: "Quae mater Hecubae, quod Achilli
20
nomen inter uirgines fuisset, quid Sirenes cantare sint solitae." . A influência dessas
quaestiones, como as chamavam os romanos, se reflete, inclusive, em outros poemas. É
curioso como Dido questiona Eneias sobre as passagens em que Homero deixa detalhes
encobertos.

A infeliz Dido, e longo o amor bebia,


Muito de Príamo, inquirindo muito
De Heitor; que armas da Aurora o filho tinha,
Diomedes que frisões; que jando Aquiles.21

18
EUSTÁQUIO, II.
19
QUINTILIANO. Inst. Or. X, XLVI.
20
“ Qual a mãe de Hécuba, que nome Aquiles tinha entre as virgens, o que as sereia cantam estando sós.”
SUETONIO, Vita Tiberi. 70.
21
VIRGÍLIO. En. I, 785-8. Tradução de Odorico Mendes.
Os corcéis de Diomedes, os nomes de Aquiles, a mão ferida de Afrodite, muitas
passagens em que Homero não deixa explícitas as informações foram motivos para debates
de eruditos ao redor das possíveis interpretações das pistas textuais que, hipoteticamente,
deixara Homero. Esses jogos de eruditos e as passagens incompatíveis com a moral ou com
a lógica posteriores a Homero foram chamados por Aristóteles de zetema ou problemata.
Aristóteles não inaugurou a prática interpretativa dos problemata (o texto platônico é
famoso por apontar as dificuldades que os atenienses do Século de Péricles tinham em
aceitar ou compreender episódios homéricos sem uma leitura alegórica), mas o texto da
Poética é o primeiro em que os encontramos descritos e teorizados. A penúltima parte da
Poética (XXV) é lida atualmente, sobretudo, por ser aquela em que Aristóteles, talvez, mais
se aproxima de definir mimese, mas poucos se dão conta de que, nesse trecho, Aristóteles
apresenta as bases teóricas para um Problemas Homéricos, obra que Diógenes Laércio
pelos seus Vidas (5, 6, 27) acredita que fora escrita e da qual nós não temos notícia.
Deixando uma tradição que seria seguida por diversos críticos posteriores (entre eles,
o já citado Porfírio), Aristóteles divide os aporemata em cinco espécies: impossibilidade,
irracionalidade, imoralidade, contradição ou violação das regras da arte. Estas seriam as
críticas levantadas pelos, podemos chamar, detratores de Homero22, os quais se dedicavam
a levantar as supostas falhas do poeta.
Para responder às críticas dos detratores, os defensores de Homero propunham
indicações para soluções que se resumiam em verdadeiras metodologias de uma ciência
literária. Aristóteles declara a par das cinco críticas a existência de doze soluções. Essas
doze soluções não estão muito claras, dado o caráter quase de notas de aula que possui a
Poética. É de se esperar que na suposta obra perdida de Aristóteles as críticas e soluções
estivessem mais bem esmiuçadas (é de supor-se, inclusive, que fizessem parte do corpus
exotérico).
Deixamos ao leitor a proposta do quadro de críticas e soluções de A. Gudeman e
propomos um modesto contraponto a partir da distribuição linear dos argumentos no texto.

Quadro de Gudeman:
22
É difícil não pensar que Horácio (Epis. ad Pis. 357-8) não se utiliza de sua reconhecida e elegante ironia
para chamar atenção sobre estes críticos, na tradução de Jaime Bruna, “este [Quérilo], por duas ou três vezes,
sorrindo, chego a considerar bom e admirar, ao passo que me revolto quando o excelente Homero acaso
cochila;”.
I. crítica: impossível
solução: 1) pela arte
2) por acidente
II. crítica: irracional
solução: 3) tais como devem ser
4) tais como são
5) opinião comum
III. crítica: impropriedade
solução: 6) o moralmente chocante deve ser julgado, segundo pontos de vista
relativos
IV. crítica: contradição
solução: 7) observar o indivíduo que falou ou agiu
V. crítica: incorreção da linguagem
solução: 8) dialeto
9) prosódia
10) diérese
11) anfibolia
12) uso da linguagem

Nossa proposta, mais simplificada, elenca, pela ordem em que percebemos os


conectivos no texto, as doze soluções, quais sejam: impossível teleológico; erro acidental e
não de arte; tipo de representação (real, ideal, ou senso comum); hábitos temporais;
carácter; elocução (sentido contextual); metáfora; entonação (prosódia); pausa (diérese);
ambiguidade (anfibolia); usos linguísticos; polissemia.
A sistematização de problemas e soluções de Aristóteles será seguida, com uma ou
outra variação, por outros eruditos e abre a perspectiva para diversas outras interpretações,
até às mais sofisticadas alegorias, demarcando pontos de interesse no texto e possíveis
caminhos para as explicações.

****
Não seria possível chegar ao fim deste pseudo-prolegômeno sem citar o Papiro de
Deverni.
O Papiro de Deverni é o mais antigo papiro grego conhecido e está disponível aos
leitores brasileiros graças ao trabalho de Gabriela Guimarães Gazzinelli, publicado em
2007. O papiro foi descoberto no nordeste da Grécia, no ano de 1962, numa escavação de
seis tumbas, provavelmente de militares. O papiro era parte dos objetos que, supostamente
durante o rito fúnebre, seriam atirados ao fogo. Por contraditório que possa parecer, esse
rito ajudou a manter o papiro conservado. Parcialmente queimado, a carbonização impediu
a putrefação natural da fibra.
A datação dos túmulos aponta para fins de século IV a. C., mas essa não é a data
provável do texto do papiro. A opinião do reconhecido filólogo M. West é de que o papiro
não é um texto original, mas uma cópia, pois sugere a existência de interpolações na
suposta transmissão do texto. É provável que o texto seja do início daquele século.
Contudo, o mais interessante nesse papiro não é sua antiguidade (o que já seria digno
de nota), mas o conteúdo dos cerca de duzentos fragmentos que puderam ser recuperados.
O texto não pertence a uma tradição de textos conhecidos, mas a uma religião de mistérios
(o orfismo), o que dificulta muitíssimo o acesso às suas fontes. Os mistérios eram cultos
para iniciados que teriam introduzido entre os helênicos uma diferente perspectiva de post
mortem. Pelo que podemos ler em Homero, e pelos dados arqueológicos, podemos deduzir
que para aquele grupo, destituídos das phrénes e ao mesmo tempo da psyché23, os heróis
reduziam-se, independentemente de juízos morais, a um corpo inerte e a uma sombra no
Hades, uma não-vida. Assim se expressa Aquiles ao encontrar seu companheiro Pátroclo:

“Oh! Deuses! Certo é que na morada do Hades restam psiché e


imagem dos que morreram, mas sem nenhuma phrén!”24

Os mistérios (orfismo, dionisismo, eleusino) trazem uma nova perspectiva à religião


grega. Uma perspectiva de vida após a morte que poderia ser conquistada por ritos e
23
HOMERO. Il, XVI, 504-5.
“Arrancou a lança do corpo e atrás dela saíram as phrenes;
ao mesmo tempo lhe tirou a psyché e a ponta da lança.”
24
HOMERO. Il. XXIII, 64-65.
comportamentos, além do aprendizado que era alcançado apenas por iniciados. O segredo
em que esses ensinamentos se fechavam torna o referido papiro uma fonte primária
exclusiva, nos oferecendo um conhecimento concedido, já à época, somente para iniciados.
O papiro nos oferece uma ratificação da importância da poesia, já pressuposta, no
orfismo – lembremos que a katábasis (descida) e a anábasis (ascensão) de Orfeu se dão pelo
poder de sua música. Logo após a primeira parte do texto (dedicado a punições e a como
aplacar as divindades) inicia uma reflexão propriamente metapoética. Na coluna VII,
encontramos uma primeira afirmação sobre a necessidade de se buscar um sentido sub-
reptício do poético, na tradução de Gazzinelli.

“Pois a poesia é algo estranho e enigmático


para os seres humanos. E Orfeu, com ela,
não queria dizer enigmas disputados, mas em
enigmas dizer coisas grandes.”25

Como forma enigmática, a poesia precisa ser decodificada, interpretada, para que o
seu verdadeiro sentido possa ser conhecido pelos iniciados. Desta forma, o texto começa
um processo exegético propriamente dito. Na coluna VIII, o texto interpreta a partir da
expressão “Zeus tomou a força e o poder de seu pai”, que não há a suplantação de Cronos
por Zeus, mas que a fonte do poder de Zeus é seu pai.

“E Zeus, depois que, do seu pai, o poder divinamente decretado


e a força tomou nas mãos e a divindade gloriosa.’
Não se percebe que estes versos são hipérbatos,
e são assim, tendo esta forma: e depois que Zeus a força
do seu pai tomou e a divindade gloriosa.
É necessário, assim sendo, não entender que Zeus domina
o pai, mas que a força toma de junto dele.
Sendo de outra forma, contra os decretos divinos,”

25
Não reproduzimos as indicações de acréscimos ou dúvidas por não ser de nosso interesse as minúcias tão
necessárias ao fino trabalho de edição e estabelecimento de um texto tão fragmentário quanto de papiros
como este.
A interpretação recorre a uma técnica, relativamente simples, já prevista em
Aristóteles. Outras interpretações, no entanto, mais alegóricas também estão presentes no
texto, como esta metaforização bastante complexa, existente na coluna X:

“Pois, de nutriz chamando-a, diz em enigma que aquelas coisas


que, o sol esquentando, se dissolvem, estas, a Noite esfriando,
se justapõem”

A descoberta do papiro nos mostra como as práticas da crítica que teriam se


desenvolvido durante o período helenístico já eram francamente avançadas e praticadas,
como observamos no papiro, em que técnicas de interpretação como por polissemia, por
analogia, por metáfora ou por etimologia, estão a serviço de pressupostos – neste caso,
religiosos – do exegeta.

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Façamos nosso último deslocamento no tempo. O deslocamento vai do século I a.C.


até a segunda metade do século VI a.C., na passagem em que Cícero atribui uma realização
inestimável ao mais douto dos homens daquele tempo.

Quis doctior eisdem temporibus illis aut cuius eloquentia


litteris instructior fuisse traditur quam Pisistrati? Qui primus
Homeri libros confusos antea sic disposuisse dicitur, ut nunc
habemus.26

A afirmação de Cícero nos aponta para o estabelecimento do texto de Homero, que até
o século VI a.C., encontrava-se indefinido. Esse estabelecimento é um exercício de ruptura
na compreensão que os leitores têm dos textos. Pela primeira vez, é preciso um exercício
26
CÍCERO. De Or. III, XXXIV, 137. “Quem, naquele mesmo tempo, transmite-se ter sido mais douto ou de
quem era eloquência mais instruída nas letras que de Pisístrato, que, conta-se, primeiro ter disposto os livros
de Homero, antes confusos, assim como agora temos?”
pelo qual alguns textos são agrupados e outros confrontados em busca da determinação de
algo impensável até pouco tempo atrás: um autor.
As narrativas míticas, transmitidas oralmente, rejeitavam fortemente essa categoria.
Um canto atemporal, vindo das musas, não deixa margem para essa figura. Todos os textos,
até este momento, são patrimônio comum, transmitidos pelo passado como legado às
gerações seguintes. Sua origem desnecessita rosto ou nome, os cantos são realizações dos
entes in illo tempore e sua transmissão advém da Fama ou da Memória.
Estabelecer um grupo de textos, selecionando e descartando por semelhanças, é
romper com a tradição coletiva e reconhecer a existência de uma consciência por trás da
criação do canto.
Em outras palavras, é o estabelecimento de uma nova categoria, ou melhor, de um
novo status para esses cantos, o status de poesia.
A função autor só é reclamada pelo texto que requer um status de literatura, somente
pelos textos aos quais creditamos as características de autenticidade (o que não se deve
confundir com originalidade) e singularidade.
A literatura surge com e do esforço analítico, e, como tentamos rastrear, os esforços
interpretativos não distam muito dela (e não seria ousadia dizer que a distância é um fruto
de nossa ignorância, e não de um retardo entre as práticas).
Os próximos capítulos vão convidar à observação e reflexão da prática interpretativa,
imanente a cada bem simbólico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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