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A CAÇA DE ANIMAIS SILVESTRES: USANDO O MÉTODO DA TRIANGULAÇÃO


PARA COMPREENDER AS SUAS CAUSAS E MOTIVAÇÕES

Conference Paper · September 2014

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7 authors, including:

Daniela Teodoro Sampaio Marcos Antonio Pedlowski


Universidade Federal de Sergipe Universidade Estadual do Norte Fluminense
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Anais do 2º Seminário Internacional de Ecologia Humana. Volume 1, Número 1. Salvador: EDUNEB, 2014. ISSN: 2316-7777

A CAÇA DE ANIMAIS SILVESTRES: USANDO O MÉTODO DA


TRIANGULAÇÃO PARA COMPREENDER AS SUAS CAUSAS E
MOTIVAÇÕES

Daniela TEODORO SAMPAIO1; Marcos Antônio PEDLOWSKI2; Stephen Francis


FERRARI3; Carlos Ramón RUIZ-MIRANDA4

RESUMO: Este artigo abordou a caça ilegal de animais silvestres praticada em floresta
de Mata Atlântica da baixada litorânea do Rio de Janeiro. O objetivo foi analisar o
comportamento do caçador de animais silvestres, sua localização geográfica em relação
à proximidade das florestas onde atuam e as motivações que o estimulam a caçar. Estas
são questões fundamentais que auxiliam instituições de fiscalização ambiental e de
serviços de inteligência a planejarem ações de combate à caça. Entretanto, em pesquisas
científicas, quando o fenômeno investigado é de cunho ilegal, a utilização de apenas um
único método, como a entrevista, por exemplo, pode gerar incertezas quanto à validade
dos resultados. Este artigo sugere que é possível evitar este viés e como proposta para
garantir a confiabilidade dos resultados indica o método da Triangulação em pesquisa,
sendo possível, corroborar resultados obtidos a partir de métodos diferentes, e obter
uma visão mais ampla do fenômeno estudado, fortalecendo assim pesquisas de caráter
interdisciplinar.

Palavras-chave: caça, triangulação, ecologia humana.

1. Introdução

A Tragédia dos Comuns (Hardin, 1968) é uma obra central em Ecologia


Humana e em estudos ambientais, e postula que uma pessoa, ou grupo de pessoas, ao
explorar de forma desregulada um determinado recurso natural subtraem o direito de
toda a população humana e das demais populações biológicas de se beneficiarem com a
permanência dos serviços ambientais associados a este recurso (Dietz et al., 2002).
A caça ilegal da fauna é um dos crimes praticados contra o ambiente (Banks et
al., 2008; Linacre e Tobe, 2011), e é tema de uma das questões mais candentes da
atualidade porque atinge diretamente a sociedade humana (Lemieux e Clarke, 2009). Do
ponto de vista ecológico, a caça afeta não apenas as populações de animais abatidos em
______________________
1 Pós-doutoranda PPDOC CAPES/FAPITEC Universidade Federal de Sergipe/Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento e
Meio Ambiente: dtsamp@yahoo.com.br.
2. Professor na Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Centro de Ciências do Homem, Laboratório de Estudos
do Espaço Antrópico.
3. Professor na Universidade Federal de Sergipe, Centro de Ciências Biológicas e da Saúde, Departamento de Ecologia.
4. Professor na Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Centro de Biociências e Biotecnologia, Laboratório de
Ciências Ambientais.

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uma floresta, mas indiretamente compromete a sobrevivência de toda a comunidade


florestal e humana que dependem de abastecimento de água, da qualidade do ar e da
fertilidade do solo para agricultura (Sampaio e Ruiz-Miranda, 2011).
Embora o consumo de animais silvestres ainda complemente a dieta das
populações humanas, principalmente em países em desenvolvimento, a caça furtiva e
ilegal é constituída por um conjunto muito mais diversificado de comportamentos e
interesses (Lemieux e Clarke, 2009). Crimes contra a fauna têm como motivação, com
raras exceções, o lucro financeiro (Banks et al., 2008). O valor das atividades ilegais
envolvidas neste tipo de crime pode alcançar anualmente em torno de US$20.4 bilhões
em todo o planeta, o que corresponde a cerca de 5,1% do volume do comércio mundial
de drogas ilegais (Brack e Heyman, 2002).
Estudos que têm como interesse assuntos sensíveis ou ilegais (e.g.,
comportamento sexual, crime e renda) devem considerar a possibilidade de que os
potenciais sujeitos da pesquisa possam se recusar a colaborar ou, mesmo se
concordarem em participar, fornecer informações falsas para enganar o investigador
científico, comprometendo assim a credibilidade dos dados eventualmente fornecidos.
Para minimizar esses problemas é indicado o uso de abordagens metodológicas que
combinem análises quantitativas e qualitativas (Eliason, 2003), as quais garantem,
inclusive, maior profundidade e amplitude da pesquisa (Bernard, 2002). A combinação
de pesquisas quantitativas e qualitativas é caracterizada como Triangulação, e a esta
junção é possível incorporar o emprego de vários métodos (Fielding e Schreier, 2001).
O método da Triangulação é um processo para examinar um fenômeno a partir de
vários ângulos, num esforço para verificar a validade dos resultados (Denzin e Lincoln,
1994). No presente estudo foram utilizados dois tipos de Triangulação: 1) Triangulação
de Dados, onde se emprega o uso de vários tipos de informantes categorizados em
grupos ou tipos de pessoas - por esta técnica, é possível demonstrar a congruência dos
resultados revelados por todos os grupos, sugerindo o peso da evidência como um
resultado verdadeiro -; e 2) Triangulação Metodológica que emprega o uso de mais de
um método para a coleta dos dados (Denzin 1998; Guion, 2002; Cox e Hassad, 2005).
O uso do método da Triangulação no presente estudo objetivou compreender em
escala local:
1) A origem dos caçadores (cidade de residência);
2) O comportamento do caçador (dias da semana e período sazonal preferidos para
caçar e número de caçadores envolvidos em cada caçada);

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3) O perfil da caça na região (caça de subsistência, comercial, esportiva, cultural ou


outra).

2. Material e Métodos

Área de estudo

Este estudo foi desenvolvido na baixada litorânea do estado do Rio de Janeiro, na


região compreendida pela Área de Proteção Ambiental (APA) do Rio São João/Mico-
Leão-Dourado (22o20'-22o50'S, 42o00'-42o40'O). Nesta região, estão localizadas a
Reserva Biológica União (RBUN) e Reserva Biológica Poço das Antas (RBPA), criadas
especialmente para assegurar a proteção e recuperação de remanescentes de Mata
Atlântica e de espécies animais, especialmente o endêmico mico-leão-dourado
Leontopithecus rosalia (Primo e Völcker, 2003) (Figura 1).

Figura 1. Mapa da Bacia do Rio São João, indicando a localização das Reservas Biológicas Poço das
Antas e União e Fazenda Rio Vermelho, bem como os municípios de influência (Fonte: Associação
Mico-Leão-Dourado apud Rambaldi, 2007).

Caracterização da população humana


As populações humanas estabelecidas no entorno das Reservas Biológicas União
e Poço das Antas incorporaram ao longo de sua formação histórica e social as
características culturais de grupos indígenas – hábeis nas técnicas de rastreamento da

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caça - que ocuparam a região até o século XVIII e de colonizadores europeus,


especialmente portugueses (MMA/IBAMA, 2005; MMA/ICMBio, 2008). Destas
primeiras populações deriva o hábito de moradores da região do entorno destas duas
reservas de consumirem carne de animais silvestres, relatada até os dias de hoje como o
“vício da caça” (Lima, 2004; MMA/IBAMA, 2005; MMA/ICMBio, 2008).

Procedimentos de coleta de dados

De Fevereiro de 2008 a Novembro de 2009, foram feitos os levantamentos


qualitativo e quantitativo de informações sobre as cidades de residências dos caçadores,
o comportamento e o perfil de caça na região. Entrevistas de profundidade foram
realizadas com caçadores da região (Kellert, 1991; Eliason e Doder, 1999) e com
agentes do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) das
Reservas Biológicas Poço das Antas e União. A entrevista de profundidade é utilizada
em pesquisas qualitativas que têm por objetivo a compreensão detalhada das crenças,
valores, motivações, atitudes e comportamento de pessoas em um contexto social
específico. O número de entrevistados deve ser limitado, uma vez que mais entrevistas
não incrementam as informações, nem levam a uma compreensão mais detalhada,
porque o ponto de vista de cada indivíduo, embora possa parecer único, é formado pelo
meio social em que vive e nele existe um número limitado de interpelações e versões da
realidade (Gaskell, 2007).
Os caçadores entrevistados foram selecionados de acordo com a técnica
snowball sampling (Biernack e Waldorf, 1981), também conhecida por cadeia de
informantes ou método bola-de-neve. As entrevistas foram gravadas em equipamento de
áudio digital e transcritas posteriormente. Cópias do Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido assinadas pelos entrevistados e pela autora principal deste trabalho
firmaram a autorização dos entrevistados para as gravações de seus relatos e a garantia
quanto aos seus anonimatos.
Autos de infração (Miranda e Alencar, 2007) e fotografias das operações de
fiscalização, cedidas pelo ICMBio da RBPA e da RBUN, também foram utilizadas.
Este material foi cedido, mediante também a assinatura de um termo de compromisso
em que ficou firmado o compromisso de não se revelar nenhum tipo de informação
pessoal dos autuados e preservar quaisquer características físicas presentes nas
fotografias que pudessem identificá-los.

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Finalmente, um levantamento de evidências de caça em florestas das RBPA,


RBUN e FRV foi realizado e materiais como sacolas plásticas nas quais estavam
impressas as redes de supermercados e as cidades onde estão localizados foram
fotografadas. É importante notar que os caçadores utilizam estas sacolas para
transportarem alimentos e itens para caça e as descartam na mata. A Tabela I descreve
as características da metodologia e análises utilizadas.

Tabela 1. Tipos de triangulação, métodos e análises utilizadas para compreensão da caça praticada na
região da baixada litorânea do estado do Rio de Janeiro, entre Fevereiro de 2008 a Novembro de 2009.
Tipo de Informações sobre
Dimensões Métodos Análises
Triangulação o método
1) Entrevistas de Cidade de Análise
profundidade residência do quantitativa.
com caçadores. caçador.
2) Evidências de Sacolas plásticas Análise
caça. de supermercados qualitativa
Cidades de descritiva
Triangulação (Pereira,
residência do
metodológica 1999).
caçador
3) Autos de
Endereço; Análise
infração do
naturalidade quantitativa.
ICMBio.(cidade e estado);
local de residência
do caçador
autuado.
1) Entrevistas de Número de Análise
profundidade caçadores qualitativa
com caçadores e envolvidos; (Gaskell,
com agentes do período sazonal 2007).
ICMBio. preferido para caça
e dias da semana.
Triangulação 2) Fotografias Número de Análise
metodológica das evidências caçadores quantitativa
Comportamento
e de caça e das fotografados nas de conteúdo
do caçador
Triangulação operações de autuações do de imagens
de dados fiscalização do ICMBio. (Bauer,
ICMBIO. 2007).
3) Autos de Dias e meses dos Análise
infração do anos registrados quantitativa.
ICMBio. nos autos; hora da
apreensão
registrada.
Triangulação 1) Entrevistas de Motivação para a Análise
metodológica profundidade caça. qualitativa
Perfil da caça e com caçadores e da (Gaskell,
Triangulação com agentes do 2007).
de dados ICMBio.

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3. Resultados e Discussão

Um total de 12 caçadores e 12 agentes do ICMBio das Reservas Biológicas Poço


das Antas e União foram entrevistados, e 39 autos de infração correspondentes ao
período de 2003 a 2010 e 878 fotografias foram acessadas. Destas, 492 fotografias
pertenciam ao ICMBIO de RBPA e RBUN, correspondendo ao ano de 2001 e ao
período de 2003 a 2009 (apenas o ano de 2002 não possui registros), e foram produzidas
durante os flagrantes de fiscalização contra a caça; e 386 correspondiam ao
levantamento de evidências de caça realizado nos fragmentos florestais pela
pesquisadora autora deste estudo).

Cidades de residência do caçador


As entrevistas realizadas com 12 caçadores revelaram que, com exceção de um
caçador entrevistado, todos os outros são naturais (nascidos) do estado do Rio de
Janeiro, e apesar de alguns não terem nascido nas cidades fluminenses que abrangem a
área deste estudo, quase todos residiam na região desde a infância.
Os autos de infração indicaram que apenas dois caçadores eram naturais de outros
estados (Minas Gerais e Espírito Santo), e que o restante nasceu no estado do Rio de
Janeiro, mas todos os autuados residiam em cidades fluminenses. A Figura 2 indica a
cidade de residência de caçadores entrevistados e dos que constavam nos autos de
infração do ICMBio (n= 51).

1 1
7

Araruama
Cachoeiras de Macacu
5
Casimiro de Abreu
Macaé
21
3 Rio das Ostras
São Gonçalo
São Pedro D'Aldeia
Silva Jardim
11
2

Figura 2. Cidades fluminenses de residência de caçadores entrevistados (n=12) entre maio a novembro
de 2009 e autuados pelo ICMBio da Reserva Biológica Poço das Antas, entre 2003 a 2010 (n=39).

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As sacolas de supermercados localizadas no interior dos fragmentos florestais


continham impressas as redes de supermercados (Super Lagos, Tinoco e Império da
Banha), que estão localizados nos municípios de Araruama, Rio Bonito, Rio das Ostras,
Saquarema, Iguaba Grande, Casimiro de Abreu, Silva Jardim, Niterói, Bacaxá e São
Vicente, todos no estado do Rio de Janeiro, indicando que, provavelmente, os caçadores
que as descartaram nos fragmentos florestais são originários da própria região, ou fazem
compras nestes locais antes de irem caçar.
A Triangulação Metodológica permite afirmar que a caça foi praticada por
caçadores que, em quase sua totalidade, são naturais do Rio de Janeiro, e que todos eles
residiam na própria região do estudo ou em municípios fluminenses próximos. Este tipo
de informação é importante para o planejamento geográfico de ações integradas de
fiscalização e serviços de inteligência para o combate à caça ilegal.

Comportamento do caçador
Um dos aspectos importantes para o planejamento de operações de fiscalização é
conhecer quais são o período do ano e dias da semana preferidos por caçadores. Os
resultados obtidos apontam que a caça ocorreu com mais frequência no período de
inverno porque, de acordo com os relatos dos caçadores, esta é uma época em que não
existem muitos mosquitos na mata, e porque os animais estão com maior massa
corporal: “Maio, junho e julho é época de caça porque é a época que os bichos tão
gordos. Agosto, setembro, outubro, novembro e dezembro os bichos tão magros, dando
de mamá. O único bicho que caça no verão é lagarto, porque ele tá gordo (janeiro,
fevereiro, março e abril)”, informou um caçador.
Para funcionários do ICMBio, apesar de concordarem com os caçadores que a
maior intensidade de caça ocorra no inverno, a razão é devida à baixa oferta de recursos
alimentares na mata, o que intensifica o forrageamento e deslocamento dos animais e
consequentemente, os predispõe ao encontro com caçadores: “A época mais propícia de
caça é a época que tem menos alimento na mata, maio, junho, julho, agosto, época fria
né, que eles mais caçam. Tem época que caçam menos, início de ano, janeiro, fevereiro.
A gente sabe pelos vestígios que eles [caçadores] deixam. Fora dessa época, você vê uns
gatos pingados andando, mas é menos”.
O uso da Triangulação Metodológica confirmou as informações fornecidas pelos
dois grupos de entrevistados, já que os autos de infração indicaram que os meses onde

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mais ocorreram autuações de caçadores foram os meses de temperaturas mais baixas


(Figura 3).

Figura 3. Número de autuações do ICMBio da Reserva Biológica Poço das Antas (n=39), de acordo com
os meses do ano, no período de 2003 a 2010.

A Triangulação de dados indicou uma congruência de informações entre os dois


grupos de entrevistados a respeito de dias da semana de maior atuação dos caçadores.
Assim sendo, feriados e finais de semana são dias de maior ocorrência de caça, e a razão
seria que durante os dias úteis os caçadores trabalham. Além disso, a sexta-feira à noite
também foi um dia indicado como escolhido para caça, pois: “eles [os caçadores] sabem
que tem folga do guardas [fiscais do ICMBio]", revelou um caçador. Ainda neste
quesito, um funcionário do ICMBio acrescentou mais detalhes: “Eu acho que não tem
dia específico, mas é mais final de semana, porque eles pensam que os fiscais não
trabalham né, então final de semana eles acham que está mais livre. Porque na verdade
a gente vive monitorado pelos caçadores, ou seja, o caçador passa na casa de cada um
dos fiscais, de bicicleta, de moto, por exemplo, passa na casa de um, ta aí, passa na
casa de outro, ta aí, então não tem ninguém trabalhando, pensa. Olha se o carro [do
ICMBio] ta lá, sabe que não tem ninguém na mata, então eles adentram na mata”.
O uso da Triangulação Metodológica, mais uma vez confirmou as entrevistas,
visto que o maior número de flagrantes de autuação de caçadores ocorreu nos finais de
semana (Figura 4).

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Figura 4. Número de autuações do ICMBio da Reserva Biológica Poço das Antas (n=39), de acordo com
os dias da semana, no período de 2003 a 2010.

Com relação aos dias de semana onde ocorreu a maior frequência de caça, o
estudo de Fuccio et al. (2003) relata que caçadores do estado do Acre também têm
preferência para os finais de semana e feriados, tal como no presente estudo.
A Triangulação de dados revelou que a maioria dos caçadores entrevistados
afirmou caçar com mais um companheiro ou no máximo com dois e a razão, em todos
os depoimentos foi o medo de estar só na mata. Os relatos dos funcionários do ICMBio
também indicaram que a maioria dos caçadores caçou em dupla ou em trio, e que
poucos caçadores flagrados por eles foram encontrados sozinhos. Entretanto, quatro
funcionários informaram que já autuaram caçadores em grupos formados por mais de
quatro indivíduos, o que configura crime de formação de quadrilha.
A análise das fotografias de fiscalização do ICMBio da Reserva Biológica Poço
das Antas mostra que 12 operações de fiscalização em que caçadores foram registrados
e o número de caçadores atuando juntos variou de um a 10 indivíduos (Tabela II).

Tabela II. Número de caçadores caçando juntos, flagrados em operações de fiscalização do ICMBio da
Reserva Biológica Poço das Antas, no período de 2004 a 2007 e no ano de 2009.
Número de
Operação de
Ano caçadores
fiscalização
registrados
2004 Operação 1 5
Operação 1 3
Operação 2 10
2005
Operação 3 1
Operação 4 3
2006 Operação 1 1

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Operação 2 9
Operação 3 2
2007 Operação 1 3
Operação 1 2
2009 Operação 2 3
Operação 3 2

Semelhante ao estudo de Miranda e Alencar (2007) e Aiyadurai (2007), que


encontraram predominância de unidades de caçadores formadas por um ou dois
caçadores atuando juntos, no presente estudo, grupos de caçadores com quatro ou mais
indivíduos caçando juntos foram poucos. Dos 12 flagrantes de caçadores pelo ICMBio,
em apenas três os caçadores poderiam ser enquadrados em crime de formação de
quadrilha, ou seja, com mais de quatro indivíduos atuando juntos. A detecção de
formação de quadrilha (associação de mais de três pessoas para prática de crime),
prevista no Código Penal (Decreto-lei 2.848/1940; artigo 288) e Lei sobre Crimes
Hediondos (Lei 8.072/1990) é importante para as ações de fiscalização porque confere
maior punição legal aos caçadores autuados concomitantemente por crime ambiental
(Lei de Crimes Ambientais 9.605/1998), mas o presente estudo não revelou uma
predominância para esta prática.

Perfil da caça
O estudo das motivações da caça na região não permitiu que se traçasse um
único perfil da caça. O que foi possível determinar é que, por unanimidade, os relatos
dos entrevistados indicaram que na região não existe caça de subsistência: “A pessoa
fica viciada na caça, fica viciada no prazer de acertar o tiro, prazer de matar. Hoje em
dia se caça por perversidade porque não tem essa precisão de caçar, porque hoje não é
por fome, se torna um vício. Todos os caçadores sabem que é proibido caçar e aqui não
tem gente que precisa caçar pra comer”, revelou um caçador.
Dois funcionários do ICMBio forneceram mais explicações sobre a percepção de
que não existe caça de subsistência na região: “Esse negócio de caça de subsistência,
isso não existe aqui, muitos caçam pra comércio, pra fazer churrasquinho no fim de
semana, pra dar de presente porque muita gente gosta, pra fazer média com político”.
“A caça na nossa região mudou muito, se bem que acho que nunca houve caça de
subsistência aqui. Tem umas prisões que fizemos aqui dentro [de caçadores acampados]
que tinha tanta compra que parecia compra de mês. Como o cara alega que é caça de

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subsistência? Tinha muita compra, tinha arroz, feijão e coisa boa, o que me chamou a
atenção, tinha arroz Tio João que é o mais caro que tem no mercado. Quer dizer, são
pessoas que têm condição de comprar”.
Por unanimidade, todos os entrevistados relataram não haver caça de subsistência
na região. A caça de subsistência é restrita a situações de necessidade, em que pessoas
caçam animais silvestres para seu próprio consumo, para complementação nutricional e
geralmente, residem em locais isolados, distantes de centros urbanos e de difícil acesso
a outros itens proteicos (Robinson e Redford, 1991). Portanto, toda a atividade de caça
registrada no presente estudo foi ilegal, de acordo com a legislação vigente.
Os relatos de caçadores e funcionários do ICMBio permitiram estabelecer a
percepção que os entrevistados têm sobre os perfis de caça praticada na região e quais
são suas motivações. A maioria dos entrevistados citou mais de uma motivação e a
soma das motivações citadas por caçadores e funcionários do ICMBio permitiram que
fossem traçados diferentes motivações para a caça na região. A Tabela III apresenta o
número de citações para cada motivação.

Tabela III. Número de vezes em que cada motivação para a caça foi citada por caçadores e funcionários
do ICMBIO entrevitados (n=24), entre maio a novembro de 2009.
Entrevistados
Motivações para a
Caçadores Funcionários do ICMBIO Total
caça
(número de citações) (número de citações)
Comércio 5 9 14
Esporte 6 3 9
Vício 6 1 7
Coesão entre amigos 3 3 6
Cultura 3 3 6
Lazer 4 1 5
Troca de favores 1 2 3
Provar uma iguaria 2 1 3
Falta de emprego 1 1 2
Superioridade Humana 0 1 1

4. Considerações finais
Um primeiro elemento a ser destacado é que os resultados deste trabalho
demonstram que o emprego de técnicas de Triangulação deve ser estimulado em
pesquisas de Ecologia Humana, especialmente àquelas que pretendam utilizar
entrevistas como principal recurso para aquisição de dados. Desta forma, é possível
corroborar resultados obtidos a partir de métodos diferentes, e obter uma visão mais
ampla do fenômeno estudado, fortalecendo assim pesquisas de caráter interdisciplinar.

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No tocante ao entendimento da caça praticada na região da baixada litorânea do


estado do Rio de Janeiro, os resultados deste trabalho demonstram que, apesar de
possuir uma influência cultural, uma vez que o hábito de caçar foi transmitido de pais
para filhos ao longo de gerações, a atividade atualmente é movida principalmente por
interesses comerciais. Deste modo, fica evidente a necessidade de que pesquisas que
pretendam compreender a prática da caça ilegal contemplem as questões na forma em
que a mesma foi abordada neste estudo.
Finalmente, a compreensão do comportamento de caça e preferência por períodos
sazonais e dias da semana podem ser fundamentais para a elaboração de estratégias de
fiscalização promovidas por órgãos de fiscalização como Instituto Chico Mendes de
Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e Polícias Ambientais e operações de serviços
de inteligência planejadas pela Polícia Federal.

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Agradecimentos
Ao programa de Pós-Graduação em Ecologia e Recursos Naturais da Universidade
Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), aos financiadores de pesquisa
FAPERJ E-26/150.436/2007; FAPERJ/Pensa Rio intitulado ”O mico leão dourado
como instrumento para conservação, o desenvolvimento sustentável na bacia
hidrográfica do rio São João, RJ” APQ1 E-26/110.303/2007; Lion Tamarins of Brazil
Fund (LTBF). À Associação Mico-Leão-Dourado, ICMBio das Reservas Biológicas
União e Poço das Antas.

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