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AMARO BRANCO REDESCOBRINDO UM QUILOMBO: MEMÓRIA SOCIAL,

PARTICIPAÇÃO POPULAR NA GESTÃO DO PATRIMÔNIO E DESENVOLVIMENTO SOCIAL


LOCAL.

Elaine Conceição Gomes da Silva

Mestrado

Linha - Cultura Política, Identidades Coletivas e Representações Sociais

JUSTIFICATIVA

“O primeiro passo para transformar o ambiente em que vivemos é


conhecer os seus desafios e as suas potencialidades”. (Autor desconhecido)

É entre o Sítio Histórico da cidade Patrimônio da Humanidade Olinda e o bairro de Classe


Média alta, Bairro Novo, que está localizada a comunidade do Amaro Branco. Com cerca de 4.200
habitantes¹, a comunidade já foi uma vila de pescadores e até hoje, mesmo passando por transformações na
sua dinâmica social e enfrentando forte pressão da especulação imobiliária, é da pesca parte da economia
local gerada e o sustento de alguns núcleos familiares. O mesmo censo do IBGE revela que a população de
idosos é significativa, atingindo o percentual de 7,9% enquanto que para as crianças de 0 a 4 anos este
percentual cai para 6,1%. Dados estes que se revelam importantes para parte da análise a que esse estudo se
propõe, tendo em vista que a construção da memória coletiva se dá primeiramente no ato íntimo de lembrar-
se de vivências pessoais, que confrontadas com o tempo e o contexto, reconstroem a memória coletiva e a
identidade social. É nos mais velhos e nos seus relatos que toda uma comunidade confia a reconstrução da
sua história, a redescoberta das suas raízes e o encaminhamento do seu futuro, embora haja poucos
documentos formais, registros materiais e dados históricos catalogados, neste processo, do qual o faremos
objeto de estudo, a tradição oral é o fio condutor, fonte fidedigna e primordial para a legitimidade de uma
luta territorial, geográfica, cultural e simbólica. Neste sentido Nascimento e Ramos em “A memória dos
velhos e a valorização da tradição na literatura africana” cita os estudos de Halbwachs:
Para ele, não sendo inteiramente isolada e fechada, a memória individual provê o
conhecimento da memória coletiva, tendo em vista que “para evocar o próprio passado, em
geral, a pessoa precisa recorrer às lembranças de outras, e se transporta a pontos de
referência que existem fora de si, determinados pela sociedade” (HALBWACHS, 2006, p.
72 apud RAMOS, NASCIMENTO, 2011, p. 454)
Este emprego de valor à memória e a confiabilidade a sua perpetuação através da oralidade é tão
somente resquício das tradições africanas, que permeiam os modos de vida dos brasileiros e lhes confere
autonomia, para através do fio da memória e em alguns casos através de estudo genético, encontrar suas
origens entre as etnias que para aqui vieram traficadas *** FALAR SOBRE QUILOMBOS, A FORMAÇÃO,
A CONFIGURAÇÃO E OS ESTUDOS e Nessa perspectiva, mais que um refúgio para os negros, os
quilombos foram reunião de homens e mulheres que se negaram a viver sob o regime de escravidão e que
desenvolviam laços de solidariedade e fraternidade na reconquista de sua dignidade. Munanga (2001) afirma
que recuperar a relação do quilombo brasileiro com o quilombo africano reafirma sua importância como
forma de resistência ao escravismo. É nesta comunidade, que busca sua identidade comum, que um
movimento vai tomando corpo através de um projeto chamando “Amaro Branco: redescobrindo um
quilombo.” Foi a partir do ano de 2013 que jovens olindenses decidiram sediar no Amaro Branco todas as
suas atividades de produção cultural e formação, através do Centro Cultural Casa Coletivo- coletivo este do
qual sou fundadora de gestora - uma série de projetos começou a ser desenvolvida para, com e na
comunidade. Pela minha intensa convivência com os mestres e mestras coquistas do local - por ser brincante
e Griô Aprendiz - decidi que concentraria ali todas as nossas atividades. O Amaro Branco tinha sido meu
local de nascimento, mas não vivi a vida inteira lá, porém me mudei para a comunidade e fiz dela não só meu
local de trabalho, mas meu território de moradia, pertencimento e ressignificação étnica. Ao tomar
conhecimento do processo em trâmite acerca do reconhecimento do local como Quilombo Urbano, surgiram
todos os questionamentos que permeiam essa pesquisa e junto ao coletivo deu-se início a uma série de ações
voltadas para as Expressões culturais locais, visando, com o apoio dos espaços sociais já organizados dentro
da comunidade (Associação dos Moradores, Associação dos Pescadores etc.) realizar uma grande campanha,
não só para a retomada do processo de reconhecimento do Amaro Branco como Quilombo Urbano junto ás
instâncias de poder, mas principalmente para conduzir os moradores a esta redescoberta. Um dos pontos de
partida é o fato do Amaro Branco estar formalmente inserido no Sítio Histórico de Olinda, mas na prática as
ações voltadas ao Patrimônio Cultural, Arquitetônico e/ou Natural promovidas pelas Prefeitura, pelo Estado
ou pelo Iphan não chegarem à comunidade e isso ter relação direta com o desconhecimento da sua própria
história e da importância de conhecer e preservar todos os elementos que escreveram e escrevem a história
desse lugar.
Localizado numa área geográfica de colinas, a comunidade tem como símbolo o Farol, construído
em 1941, em substituição ao antigo Farol de Olinda. Monumento histórico, ponto de referência que pode ser
avistado do Marco Zero de Pernambuco, o farol com 42 metros de altura já foi tema de documentários, junto
ao Coco de Roda, expressão cultural que dá visibilidade a comunidade no Brasil inteiro. No ano de 2007 foi
lançado pela Mariola Filmes, o documentário “O Coco, O pneu, A Roda e o Farol” de Mariana Brennand:

Nos arredores do sítio histórico de Olinda, numa das encostas da Cidade Alta, próximo ao
mar, fica o bairro do Amaro Branco. Lugar de moradas simples, onde grande parte das
famílias tira da pesca seu sustento. Em seus becos, ruas e quintais, o coco reina há mais de
um século. Assim como o farol, erguido em meio às casas do bairro, o coco faz parte da
vida das pessoas.
No Amaro Branco, o coco é tradição que passa de pai pra filho. Quem nasce no lugar cresce
no meio da roda. Aprende a batida e os primeiros versos ainda dentro de casa.
Foi lá onde cresceram Maria Belém, Dona Jovelina, Severino Nunes, Zé Aruá e Dona
Neuza. Mestres de outras gerações que permanecem vivos na memória de seus discípulos.
Gente que hoje cultiva a tradição do coco de roda, cantando versos de outrora e criando
também os seus próprios.
No Amaro Branco, o coco não é folclore. É cultura viva.²

O documentário deu maior visibilidade as faces que dão ao Amaro Branco o título popular de “Berço
do Coco de Roda Pernambucano” e oportunizou também que o Amaro com seu Farol e a vista para o mar,
suas ladeiras e história viva de seus moradores ganhassem um olhar especial para seu potencial patrimonial,
turístico e cultural, porém ainda hoje o Farol encontra-se fechado para visitação e os Mestres e Mestras
permanecem no esquecimento. A comunidade é internacionalmente conhecida pela tradição cultural do coco,
que se fortaleceu ao longo dos anos e encontrou faces que perpetuaram o brinquedo na história da
comunidade da cidade de Olinda, tornando impossível não a associar ao ritmo. Mestra Ana Lúcia (72 anos),
Dona Glorinha do Coco (81 anos), Mestre Pombo Roxo (70 anos – In Memorian), Mestre Ferrugem (75 anos)
são os grandes responsáveis pela manutenção dessa expressão cultural dentro da comunidade, embora o local
tenha mais de cem coquistas e músicos de coco, é através das vivências e das memórias destes mais velhos
que se pode traçar uma linha do tempo, revelando a ligação da forte presença deste brinquedo popular³ com a
ocupação do território por negros e índios no período colonial. Segundo a crença popular e os relatos
perpetuados pela oralidade, o Amaro Branco abrigava negros e índios refugiados, que ali misturavam-se a
negros libertos que encontraram nesta parte de Olinda lugar propício a suas moradias pela maior facilidade
de subsistência através da atividade de pesca e faziam festas ao som dos tambores, pisando coco a noite
inteira. Muito relatos também fazem menção à captura de negros e índios nas partes mais altas da
comunidade, que eram ocupadas por denso matagal e muitas outras memórias fazem menção a parentescos
diretos com esses negros e negras refugiadas. Embora haja uma forte presença desta ocupação na memória
dos mais velhos e na perpetuação das expressões culturais originadas deste contato com o negro africano, as
tradições africanas floresceram, mas ainda muito inconscientemente. No ano de 2010 iniciou-se um processo
formal, com pedido através do MPPE (Ministério Público de Pernambuco) para a titulação oficial do Amaro
Branco como Comunidade Remanescente de Quilombo dentro do perímetro urbano, ou seja, um Quilombo
Urbano. Porém ao ser analisado o processo do ponto de vista da participação comunitária, percebeu-se que
pouco ou nenhum envolvimento das pessoas pode ser constatado e que isso tinha forte impacto nas relações
de poder e interesses geradas neste processo. Segundo o Decreto de Lei Nº 4.887, DE 20 DE NOVEMBRO
DE 2003, que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e
titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos:

Art. 2o Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste
Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória
histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de
ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.
§ 1o Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das comunidades dos
quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade.

Assim sendo apresenta-se neste processo ainda uma incógnita: como apresentou-se candidatura
sendo condição sine qua non o auto reconhecimento, sendo que as pessoas da comunidade em sua grande
maioria desconhecem o próprio processo e se desconhecem enquanto negros e negras remanescentes de
quilombo? É fato que, como já citado, à memória dos mais velhos ficou a tarefa de guardar as mais diversas
histórias, inclusive criando hipóteses para as características formativas do quilombo em terras
amorobranquenses, porém a memória social, nesta conjuntura, precisa ser resignificada e incorporada no
presente etnográfico. Desprovido de ações coletivas e mobilização comunitária, este processo corre sem que
as pessoas que o deveriam protagonizar sequer saibam o que foi um quilombo, o que significa ser titulado,
ou mesmo sem sequer reconhecer-se como negros ou descendentes de negros escravizados. Delineando a
memória coletiva como base para ações advindas de agentes sociais, discorre Pollak:
A memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que
se quer salvaguardar, se integra, como vimos, em tentativas mais ou menos conscientes de
definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades
de tamanhos diferentes: partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs, famílias, nações,
etc. A referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que
compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementaridade, mas
também as oposições irredutíveis. (POLLAK, 1989, p.5).

É neste sentido que o projeto, objeto do nosso estudo, tem pretensão de atuar. Muito mais do que
construir caminhos político administrativo para o reconhecimento de um quilombo urbano, o projeto em
questão se pauta na participação consciente e massiva da comunidade, fundamental para legitimar uma luta
para sobrevivência dos bens que restaram deste patrimônio étnico.
Há um esvaziamento no processo quando ele desconsidera os movimentos sociais que ali se
configuram como força mobilizadora para a recriação desta identidade com vistas à legitimação de sua
condição étnica e, consequentemente, dos direitos daí provenientes e exclui os integrantes dessa comunidade
das decisões das quais ela mesma será objeto. É a exclusão de um processo educativo por excelência, que se
apresenta como grande ferramenta para a redescoberta desta etnicidade e para o empoderamento dos
moradores ao que diz respeito ao seu patrimônio material e imaterial, extrapolando o conceito de registros e
tombamentos e se apropriando das relações existentes entre identidade e patrimônio. Sobre a participação
comunitária através dos movimentos sociais como processo fundamental para a autonomia, temos Gohn:

Um dos exemplos de outros espaços educativos é a participação social em


movimentos e ações coletivas, o que gera aprendizagens e saberes. Há um caráter
educativo nas práticas que se desenrolam no ato de participar, tanto para os
membros da sociedade civil, como para a sociedade mais geral. (Gohn, 2008. p. 33.)

E ainda:

“Nós os encaramos como ações sociais coletivas de caráter sociopolítico e cultural que viabilizam
formas distintas de a população se organizar e expressar suas demandas” (Gohn, 2008. P. 335).
Fundamentado nisto que busca por uma identidade coletiva e a mobilização sócio comunitária se
revelam fundamentais para este processo de redescoberta, admitindo também o espaço físico como condutor
da memória, sendo o projeto “Redescobrindo um quilombo” uma frente de trabalho e mobilização
permanentes, em espaços educacionais formais e não formais dentro da comunidade, propondo um intenso
diálogo não só entre os atores socioculturais da comunidade, mas com outras comunidades quilombolas do
Brasil, a exemplo do projeto “ Coco Samba Jongo” que pretende realizar um intercâmbio entre o grupo
cultural Raízes do Coco, do Amaro Branco, com o grupo Jongo da Serrinha, do Rio de Janeiro, entendendo a
íntima ligação da cultura à identidade de um povo, que sendo reconhecida e se reconhecendo eleva a
autoestima, empodera e cria mecanismos de articulação que permitem uma maior atuação na busca pelos
direitos territoriais e humanos.
Portanto, este projeto de pesquisa pretende acompanhar analiticamente toda esta movimentação em
torno desta redescoberta, analisar os processos e caminhos individuais e coletivos trilhados pelo
“Redescobrindo um quilombo”, confrontando-os com os estudos já realizados, compreendendo como se dá a
composição de uma identidade étnica e como ações em temas transversais, pensadas estrategicamente
“[...]onde a memória, a tradição e as práticas sociais coletivas se cruzam e se interpretam. ” (Amorim 2000 p.
115) revelam uma teia ligando áreas do conhecimento científico e social para subsidiar a afirmação de um
passado histórico no presente além de mostrar-se como fonte consultiva e avaliativa para futuros processos
similares a serem enfrentados por irmãos e irmãs quilombolas.

OBJETIVOS

Geral:
Analisar como se dá a construção de uma “nova identidade” a partir destas memórias quilombolas
e tecer novos apontamentos em face da experiência prático reflexiva da promoção à participação sócio
comunitária para a concretização da autonomia e do protagonismo dos moradores neste processo.

Específicos:
 Transformar este relato analítico em uma das ferramentas de acompanhamento,
registro e reflexão dos caminhos para esta redescoberta, para que a partir dos dados revelados se
possam definir estratégias e planos de ação.

 Analisar as ações coletivas protagonizadas pelos movimentos sociais culturais do


Amaro Branco como componentes inerentes na busca pelo protagonismo nesta redescoberta.

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