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Historia A arte de inventar 0 passado Ensaios de teoria da Histéria Durval Muniz de Albuquerque Jtinior Capitulo 8 UM LEQUE QUE RESPIRA: A QUESTAO DO OBJETO EM HISTORIA” A fantasia €0 dom de inserir no infistamente pequeno, de inventar para cada intensidade, traducida em extensio wna nova e ssuperabundante plenitude. Em suma, de tomar cada imagem como se fosse um logue que se respira sé quando se abre. 1983) (Strada a senso tinico, Walter Benjamin, Torino, Bi Como todo o real espessa./ Aquele rio €expessoereal/ (Como suma maga éespess./Como tim cachorro & mais espesso do que tna maga./ Como & mais espesso 0 sangue do cachorro do que 0 proprio cachorra/ Como é mais espesso wm homens do que o sangue de wm cachorra.! Como € muito mais espesso ‘ sangue de wm homens do que o sonia de un homers. (C co sem phumas, Jox0 Cabral de Melo Neto, Recife, Sabid, 1950) ‘aria o objetd do saber histéricova levers ¢ a fragilidade de um colori- 4o Teque chinés que, ao ser aberto ou fechado, formaria, na sa respira, ‘rents figuras, apresentaria diferentes desenbos; que, em suas trepidacbes eas riscaria multiplas e movimentadas imagens do passadlo, que, no entanto, teriam como consisténcia apenas este aparecer, este emergir, que promete, no mesmo moinento em que devém, a ruina seguinte,o desaparecer assim que 0 leque for agitado em outro momento e por outra méo acalorada? Ou teria a espessure ea carnalidade de um real que se descobre s6 oss esqueleto mine- 149 iil Fuca ira rala que se chega ap6s desbastar toda a matéria adiposa? Seria este objeto his- {rico 0 cto sem plumas da poesia cabrafina,o micleo pétreo da realidade, que se descobre apés se atravessar toda a algaravia dos discursos derramados? Que se descabre mais espesso que todo sonho, que toda fantasia, sangue humano ue se coagula, em que o fluso ¢ 0 devir entram em estagnaggo, nem que seja na sihucta fugidia de uma ithota rodeada pela liquidez que corre célere para se perder entre os dentes dé oceano mundo? © pensamento do filisofo e historiador francés Michel Foucault tem ajudado os historiadores a refletir, nos dtimis anos, sobre esta dificil questio, A analitica do objeto his6rico no pensamento foucaultiano € o tema deste texto que, no entanto, ndo se deteré numa abordagem filos6fca ou epistemo- Jogica desta temstica, mas tentard, a partic da propria pritica da pesquisa his- ‘6rica,inspirada por este pensados tratar das importantes mutagbes que suas reflexoes acerca do objeto histdrico trouxe para nosso métier ea abertura para novas formas de ver e dizer 0 passado que o seu trabalho nos proporcionou, iados a incompreensies ¢ agressivas reagbes que também causaram no con: junto dos profisionais da dre. Alguinas vezes, em seus préprios textos, Foucault falou do desagrado «que seus textos causariam. 20s historiadores ou argumentou que o que fazia ‘no era Hist6ria, tal como entendiam os profssionais da érea. sto nfo 0 im- pedi de influenciar muitos deles e ser considerado por outros come alguém ue revolucionou este campo do saber. Qual seria entfo, a perturbadora no- vidade da forma de tratar os objetos histricos que teria feito de Foucault um ‘pensadar incémodo, mesmo para seus detratores? O que o teria tornado uma referencia tio imy punemente, a igat6rio referir-se, nem que fosse para denegé-lo? Na minha pritica como historiador, o primeiro grande imy pensamento de Foucault foi a radicalizagéo da prépria percepgao da cidade de todos os objetosa serem trabalhados por este saber. Com ele nfo ha- ‘via mais nenhum objeto histérico que ndo fosse encirado como um aconteci- ‘mento, tendo uma emergéncia em um determinado momento hist6rico, para se dissolver, mudar de contornos, redefinir-se, passar-por rupturas mais adiante. Acontecimento fundado na experigncia, nas priticas de homens que agem, véem e dizem o que fazem a partir dos limites que o seu proprio tem- po coloca, Com ele aprendi a olhar para o desenho de bordas, de limites, de 150 ‘este cimpo, que ndo se poderia passar por ele im- — Cepia i aga gu ep a ooo Hl fronteiras, que marca demarca cada corpo, cada pensamento, cada pritica, cada discurso. Com cle aprendi que o passado se configura, adquire forma, & Foucault nos faz pensar 0s objetos que o historiador estuda como uma fabricagto artesanal. Ele € responsével por sua selecio, seu recorte, ua elabo- rasiio, Embora parta de matérias deixadas pelo passado, de escrituras que pro- ‘curaram reter o sentido de cada instante e de cada experiéncia que contavam, © historiador faré com eles seu pr6prio origami, dobrard de uma outra forma cstas pginas amareladas, daré a elas uma nova respiragao, nascida do sopro ‘da imaginagto, da intuicio, do sonho, da fantasia: io significa que nf se pode falar de qualquer ois em qualquer épaca ao € ‘cl dizer alguma cols novi nl ‘consciéncia, para que novos objet logo se iluminem ena superic ‘em sua primeira laridade..o objeto nio espera nos limbus a riloe permitic-Ihe que see cada época a Pois, com Foucault, aprendi que realidade é mo rador fz iso, apenas acus outro de exagerar quando este exagera o que, ulssie minimiar.Talve ej st que incomode tanto em cao ito de ter desiascarado as astcins de nosso discus. Talvezseja iso que fra com que os artigos que se pr contemplativo,imipreciso, Foucault também foi acusado muitas vezes de no ter método, como se cxistsse um método universal e tinico para se produzir conhecimento em His- ‘ria. Quase sempre, quando se acusa alguém de nao se ter método é porque este no se panta pelo métod conceitual que tudo explicaria a que tudo seria redtzido, Faze Foucault requer criatividade, usar seu pensamento diferencialme ‘eu prdprio caminho a cada pesquisa, Seria mais honesto e produtivo admitir a Aiferenga de método e discuti-la. Um dos pontos de divergéncia entre ahistéria 155 Madd ec iin praticada por Foucault ¢ aquela praticada pela maioria dos historiadores 6, jus tamente, quanto a existéncia ou nfo de objetos para a Histéria. A maioria dos lores diverge e se questiona quanto & historia de um objeto, mas dificil- luenciado pelo trabalho de esta forma de. pensar 0s objetos histéricos, como construsses dis- ccursivas, que desconcerta e causa desconforto entre os historiadores.” fo com a afirmagio constante de que s6 com a grande seca de 1877- 1879 esta passara a ser encatada como um problema regional ¢ nacional, des confiei de que estava diante do surgimento histérico de um problema para 0 pPensamento, de um objeto para 0 saber e o poder. Antes, a seca existin duran- te séculos como um fendmeno climético, natural, mas nio como um proble- ‘A;seca € tema de uma vasta literatura, que a aborda ora como um sim- ples fendmeno climstico, que esta na origem de todos os problemas do espa- is6 Cops ace rep ut doom Hie 99 onde ocorre, ara como um problema mais vasto, com implicagies econ6. agrayando uma estrutura socioecon6mica de explo- us ch poids. Neti ids tt) rasio e desi ora 05 autores sejam nna ‘grande seca" de 1877-1879 como o momento a partir do qual a seca passa a interessar aos “poderes pablo’ tomando-se am ido como evidente,'sem ens, fendmeno de que se cis, muitas de grandes proporgdes, nao exam consideradas problema que tequeresse uma intervengio do Estado? (© que se percebe, portanto, & que esta literatura, mesmo quando trata da seca como fendmeno com repercussbes socais ¢ hist6ricas, toma-a apenas como um fendmeno natural, nao a abordanda como um obj t6rico de praticas e discursos, como invengao histérica fia, ao se falar em “seca do Norte” ou “seca do Nor de qualquer estiagem, mas de um objeto “imagético-« Niago se deve fazer apenas a histéria das reper ‘cussbes econdmicas, sociais ou politcas da seca, nem apenas a navrativa cro- nolégica de sua ocorténcia e suas conseqiéncias, mas, ahistéria da invengao da _pr6pria seca como problema regional, como objeto de priticas e discursos. do inventada como objet irtindo do pressuposto de que os marcos ¢ 0s ‘acontecimentos considerados originais na “meméria historic” so criagbes que esconcem as pistas de toda a lutae 0s embates entre virios projetos de so- iedade, que possibilitou que eles emergissem, partimos da hipétese de que 0 marco 1877 nio 6 exp! sim, que deve ser explicado, Naquele mo- mento, havia toda uma realidade hist6rica complexa, em que se digladiavam diferentes visSes conviviam diferentes possibilidades, tendo a vencedora procurado apagar todos os rastros daquela luta ‘A transformagio da seca em problema nos aparece, entio, como umn novo objeto histérico: ada, remetendo-o para o reino culo 19, uma mudanca na ender tal mudanga, pro- 1879 em algo excepcional, dentro da seculat histéria da to acontecimento da natureza, nenhum aspecto a cred ‘como tum marco? Sua duragéo foi inferior a muitas outras, atingia uma drea ‘menor. Também nfo foi tao intensa, porque ocorreram chuvas esparsas du- rante 0 perfodo, e mesmo a populasao por ela dizimada foi proporcionalmen- te inferior a da seca de 1825, por exemplo. Ao fazermos 0 levantamento documental para pensarmos a seca do {ede realidlade dura, que parecta firar os me ‘ceu adquirir a leveza do ar tangido ‘como um barranco de terra tragado pelo rio do tempo, farendo-o desmoro- tar em sua inteireza parvspareer no formigaisento de sua eonstiuito, me grap ab ils ‘mente nenhum sentido pe arquivo de imagens € uma dizibilidade do Nox ide Nordeste ¢ nordestino impée uma dada forma de aborda- e discursiva, para falar e mostrar a “verdadci <2 ciscursivas © nfo ciscursias feram ext questi emerge e cons ‘como objeto para o pensamento. Como ticulariza e indivi INotdesel Fe tabatho preende pois, levantar as ibilidade dos vériosdiscursos priticas que deram ori- |Nordeste. Longe de considerar esta regio como inscita natureza definida geogiaficamente ou regionalizada “pelo desenvolvimento do ca- pitalismo, com a regionalizagio das relagfes de produto”, que é outea forma de naturalizagao, ele buscou pensar o Nordeste como uma identidade espacial, cons frufda em um preciso momento histérico, final da primeira década do século pas- sado ena segunda década-do mesmo, como produto do entrecruzamento de pri- ticas e discursos “regionalistas’ Esta formulagéo, Nordest, dar-se-4a partir do -agrupamento conceitual de uma série de experiéncias, erigidas como caracteriza- dloras deste espago e de uma identidade regional, Estas experitncias histéricas se- ‘io agrupadas, fundadas num discurso terico que pretende ser 0 conbecimento da rego em sua esséncia, em seus tragos definidores e que articula uma dispersio de experiéncias cotidianas, sejam dos vencedores, scjam das vencides, com frag- Jamie emma deinagies jeans queaio toad eto premncio- ras do momento que se vive, de"“apice da conscigncia regional”. ‘Nosso objetivo foi entender alguns caminhos por meio das quais se pro- uziu, no ambito da cultura brasileira, o Nordeste, 0 nexo de conhecimento € poder que cria 0 nordestino e, ao mesmo tempo, oblitera-o como ser humano. (© Nordeste no foi recortad6 $6 como unidade econémica, politica ou geogrt= produsio cultural, ea, © Nordeste nas- 159 Miho iia textual da espacializagao das relagties de poder. Entendemos por espacialidade as percepgbes espaciais que habitam o campo da linguagem e se relacionam di- retamente com um campo de forgas que as i preciso, para isso, rompermos com as transparéncias dos espagos e das linguagens; pensat- histérico) se encontram, em que a Histdria destréi as determinagses naturais, ‘em que o tempo da ap espago sua maleabili. cexplicativo e, mais ainda, seu calor e efeitos de verdade humanos. ‘Ao fazermos a historia da emergéncia do recorte regional Nordeste, de- Paramo-nos,insistentemente, com discursos que descreviam, também, o hal tante desta regizo, ‘¢ um aspecto me chamou a atencids estes dis) a pes- us, do ponto de vista da metodologia,procurou operar em dois registro, em nivel dos dicursos que estrateyicamente definem um ser para o nordest no uma vsbildadee uma dzbldade em nivel das pitas eotdiana dos homens neste espago, que podiam vi oii a reproduc os egos de mas- calinidade, gtiero,eo dispositive da serusldade que estes nstituem, mesmo sabendo que discurss e priticasmiantém entre si uma relagio de ieularia- deo no sentido vertical-horizonta, mas no sentido quantico, mo deniro de uma cultura como a nordestina, em ‘que as pritcas, imagens e os enunciados definem eexigem de forma muito es- trita 0 ser masculino, as maneiras de praticar este genero silo variadas, as tra- 160 Um ese api ias culturais metaforizam a ordem dominant ncias, gestando microdiferengas.Trajet6rias culturais de homens que mui- ‘tas vezes podem ser exemplos da arte no exercicio ao mesmo tempo da ordem eda bur Nesta pesquisa trabalhei, ao mesmo tempo, em nivel da estratégias que Produziram, mapearam ¢ tentam disciplinar o ser homem nordestino, € em nivel das téticas por este empregadas no seu cotidiano para mani zap, alterar i spBem a esta microrre- ticas nao clemandam um lugar como a estratégia, captam no vo as possbilidades de ganho; € um ato que visa a aproveitar uma casio, no é necessariamente articulada discursivamente; & um gesto, breve

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