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Carlos Eduardo Silva e Souza, Bruno Henrique Morais de Oliveira , Fernando Flores Fanaia,
Gabriela Araújo Ubirajara, Saulo Niederle Pereira
Abstract: his article analyzes the work of "The Merchant of Venice" and its relation to the
law, in order to appropriate the knowledge essential to building a legal and critical thinking,
which aims to get the idea of a possible relationship to the Theory of Contracts. The first
part of the research work of synthesis and then for historical analysis on the plot develops.
With these ideals, is that it makes a connection between the work in question, the General
Theory of Law and, finally, with the Theory of Contracts.
Introdução
O presente artigo objetiva analisar o filme “O Mercado de Veneza” como referência para
uma análise de seu conteúdo e uma possível relação e construção crítica em relação à Teoria
Geral dos Contratos, objetivando assim, por meio da arte cinematográfica, firmar possíveis
aprendizados que estão relacionados com esse ramo do Direito.
Na primeira parte, apresenta-se uma síntese do filme, de modo que, de maneira e conectada
e coerente, permita uma conexão com o momento histórico, no qual o enredo do filme se
encontra inserido. Diversas partes da história, as quais nada ou pouco contribuem para a
discussão aqui presente, foram suprimidas, com vistas a não alongar desnecessariamente o
texto ou fugir do enfoque sobre a ideia principal do enredo.
Superada essa fase inicial, analisou-se o contexto histórico da época na qual a obra foi
realizada, incluindo temas como ideologia, aspectos sociais, economia, relação da obra com
o meio jurídico bem como as influências que a obra shakespearina recebeu outra obra
produzida nessa época.
Após essa contextualização à época da obra, na terceira parte do trabalho, utiliza-se o
raciocínio até então desenvolvido para subsidiar uma análise mais detalhada sobre a obra,
precipuamente a relação desta com o conteúdo da Teoria Geral do Direito.
Por fim, com o intuito de arrematar o presente trabalho, analisou-se o contrato feito entre
os dois personagens protagonistas da obra, Antonio e Shylock, à luz da Teoria dos Negócios
Jurídicos, fazendo um paralelo entre o histórico remoto e o atual, notadamente quanto aos
planos de existência e validade, dada a complexidade da temática.
Antonio logo é visitado por seu grande amigo Bassanio, um nobre jovem veneziano que gastou
prodigamente muito de sua herança. Com isso, tem muito de sua vida financiada por
doações/empréstimos de Antonio. Bassanio traz notícias de sua última aventura: viajou a
uma região chamada de Belmonte e tomou conhecimento de Portia, uma linda, inteligente,
solteira e rica herdeira. O caso é que, antes de morrer, seu pai determinou que ela não
poderia recusar qualquer pedido de casamento. Ao invés, quem desejasse se casar com ela
deveria escolher entre três baús – um de ouro, um de prata e outro de chumbo. Se o
pretendente escolhesse o certo, casaria com a herdeira. Caso errasse, além de não ganhar
a mão de Portia, não poderia se casar com qualquer outra pessoa até o fim de sua vida.
A razão da visita de Bassanio é que este busca se casar com Portia, e, para tal, precisa
(novamente) de dinheiro. Contudo, as riquezas de Antonio estão no mar. Logo, o que este
pode e faz por seu grande amigo é dá-lo seu crédito, para que contraia um empréstimo de
algum outro mercador, o qual acaba por ser Shylock, um mercador e usurário judeu.
A este é pedido o empréstimo de 3.000 ducats, por três meses, com Antonio como fiador do
contrato. Porém, este, devido a seu denso anti-semitismo, costuma ofender – até mesmo
cuspir – o judeu, além de emprestar dinheiro sem juros, machucando seus negócios.
Portanto, Shylock decide por só emprestar o dinheiro se a multa pela inadimplência for uma
libra da carne de Antonio. Devido à aposta forte no retorno de suas embarcações, este aceita
sem preocupação a proposta, e o contrato é assinado.
Em seguida, conhece-se Jessica, filha única de Shylock, que mora com ele, porém o odeia,
razão pela qual planeja fugir com seu amado, Lourenzo – cristão e amigo de Bassanio e
Antonio. Enquanto seu pai encontra-se, relutantemente, em um banquete com estes, Jessica
escapa com seu pretendente, levando consigo uma enorme parte da fortuna de seu genitor.
À mesma noite, Bassanio parte para Belmont, determinado em conquistar Portia.
Quando chega a seu lar, ainda durante a noite do banquete, Shylock é levado aos prantos
por descobrir a fuga de sua filha e roubo de sua fortuna. Ademais, ele toma conhecimento
da razão de sua filha fugir (casar com um cristão), fato que o destrói ainda mais.
Passam alguns dias e Antonio também sofre grandes infortúnios: correm notícias de que todas
suas embarcações estão afundando, destruindo, pois, seus meios de pagar Shylock. Este,
ainda louco pelo “roubo” de sua filha por um cristão, fica loucamente determinado a retirar
a prometida carne de Antonio, e, assim, vingar seus maus tratos vividos.
Nesse meio tempo, em Belmonte, Bassanio torna-se o primeiro pretendente a escolher o baú
correto, casando-se com Portia. Paralelamente, um de seus amigos que o acompanhava,
Gratiano, casa-se com Nerissa, criada de Portia. Ao receberem a notícia da triste situação
de Antonio, os esposos decidem prontamente retornar a Veneza, e partem com vinte vezes
o valor devido, quantia essa dada por Portia. E, sem o conhecimento de seu marido, esta e
sua criada arquitetam e começam a executar um plano ardiloso, qual seja: se disfarçar como
advogados e ajudar na defesa do mercador.
Avança-se, então, para o dia do julgamento, o qual é realizado em uma corte de Veneza,
tendo o Doge (o dirigente máximo da República de Veneza) como julgador final. Muitos dos
espectadores presentes pedem misericórdia a Shylock, mas este, louco como está, escuta
somente a seu desejo de vingança, ou, para ele, justiça (pois, no entendimento do judeu, a
execução do contrato é o único modo justo de se resolver a situação). Mesmo quando
Bassanio chega à corte e o oferece 6.000 ducats, Shylock não desiste do litígio.
Porém, logo após todas as ofertas serem recusadas e todos estarem prontos para a sentença
do Doge, adentram a corte dois jovens juristas: Balthazar e Stephano. Este, Nerissa, aquele,
Portia, ambas agindo conforme antes planejado. A primeira arguição de Balthazar em prol
de Antonio é baseada no valor da misericórdia: esta se sobrepõe à justiça e lei humana, além
de “abençoar tanto quem a dá quanto quem a recebe”. Tais argumentos também foram
incapazes de apaziguar os ânimos do mercador, o qual continua a exigir sua multa em forma
de carne. O Doge, sabendo que negar o pedido de Shylock enfraqueceria o direito veneziano,
se vê de mãos atadas e concede sua sentença favoravelmente a este, que se prepara para
cobrar sua dívida naquele mesmo local e hora.
Contudo, a meros instantes da execução da sentença, Balthazar encontra uma falha crucial
no contrato em questão: Antonio acordou em ter somente sua carne retirada, não fazendo
menção alguma a qualquer gota de sangue. Além disso, resta explicitada a quantia exata de
uma libra, não menos, não mais. Ou seja, caso Shylock ocorresse em derramar qualquer
sangue de seu rival, ou retirasse qualquer quantia que não pesasse uma exata libra, todos
seus bens seriam confiscados. Isso porque ficaria caracterizada uma tentativa de homicídio
de um cristão, a qual, pelas leis venezianas, tem como pena a sanção acima descrita.
Vendo-se derrotado, o judeu decide aceitar as ofertas monetárias, mas é informado de que
não há mais tal possibilidade, devido a sua própria escolha de anteriormente recusá-las.
Ademais, por consequência de, legalmente, judeus serem estrangeiros em Veneza, no
instante em que pregou por executar o contrato, metade de seus bens foram confiscados ao
Estado, outra metade a Antonio, e sua vida ficou à disposição do Doge, pois tal é a pena para
o estrangeiro que tenta tirar a vida de um cidadão Veneziano. A vida de Shylock é poupada
pelo Doge, bem como Antonio abre mãos de seus bens, porém isto sob uma condição: deveria
ele se converter ao cristianismo, além de que, após sua morte, seus bens seriam doados a
Lourenzo e Jessica. Brutalmente derrotado e desesperado, rende-se e renega ao judaísmo,
levando repúdio a seus iguais.
A história termina, pois, no tradicional “feliz para todos”, a não ser por Shylock. De volta a
Belmonte, Antonio descobre que algumas de suas embarcações completaram suas missões,
retornando com grandes lucros; Portia e Nerissa revelam a seus maridos suas atuações,
surpreendendo-os. Estes se deitam felizmente com suas esposas, assim como Lourenzo e
Jessica encontram-se em pura felicidade e amor. Já o ex-judeu, além de continuar
severamente machucado pela fuga da filha, agora se vê exilado de seu próprio povo e ainda
mais odiado pelos cristãos.
O filme “O Mercador de Veneza” foi inspirado no livro homônimo escrito por William
Shakespeare no século XVI. Além de ser muito conhecido por causa do prestígio de seu autor,
o filme conta com grandes nomes do cinema como Al Pacino e Jeremy Irons, e um rico
contexto histórico, pois este se passa em uma das maiores cidades da época, Veneza. Em
um século de transição entre sistemas econômicos e políticos – houve um fortalecimento das
cidades e do comércio, do ouro como moeda de troca e os senhores feudais passaram a
perder poder –, aborda também diferentes religiões e costumes.
Embora “O Mercador de Veneza” seja uma obra literária, a história influenciou várias áreas
do conhecimento, sendo que, no presente trabalho, o enfoque será dado no âmbito jurídico.
O cenário do filme é Veneza, em 1569, portanto, segunda metade do século XVI. Desde o
século IX, aproximadamente, Veneza foi um dos polos mercantis do mundo, dada sua
especialidade em transporte marítimo. Na Idade Média, especificamente na Baixa Idade
Média, Veneza foi uma das poucas cidades que permaneceu ativa, e, devido a essa constante
transação de mercadorias, serviu de fonte para o contato de pessoas vindo de lugares
diferentes, fomentando a diversidade cultural e o pensamento liberal, em relação ao
conservadorismo do cristianismo – religião dominante na época. Esse contexto histórico é
evidente nas palavras de Ronaldo Vainfas
“[...] Através das rotas comerciais vinham especiarias tecido da Índia e da China. Essas
mercadorias chegavam ao Mediterrâneo pelo mar Vermelho, costeando o Egito, ou pelo mar
Negro, atravessando os estreitos Bósforo e Dardanelos. Foi um tempo glorioso para os
mercadores da península Itálica, sobretudo os de Gênova e Veneza, que revendiam tecidos
orientais e especiarias – como cravo, noz-moscada, canela e pimenta – ao restante da
Europa.”[1]
Além disso, Veneza abrigou vários intelectuais e em alguns casos foi uma das primeiras
províncias a aderir a ideias pouco convencionais naquela época. Um exemplo é o próprio
conceito de Estado de Direito.
Uma das características dessa cidade é possuir a economia voltada para o comércio, o qual
dá extrema importância ao cumprimento dos acordos firmados. Em sua esfera jurídica, por
exemplo, caso o Tribunal não obrigasse a execução de um contrato, haveria resultado de
insegurança jurídica e, consequentemente, econômica, prejudicando, desse modo, os
investimentos comerciais. Como resultado dessa atitude jurídica, a cidade era reconhecida
não somente pelas transações comerciais, mas também por se um lugar seguro para se firmar
acordos. Dessa maneira, é observado no filme que este é um dos argumentos usado pelo
personagem do judeu para que seu contrato seja executado.
Outro aspecto relevante do contexto histórico do livro o qual deu base para o filme “O
Mercador de Veneza” é que, segundo Maria da Rosa, seu autor pode ter sido influenciado
pela obra “O Judeu em Malta”. Esse livro foi escrito entre 1589 e 1590 por Christopher
Marlowe, a obra trata sobre um judeu ganancioso e com desejo de vingança. Posto isso,
torna-se evidente a semelhança entre o judeu do livro “O Mercador de Veneza” e do “O
Judeu em Malta”, ademais, é possível perceber que elaborar um personagem judeu e com
algumas características negativas em uma obra não foi uma ideia original de Shakespeare,
e, sim, uma estigmatização presente na sociedade europeia. Desta maneira, entender o
contexto histórico em que foi escrito o livro se mostra imprescindível para compreender os
temas abordados neste.
Uma vez já realizada a contextualização do período histórico em que se situa a trama, faz-
se necessário estabelecer uma relação entre o conteúdo da Teoria Geral do Direito e a
história concebida por Shakespeare.
Com essa pequena contextualização feita, pode-se perceber que a questão posta é bastante
profunda, pois será que a decisão tomada em favor do mercador de Veneza foi realmente a
decisão mais justa?
Alysson Mascaro[2] apresenta algumas ideias sobre o que seria uma decisão justa, sendo,
uma das respostas, a de que a decisão justa é aquela abstraída a partir da norma positiva.
Rudolf Von Ihering argumenta que a decisão foi injusta, pois, em suas próprias palavras:
“desde o momento em que a lei de Veneza declarava válido um escrito daquela natureza, o
judeu era porventura um patife porque tirava partido dele?”.[3] Ihering segue questionando
que: “Tenho eu porventura exagerado sustentando que o judeu se vê aqui defraudado no
seu direito? Certamente tudo isso se faz no interesse da humanidade, mas a injustiça
cometida no interesse da humanidade deixa por isso de ser uma injustiça?”[4]
No entanto, Norberto Bobbio, realiza, em sua obra “A Era dos direitos”, uma belíssima defesa
contra a pena de morte que pode ser adaptada para o caso aqui analisado.[5] Segundo
Bobbio, a principal base argumentativa dos defensores da abolição da pena de morte é a de
que ela não é útil como meio de prevenção de crimes, enquanto que os defensores da pena
capital apontam que, dependendo do crime cometido, não existe nenhuma pena tão justa
quanto tirar a vida do indivíduo que o cometeu. Percebe-se que o principal ponto dos
abolicionistas é a utilidade da pena, enquanto que para os não-abolicionistas é a justiça da
mesma. Bobbio aproxima o problema de um ângulo bastante inusitado, ele afirma que a
pena de morte é um erro, não porque ela seja injusta ou porque ela não é o melhor meio de
se prevenir crimes, mas porque em sua experiência jurídica uma das coisas que ele melhor
compreendeu é que violência gera violência. Ora, olhando-se a questão da justiça posta em
“O mercador de Veneza”, sob a perspectiva de Bobbio, chega-se à conclusão de que a
decisão mais justa que poderia ter sido tomada assim o foi, uma vez que se impediu um ato
incalculavelmente mais violento que o não pagamento de uma dívida.
Ainda na questão da justiça, e que pode visivelmente ser percebido ao confrontar a opinião
dos dois juristas acima, é o seu caráter histórico. Se em tempos passados era permitida a
ideia de que seria injusta a decisão de não deixar um homem tirar um pedaço de carne de
outro em função do não pagamento de uma dívida, essa mesma visão jamais poderia ser
acolhida no atual universo jurídico, especialmente levando em conta a grandiosa evolução
que a proteção dos direitos humanos obteve nos ao longo dos últimos 50 anos.
Outro aspecto que pode ser abstraído no filme é a relação entre decisão jurídica e
argumentação. Alysson Mascaro[6] apresenta duas teorias acerca de como funciona um
processo decisório: a primeira indica que a decisão é uma mera subsunção, ou seja, uma
aplicação mecânica das normas ao caso analisado, enquanto que a outra teoria afirma que
a decisão jurídica busca, acima de tudo, o convencimento das partes e do restante da
sociedade, então mais do que um mero processo lógico de aplicação de normas e técnicas
ao caso, a decisão usa mais de lugares comuns, ou topois, o que dará origem ao termo
argumentação tópica.
Ainda nessa questão da decisão, uma ponderação muito pertinente que deve ser feita é a
seguinte: caso Shylock não fosse um judeu mas sim um cristão, e caso Antônio não fosse um
cidadão respeitado mas um moribundo qualquer, a decisão final teria sido a mesma? Esse
tipo de questionamento não é capaz de obter uma resposta absolutamente correta, mas é
possível fazer suposições, sendo que, provavelmente, a decisão teria sido outra.
Essa constatação demonstra a relação muito próxima que existe entre a visão social de
mundo que o jurista possui, seus preconceitos, ideologias, utopias e crenças, com as decisões
que ele toma ao longo de sua carreira, uma vez que, levando em consideração as questões
sociais da época, é muito mais fácil para o Doge passar por cima do direito de um judeu,
devido à longa tradição de perseguição à essa religião, do que o seria caso fosse o reclamante
um cristão, sujeito com quem compartilharia a mesma fé.
Levando-se em conta o brocado jurídico tradicional de que “o contrato faz lei entre as
partes”, pode-se perceber claramente que Pórcia se utilizou de técnicas hermenêuticas na
análise dessa lei estabelecida entre Shylock e Antônio.
Dentro das diversas classificações propostas por Limongi as técnicas hermenêuticas que mais
se aproximam das utilizadas no caso são a interpretações restritiva e gramatical, sendo esta
última porque Pórcia levou em conta somente o que estava expressamente posto na “letra
de lei” presente no contrato, e a primeira porque, embora não esteja presente no contrato,
a presença do sangue se encontra implícita.
Essa posição é apoiada por Ihering que, ainda na introdução de seu livro “A Luta pelo
Direito”, postula que a técnica utilizada por Pórcia não passa de uma perfídia, uma vez que
não existe possibilidade de se cortar um pedaço de carne sem que não haja sangue e,
consequentemente, o direito de retirar parte do sangue de Antônio se encontra
subentendido.[7]
Em resumo, a interpretação gramatical de Pórcia foi tão extrema, que restringiu a “mens
legislatoris” das partes que realizaram o contrato.
Em primeiro lugar, o contrato, conforme leciona Carlos Roberto Gonçalves, é uma espécie
do gênero “negócio jurídico”, que depende, para a sua formação, da participação de duas
partes, as quais elaboram “um acordo de vontades, na conformidade da lei, e com a
finalidade de adquirir, resguardar, transferir, conservar, modificar ou extinguir direitos”[8].
“Portia de Belmonte é uma dama jovem e bela, além de rica e virtuosa possuidora de muitos
admiradores, entre os quais se encontra Bassanio. Pobre, embora sendo da nobreza
veneziana, Bassanio vê-se obrigado a recorrer ao auxílio de Antonio [...] rico mercador e
velho amigo. Este se dispôs a emprestar-lhe 3 mil ducados pelo prazo de 3 meses, segundo
lhe fora pedido, porém, não tendo no momento toda a quantia necessária, foi pedir dinheiro
a Shylock, judeu rico que fazia empréstimos monetários. Shylock vê a ocasião para vingar-
se de Antonio por quem guardava ódio antigo, sem contudo revelar seus propósitos sinistros.
Concordava, portanto, como empréstimo sem juros, desde que o mercador aceitasse assinar
um contrato, no qual estaria estipulado que, se não fosse pago, Shylock teria o direito de
exigir um libra de carne, que seria cortada de qualquer parte do corpo de agrado do credor
[...]”[10]
Desta forma, vê-se que no plano existencial foram satisfeitas as condições, visto que ambos
os agentes manifestaram suas vontades (Antonio com o intuito de ajudar o amigo e Shylock
almejando vingança), em torno de objetos (3 mil ducados e 1 libra de carne) e em
conformidade com direito daquela época[11].
Neste ponto, urge ressaltar que a atemporal doutrina desenvolvida por Pontes de Miranda (a
chamada “Escada Pontiana”[13]) é adaptável a essa análise porquanto que são
condicionantes presentes expressa ou implicitamente nos negócios jurídicos. Igualmente, é
notório que o plano da validade corresponde à legitimidade dos elementos existenciais, de
sua conformidade, validade, com ordenamento jurídico.
Feita essa digressão, identifica-se que a obra em questão foi elaborada originariamente em
1596-1597, em uma época, anterior à Revolução Francesa, na qual a autonomia da vontade
era tida como inviolável. Para Leonardo Gomes:
“[...] conforme a posição demonstrada na obra, Shylock, Antonio, bem como o Doge e
Baltasar achavam e tinham a convicção que cada um deve respeitar inviolavelmente a sua
palavra, ou seja, aquilo a que se comprometeu no contrato. De acordo com esta visão, e
diante de toda sua clareza, a liberdade dos intervenientes mantém-se intocada até à
chegada da conclusão (instantânea) do contrato a qual será seguida pela fase de sua
execução, mera realização das virtualidades nele contidas”[14].
Em contraste, caso a supracitada situação ocorresse nos dias atuais brasileiros, ela seria
flagrantemente inválida, pois feriria o requisito manifestação de boa-fé e objeto lícito e
possível, visto que, no primeiro caso, o comerciante judeu inegavelmente agiu de má-fé,
consoante se depreende o seguinte trecho: “(Shylock) Como se parece com um hipócrita
publicano! Eu o odeio [...] se um dia conseguir agarrá-lo, saciarei o velho ódio que sinto por
ele!” [16]. Assim sendo, Shylock tinha o intuito de se vingar de seu antigo conhecido,
infringindo, pois, o artigo 14 do CPC (“CPC/Art. 14. São deveres das partes e de todos
aqueles que de qualquer forma participam do processo: II - proceder com lealdade e boa-
fé”). Quanto à infração ao objeto lícito e possível, não é necessário tecer pormenores haja
vista que tal ato seria indubitavelmente inconstitucional aos nossos princípios fundamentais,
especificamente ao fundamento da Dignidade da Pessoa Humana.
Por fim, outro dispositivo impeditivo a essa conduta seria o princípio da socialização,
adotado pelo legislador do Novo Código Civil, em contraposição ao individualismo do Código
de Beviláqua. Nesse princípio, nos dizeres de Carlos Roberto Gonçalves, “reflete
a prevalência dos valores coletivos sobre os individuais, sem perda, porém, do valor
fundamental da pessoa humana”[17]. Consonância esta prevista no artigo 421 do Código
Civil: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do
contrato”.
“a função social do contrato constitui, assim, princípio moderno a ser observado pelo
intérprete na aplicação dos contratos. Alia-se aos princípios tradicionais, como os da
autonomia da vontade e da obrigatoriedade, muitas vezes impedindo que estes
prevaleçam.”[18]
Nota-se, portanto, uma verdadeira conexão entre o filme “O Mercador de Veneza” e a Teoria
Geral dos Contratos, de forma a se elucidar, por meio da obra cinematográfica, a
visualização entre os seus elementos de conexão.
Conclusão
Por meio da obra cinematográfica “O Mercador de Veneza”, pode-se notar uma intensa e
proveitosa relação entre esta e os conteúdos jurídicos, de tal forma a se perceber como
podem ser engendradas as relações no pretenso Estado de Direito.
Foi possível também apreciar, sob a ótica dos direitos humanos e do princípio da dignidade
da pessoa humana, a relação que se pode fazer do filme com a Teoria Geral do Direito,
especialmente na relação entre “Direito e Justiça”, bem como da argumentação tópica e
sua relação com o poder de decisão, onde também se encontra inserida a hermenêutica
jurídica.
Sob a perspectiva da Teoria Geral dos Contratos, foi possível perceber ainda a noção de
negócio jurídico e, especificamente, a de contrato, em sua recomendação de uma
perspectiva mais social.
Referências
AQUINO, Leonardo Gomes. “O Mercador de Veneza: Uma visão do contrato celebrado entre
Shylock e Antonio”. Disponível em: <http://conteudojuridico.com.br/artigo,o-mercador-de-
veneza-uma-visao-do-contrato-celebrado-entre-shylock-e-antonio,22407.html>. Acesso em
20 jan 2015.
BOBBIO, Norberto. O debate atual sobre a pena de morte. In: A Era dos Direitos. 19. ed. São
Paulo: Campus, 2004. Tradução de: Carlos Nelson Coutinho.
DA ROSA, Maria Eneida Matos. A estética da crueldade em “Judeu de Malta”. Porto Alegre:
EdiPUCRS, s/d. Disponível em: <http://www.pucrs.br/edipucrs>. Acesso em 20 jan 2015.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro, volume 3: Teoria dos contratos e atos
unilaterais. São Paulo: Saraiva, 2012.
SHAKESPEARE, William. O mercador de Veneza. 2ª edição (trad. Fernando Carlos Medeiros e
Oscar Mendes). São Paulo: Martin Claret, 2013.
VAINFAS, Ronaldo...(et al.) HISTÓRIA: volume único.. Saraiva: São Paulo, 2010.
VON IHERING, Rudolf. A luta pelo Direito. 8. ed. São Paulo: Martin Claret, 2013.
Notas:
[1] VAINFAS, Ronaldo. (et al.) História. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 129.
[2] MASCARO, Alysson. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Atlas, 2012.
[3] VON IHERING, Rudolf. A luta pelo Direito. 8. ed. São Paulo: Martin Claret, 2013. p. 19.
[4] Ibidem. p. 18
[5] BOBBIO, Norberto. O debate atual sobre a pena de morte. In: A era dos
direitos (Tradução de: Carlos Nelson Coutinho). 19. ed. São Paulo: Campus, 2004. p. 164-
185.
[6] MASCARO, Alysson. Introdução ao estudo do direito, cit.
[7] VON IHERING Rudolf, ob.cit. pág. 19
[8] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro, volume 3: Teoria dos contratos e
atos unilaterais. São Paulo: Saraiva, 2012, pg. 53.
[9] Ibidem. 123.
[10] SHAKESPEARE, William. O mercador de Veneza. 2ª edição (trad. Fernando Carlos
Medeiros e Oscar Mendes). São Paulo: Martin Claret, 2013, pg. 07.
[11] “(Shylock) Vinde comigo a um notário, lá assinareis simplesmente uma caução.[...]
(Antonio) Por minha fé, estou de acordo; assinarei a caução e direi que há muita
generosidade no judeu”. Shakespeare, William. Ob. cit., pg 34-35.
[12] Mestre em Ciências Jurídico-Empresariais, pós Graduado em Ciências Jurídico-
Processuais e Ciências-Empresariais, sendo todos os títulos pela Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra(Portugal). Especialista em Direito Empresarial. Professor
Universitário na área de Direito Comercial no Unieuro.
[13] Deve-se a Pontes de Miranda, conforme ressalta Flávio Tartuce e Pablo Stolze em suas
respectivas obras, a esquematização teórica do negócio jurídico em “planos” ou “escadas”:
existência, validade e eficácia.
[14] “O mercador de Veneza: uma visão do contrato celebrado entre Shylock e Antonio”,
disponível em: <http://conteudojuridico.com.br/artigo,o-mercador-de-veneza-uma-visao-
do-contrato-celebrado-entre-shylock-e-antonio,22407.html>. Acesso em: 17 jan 2015.
[15] SHAKESPEARE, William, ob. cit., pg. 105.
[16] Idem, pg. 31.
[17] GONÇALVES, Carlos Roberto, ob. cit., pg. 60.
[18] Idem, pg. 62.