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FLORIANÓPOLIS
2010
1
APOLIANA REGINA GROFF
FLORIANÓPOLIS
2010
2
TERMO DE APROVAÇÃO
3
Este trabalho é dedicado ao MST e aos Sem Terra de Santa Catarina
e, também, àqueles que lutam para construir uma sociedade mais
solidária e feliz, onde todos possam ser socialmente iguais e
humanamente diferentes.
4
Gostaria de agradecer...
Aos meus pais que sempre apóiam minhas decisões e fazem de seus
braços um porto seguro.
5
Acreditar no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos
completamente o mundo, nos desapossamos dele. Acreditar no mundo
significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo que
pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-
tempo, mesmo que de superfície ou volume reduzidos.
É ao nível de cada tentativa que se avaliam a capacidade de
resistência ou, ao contrário, a submissão ao controle.
Necessita-se ao mesmo tempo de criação e povo.
6
GROFF, Apoliana R. (2010). A MEDIAÇÃO DA MÚSICA NO MST:
um estudo em contextos e eventos coletivos em Santa Catarina.
Dissertação de Mestrado, Pós-Graduação em Psicologia, Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, Brasil.
7
GROFF, Apoliana R. (2010). MEDIATION OF MUSIC IN MST
(Landless Social Movement): a study in collective contexts and
events in Santa Catarina. Master's Thesis, Graduate Program in
Psychology, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),
Florianopolis, Brazil.
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Sumário
APRESENTAÇÃO.......................................................................10
1. INTRODUÇÃO.............................................................................13
2. OLHARES TEÓRICOS.................................................................18
2.1 Constituição do sujeito.....................................................................18
2.2 Movimentos sociais e o MST...........................................................21
3. O PROCESSO DA PESQUISA (MÉTODO)................................32
3.1 Pesquisar e constituir-se pesquisador...............................................32
3.2 Os caminhos percorridos no processo da pesquisa...........................38
3.3 A construção das informações para a pesquisa................................46
3.4 Sujeitos participantes da pesquisa e seus contextos.........................49
4. DIÁLOGOS ENTRE SUJEITOS (ANÁLISES)...........................53
4.1 História e cotidiano da música no MST...........................................53
4.2 Atividade criadora no MST: o acampamento como “berço da
criatividade”...........................................................................................75
4.3 Significados compartilhados em torno da música no MST..............88
4.4 A música “mexe”: vivências estéticas no
MST......................................................................................................98
4.5 Acontecimentos no cotidiano do MST mediados pela música.......104
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................110
6. REFERÊNCIAS...........................................................................114
Apêndice: Termo de Consentimento Livre e Esclarecido....................122
9
APRESENTAÇÃO
“... sou minha cara contra o vento, a contra-vento, e sou o vento que bate
em minha cara” (Galeano).
1
Quando estiver me referindo ao MST, escreverei Movimento com a inicial em maiúsculo.
2
O acampamento é o espaço-tempo onde os Sem Terra constroem seus barracos de lona preta,
em terras improdutivas e/ou públicas que não estão cumprindo sua função social. No
acampamento eles permanecem até que a terra seja desapropriada para fins da reforma agrária.
3
O assentamento se constitui no território que foi desapropriado para fins da reforma agrária,
onde as famílias Sem Terra vão construir suas moradias, trabalhar e produzir.
10
objetivo de conhecer ainda mais a realidade do Movimento, que no
trabalho da Monografia de Conclusão de Curso, realizei uma pesquisa
em um assentamento de reforma agrária do MST tendo como objetivo
estudar os sentidos e significados do singular e do coletivo neste
assentamento (GROFF, 2006). Este trabalho de pesquisa e a
participação em ações coletivas do MST contribuíram muito para minha
compreensão acerca do Movimento, ampliando meu olhar sobre ele,
demarcando sua complexidade e me instigando a dar continuidade à
pesquisas junto a este movimento social.
Quando decidi fazer o mestrado em psicologia na UFSC,
inicialmente procurei, por meio da página eletrônica do programa de
pós-graduação (http://www.cfh.ufsc.br/~ppgp), conhecer as áreas e
linhas de pesquisa, com o objetivo de encontrar professores que
realizavam estudos junto a movimentos sociais. Para minha surpresa, só
havia uma professora na época que relatava no site seu interesse em
estudos com movimentos sociais, a professora Kátia Maheirie. Porém,
seus estudos estavam voltados para as objetivações artísticas, a atividade
criadora e as relações estéticas e eu não tinha ainda clareza de meu tema
de pesquisa, pois a única certeza era a minha vontade afetiva e política
em continuar estudando o MST. Desta forma, ao entrar no mestrado sob
a orientação da Kátia, fomos delineando o tema da pesquisa. Na medida
em que eu apresentava meus interesses e contava a ela sobre as
experiências que tinha vivido junto ao MST, ela ia sinalizando
possibilidades de estudo e contava sobre as pesquisas que eram
desenvolvidas no NUPRA4.
Foi, então que, recordando uma vivência minha com o MST no
momento de uma ocupação5, que o tema de estudo desta dissertação foi
se construindo. De forma breve, conto esta vivência que aconteceu em
janeiro de 2008, onde vários movimentos sociais foram convidados para
participar de uma manifestação do MST6, em apoio às famílias que
4
Este é um núcleo de pesquisa intitulado Núcleo de Pesquisa em Práticas Sociais, Relações
Estéticas e Processos de Criação (NUPRA), coordenado pelas professoras Kátia Maheirie e
Andréa Zanella. Sobre este núcleo de pesquisa ver o artigo: ZANELLA, A, MAHEIRIE, K,
STRAPPAZZON, A.L, GROFF, A.R, SCHWEDE, G., MÁXIMO, C. E. (2010).
5
A ocupação é uma estratégia do Movimento para chamar atenção das autoridades quanto à
realidade dos latifúndios, ou seja, das grandes extensões de terra que não cumprem sua função
social, e exigir a desapropriação destas para fins da reforma agrária. Este acontecimento
consiste no ato de ocupar a terra e permanecer nela acampado.
6
Eu estava presente nesta manifestação enquanto representante do Centro de Defesa dos
Direitos Humanos de Blumenau.
11
haviam iniciado um processo de ocupação no município de Taió/SC, na
Fazenda Mato Queimado. Esta ocupação ocorreu com o objetivo de
acelerar a criação do assentamento, já que a terra havia sido
desapropriada pelo Instituto Nacional de Reforma Agrária (INCRA).
Estavam na ocupação, aproximadamente, 150 famílias. No entanto,
quando chegamos ao local da manifestação, ficamos sabendo da
situação em que as famílias se encontravam, pois parte delas esteve
durante toda a noite incomunicável, sem alimento, sem dormir, dentro
dos ônibus. Isso aconteceu, pois no momento da ocupação no dia
anterior, os capangas da fazenda, armados, renderam os ônibus com as
famílias dentro. Somente no outro dia pela manhã, depois de muita
negociação, essas famílias foram liberadas. A ocupação gerou um
grande conflito e foi aí que outros movimentos foram convocados a
apoiar a luta do MST e a estar numa manifestação próximo a entrada da
fazenda. Neste local, havia diversos policiais a cavalo, outros no chão,
todos armados. No momento da manifestação estavam as famílias Sem
Terra, compostas por mulheres, homens e crianças e, também, diversas
pessoas que ali apoiavam o Movimento. Em meio a cena, e após terem
passado a noite em claro, com medo e sem comida, os Sem Terra
gritavam palavras de ordem e cantavam as músicas do MST com a ajuda
de três violeiros em uma grande roda, diante dos olhares da polícia e da
população da cidade. Foi uma experiência marcante para mim, pois a
tensão era grande. Ao mesmo tempo em que a cavalaria da policia
militar estava organizada e homens com armas em punho guardavam a
entrada da fazenda, entre palavras de ordem, os integrantes do MST
cantavam e batiam palmas.
Foi por meio desse processo dialógico entre memória,
experiência e relações com pessoas do NUPRA, que o tema música e
MST se apresentou para nós como objeto de pesquisa. O que nos
interessou de início como estudo foi o lugar que a música ocupava nas
ações coletivas do MST e em seu projeto político. Depois construímos o
atual tema de estudo que é a mediação da música no cotidiano do MST
em SC, por compreender que a música está presente nas ações coletivas,
mas também está presente nos acampamentos, assentamentos e eventos
do MST, sendo estes os contextos que constituem o cotidiano deste
movimento social, que comemora em 2010, 26 anos de existência.
12
1. INTRODUÇÃO
7
A Comissão Pastoral da Terra (CPT) é um órgão da Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB). Foi fundada em plena ditadura militar em junho de 1975, como resposta à
grave situação dos trabalhadores rurais. Em Santa Cataria a CPT surge no ano de 1977, com
forte expressão na região oeste do estado.
8
Informações obtidas do site do MST http://www.mst.org.br, acesso em junho de 2008.
13
Atualmente, o MST possui 130 mil famílias acampadas e 370 mil
famílias assentadas que se vinculam ao Movimento. Em Santa Catarina,
o MST possui cinco mil famílias assentadas e 1.100 acampadas 9.
Neste contexto, é preciso compreender o MST enquanto um
movimento social complexo, onde se encontram milhares de crianças,
jovens, adultos, idosos, homens e mulheres, em situação de acampados,
assentados, participando de ações coletivas de mobilização e protesto e,
ainda, realizando ocupações. É um movimento social que além de
possuir dirigentes nacionais e dirigentes estaduais que organizam o
Movimento, possui em sua base, milhares de Sem Terra 10. Diferencia-se
de outros movimentos sociais por ter uma estrutura e investimento na
área da educação, com escolas de ensino fundamental e médio e, até
mesmo, cursos de ensino superior em parceria com universidades.
O MST possui, também, um investimento significativo na área da
cultura e arte por meio da realização de encontros de cultura, produção
de músicas e de CD‟s, grupos de teatro, entre outras expressões que são
mediadoras na constituição do Movimento. A música no MST tem sua
história junto com o surgimento do Movimento, influenciada,
principalmente, pela CPT que na época produzia músicas voltadas para
a situação do pobre e do homem do campo. Desta forma, a música
esteve sempre presente participando significativamente nos momentos
da mística11. A mística no MST foi sofrendo transformações ao longo de
sua trajetória, na medida em que ressignificou os elementos presentes na
mística religiosa, recriando esta prática e tornando-a a mística do MST.
Concordamos com Piana (2009) que definir o termo mística “é
tão complexo como querer explicar todos os sentidos de religião no
mundo” (p. 76). No entanto, para introduzir a compreensão do que é a
mística do MST, esclarecemos que ela é um momento de celebração que
acontece no cotidiano do Movimento, onde há sempre uma preparação
da temática e dos elementos que serão utilizados nela. Assim, a mística
é um acontecimento onde os sujeitos têm a possibilidade de vivenciar as
convicções do MST e reviver momentos da história de luta e de
conquista, por meio da música, do teatro, da poesia, das simbologias,
9
Informações obtidas do site do MST http://www.mst.org.br, acesso em março de 2009.
10
O termo Sem Terra será utilizado para tratar de todos os sujeitos que são a base do MST, ou
seja, os acampados, assentados, os que ocupam funções como dirigentes estaduais e nacionais,
enfim, todos os militantes do Movimento.
11
Sobre a mística ver o capítulo 4.1 História e cotidiano da música no MST.
14
dos discursos e dos signos do Movimento, entre outros elementos. É um
acontecimento que objetiva afetar os sujeitos no sentir e no pensar,
proporcionando uma experiência transformadora e preparando os
sujeitos para as ações do Movimento.
Quanto à música, o MST possui uma produção musical própria,
com alguns CD‟s como: Arte em Movimento (1998), com 19 músicas e
1 poema; Plantando Cirandas (2000), com 22 músicas; Cantares da
Educação do Campo (2006), com 16 músicas e um livro onde constam
77 letras de músicas do Movimento (MST, 1996). Mas, além das
músicas de luta dos CD‟s do Movimento, estão presentes ainda em seus
contextos e eventos coletivos outros gêneros musicais que falam em
suas letras da questão da terra, do homem do campo, do contexto rural e
da luta, dentre elas, por exemplo, as canções “Cio da Terra” e
“Assentamento”, ambas de Chico Buarque, ou “Pra dizer que não falei
das Flores”, de Geraldo Vandré. Não é nosso foco neste estudo, discutir
as questões dos gêneros musicais presentes no MST em SC. Optamos
em expor os sentidos atribuídos pelos sujeitos entrevistados, quando
estes definem o gênero da música a que estão se referindo em suas falas.
Em relação à atividade criadora, esta é uma característica que
acompanha o Movimento nesses 26 anos, pois desde as primeiras
ocupações e acampamentos em Santa Catarina, já havia Sem Terra
criando poesias e canções (CALDART, 1987). Não diferente das
músicas que já estão gravadas em CD‟s, estes cantos que ainda ganham
pouca visibilidade e audição dentro do Movimento, também contam as
experiências vividas junto ao MST, falam da ocupação, do trato com a
terra, dos conflitos, das alegrias, enfim, músicas que registram a luta
pela reforma agrária e contam a história dos Sem Terra.
Compreendemos a música como uma linguagem psicossocial que
media relações entre sujeitos e contextos, constituindo-se como um
signo. Para Bakhtin (1992), os signos estão sempre carregados de
sentidos ideológicos, não são fixos e imutáveis, mas variam de acordo
com o contexto enunciativo. Para Vygotski, os sujeitos se constituem
nas relações semioticamente mediados, ou seja, por meio dos signos, o
que possibilita aos sujeitos processos de significação. Nesta perspectiva,
é que compreendemos a música como mediadora no cotidiano do MST,
pois ela possibilita aos sujeitos a produção de sentidos. Sentidos estes
que constituem este movimento social enquanto coletividade e
singularmente cada sujeito Sem Terra.
15
Segundo Maheirie (2008, p. 84), “a objetivação musical é uma
forma de linguagem reflexivo-afetiva, uma vez que traz e cria novos
elementos cognitivos, expressando e produzindo uma determinada
racionalidade, ao mesmo tempo em que revela e cria sentimentos e
emoções”. A música também pode ser entendida como um fenômeno
sócio-cultural, pois segundo a mesma autora, a música pode localizar os
sujeitos num cenário político, apontando discussões importantes sobre a
transformação das estruturas sociais.
Diante disto o objetivo geral desta pesquisa foi compreender a
mediação da música no cotidiano do MST em Santa Catarina, por meio
de um estudo em contextos e eventos coletivos do Movimento neste
estado. Para alcançar tal objetivo, foram realizadas entrevistas e
observações em espaços diferentes do cotidiano do MST em SC.
Minha primeira participação ocorreu em um evento coletivo na
cidade de Abelardo Luz, localizada no oeste do estado, no mês de maio
de 2009. Este evento comemorava os 24 anos do MST em SC. Neste
dia, realizei duas entrevistas e também registrei o evento num diário de
campo. A segunda participação ocorreu nesta mesma cidade, no
Encontro Regional de Violeiros. Neste evento coletivo realizei mais três
entrevistas com quatro sujeitos. Por fim, estive durante cinco dias em
um acampamento do MST, localizado próximo à cidade de São José do
Cerrito, região do planalto do estado. No Acampamento Irmã Jandira,
realizei as últimas quatro entrevistas para este estudo e também fiz o
registro escrito deste contexto. Nos eventos coletivos e no contexto do
acampamento realizei filmagens, as quais foram transformadas em
imagens fotográficas, sendo que algumas serão apresentadas no decorrer
do trabalho.
O trabalho segue então com o capítulo 2. Olhares Teóricos. Estão
presentes nestes olhares, uma introdução sobre a Constituição do Sujeito
e um estudo sobre Movimentos Sociais e o MST. No item sobre a
constituição do sujeito o objetivo é situar, brevemente, o leitor acerca de
nossa escolha epistemológica dentro da ciência psicológica e
conseqüente concepção de sujeito, pois se tratam de idéias e
posicionamentos teóricos que acabam por atravessar todo o estudo.
Também há uma apreensão teórica, com olhares da psicologia e da
sociologia, sobre o MST e a categoria movimentos sociais.
Já no capítulo 3. O processo da Pesquisa (Método) há logo no
primeiro item uma discussão sobre a dialogia presente no processo de
16
pesquisar e de constituir-se pesquisador. Esta discussão que inicia o
capítulo do método tem o objetivo de problematizar esse fazer e expor
nosso lugar enquanto pesquisadoras/autoras que entendem o pesquisar
como um agir/sentir/pensar que envolve posicionamentos políticos,
éticos e estéticos. Depois, apresento os caminhos que percorri no
processo da pesquisa, ou seja, conto como foi a trajetória do pesquisar e
falo sobre os lugares em que estive e os contatos que fui realizando
durante os dois anos em que me dediquei a esta pesquisa. Delineado os
caminhos, sigo apresentando como realizei a construção das
informações para pesquisa, quais procedimentos e instrumentos
mediadores foram utilizados. Para finalizar o capítulo do método, falo
sobre os sujeitos que participaram da pesquisa, localizando-os em seus
contextos.
O objetivo geral, a pesquisa de campo, as entrevistas, os diálogos
teóricos, entre outros elementos, constituíram então o capitulo 4.
Diálogos entre sujeitos (Análises), que possui cinco itens de análise e
que consiste em um tecido, construído por diversos discursos. Os cinco
grandes temas em análise são: História e cotidiano da música no MST;
Atividade criadora e o acampamento como “berço da criação”;
Significados compartilhados em torno da música; Vivências estéticas no
MST; Acontecimentos no cotidiano do MST em SC.
Introduzido o trabalho, convido o leitor para que entre neste
estudo disposto a conhecer esse universo político-artístico do MST e
que, por meio da imaginação, possa participar dos acontecimentos
apresentados, possa vivenciar de certo modo a mística do Movimento e,
quem sabe, possa ouvir as músicas que aqui estão somente escritas.
17
2. OLHARES TEÓRICOS
18
No movimento de objetivação/subjetivação, o sujeito vai se
apropriando dos significados, como também produz sentidos a partir de
sua vivência no social. Vygotski (1992) esclarece que os significados
são como as generalizações, ou seja, uma palavra tem um significado
que é compartilhado socialmente, sendo um fenômeno do pensamento e
da palavra e que só existe na medida em que o pensamento está
encarnado na palavra, formando assim seu significado. Já o sentido é
aquilo que singulariza o sujeito na experiência com os significados. A
produção do sentido carrega um conteúdo reflexivo e afetivo e demarca
a singularidade dos sujeitos no mundo, mas esses também são
socialmente produzidos (VYGOTSKI, 1992).
A título de exemplo, a palavra terra tem um significado
generalizado que possibilita a comunicação entre as pessoas e o
entendimento do que se está comunicando. Porém, a palavra terra
apropriada de forma singular, produz diferentes sentidos para os
sujeitos. Ou seja, a terra para um militante do MST possui um
significado construído também socialmente, porém o sentido desta
palavra para os sujeitos sem terra é singular, carregada de sentimentos,
emoções, pensamentos e vivências.
O processo de constituição do sujeito é sempre mediado, segundo
a teoria de Vygotski. Com base neste autor, Zanella (2005) explica que
as atividades humanas são caracterizadas pela utilização dos signos,
ferramentas mediadoras das relações entre os sujeitos e produzidas
socialmente. Os signos, segundo Bakhtin (1992), são objetos naturais,
tecnológicos, artísticos, de consumo, etc., que adquirem um significado
que ultrapassa suas próprias particularidades. Ou seja, um simples boné
pode ser visto como um adereço a ser usado para se proteger do sol,
porém, um boné vermelho do MST converte-se em um signo.
Convertido em signo ele está no campo do ideológico12, pois para
Bakhtin (1992), o domínio do ideológico coincide com o domínio dos
signos, eles são mutuamente correspondentes.
Em torno disso, Zanella (2005) ainda afirma que o encontro do
coletivo e do singular mediado pelos signos é a grande contribuição de
12
Para Bakhtin e seu Círculo, o conceito de ideologia parte do que já era aceito pelo marxismo
oficial, ou seja, a noção de ideologia como “falsa consciência” promovida pelas forças
dominantes. Porém, destroem e reconstroem parte dessa concepção, colocando ao lado da
ideologia dominante a ideologia do cotidiano. O conceito de ideologia deve ser compreendido
na perspectiva bakhtiniana, como o movimento de idéias relativamente instáveis (do cotidiano)
e idéias relativamente estáveis (as dominantes) (MIOTELLO, 2008).
19
Vygotski para a discussão sobre a alteridade. Desta forma, o estudo da
constituição do sujeito só pode ser realizado a partir da alteridade, ou
seja, do axioma eu-outro, compreendendo que esta relação é sempre
mediada por signos ideológicos. Nessas relações, destacamos o
cotidiano como o lugar onde a vida acontece e onde os sujeitos se
encontram, se afetam e são afetados, (re)criam, experienciam
(in)felicidades, se movimentam e paralisam frente às realidades,
constroem sentidos. Deste modo, a afetividade cumpre uma função
nodal na constituição do sujeito, pois o afeto provoca transformações,
aumentando ou deprimindo sua potência de ser e viver.
Baseado em Espinosa, Pelbart (2009) nos fala que o sujeito é um
grau de potência, ou seja, cada um de nós tem um grau de potência
singular, o meu é um, o seu é outro. O autor ainda esclarece que
potência é o poder que temos de afetar e de sermos afetados, mas que
isso é sempre uma questão de experimentação, de relação, de alteridade.
É ao longo da existência e ao sabor dos encontros que vivenciamos o
poder que temos de afetar e de sermos afetados pelo outro e isso faz toda
diferença na nossa constituição, pois é na relação que nossa potência de
vida, de ação e criatividade pode ser aumentada ou deprimida,
transformando nossa postura frente ao mundo e aos outros.
Sawaia (2006), inspirada em Espinosa e Vygotski, afirma que
tratar dos afetos na constituição do sujeito é refletir sobre os “poderosos
processos que determinam os sujeitos como livres ou submissos” (p.
87). Para a autora, a base da configuração do sujeito é a afetividade, a
estética e a imaginação. A estética indica uma forma de conhecer e ser
pela sensibilidade. A imaginação é a potência de criação e liberdade,
qualidades de todo sujeito. Segundo Sawaia (2006), essas três categorias
sustentam o que é irredutível no homem, ou seja, sua capacidade de
superar as amarras do/no cotidiano, transformando o existente.
Destarte, a humanidade produz idéias, modelos de vida, de ser e
de agir, mas a maior riqueza do ser humano é ter a capacidade de reagir,
refletir, sentir, transformar, criar condições novas a partir daquilo que
está dado. E não faz isso sozinho, pois ser humano é ser em relação, é
estar no mundo com outros e, assim, constituir-se singular e
coletivamente. Desta forma, a máxima que se apresenta na constituição
do sujeito é a relação inexorável entre sujeito e sociedade, o sujeito e o
outro (alteridade), que se constituem dialeticamente. Todo sujeito é, ao
20
mesmo tempo singular e coletivo, e ele é singular justamente pela
pluralidade social que o constitui, diferenciando cada sujeito.
13
Trabalho completo disponível em: http://www4.fct.unesp.br/nera/atlas/index.htm
14
Em 2003 o índice de Gini para o Brasil era 0,816, o que indica grande concentração, já que
quanto mais próximo de 1, maior é o grau de concentração da terra. A evolução entre 1992 e
2003, de apenas 0,010, confirma que as políticas de reforma agrária não tocaram na
concentração geral da estrutura fundiária brasileira (GIRARDI, 2008).
21
0.800 eram 359 (6,4%) e detinham 10,8% da área total dos imóveis
rurais. O mapeamento do índice de Gini permite concluir que os médios
e altos graus de concentração fundiária são predominantes no território
brasileiro, de forma que a maior parte da área total dos imóveis rurais
está concentrada de forma média até alta.
Frente à concentração de terra no país, pode-se questionar se a
terra, enquanto um dos direitos de todo ser humano, está cumprindo sua
função social, pois, segundo a Constituição Federal de 1988, em seu
Artigo 186, a função social da terra só é atendida quando a terra é
aproveitada de forma racional e adequada; quando se utilizam de forma
adequada os recursos naturais; quando se preserva o meio ambiente;
quando se observa a regulamentação acerca das relações de trabalho; e
quando a exploração da terra favorece o bem-estar do proprietário e dos
trabalhadores. Caso esses requisitos não estejam sendo cumpridos, cabe
à União, Artigo 184 da Constituição, “desapropriar por interesse social,
para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo
sua função social (...)” (CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA
FEDERATIVA DO BRASIL, 1988/2004, p. 111).
No entanto, a desapropriação das terras que não cumprem sua
função social ainda é uma política precária, pois nos mais de quarenta
anos desde a criação da primeira Lei de reforma agrária, o Estatuto da
Terra, novas políticas agrárias e leis complementares foram criadas, mas
as mudanças que ocorreram não foram significativas no que diz respeito
à efetiva desapropriação das terras que não cumprem sua função social,
para fim de reforma agrária.
Dada esta realidade, os movimentos de luta pela terra foram
surgindo e se intensificando cada vez mais, principalmente nos anos 70.
Com o processo de modernização da agricultura, grandes contingentes
populacionais foram sendo expulsos do meio rural constituindo um
grande número de sem terras, principalmente no Sul do país. Tal
processo substituiu muitos trabalhadores do campo, pois a mecanização
da agricultura não favoreceu os pequenos agricultores, que acabaram
não conseguindo mais concorrer com os grandes produtores. Desta
forma, a alternativa foi, para muitos, migrar para as cidades atrás de
emprego e melhores condições de vida (CALDART, 2004,
MEDEIROS, 2003).
Como resultado de fatores econômicos, sociais e políticos, um
grande número de trabalhadores foi expropriado ou expulso da terra e,
22
ao mesmo tempo, excluído do trabalho urbano, formando um
contingente de pessoas dispostas a lutar pela terra. Piana (2009) destaca
a influencia da Igreja Católica no Brasil, sob a perspectiva da Teologia
da Libertação, como um aspecto significativo na constituição de
diversos movimentos sociais, especialmente no período da ditadura
militar e, entre eles, o surgimento do MST. A luta dos sem terra teve
como principal mediador as Comunidades Eclesiais de Base (CEB‟s),
que já vinham desenvolvendo um trabalho junto à população do campo
desde o início dos anos 70 e, com a criação da CPT, este trabalho foi
fortalecido ainda mais a partir de 1975, contribuindo na organização dos
trabalhadores do campo e impulsionando as primeiras ocupações de
terra (CALDART, 2004, MORISSAWA, 2001, STRAPAZZON, 1997).
Com toda uma base de sem terras, ocorreu em 1984 a fundação
do MST e já em 1985, o I Congresso Nacional do Movimento, onde a
palavra de ordem era “Ocupar é a única solução”. Naquele momento não
se vislumbrava qualquer possibilidade de acordo com o governo vigente
em relação à reforma agrária, aparecendo como a única solução para a
construção da democratização da terra, as ocupações 15 e lutas de massa.
Logo após esse congresso, eclodiram ocupações em todo o país. Em
Santa Catarina, cinco mil famílias de mais de 40 municípios ocuparam
18 fazendas e, nesse contexto, o MST foi se expandido pelo Brasil
(MORISSAWA, 2001).
O processo de ocupação continuou em Santa Catarina em 1987,
nas cidades de Campo Erê, Irani, Campo Alegre, Ibirama, Palma Sola e
Garuva, resultando em vários assentamentos. Continuou na década de
90 com ocupações em Abelardo Luz, Chapecó, Curitibanos, entre
outros. Até 1990, em Santa Catarina, o MST já tinha conquistado 50
assentamentos para 2.031 famílias. Após 1992, outros assentamentos
foram conquistados em Joaçaba, Matos Costa, Abelardo Luz,
Catanduvas, Fraiburgo, Passos Maia e em Joinville surgiram novos
focos de ocupação (MORISSAWA, 2001). Da mesma forma, no resto
do país, o MST foi se expandindo por meio de ocupações, de
acampamentos e assentamentos.
Desta forma, ontem e hoje, o MST define-se como um
movimento de massas de caráter popular e político que luta pela
democratização da terra através da reforma agrária, por mudanças no
15
A ocupação tem como objetivo gerar o fato político para chamar atenção e buscar uma
resposta rápida do governo por meio do tensionamento político (MORISSAWA, 2001).
23
modo de produção da vida e, também, busca acabar com os latifúndios e
com o acúmulo do capital (MORISSAWA, 2001). Alguns de seus
compromissos e lutas defendidas e reafirmadas no último Congresso
Nacional do Movimento em 200716 estão apresentados abaixo.
Neste sentido, observamos que o MST não luta apenas por terra,
mas por outras bandeiras específicas e, também, por um projeto de
sociedade. Segundo Scherer-Warren (2000), na prática do Movimento,
os seus objetivos e lutas vêm sendo desdobradas em diversos tipos de
ações coletivas que “vão das reivindicações para conquistas imediatas, à
luta por direitos de cidadania e transformações sócio-político-culturais a
médio prazo e à realização de um projeto utópico num tempo histórico
mais longo” (p.42).
Scherer-Warren (2009) propõe um modelo de análise dos
movimentos sociais 17 a partir de elementos contemporâneos que
circunscrevem os movimentos, sejam eles: 1) as demandas materiais,
simbólicas e políticas; 2) o formato organizacional; 3) os atores
estratégicos e, 4) as relações com o Estado e sociedade civil. Para a
análise específica do MST, destacamos a análise do elemento que diz
respeito às demandas materiais, simbólicas e políticas do Movimento,
16
Informações obtidas do site do MST http://www.mst.org.br em abril de 2009.
17
Modelo de análise apresentado pela Professora Ilse Scherer-Warren, na disciplina Teoria dos
Movimentos Sociais e Sociedade Civil, do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política,
no dia 17 de abril de 2009.
24
pois são aspectos emergentes do cotidiano dos acampados e assentados,
como também, do cotidiano de outros movimentos.
25
em outros termos, da necessidade de uma identidade coletiva e política
que una os sujeitos em torno de uma demanda que é compartilhada.
Em relação à identidade coletiva, Prado (2005) coloca que para
compreender a formação de uma identidade coletiva (Nós), é preciso
estabelecer a relação constitutiva com o Eles. No entanto, o autor define
identidade coletiva como “processos psicossociais e políticos que se dão
nas relações intra e intergrupos, redefinindo lógicas de pertença e de
diferenciação e indiferenciação grupal” (PRADO, 2005, p. 53). Assim,
um coletivo que se define e se forma por questões de identidade, não
necessariamente possui antagonistas ou se encontra em condições de
subordinação e/ou opressão. Esta formação coletiva articula-se, então,
por meio de uma política identitária, ou seja, não constroem um espaço
político de oposição e enfrentamento, mas se unem e se consolidam por
compartilharem crenças e valores, pelo sentimento de pertença grupal,
por relações de reciprocidade, entre outros aspectos (PRADO, 2005).
Porém, a identidade coletiva no campo da
diferenciação/oposição, pode ser compreendida como uma identidade
politizada. As práticas sociais que constituem o processo de formação de
identidades políticas podem ser definidas, segundo Prado (2005), pelos
seguintes elementos: “a formação da identidade coletiva grupal, que
encontra nas práticas coletivas e na criação do sentimento de pertença
grupal seu conteúdo, a subversão das relações de subordinação em
relações de opressão, ou seja, na conscientização do caráter político das
posições diferenciais dos agentes sociais e a delimitação das fronteiras
políticas mediante as relações intergrupais nos vínculos de
reciprocidade” (p.54).
Desta forma, Prado e Lara (2003), em estudo sobre a construção
da identidade política do MST por meio da mística, consideram que as
identidades políticas são processos de criação e constituição necessários
para a continuidade dos movimentos sociais e das ações coletivas.
Citando Melucci, que diz que a “identidade coletiva é um processo de
aprendizado o qual implica a forma e manutenção de um ator empírico
unificado que poderíamos chamar de „movimento social‟”, os autores
afirmam que, além da identidade coletiva e política ser necessária para o
surgimento de um movimento, ela também é fundamental para a
manutenção do movimento social (PRADO e LARA, 2003, p. 22).
Sobre a manutenção dos movimentos sociais, Prado e Lara (2003,
p. 22) apontam que esta “sempre foi uma questão nodal para os
26
militantes e estudiosos, pois normalmente o que se vê é um refluxo da
participação social a partir do ganho de algumas reivindicações. No
entanto, os aspectos simbólicos, ideológicos e culturais podem nos dar
uma nova pista de como encontrar processos coletivos que mantém
grupos e ações em movimento”. Ou seja, não são só as demandas
materiais que produzem identificações e que fazem um movimento
surgir e permanecer, mas também, as construções simbólicas,
ideológicas e culturais, que envolvem os sujeitos nas suas práticas
cotidianas.
Touraine (2006) define movimento social (MS) como um
coletivo organizado que possui uma identidade econômica, social ou
cultural, um adversário e um projeto de transformação social. Para este
autor, só existe movimento social se existirem ações coletivas por parte
deste movimento. Distingue-se, então, movimento social de ação
coletiva, esclarecendo que não se pode aplicar a noção de movimento
social a qualquer tipo de ação coletiva, conflito ou iniciativa política,
mas sim, “reservar a idéia de movimento social a uma ação coletiva que
coloca em causa um modo de dominação social generalizada18”
(TOURAINE, 2006, p.18).
As definições de Touraine estão ancoradas principalmente na
noção dos movimentos sociais, característicos da sociedade industrial do
século XX. No entanto, ao questionar se ainda devemos utilizar o
conceito de movimento social no contexto contemporâneo, ou seja, na
sociedade dita “pós-industrial, da informação ou da comunicação”, o
autor afirma que,
18
“Entendo que uma relação social de dominação só pode suscitar uma ação que mereça o
nome de movimento social se atuar sobre o conjunto dos principais aspectos da vida social,
ultrapassando as condições de produção em um setor, de comércio ou de troca ou, ainda, a
influência exercida sobre sistemas de informação e de educação” (TOURAINE, 2006, p.18 e
19).
27
gestão dos processos de transformação histórica (TOURAINE, 2006,
p.27 e 28).
19
Sobre redes de movimentos sociais vide Scherer-Warren (2002, 2005, 2006, 2008).
28
Neste sentido, Machado (2007) fala sobre o erro da teoria
marxista da ação social quando esta enfoca sua análise baseando-se nas
estruturas sociais de classe e, por conseqüência, trata pouco das questões
de identidade, valores e dos mecanismos e dinâmicas do sistema
político. É na direção contrária, então, que autores como Melucci (1999)
abandonam, no processo de suas reflexões, conceitos da teoria marxista,
por compreender que estes estão vinculados à sociedade industrial
capitalista.
Para este autor, há a necessidade de conceitos mais adequados,
considerando que os conflitos atualmente estão, de certa maneira,
desconectados do sistema econômico-industrial e estão mais ligados ao
âmbito cultural, centrando-se na identidade individual, no tempo e
espaço da vida, na motivação e nos códigos dos atos cotidianos; isso
implica uma cuidadosa redefinição sobre o que é um MS e suas formas
de ação (MELUCCI, 1999).
Para Santos (2001) a novidade dos novos movimentos sociais
está tanto na crítica à regulação capitalista, quanto na crítica à
emancipação socialista defendida pelo marxismo. Na opinião do autor,
os NMS denunciam com uma radicalidade sem precedentes as formas de
opressão do capitalismo, pois tais opressões alcançam não somente o
modo como se trabalha e se produz, mas também o modo como se
descansa e se vive. Ou seja, o modo de produção capitalista que por
meio da exploração do trabalho humano produz mais valia, tornou
possível que a mesma lógica fosse difundida em todos os setores da vida
social, pois a mais valia pode ser sexual, étnica, religiosa, geracional,
política, cultural (SANTOS, 2001).
Neste sentido é que o cotidiano se torna o palco de relações
concretas de opressão e controle, pois é também o lugar onde a vida
acontece em todas as suas dimensões. Lugar onde se pode viver e
reproduzir de maneira naturalizada todas as “mais valias” possíveis ou
refratar essas realidades de modo a transformar essas relações. É no
cotidiano, então, que os sujeitos produzem e (re)criam o mundo, na
mesma medida em que são produzidos e (re)criados por ele.
Assim, Scherer-Warren (2000) conjectura que o objetivo material
imediato para o MST, ou seja, a terra, não é suficiente para
concretização do projeto de sociedade que o Movimento deseja. É neste
sentido que o Movimento inclui outras lutas sociais em busca do projeto
de uma sociedade socialista, como por exemplo, o combate à violência
29
sexista, a democratização da comunicação, a defesa da saúde pública,
defesa da educação pública gratuita e de qualidade, defesa da
diversidade étnica, defesa do acesso à cultura, entre outros 20. A utopia
por esta sociedade adquire uma complexidade maior, segundo a autora,
pois é um processo que precisa ser incorporado na vida cotidiana dos
sujeitos.
Para Vendramini (2007), o MST se move, então, entre o velho e o
novo, em um movimento dinâmico e de contradições sociais, onde ele
incorpora temáticas atuais em suas lutas, como a questão ecológica, a
questão de gênero e outras, sem deixar de fazer a crítica ao modelo
social e econômico global. A autora enfatiza que as ações dos
movimentos sociais estão relacionadas com questões objetivas e
subjetivas, pois as lutas dos movimentos emergem em determinados
contextos sociais, os quais produzem e reproduzem um estágio das
forças produtivas e das relações sociais de produção.
Ao falar de movimentos seja na concepção dos “velhos” ou dos
“novos”, fala-se de relações entre sujeitos e coletivos que se constituem
dialeticamente, formando laços, identidades, valores, idéias, etc. Trata-
se também, de uma sociedade que não é una, mas diversificada em sua
geografia, cultura, economia e nas suas experiências históricas de
organização e mobilização social e política. Faz-se necessário, então, ter
sempre como horizonte de análise, o processo de transformação
objetivo/subjetivo dos movimentos e das sociedades, na dialética
passado-presente-futuro. E ainda, como aponta Scherer-Warren (2006),
os movimentos podem ser contemporaneamente mais amplamente
compreendidos, quando analisados a partir da perspectiva de redes
sociais e organizacionais, ou melhor, a partir das redes de movimentos
sociais.
No caso do MST, este se articula a redes de movimentos sociais,
como é o caso da Via Campesina e, também, contribui na criação de
redes para a defesa e enfretamento de bandeiras que são específicas, mas
que agregam atores plurais. Na luta pela reforma agrária observamos
que, na atual conjuntura de luta dos movimentos sociais, há uma união
dos movimentos do campo e da cidade. O MST, neste sentido, se
articula com diversos atores sociais e políticos como, por exemplo, os
Atingidos por Barragens, o movimento por Moradia Popular,
20
Informações obtidas do site do MST http://www.mst.org.br em abril de 2009.
30
Movimento Quilombola, os sindicatos, o movimento estudantil e tantos
outros, formando assim uma rede de atores políticos plurais, mas que se
unificam em torno de lutas específicas.
Desta forma, é que a noção de rede “pressupõe a identificação de
sujeitos coletivos em torno de valores, objetivos ou projetos em comum,
os quais definem os atores ou situações sistêmicas antagônicas que
devem ser combatidas e transformadas” (SCHERER-WARREN, 2006,
p. 113). A articulação em rede de movimentos se dá, então, por meio das
identidades políticas (PRADO, 2005, SCHERER-WARREN, 2006). As
redes aproximam atores políticos diversificados, dos níveis locais aos
mais globais, com o objetivo de ganhar maior visibilidade, gerar maior
impacto na esfera pública e obter a manutenção e a conquista de direitos
que transversalizam diversos movimentos (SCHERER-WARREN,
2006).
31
3. O PROCESSO DA PESQUISA (MÉTODO)
32
excelência. (...) A palavra é o modo mais puro e sensível de relação
social”. A palavra/signo, portanto, caracteriza-se por uma tensão entre
seus variados sentidos coletivos/singulares e, uma vez proferida,
caracteriza cada discurso como acontecimento em que sentidos outros
podem ser produzidos. Desta forma, a escrita, além de seu caráter
ideológico, também é dialógica, pois objetiva um (in)tenso debate com
palavras outras, com vozes sociais que são apropriadas e com as quais o
sujeito que escreve estabelece relações de acolhimento, oposição,
indiferença, resistência.
A dialogia no processo de produção de um texto levanta, desde
já, a questão da autoria, pois não escrevemos nem pensamos sozinhos:
afirma Bakhtin (1992) que toda palavra própria é palavra alheia tornada
própria, em consonância com a afirmação de Vygotski (1987, p.162) de
que cada sujeito, ainda que “(...) a sós consigo mesmo, segue
funcionando em comunicação”21. Estamos, portanto, sempre em relação
com um outro, presente/ausente, sendo a produção do conhecimento em
sua forma escrita sempre compartilhada e articulada com outros saberes
e fazeres. A palavra escrita pode ser compreendida, então, como
objetivação de um processo dialógico não necessariamente harmonioso,
processo onde variadas vozes sociais estão em relação e podem vir a ser
modificadas no próprio processo de produção de conhecimentos.
Para Faraco (2006, 2008), assumir uma autoria é se colocar numa
posição axiológica, ou seja, numa posição atravessada por valores e
deslocar-se para outras vozes sociais. Ao assumir uma posição
axiológica, todo sujeito pesquisador responde, refuta, cria e confirma
algo, sendo que para Bakhtin (1926, 1976, p.2), “todos os produtos da
criatividade humana nascem na e para sociedade humana”.
Nesta perspectiva, produzir conhecimentos requer assumir uma
posição de responsabilidade e responsividade pelo que se produz, como
também problematizar o próprio lugar social de onde se fala. O
pesquisador, nessa perspectiva, é sujeito agente que produz discursos no
diálogo com discursos outros, sendo responsável pelo que profere ou
deixa de proferir. Sua posição é de “responsibilidade”, ou seja, a
unificação de responder pelos próprios atos e de responder a alguém ou
alguma coisa (SOBRAL, 2008a).
21
Reflexões sobre a dimensão da alteridade, característica da atividade psicológica segundo o
enfoque histórico-cultural em psicologia, encontram-se em Zanella (2005).
33
Essa unificação possibilita refletir sobre a relação intrínseca entre
o pesquisador e as condições de produção do conhecimento, como sua
relação com os muitos outros com os quais dialoga. Parece algo
simples, partindo da consideração do axioma outro-eu/eu-outro, ou seja,
da alteridade. Esta é entendida como relação constante com um outro,
pois a existência de um sujeito só é possível por meio de relações sociais
sempre marcadas pelos muitos outros que caracterizam as culturas
(ZANELLA, 2005). A ciência, neste caso, não trata da realidade
propriamente dita, mas de uma construção possível de uma época,
possível a um sujeito e à cultura que o constitui, com as variadas vozes
que participam desse diálogo. Tanto o sujeito que pesquisa como o
produto de sua pesquisa são, neste caso, datados e sujeito de devires.
Faz-se necessário, então, produzir conhecimentos que não
pretendam ser universalizantes. Ao contrário, é preciso afirmar uma
ciência dos acontecimentos. Isso quer dizer, produzir uma ciência
humana que problematize as condições em que se vive, locais, situadas
historicamente, (re)produzidas por sujeitos que são complexos,
heterogêneos e que estão em movimento, constituindo-se como únicos.
Para Bakhtin e seu Círculo, o acontecimento, evento ou ato,
conceitos trabalhados como tessitura em uníssono, é um estar sendo
num tempo-espaço, onde o recorte do evento é o acontecimento. No
acontecimento, os sujeitos atuam, ou pode-se dizer que os atos
constituem eventos 22. Segundo Sobral (2008a, p. 27), “o evento é um ato
abarcador que inclui os vários atos da atividade do homem ao longo
desse diálogo permanente que é a vida”. Bakhtin (2003, p. 128)
esclarece que “o homem vivente se estabelece ativamente de dentro de
si mesmo no mundo, sua vida conscientizável é a cada momento um
agir: eu ajo através do ato, da palavra, do pensamento, do sentimento; eu
vivo, eu me torno um ato [...]”.
A partir deste olhar, para Bakhtin (2003, p. 395), “o objeto das
ciências humanas é o ser expressivo e falante. Esse ser nunca coincide
consigo mesmo e por isso é inesgotável em seu sentido e significado”.
Neste foco, tanto o processo como o conteúdo dos diálogos dos sujeitos
com a vida, produtor de acontecimentos, constituem-se como objeto de
estudos do(a) pesquisador(a). Para Sobral (2008b), há um esforço em
22
As idéias sobre evento-acontecimento-ato foram retiradas das anotações do “Seminário sobre
Bakhtin”, promovido pelos Programas de Pós-Graduação em Psicologia e pelo Programa em
Educação da UFSC em 2008, proferido pelo professor João Wanderley Geraldi.
34
toda obra de Bakhtin e de seu Círculo de identificar a arquitetônica de
seus objetos de estudo, “sempre a partir do agir de um sujeito situado,
responsivamente ativo e que se define na relação com os outros na
sociedade e na história” (p. 110), o que não é diferente do enfoque
assumido neste trabalho a partir do olhar da psicologia.
Nessa perspectiva, a produção de conhecimentos em ciências
humanas compromete-se com as relações entre geral e particular,
coletivo e singular, entre produto e processo; ou seja, considera as
dimensões ética, estética e teórica da existência humana, dando ênfase
ao aspecto processual dos sujeitos na relação com os muitos outros com
os quais está em permanente diálogo, enfim, com a vida (SOBRAL,
2008b). Decorre dessa compreensão a premissa de que “o sujeito como
tal não pode ser percebido e estudado como coisa porque, como sujeito e
permanecendo sujeito, não pode tornar-se mudo; conseqüentemente, o
conhecimento que se tem dele só pode ser dialógico” (BAKHTIN, 2003,
p. 400).
Problematizar o lugar social de pesquisador(a) que procura
conhecer e produz conhecimentos sobre algo é, então, uma questão
ética23, pois acreditar que o valor do conhecimento é o conhecimento em
si, acaba por responder a coisa alguma e, desta forma, não teria razão
para existir a pesquisa (Sobral, 2008b). Essa problematização, por sua
vez, dialetiza o campo da ética e da ciência, na medida em que o
pesquisador está no campo da “responsibilidade”, entendendo que a
produção de todo e qualquer conhecimento é histórico e socialmente
situado.
No campo da ciência, toda pesquisa precisa ter um
empreendimento teórico que leve em conta a especificidade do estudo,
como também, a particular inserção do sujeito pesquisador em relação
ao campo investigado, ciente de que toda pesquisa necessita de um
conhecimento e um desconhecimento. Isso significa que há aspectos do
objeto que ele só poderá conhecer a posteriori. O pesquisador precisa,
neste sentido, considerar como mote para sua atividade o que quer
conhecer, para que e porque quer conhecer, porém tendo sempre como
23
Bakhtin leva em consideração, ao avaliar os princípios éticos, “sua aplicabilidade no plano
concreto da vida, da realização concreta de atos pelos quais o indivíduo, ao neles deixar sua
„assinatura‟, se responsabiliza pessoalmente, mas perante a coletividade, e em termos
específicos“ (SOBRAL, 2008, p. 25).
35
horizonte a possibilidade de a pesquisa levá-lo ao insuspeitado
(SOBRAL, 2008b).
No campo do ético, extremamente relacionado com o dito no
campo da ciência, é ético por parte do pesquisador reconhecer seu lugar
na pesquisa e seu lugar enquanto sujeito no mundo, e manter uma
relação exotópica com o objeto de estudo. É ético por parte do
pesquisador reconhecer a fragilidade de seu método ou teoria em relação
ao objeto da pesquisa e, reconhecendo isso, investir em revisões teóricas
e metodológicas e até mesmo, abandonar e recorrer a outros aportes para
dar conta do estudo (SOBRAL, 2008b), pois “não existe a primeira nem
a última palavra, e não há limites para o contexto dialógico”
(BAKHTIN, 2003, p. 410).
Além da relação entre o campo da ética e da ciência, também
podemos incluir o campo da estética, pois segundo Sobral (2008b, p.
115), “o caráter de construção arquitetônica de toda pesquisa, que
envolve a criação de uma totalidade orgânica que permite à pesquisa ir
além de uma construção mecânica e constituir-se em totalidade dotada
de sentido, [é] que constitui o plano do estético”.
O campo da estética articula-se então, com o da ciência e da ética,
construindo um novo objeto, ou seja, o texto da pesquisa. A construção
do texto, segundo Sobral (2008b), é um campo perigoso que beira o
delírio, pois ele sempre pede mais, exige mais do pesquisador que
escreve. No entanto, indica a necessidade de que “o todo do texto há de
ser articulado autoralmente, o que envolve a relação com o outro e com
o objeto; o outro é o objeto, são os sujeitos da pesquisa, são os membros
da comunidade acadêmica etc.” (SOBRAL, 2008b, p.117).
O processo da pesquisa se constitui como uma totalização
analítica e está implicado em uma postura ético-estética, a partir da
atividade do conhecer, onde pesquisador e sujeito da pesquisa se
constituem mutuamente, em relações dialógicas e alteritárias. Por meio
do processo que envolve tais relações, o pesquisador desconstrói
significados fossilizados do saber psicológico para (re)construí-los a
partir do discurso contextualizado do sujeito. Ao produzir o olhar
analítico, o pesquisador se posiciona “dentro” e ao mesmo tempo “fora”
do contexto para, então, produzir um novo olhar que se faça estético.
Este é um olhar outro, “estrangeiro”, daqueles que podem produzir um
excedente de visão (BAKHTIN, 2003), suporte para que o sujeito
amplie seu olhar em relação ao contexto investigado e em relação a si
36
mesmo. A análise aponta para as relações dialógicas e o processo de
constituição dos sujeitos em relação, onde o pesquisar envolve uma
saída, um afastamento, um movimento exotópico (BAKHTIN, 2003) em
relação à inteligibilidade daquele que analisamos e, principalmente, em
relação a nós mesmos.
A postura ético-estética, o pesquisar, a problematização teórico-
metodológica, a produção do texto, os vários outros, a
“responsibilidade”. Condições e relações que constituem o sujeito
pesquisador e ao mesmo tempo o contexto e os sujeitos com o quais
pesquisa. Estes se constituem com e pelos vários outros que
caracterizam a cultura, no diálogo (in)tenso com múltiplas vozes que
ecoam nas palavras próprias/alheias e que caracterizam o psiquismo
humano como semioticamente mediado. Ou seja, a relação é de
alteridade, pois só há um eu em relação a um outro, e são os signos que
mediam o processo de interação eu-outro, refletindo uma dada realidade
e ao mesmo tempo possibilitando aos sujeitos refratá-la (BAKHTIN,
1992).
Refratar significa, na concepção bakhtiniana, que por meio dos
signos os sujeitos, além de descreverem o mundo, também o
(re)produzem no decorrer da história e das múltiplas e diversas
experiências dos grupos humanos com os quais se relacionam
(FARACO, 2006). Há então, um processo de relação no refletir e
refratar a realidade, que pode ser compreendido por meio do movimento
de subjetivação/objetivação, onde os sujeitos produzem e (re)criam o
mundo, na mesma medida em que são produzidos e (re)criados por ele.
O (a) pesquisador (a) é, portanto, um sujeito que se constitui
como todos os outros, ou seja, na relação de alteridade mediada
semioticamente. No entanto, problematizo o processo de constituição
do(a) pesquisador(a), pois seu agir produz discursos sobre outros
sujeitos e, muitas vezes, propõe intervenções voltadas à vida de
diferentes pessoas, em variados contextos e condições. Neste sentido, é
preciso que o(a) pesquisador(a) leve em conta as possibilidades e
impossibilidades de reflexão criativa sobre as realidades em que atua e
que com sua pesquisa, necessariamente irá modificar, tendo sempre
como perspectiva, uma postura ético-estética na produção do
conhecimento.
37
3.2 Os caminhos percorridos no processo da pesquisa
38
esta abriu a possibilidade para que eu fosse fazer a visita para conhecer a
escola nos dias 16, 17 e 18 de março. No dia 17 de março, estive então
na cidade de Veranópolis, no IEJC. Durante este dia, conheci todos os
espaços físicos da escola e um pouco sobre o funcionamento da mesma.
Em conversa com os sujeitos da escola, um deles que é da área de
cultura do Movimento e outro que é um monitor das oficinas de música,
obtive diversas informações sobre as oficinas que são desenvolvidas na
escola. As oficinas de música fazem parte da disciplina de Educação
Artística que todas as turmas possuem, onde além da música são
realizadas oficinas de teatro e de artes plásticas. Quanto às oficinas de
música, elas têm como modalidade a composição coletiva, tanto da letra
quanto da melodia.
Nas oficinas de música acontece o seguinte processo: escolha
coletiva de um tema pela turma; estudo teórico do tema escolhido;
criação coletiva da música (letra e melodia). Os educandos aprendem na
oficina a tocar basicamente violão, mas há o objetivo de ampliar o
aprendizado para outros instrumentos musicais. Um dos sujeitos
destacou a diversidade cultural existente nas turmas onde acontecem as
oficinas de música, o que faz com que as oficinas sejam espaços de
diversidade, mas que conseguem congregar certa unificação através das
produções.
Saí da escola com diversas informações e com a possibilidade de
realizar a pesquisa de campo na escola. No entanto, naquela mesma
semana, ainda seria exposto para a direção da escola a proposta de
minha pesquisa no IEJC. Recebi então, um e-mail comunicando que
neste período a escola não abriria campo para pesquisas devido à
conjuntura no estado do RS. Quanto à questão da conjuntura, diz
respeito aos problemas que o MST teve com o fechamento das Escolas
Itinerantes do Movimento no RS. As escolas foram fechadas, na época,
por meio de uma liminar do Executivo e Ministério Público Estadual.
Como a escola não era meu tema de pesquisa, mas um dos espaços onde
a música acontece no MST, segui por outros caminhos.
Depois de um novo contato com um dirigente do Movimento, no
início de maio, obtive a informação de que haveria um encontro para
comemorar os 24 anos do MST no estado de Santa Catarina. Recebi o
convite por email, com as informações sobre a comemoração. Esta foi
realizada no dia 24 de maio de 2009, na cidade de Abelardo Luz, cidade
localizada no oeste do estado. O convite contava que:
39
No dia 25 de Maio de 1985, em torno de 800 famílias de
agricultores sem terra ocuparam a Fazenda Papuã. Foi a chegada
do MST em Abelardo Luz. Numa madrugada gelada, o ronco dos
motores dos caminhões e dos ônibus faziam eco junto ao canto
dos pássaros, que como uma orquestra afinada, anunciavam a
chegada de uma nova aurora. Para chegar à fazenda Papuã, era
preciso atravessar a ponte sobre o rio Chapecó. A fazenda Papuã
estava sendo vigiada por pistoleiros pagos pelo proprietário. Para
impedir o acesso dos Sem Terra, os pistoleiros ateiam fogo à
ponte, mas, antes que ele se alastre, as mulheres descem dos
caminhões e dos ônibus, e conseguem apagar o incêndio. Por
alguns instantes, o ronco dos motores e o canto dos pássaros
foram superados pelos gritos de ordem: “reforma agrária já,
terra para quem nela trabalha!”.
24
O Monumento Lembre-se de 25 de Maio, inspirado na história da fazenda Papuã foi
construído pelos Sem Terra dos assentamentos de Abelardo Luz, em 1999, por meio de uma
intervenção pedagógica de arteducação (BARON, 2004).
40
09:30 horas. A mística ainda não havia iniciado. Estavam no local
diversas pessoas dos assentamentos de Abelardo Luz, dirigentes
estaduais, a imprensa local, e apoiadores do MST. Já na ponte, antes de
iniciar a mística, havia um carro de som tocando músicas do MST.
Também havia um grupo de rapazes sendo que um deles estava com um
violão na mão.
Algumas pessoas carregavam galhos de árvores que seriam
utilizados na mística. Depois da mística 25, as pessoas foram se
dispersando para ir ao local do almoço. Os assentados vieram em dois
ônibus escolares e em carros. Todos os presentes foram à comemoração.
O carro de som puxou a fila de carros, com o som ligado tocando
músicas do Movimento. Chegando ao Assentamento Papuã, local do
almoço e comemoração, já estavam lá diversas pessoas. O local possui
um campo de futebol onde foi realizada a celebração, que durou
aproximadamente uma hora e meia.
“Altar” da Celebração
25
A descrição desta mística foi feita no capítulo História e cotidiano da música no MST,
páginas 57 a 59.
41
trechos da bíblia, falas de cunho religioso e as falas de convidados do
Movimento em forma de depoimentos sobre o MST. No momento da
comunhão, foram passados para todos os presentes os produtos que são
produzidos nos assentamentos, como o pão, a batata doce, frutas,
pinhão.
Durante a celebração, Irma, que é dirigente estadual do
Movimento, falou de uma música que foi escrita na época do
acampamento por uma acampada e que foi então cantada. Na celebração
havia dois violeiros, Ezequiel e Dirceu. Irma disse durante a celebração
que a música que não poderia faltar era a Classe Roceira, que então foi
cantada ao final da celebração. Todos foram convidados para o almoço e
depois a música continuou embalada pela dança daquele coletivo.
Neste dia fui informada que a rádio comunitária do assentamento
25 de maio localizado em Abelardo Luz estava organizando um
Encontro de Violeiros. Assim, peguei o telefone e email da rádio para
poder entrar em contato e saber maiores informações sobre o Encontro
para poder participar.
O Primeiro Encontro Regional de Violeiros e Gaiteiros do MST
ocorreu no dia 16 de agosto de 2009, organizado pela Rádio Terra Livre.
Estive presente neste dia e também conto por meio do registro de campo
um pouco sobre o encontro. Este iniciou às 10:30 horas da manhã com a
apresentação de uma dupla de violeiros. Todo encontro foi transmitido
ao vivo pela rádio, até as 15 horas da tarde. As apresentações foram
sendo feitas individualmente, em dupla e em trios. Os instrumentos
utilizados foram a gaita, o cavaquinho, a viola e o violão. Algumas das
canções tocadas eram de autoria dos próprios assentados e outras eram
composições de artistas que tem como gênero a música caipira e
sertaneja26. Também foram intercaladas entre as apresentações musicais,
as contações de piadas. Todo encontro ocorreu em frente à rádio,
incluindo o almoço. Depois das apresentações dentro do estúdio da rádio
comunitária do MST, foi feita uma roda de violeiros na parte externa.
26
A diferença entre a música caipira e a música sertaneja é que a caipira canta
predominantemente temas sobre a vida no campo, incluindo a história de bichos, chegando
muitas vezes a ser fábula musicada. Já a música sertaneja é a estilização de ritmos rurais, feita
por não-caipiras nos centros urbanos (ENCICLOPÉDIA DA MÚSICA BRASILEIRA, 1998).
42
Roda de Violeiros
27
A Jornada durou dois dias e consistiu em manifestações, conversas com deputados estaduais
e a entrega de produtos da reforma agrária a uma entidade educacional da cidade.
43
Jornada, inclusive pessoas do acampamento indicado anteriormente e
outras de um assentamento que fica em Correia Pinto.
Assim, o coordenador do MST falou para que eu conversasse
diretamente com o pessoal que estava ali, visando agendar a visita ao
acampamento. Em conversa com um dos assentados falei da intenção da
pesquisa e que gostaria de estar visitando um acampamento. Então, ele
falou para que eu fosse até o assentamento em Correia Pinto que fica
próximo ao acampamento em São José do Cerrito, perto da cidade de
Lages/SC, que ele me levaria do assentamento até o acampamento.
Acertamos que eu ligaria para ele para comunicar a data em que
eu estaria indo ao seu encontro, para depois irmos ao acampamento. No
entanto, devido à realização da Feira Sustentável 2009, que ocorreu em
Florianópolis com a presença do MST como expositor de produtos da
reforma agrária, peguei uma “carona” com o ônibus que veio do
Acampamento Irmã Jandira, localizado em São José do Cerrito,
retornando junto aos Sem Terra para este acampamento.
Visitei o Acampamento Irmã Jandira no início do mês de
novembro, permanecendo naquele contexto por 5 dias. Estar no
acampamento foi uma experiência bastante marcante, devido às
dificuldades que são enfrentadas pelas pessoas em seu cotidiano. Este
acampamento estava organizado há oito meses, com aproximadamente
200 pessoas acampadas, que se dividem em 14 núcleos.
44
Para ir ao acampamento na noite em que chegamos de ônibus,
caminhamos oito quilômetros em estrada de chão. Dormi todos os dias
em um barraco, pertencente a um grupo de familiares. O barraco era
grande, dividido em espaço para as camas e outro espaço amplo para a
cozinha. No acampamento, todos os dias é preciso buscar água com
baldes em uma fonte próxima, tanto para beber, como para cozinhar e
tomar banho. A maioria dos barracos possui fogão a lenha, sendo
também necessário buscar lenha.
Nos dias que fiquei no acampamento, o calor foi uma das maiores
dificuldades durante o dia, pois debaixo das lonas pretas, o calor era
ainda maior. Outro fator dificultoso da vida nos barracos é a falta de
eletricidade. Logo que começa a anoitecer, começa a ficar mais difícil
de se fazer qualquer coisa, pois só se consegue enxergar com lanternas
ou lampiões. Para conseguir se manter no acampamento, os Sem Terra
saem 15 dias para trabalhar em roças, colheitas, plantações e depois
retornam ao acampamento permanecendo mais 15 dias. Para as crianças
que cursam de 1ª a 4ª série, há aulas dentro do próprio acampamento,
sendo que da 5ª série em diante eles (as) estudam em São José do
Cerrito.
O acampamento possui coordenações gerais organizadas por
setores: coord. saúde, coord. educação, coord. trabalho, coord.
segurança, coord. higiene, coord. alimentação e coord. animação. Além
de cada coordenador geral do acampamento por setor, há também um
representante para cada setor dentro de cada um dos 14 núcleos de
famílias. As discussões e decisões que envolvem o coletivo dos
acampados são realizadas em reuniões e assembléias. A coordenação de
animação e/ou o coletivo de animadores que se formam a partir dos
núcleos, são fundamentais nas reuniões e assembléias, pois abrem as
atividades tocando e cantando o Hino do MST, como também encerram
o encontro com música. Aos domingos, há um horário específico para o
coletivo de animadores se reunirem para tocar músicas em geral e,
também, para ensaiar e aprender as músicas do MST. Neste momento,
todos do acampamento que tiverem interesse podem estar participando.
Estes foram os caminhos percorridos durante todo o processo da
pesquisa. Alguns caminhos desencontrados, outros melhor sinalizados,
mas que delinearam o método e coloriram essa caminhada, pois todas as
experiências, contextos, eventos e conversas com os Sem Terra,
contribuíram para a construção das informações presentes neste estudo.
45
As imagens aqui apresentadas visam mediar a leitura desta dissertação,
já que elas também falam dos lugares por onde passei e dos Sem Terra
com quem dialoguei.
46
está presente no seu cotidiano, como? O que é a música para você?
Como ela lhe afeta no seu cotidiano? Me fala qual é o lugar da música
para você, aqui no acampamento ou aqui neste evento. Ela tem o mesmo
lugar em outros contextos da tua vida? O que há de diferente da música
aqui no acampamento ou aqui neste evento de outros lugares? O que
tem de igual? Quais os significados que você acha que a música tem
para o MST? Como seria no Movimento músicas sem letra, só
instrumental? Tem uma cena significativa da sua história no MST onde
a música esteve presente? Qual?.
O critério de escolha dos participantes foi o envolvimento destes
com a música nos espaços em que estive presente. Neste sentido,
procurei convidar para participar da pesquisa, sujeitos de várias faixas
etárias com experiências históricas de relação com a música
diferenciada no MST. Assim, há participantes de ambos os sexos, dentre
eles jovens, adultos e idosos. No primeiro evento coletivo que participei,
ou seja, na Comemoração dos 24 anos do MST em SC, realizei duas
entrevistas. No Encontro de Violeiros, realizei mais três entrevistas e
pude rever uma das entrevistas feita no evento de Comemoração, já que
pude encontrar novamente o entrevistado. Neste caso, levei a entrevista
transcrita para poder dialogar novamente com ele e tirar algumas
dúvidas quanto a palavras que não pude identificar durante a transcrição
da gravação. E, no contexto do acampamento, realizei as últimas quatro
entrevistas.
Assim, todas as entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas
para fins de análise. Os sujeitos entrevistados foram esclarecidos sobre
os objetivos da pesquisa por meio do Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido (TCLE) 28 e concordaram em participar do estudo. Todos os
sujeitos entrevistados concordaram também que eu utilizasse seus
nomes verdadeiros ou seus apelidos nesta dissertação. O número de
entrevistados foi se definindo no processo da pesquisa, totalizando dez
sujeitos e nove entrevistas. Umas das entrevistas eu realizei com dois
sujeitos, um casal, Juliano e Neli.
Como recurso complementar às entrevistas, utilizei a filmadora
para a apreensão das músicas utilizadas no MST e para a edição de
imagens. No acampamento utilizei a filmadora somente como recurso
para a edição de fotografias. Já no evento de Comemoração, foram
28
Apêndice.
47
realizadas filmagens que tinham o objetivo de apreender em áudio as
músicas que foram tocadas e cantadas durante o dia. As filmagens foram
feitas por uma pessoa que foi comigo ao evento, este também era
pesquisador, e podia auxiliar nas filmagens para que eu não precisasse
ficar presa à filmadora. As filmagens em áudio e vídeo foram gravadas
em DVD, como forma de registro do evento. Através da filmagem,
também foram produzidas algumas fotografias. No Encontro de
Violeiros, utilizei a filmadora apenas como recurso para a edição de
fotografias, pois a gravação das músicas não foi possível. O evento
ocorreu ao vivo na programação da Rádio, ou seja, para poder gravar as
músicas teria que ser pela transmissão do aparelho que tínhamos para
ouvir no lado de fora e, neste caso, o áudio não era de boa qualidade. A
única filmagem em áudio e vídeo possível neste evento foi ao final da
transmissão, quando os violeiros fizeram uma roda de viola.
Processos da Análise
48
no decorrer da pesquisa e seus atravessamentos. Nesse tipo de análise, o
pesquisador faz uma leitura compreensiva do material produzido,
considerando o lugar de onde ele lê, num processo de entrada e saída no
universo axiológico do outro. A partir do lugar onde ele se situa e na
relação com o sujeito da pesquisa, é “que o pesquisador constrói uma
compreensão da realidade investigada transformando-a e sendo por ela
transformado” (FREITAS, 2003, p. 37).
A análise do discurso, não é apenas a análise da fala dos
entrevistados, mas de todo o contexto e relações que envolvem os
sujeitos que endereçam a fala, como para quem eles a endereçam. Este
tipo de análise busca a compreensão dos fios que tecem o sujeito e os
sentidos que ele produz na relação com o mundo. Assim, a pretensão na
análise foi lançar diversos olhares sobre as informações construídas no
campo, procurando compreender as mediações realizadas pela música
no cotidiano do MST em Santa Catarina.
50
Leonel: 25 anos, assentado no município de Passos Maia. Leonel
é irmão de Ezequiel e foi entrevistado no Encontro de Violeiros.
Segundo ele, a música já é algo implícito na sua vida. Começou tocando
na igreja, músicas religiosas. Atualmente se dedica mais a tocar no
Movimento e junto com seu irmão também tem o desejo de formar um
grupo e gravar um CD com músicas para o Movimento. Leonel diz
gostar de moda de viola 29, de música gauchesca e também de rap.
Juliano e Neli: Seu Juliano possui 66 anos e Neli possui 57. Eles
são casados há 40 anos e estiveram na primeira ocupação no município,
sendo uma das primeiras famílias do MST a serem assentadas em SC, na
cidade de Abelardo Luz. Quando convidei seu Juliano para participar da
pesquisa, por meio da entrevista, ele disse que precisava chamar a
esposa, pois eles iriam cantar uma música para mim. Assim, realizei a
entrevista com os dois juntos e, durante esta, o casal cantou
acompanhado do violão de Juliano, uma música composta por ele há 24
anos que conta a história da chegada deles na ocupação de uma fazenda
em Abelardo Luz. No Encontro, Juliano se apresentou tocando e
cantando uma música de sua composição chamada “A festa dos Santos”.
Jhon: foi entrevistado no Acampamento Irmã Jandira. Ele possui
19 anos e teve contato com o Movimento quando criança por meio de
seu pai que participava do MST, mas está no Movimento há oito meses,
desde o início deste acampamento. Segundo ele, já cresceu com um
pensamento mais socialista e apoiador do Movimento, tendo também
participado do movimento de atingidos por barragem. Jhon tem uma
trajetória pessoal com a música que é anterior à sua participação no
MST. Já teve uma banda na época do colégio e também já tocou em
uma banda na cidade de Jaraguá do Sul/SC. Atualmente está com uma
banda própria, realizando ensaios para poder começar a tocar. Já esteve
também tocando em atividades do MST e contribui, quando está no
acampamento, participando do grupo de animação.
Paulista: possui 40 anos e iniciou sua participação no Movimento
quando morava em São Paulo. Depois se afastou um tempo e agora está
no acampamento há sete meses. Em São Paulo ele tocou em grupo de
pagode e de forró e também tocava na igreja que freqüentava. Ele toca
timba, bateria, birimbau, pandero, reco-reco e também compõe músicas
29
A moda de viola: poesia cantada com acompanhamento especialmente de viola e às vezes do
violão. Diferencia-se por ser um reconto dum caso qualquer mais ou menos sensacional, ou
dum fenômeno importante da vida cotidiana, historiado (ANDRADE, 1999).
51
com temas diversos. Gosta de fazer paródias e está iniciando uma
composição que fala do Acampamento Irmã Jandira. Paulista é um dos
coordenadores gerais de animação do acampamento.
Ide: possui 34 anos, tem uma trajetória no MST desde sua
juventude. Acompanhou seu irmão em um acampamento em Fraiburgo
que hoje é o Assentamento Contestado. Depois, com 23 anos, ele foi
para uma ocupação sozinho, lutando agora por sua terra. Ficou
acampado por três anos, participou de uma caminhada de três dias de
Ponte Serrada/SC a Chapecó/SC e também participou da Marcha
Nacional por Reforma Agrária, Emprego e Justiça em 1997. Por
motivos pessoais ele acabou desistindo da participação no Movimento
por um tempo. Trabalhou como empregado, casou e acabou retornando
ao MST, estando no acampamento Irmã Jandira desde o início de sua
criação, aproximadamente, oito meses. Ide, junto com Paulista, compõe
a coordenação geral de animação do acampamento.
Jaison: 38 anos, está no Movimento há pouco tempo. Há seis
meses está no acampamento Irmã Jandira. Sua história com a música,
segundo ele, já vem de berço. Seu pai tocava em bares e ele sempre
acompanhava. Quando jovem fez parte de uma banda na sua cidade
natal, o Rio de Janeiro. Depois foi crescendo e tocando e correndo os
estados até chegar a Santa Catarina. Parou um tempo com a música;
casou e trabalhou com outras diversas atividades até decidir entrar no
MST e ficar acampado. Jaison participou de sete faixas de um CD
chamado “Raízes Sertanejas”, com a dupla Marquinho da Viola &
Antônio Gonçalves.
52
4. DIÁLOGOS ENTRE SUJEITOS (ANÁLISES)
30
“Romaria é se fazer e estar a caminho. Faz parte da religiosidade popular este gesto que
exprime a fé do povo e cuja prática vem desde os tempos bíblicos: Abraão deixou sua terra e
foi em busca da Terra Prometida. O povo de Israel, libertado do Egito, também caminhou pelo
deserto rumo à terra onde corre leite e mel”. Em Santa Catarina, organizada pela CPT, a
primeira Romaria da Terra ocorreu no ano de 1986. Obtido de
http://cnbbsul4.org.br/sites/cpt/romaria/ em 22 de março de 2010.
53
novas relações entre a instituição religiosa e a política (CALDART,
2004, PIANA, 2001, 2009).
Segundo Piana (2009), as músicas utilizadas nas Romarias da
Terra de Santa Catarina, são as principais marcas de influência da
música religiosa no MST, sendo a principal delas “A Classe Roceira”,
por aparecer em todas as Romarias da Terra e nas folhas de canto de
encontros e congressos do Movimento. Esta música “é considerada um
marco no início do MST, por ter ajudado no processo de
conscientização da luta pela terra, estando muito presente no Movimento
até os dias de hoje” (PIANA, 2009, p.116).
Irma, que na época de surgimento do MST era da CPT, conta
sobre a influência dos cantos de igreja dentro do Movimento e da
criação de músicas por parte da igreja voltadas especificamente para as
situações do pobre, da classe trabalhadora, sobre as questões da terra e
sobre os cantos que vão mostrar que “Deus” caminha com o povo. Ela
também aponta a influência da música sertaneja na escuta musical do
povo que vive no campo, por meio do rádio.
54
pela terra, sendo esta música o primeiro hino oficial do MST.
Observamos que esta canção, primeiro hino do MST, combinava em sua
letra a luta pela reforma agrária, a crítica ao sistema capitalista e
também a presença de “Jesus” como aquele que guia o povo na luta. A
letra da música “A Classe Roceira”, segundo Caldart (1987), é de
criação de Lázaro e a melodia de Goiá.
55
Que ele não deixe o Capitalismo
Levar ao abismo a nossa nação
A desigualdade que existe é tamanha
Enquanto o ricaço não sabe o que ganha
O pobre do pobre vive de tostão.
Símbolos do MST
Grande círculo
60
começam a cansar um pouco, a música entra de novo, daí ela
entra como um animador e pra relembrar aquela mística. Ela tem
esse papel de ajudar sempre a alimentar esse sonho e animar,
porque a luta tem que ser alegre, não pode ser triste, nós estamos
querendo um mundo melhor e esse mundo melhor é alegre, ele
não é triste, nós temos que começar a vivenciar na prática, por
isso ela é um instrumento fundamental e indispensável pra nossa
luta (Dirceu).
61
faz com que a experiência junto ao MST mediada por ela seja um
encontro pela via do sensível.
A música também é, segundo a fala de Irma, um hábito. Sem
música não é reunião do MST. Desta forma, a música está no cotidiano
do MST e contribui para definir o Movimento enquanto tal. As reuniões,
por exemplo, assim como toda reunião, tem suas burocracias e seus
momentos “cansativos”, ou seja, “quando se burocratiza demais, perde-
se a criatividade e a mística e o veio d‟água não verte da terra dura e
seca” (BOGO, 2002, p. 84). A música faz das reuniões um lugar
também de criatividade e alegria e onde há a possibilidade de alegria e
animação, há a possibilidade das pessoas terem experiências onde sua
potência de vida é aumentada, já que, como nos diz Pelbart (2009), a
alegria é uma paixão que aumenta nossa potência de agir, ao contrário
da tristeza que implica uma diminuição. Neste sentido, a música ganha
também uma dimensão política e ética, pois não sabemos
completamente o poder de afetação da música, é sempre uma questão de
experimentação. Cada sujeito é afetado de forma singular, ou seja, o que
pode proporcionar alegria para um, pode proporcionar sentimentos de
tristeza para outro.
Além da presença da música nas reuniões do Movimento, sejam
elas locais, regionais, estaduais ou nacionais, a música também está
presente nas assembléias dentro dos acampamentos e assentamentos,
nos encontros estaduais e nacionais, nas marchas, nas ocupações, ou
seja, na vida cotidiana do MST. Por isso, segundo Piana (2009), a
música no MST é um fio condutor que tem feito diferença em relação a
outros movimentos sociais na atualidade, pois, as produções musicais do
Movimento e as demais músicas utilizadas por ele,
62
A música no MST, não se define então por um gênero único, já
que precisa atender as especificidades de cada região onde o Movimento
está presente. No entanto, as letras precisam ser “consangüíneas” do
Movimento, ou seja, precisam estar identificadas com a luta, com a
história, com a vida do povo Sem Terra, do camponês, do nordestino ao
gaúcho. Da mesma forma, os ritmos também precisam estar de acordo
com as características dos momentos, por exemplo: músicas para a ação
coletiva, para a comemoração, para a celebração, para a romaria. Então,
há uma preocupação tanto com os ritmos musicais quanto com as letras
das canções presentes nas atividades do MST.
Aliás a gente vai montar uma atividade, assim né? Então nós
vamos ver qual a música que mais se adaptaria pra este momento,
que mexe mais, a gente sempre leva em conta isso né? Então ela
faz parte da nossa organização (Irma).
63
Aqui no movimento já vai ser uma letra que coloca a importância
da terra, vai colocar a importância da terra, da plantação, já é uma
coisa assim como nosso CD que nós gravamos em um trio, que
foi feito mais como caipira, isso já envolve mais a terra, porque é
um negócio assim bem sertanejo, tipo viola coisas assim, é bem
sertanejo e é um negócio que funciona bem para o movimento. E
as letras, pode notar que as letras, não sei se você escuta música
de viola, mas a música de viola vai contar a história de vida, vai
contar a história da maneira de um filho ser criado ou como os
filhos são tratados, como a gente cresceu no dia a dia, não do
antepassado, mais da antiguidade, das pessoas mais antigas, que
já é a diferença da criação de agora né? A história já conta
diferente, porque todas as músicas tem que ter uma letra que
tenha significado né? E é isso que nós queremos fazer aqui
(Jaison).
64
de norte a sul deste país
pra derrubar o latifúndio
que deixa o povo sem raiz
(...)
(Composição: Zé Pinto)
Porque a maioria das músicas que são feitas não é o solo, não é,
até a composição faz parte, mas não é o solo, não é um estribilho,
não é nada que faça a diferença, é a letra né? Se a letra é bem
feita, ela é aceita. No movimento ela pode contar a história do
Brasil, ela pode contar a história de uma pessoa sofrida. Pode
notar que uma música mexe com várias pessoas, porque tem
várias pessoas que tem a mesma história de vida (Jaison).
65
fale de uma maneira, assim, envolvendo certas questões históricas
(Leonel).
66
violão, a gaita, os alimentos, o chapéu com o nome da rádio, os
instrumentos de trabalho, o cesto de vime e livros.
68
deixar a música agir sobre nós para que qualquer um destes aspectos
possa se realizar, seja a partir do som e das letras, seja do movimento da
dança e/ou do cenário onde os shows musicais acontecem”
(MAHEIRIE, 2003b, p. 151).
Este Encontro também apresenta a música no MST como
possibilidade de mediar espaços de lazer, de encontro entre as pessoas e
descontração dos Sem Terra.
69
a riqueza que é a luta pela terra, que as pessoas pensam pela
televisão que é simplesmente aquele enfrentamento de uma
manifestação, de uma ocupação e é diferente (Dirceu).
Nós não temos ainda, quer dizer, tem no estado de São Paulo.
Tem alguns artistas que estão começando a trabalhar. Tem uma
artista muito nova que toca violino e flauta e toca instrumental,
mas a gente não tem nada registrado ainda e gravado, mas é
muito importante o instrumental também. Inclusive, nós
acreditamos que a música erudita, a música clássica, ela não é só
para cultura de uma classe social alta, que o povo mais humilde, o
povo da roça, também pode fazer música erudita. Hoje (Encontro
de Violeiros) nós apresentamos uma música solada, um solo de
viola com cavaquinho, que os meninos de Passos Maia
apresentaram, pra valorizar, também, a música erudita, que ela é
importante, que ela é o clássico da música. A música tem isso, os
instrumentos falam, que nem a voz, eles repetem os sons que o
homem criou através da interpretação que ele fez da natureza,
então é importante. Mas essa recuperação da música já tem no
Encontro Nacional de Violeiros, em Ribeirão Preto (Dirceu).
70
também esteve mais envolvido nas discussões sobre música e arte em
geral, por ter sido dirigente estadual do Movimento por bastante tempo.
No entanto, penso que a música instrumental ainda foi pouco
desenvolvida dentro do MST. Seria devido à grande valorização
conferida às letras?
71
o hino, a bandeira tem que estar presente porque o hino já fala na
bandeira né? “Hasteemos a bandeira colorida” (Ide).
72
Também é o caso da mística que foi perdendo os elementos da tradição
religiosa e foi se transformando na mística do MST. Porém, não
podemos dizer que em SC os elementos religiosos foram excluídos
totalmente, pois eles ainda estão presentes em vários momentos do
cotidiano no Movimento, como foi o caso da Celebração na
Comemoração dos 24 anos do MST, ou a exemplo das Romarias da
Terra que acontecem no estado.
Retomando a discussão sobre a música com letra, música sem
letra, Jhon fala da necessidade de músicas com letras no MST, e diz que:
Jhon faz uma divisão entre o som e a letra, dizendo que o som
dos instrumentos transmite a emoção e a letra estaria presente para
transmitir as idéias, os valores do Movimento. Entendemos que a
música enquanto objeto estético, não é constituído apenas pelas
palavras, mas pelo som, pelo ritmo, pela entonação (BAKHTIN, 1997),
ou seja, como um todo concreto-sensível que se oferece a nossos
sentidos (VÁZQUEZ, 1987). Assim, a relação com uma música
instrumental pode também produzir processos reflexivos via as emoções
produzidas por meio dela. Mas para transmitir, por exemplo, os
objetivos e as conquistas do MST sem a letra, seriam necessárias outras
mediações, pois os possíveis sentidos produzidos por uma música
instrumental estarão sempre ancorados em nossas experiências. Ou seja,
não é possível transmitir os signos ideológicos do MST sem que o
sujeito signifique a estes por meio de alguma experiência, ancorando o
som ao significado, o qual, difundido pelos meios de comunicação em
geral, possam ser apropriados pelos sujeitos. A fala de Jhon reafirma a
importância fundamental que para eles tem as letras das canções.
Hinkel (2008), que estuda o processo de apropriação musical da
música Rap, contribui com esta discussão na medida em que também
encontra em sua pesquisa o destaque dado por seus entrevistados às
letras das músicas. Este autor, além de reconhecer a necessidade do
objeto estético com um todo para que seja possível acessar o mundo por
73
uma via sensível, também reconhece que “a letra das canções permite
aos entrevistados realizar processos de significação enquanto se
apropriam de determinada música” (p.117). Isto o “levou a considerar a
letra como um canal de acesso privilegiado ao universo de significação
da canção, já que a partir dela o sujeito realiza a produção de sentidos
constitutiva do processo de apropriação da obra sonora” (idem). No
entanto, o autor alerta que ao olharmos somente para o discurso político
da música “não somos capazes de nos apropriar das demais dimensões
constituintes deste objeto (harmonia, ritmo, melodia, enredo, voz do
cantor, etc.) e de vivenciarmos uma relação estética31 com ele”
(HINKEL, 2008, p. 134 e 135). Isso vale para a apropriação do Rap,
tanto quanto para as músicas presentes no MST.
Ainda sobre a questão da apropriação musical, Eyerman (1998)
fala que as músicas utilizadas por movimentos sociais são mais do que
textos que carregam idéias, são também representações teatrais, um tipo
de conduta ritualizada dentro da qual e, por meio da qual, se integra o
significado e a significação, ou seja, a produção de novos sentidos. Ela
pode fortalecer o movimento social, ajudar a construir identidade
coletiva e o sentido de ser do próprio movimento.
Para Frith (1987), a experiência musical produz identificações,
pois ao se apropriar de uma canção, as pessoas são levadas a fazer
alianças afetivas, e a música é especialmente importante para este
processo devido a essa função específica que é a sua intensidade
emocional direta. Sobre isso, Vygotski (1998) ainda esclarece que a
música não suscita emoções, mas antes, estabelece um “equilíbrio” entre
o sujeito e o contexto onde a música está presente. Ele afirma que a
música é uma “técnica social do sentimento, um instrumento da
sociedade através do qual incorpora ao ciclo da vida social os aspectos
mais íntimos e pessoais do nosso ser” (1998, p.315).
A música “toca em pontos de ligação afetivos do mental e do
corporal, do intelectual e do afetivo. Por isso mesmo é capaz de
provocar as mais apaixonadas adesões e as mais violentas recusas”
(WISNIK, 1989, p. 28). Nesta perspectiva, é que Frith (1987) alerta que
a música não é revolucionária nem reacionária por si só, ou seja, ela não
define automaticamente ações e pensamentos, pois cada sujeito pode
refratá-la, produzindo sentidos outros.
31
As discussões sobre estética e relação estética estão presentes nos capítulos 4.2 e 4.4.
74
A afirmação de Frith nos leva a refletir sobre o que torna uma
música revolucionária ou reacionária?
Se por si só ela não define pensamentos e ações, é necessário
pensar a música sempre em relação com os sujeitos ouvintes, com o
autor da canção, com o contexto onde ela é reproduzida enquanto
sonoridade, pois entendemos que é nesta relação com o outro que a
música possibilita a produção de sentidos e significados. Deste modo,
ela é mediadora no cotidiano do Movimento e, neste espaço onde a vida
do MST acontece, ela se torna uma forma de expressão dos sujeitos, ao
mesmo tempo singular e coletiva, tendo de ser compreendida para além
de seu fenômeno sonoro, pois o encontro entre o sujeito e a música é um
campo fértil, onde brota a possibilidade de relações estéticas e o
aumento da potência de vida dos Sem Terra.
O processo histórico e político da música no MST, como também
a sua mediação no cotidiano dos Sem Terra, pautam que:
A música pra nós vai sempre conter e ter e existir e, a gente vai
sempre criando. Dependendo a história que vai se procedendo, a
linha que a organização vai seguindo, enfim, também vai se
colocando na música (Leonel).
75
que implica a apropriação da realidade, sua desconstrução e
reconstrução; criação de algo novo.
Estamos falando aqui de todas as formas de criação do homem,
não nos restringindo à criação artística, pois “o homem já é criador
desde que produz objetos que satisfazem necessidades humanas, isto é,
desde que emerge de seu trabalho um produto novo” (VÁZQUEZ, 1978,
p. 53 e 54). Desta forma, a atividade criadora é o fundamento do homem
como ser histórico e social, que transforma e cria o mundo de acordo
com suas necessidades. É a atividade significativa que faz do homem
um ser criador, pois desde a transformação dos objetos em instrumentos
de trabalho, o homem já expressa sua condição criadora. O trabalho,
segundo Vázquez (1978) é histórica e socialmente a condição necessária
para o surgimento da atividade artística, bem como a relação estética.
Um elemento fundamental que compõe a atividade criadora é a
imaginação. Para Vygotski (1999), a atividade de criação está
fundamentada na imaginação, pois tudo o que nos rodeia e que tenha
sido produzido e transformado pelo homem é produto da imaginação e
criação humana, baseada nessa imaginação. Para o autor, todos os
objetos da vida cotidiana, desde os mais simples, são por assim dizer, “a
imaginação cristalizada”.
Vygotski (1999) esclarece a relação entre a imaginação e
atividade criadora, dizendo que toda criação da imaginação se
fundamenta em elementos tomados da realidade e que se conserva de
experiências anteriores do homem. Ou seja, a atividade criadora da
imaginação depende diretamente da riqueza e diversidade das
experiências vividas. E, se num primeiro momento a imaginação se
apóia na experiência, a experiência também se apóia na imaginação.
Maheirie exemplifica dizendo que:
76
Há também na relação entre a atividade da imaginação e a
realidade, o aspecto emocional. Acerca disso, Vygotski (1999) esclarece
que a condição emocional do ser humano, tem a capacidade de
selecionar impressões, idéias e imagens, estando presentes também
neste processo, as experiências passadas, ou seja, a memória.
Baseada em Vygotski e Sartre, Maheirie (2006) nos fala que a
memória é um processo psicológico que indica uma relação que se
estabelece com a temporalidade e que está necessariamente ligada à
imaginação. Desta forma, por meio de uma relação emocional, podemos
trazer presente, numa atitude reflexiva, a memória de algo que
significamos como prazeroso, sofrido, feliz ou triste.
Neste sentido,
78
acampamento, vivendo um cotidiano reservado a relações entre a
própria família e entre os outros companheiros do acampamento.
Hoje essa realidade já se apresenta diferente, pois no
Acampamento Irmã Jandira que visitei para fins da pesquisa, os
acampados podem sair 15 dias para trabalhar e depois voltam e
permanecem outros 15 dias no acampamento. Muitos conseguem
trabalho pelos arredores do acampamento, nas cidades próximas ou na
região. Os trabalhos envolvem atividades com a terra como roçar,
atividades em plantações seja na colheita ou plantação de frutas e
legumes, entre outros. Neste sentido, o cotidiano dos acampamentos em
SC também foi se transformando no decorrer da história do MST,
devido a diversos fatores que nos últimos anos permitem que os sujeitos
consigam trabalho mesmo na condição de acampados Sem Terra.
No Acampamento Irmã Jandira os sujeitos criam e recriam
músicas, como é o caso de um dos entrevistados naquele contexto, o
Paulista. Ele, junto com seu cunhado que toca violão, vem dentro do
acampamento compondo diversas paródias com temas variados. Junto
com Jaison, outro acampado, Paulista também pretende produzir
músicas para o MST.
Em relação às paródias Paulista canta um exemplo:
79
movimento e estamos fazendo ainda. É que tava fazendo eu e o
outro Paulista, mas ele foi embora (Paulista).
80
retrata algumas mudanças nos contextos que atravessam o tempo-espaço
do acampamento. No Acampamento Irmã Jandira, às 22 horas é o
momento em que o acampamento silencia. Então, a possibilidade de um
“serão”, é restringida como questão de organização deste acampamento.
No entanto, durante o dia e também à noite, muitos foram os barracos
pelos quais passei e que pude ouvir músicas saindo dos rádios a pilha.
As pessoas não deixam de ouvir músicas, mas o fazem mais
reservadas ao espaço do seu barraco. Apesar de este acampamento
possuir um Coletivo de Animação, ele também se limita mais aos
momentos pré-instituídos para a presença da música, ou seja, nas
reuniões e assembléias e aos domingos em um horário determinado para
o Coletivo se reunir.
81
assembléia, em discussão, e ela pego, é uma paródia né? Ela pego
a melodia de outra música e quantos que fizeram assim. Pegavam
a melodia de outras músicas e escreviam (Irma).
Vamos cantar uma música que muita gente já esqueceu. Que foi
escrito por uma companheira, não está mais aqui né? Mas uma
grande batalhadora, a Teresa. Então ela escreveu, já faz anos que
viemos acampar, já faz anos que a gente está sofrendo. Então, nós
vamos cantar esse canto que marcou muito a nossa história
(Irma).
32
Gravada no dia da Comemoração dos 24 anos do MST em SC e transcrita.
82
As crianças tiritando sem casaco pra botar (bis)
Nossa luta é para o povo enxergar
Que os grandes nada fazem pra ajudar
Eles querem o seu nome perfilar
Não se importam se nós vamos ou não vamos chegar lá (bis)
Nossa luta por aqui não vai parar
Nos ponhamos a pedir e a gritar
Para o pequeno se unir e vir lutar
Pela terra que é direito e nós vamos conquistar (bis)
Nós quando tinha tempo nós se reunia, tocava violão. Eu não sou
um violeiro, mas sempre gosto e a gente que está na terra, eu
sempre gostei da música sertaneja e daí eu fiz uma música
quando nós viemos pra cá né? Quando nós chegamos, na chegada
tudo, daí a gente fez uma música lá (Juliano).
Acampado, é. (Juliano).
Vamos cantar. Nunca lembramos bem (Neli).
Você que é nova, tivesse um dos 85 sabia, mas é mais ou menos
assim a música (Juliano).
83
Juliano tocou violão e ambos cantaram a música.
84
nem eu digo no último que, Reforma agrária na terra nunca mais
vai parar e na realidade quando eu fiz a música eu pensava que
parava, mas não paro, deu certo a música. Eu disse reforma
agrária na terra nunca mais vai parar, mas eu achei que não ía,
que ía parar né? Em vez não parou mesmo, tinha um sentido
(Juliano).
Mas tem muita música boa, música que conta a história até, eu
ouvi uma música esses dias que, é uma coisa certa né? Eu acho
86
que pegô da idéia das minhas músicas, da minha história né?
Então, é isso aí (Juliano).
87
4.3 Significados compartilhados em torno da música no MST
Eu diria que a música é fundamental pra luta, ela faz a luta ser
mais completa. A luta sem a música não seria completa. A luta
pela terra, na primeira ocupação, a gente anima a primeira
assembléia, não adianta fazer uma assembléia no ato primário da
luta pela terra, que é a luta contra o latifúndio, a ocupação da
terra, se fica dois três falando, não, você puxa uma gaita, um
violão, o povo já começa contagiar e, ali, é questão na segunda,
terceira assembléia todo mundo já aprendeu as músicas (Dirceu).
88
Os dois pontos destacados por Jhon acerca da música no MST
são de que a música representa a própria luta e por meio dela o MST é
divulgado, e segundo, a animação proporcionada por sua presença. A
música no Movimento cumpre então o papel de representar e divulgar a
luta do MST e também de alegrar e animar a luta. Por se constituir como
uma linguagem afetivo-reflexiva, a música envolve um processo de
reflexão que só é possível por meio da afetividade, sendo que a
afetividade em relação à música se faz possível devido a determinado
processo reflexivo (MAHEIRIE, 2001).
Irma que caminha com o MST desde o surgimento do Movimento
em SC, fala que a música possui um papel importante, pois ela anima os
Sem Terra para a luta.
89
indo. A música é uma coisa, assim, que conta uma história, conta
um causo, conta as coisas assim (Juliano).
90
vezes a reunião está animada, tem um ponto ali outro aqui, uma
discussão, um debate, então, as vezes, puxa ali, canta uma
música, no caso o hino pra mim é o mais forte né? Claro que é
senão, não ia ser o hino né? (Ide).
91
complexo e contraditório e que, ao abordá-las, devemos rechaçar –
como dois extremos igualmente nocivos – tanto sua identificação quanto
sua oposição radical” (p.28). Este autor faz uma definição que me
parece muito coerente sobre este tema, dizendo que a arte é meio de
conhecimento e só pode ser meio de conhecimento quando é criação do
novo e não cópia da realidade. Deste modo, a música não define
automaticamente nossas ações e pensamentos por ser um fenômeno
ideológico, pois “mesmo trazendo um „sentido‟ em si mesma, que pode
ser identificado na objetividade de suas letras, nenhuma canção trás um
significado „a priori‟, marcado na sua interioridade e imposto aos
sujeitos que escutam” (MAHEIRIE, 2002, p. 51). A arte é sempre
mediada por um contexto mais amplo da realidade, mas também pela
vida cotidiana dos sujeitos e, desta forma, está no processo dialético de
produção da vida, mediada pela realidade material, pela história e pelo
sujeito que a produz e reproduz.
Mas a música também anima a luta. Sobre esse poder de animar,
alegrar e de dar um gás para o momento da luta, Vygotski (1998),
esclarece que o efeito da música nos sujeitos nunca é imediato, pois
“entre o homem e o mundo está ainda o meio social, que a seu modo
refrata e direciona qualquer excitação que age de fora sobre o homem, e
qualquer reação que parte do homem para fora” (pp. 319 e 320). O
efeito da música é imensuravelmente sutil, complexo e se produz através
de abalos e deformações subterrâneas no posicionamento dos sujeitos,
pois ela pode motivar para alguma coisa e pode agir de modo excitante,
porém de forma indefinida, explodindo para a vida novas
potencialidades (VYGOTSKI, 1998).
(...) A arte é antes uma orientação para o futuro, uma exigência que
talvez nunca venha a concretizar-se, mas que nos leva a aspirar acima da
nossa vida o que está por trás dela (VYGOTSKI, 1998, p. 320).
93
chegando aos ouvidos daqueles que criminalizam o Movimento,
possibilitando quem sabe, novos olhares, novas opiniões.
Então, a música ela trás pra saber que o dia a dia não é o que eles
falam lá fora do movimento. O movimento é uma coisa que nós
estamos trabalhando. A maioria das músicas fala dos
latifundiários. Essa terra já era nossa, já era da nossa
descendência antes, então, aí a música fala muito nisso aí, da
força para a luta, no meu pensar, ela dá força na luta para o
movimento (Paulista).
94
Paulista acredita que a música pode fazer um contraponto com o
que é dito “lá fora” sobre o MST, mas que pode fazer isso para os
próprios Sem Terra, como forma de reafirmar e dar força ao MST na
luta. Desta forma, com essas falas, vamos compreendendo o olhar dos
sujeitos entrevistados sobre como a música afeta o MST. Eles
reconhecem a mediação da música no Movimento e nos mostram os
significados que ela possui na luta pela reforma agrária.
Neste sentido, Dirceu ainda reafirma a importância da música
para o MST, dizendo que, dentre as outras objetivações artísticas
utilizadas pelo Movimento, a música é fundamental e necessária.
95
cansadas, a música cumpre esse papel de “envolver de volta”, e como
diz Dirceu, “é importante porque ela melhora a participação das
pessoas”.
A participação das pessoas é de extrema importância para um
movimento social e no MST, não é diferente. Mas a música é um
mediador que potencializa esta participação, pois prepara as pessoas
para as discussões e também, contribui para que elas permaneçam
ativas, ouvindo e falando. Sobre isso, Maheirie (2003b) contribui ao
refletir sobre como a música afeta e transforma tanto o sujeito quanto o
contexto em que está inserido.
96
Segundo Wisnik (1989), a música é um objeto diferenciado, pois
se constitui de sons. Para ele “o som é um objeto subjetivo, que está
dentro e fora, não pode ser tocado diretamente, mas nos toca com uma
enorme precisão” (p. 28), e por mais nítida que ela possa ser, a música é
invisível, impalpável e tem um poder mediador hermético. Neste
sentido, a música é uma objetivação artística única que possibilita o
encontro do coletivo de vozes, de instrumentos e de corpos em
movimento. Sua característica fundamental é de se constituir de sons,
mas também podem estar presente nela a poesia e as performances
teatrais. No MST a música pode estar compondo a mística, onde outras
formas de arte estão presentes, mas também pode estar “sozinha”, como
no acontecimento de uma ocupação.
A música no MST é apresentada por Dirceu, como fundamental
para a própria existência do Movimento. A afirmação trazida por este
entrevistado é significativa, pois ele tem como base uma experiência
forte com o Movimento, uma trajetória que o faz conhecer o MST em
todas as suas faces e que o faz olhar para a presença da música no
Movimento como uma necessidade para a própria existência deste. Não
sabemos como este movimento social seria sem a mediação da música,
pois sua trajetória é toda marcada por sua presença. No entanto,
refletimos que o sentido de ser do MST é a luta pela reforma agrária e
este é seu projeto, sua “estrela” no horizonte.
Desta forma, arrisco dizer que o significado da música para o
MST não é o de existência, mas o de resistência. Sem a música, talvez o
MST tivesse sua potência de criar e resistir diminuída, pois “resistir não
é simplesmente se opor. É algo muito mais difícil e complexo: é criar, é
produzir rupturas, é afirmar outras lógicas, outras realidades”
(COIMBRA, 2008, p. 16). Neste sentido, “criar e resistir, arte e vida,
supostas distâncias que se esvaem na luta diária e que fazem do existir
uma prática constante de reinvenção de si e das próprias condições de
emergência da vida” (ZANELLA, 2008, p. 70).
A música no MST é então uma objetivação político-artística que
afeta o MST no campo político, ético e estético. Ao animar e significar a
luta, ela produz resistências, engendra processos de criação, aumenta a
potência de ser deste movimento social e contribui para que a luta pela
reforma agrária seja um combate intenso, porém menos duro, e mais
alegre. Neste sentido, a música cumpre mais do que uma função
ideológica, social e/ou educativa. A música amplia a potência de ser do
97
MST e supera a possibilidade de seu emprego somente como
instrumento ideológico, pois carregada de significação humana, a
música estetiza o Movimento e, desta forma, enriquece e aprofunda a
relação dos Sem Terra com a realidade.
98
Pergunto “de que forma a música te afeta?” Com uma das mãos
pressionando o peito, parecendo tirar a resposta de dentro, Irma
responde:
É, a música é uma coisa assim que, que ela te arrepia sempre, por
que é uma forma de tu cantar a tua situação, de tu falar da tua
situação em forma de música né? Quer dizer, eu quando canto
aquele canto que a gente cantou ali, tu lembra da história, é uma
coisa que, eu não sei nem explicar, mas assim ela te promove
uma emoção grande assim né? (Irma).
100
filme que “passa pela cabeça” como imagens desse tempo que foi, mas
que é recordado e paralisado pela experiência com a música. E, neste
processo, “as pessoas choram as vezes”. Ou seja, as músicas provocam
reações fisiológicas e podem, a partir daí, nos remeter a estados
emocionais intensos, em que só as ações poderão lhes dar uma
significação (MAHEIRIE, 2003b). No entanto, esta não está
estabelecida a priori na música, como também não o é nas emoções,
posto que o que emociona um sujeito, não emocionará necessariamente
os outros (MAHEIRIE, 2003b).
Vygotski (1998) traz uma contribuição importante no
entendimento desta questão. O autor alerta que, apesar da arte possuir
efeitos complexos e diversos, ela “nunca gera de si mesma uma ação
prática” (p. 314). Ou seja, a arte não tem a função de contágio, como se
seu conteúdo lançasse os sujeitos de forma direta a uma ação. “A
música, por si mesma e de forma imediata, está mais isolada do nosso
comportamento cotidiano, não nos leva diretamente a nada, mas cria
tão-somente uma necessidade imensa e vaga de agir, abre caminho e dá
livre acesso a forças que mais profundamente subjazem em nós, age
como um terremoto, desnudando novas camadas” (VYGOTSKI, 1998,
p. 320).
A fala de Irma sobre como a música a afeta, mostra que a relação
dela com a música no MST produz o que chamamos de vivência
estética. Esta exige a relação entre sujeito e objeto (Música), já que, por
si só, não podem ter uma existência estética. O sujeito encontra-se na (e
não antes da) relação estética com os objetos, sendo que o objeto
necessita do sujeito para existir e o sujeito necessita do objeto para
encontrar-se em um estado estético (VÁZQUEZ, 1999).
A relação estética é uma das diversas formas de relação do sujeito
com a realidade, mas é na relação estética, sobretudo, que “o sujeito
entra em contato com o objeto mediante a totalidade de sua riqueza
humana – não apenas sensivelmente, mas também intelectiva e
afetivamente” (VÁZQUEZ, 1978, p. 87). O objeto, por sua vez,
apresenta-se como um todo concreto-sensível aos nossos sentidos, com
uma significação ideológica e afetiva, ou seja, como realidade concreta
humana (VÁZQUEZ, 1978).
A relação estética é, sobretudo, uma relação social dialética entre
sujeito e objeto, é concreta, singular, situada histórica e socialmente. É
uma relação aberta onde sujeito e objeto, estão por inteiro, se
101
transformando e superando a função unicamente prático-utilitária
presente em outras formas de relação (VÁZQUEZ, 1999). É na relação
estética que o ser humano vive sua potência de ser, de (re)criar e de
produzir novas significações singulares e, também, coletivas.
Ao refletir sobre a experiência estética, Vygotski (2001) fala que
ao vivenciar uma obra de arte, esta pode efetivamente levar-nos a ver
com novos olhos, generalizar e unificar fatos amiúde inteiramente
dispersos. Além disso, o autor destaca que, como qualquer vivência
intensa, a experiência estética cria uma atitude sensível para nossos atos
posteriores e nunca passa sem deixar vestígios nos nossos
comportamentos.
Desta forma, a vivência estética “mexe” com os sujeitos. “Mexe”
com os sentimentos, pensamentos, com o corpo. Afeta o sujeito por
inteiro e cria possibilidades novas para agir, para sentir e para pensar.
Ide fala de como a música o afeta, nas suas experiências junto ao MST e
diz que:
Eu encaro a luta e a música como uma coisa que não pode ficar
de fora, e tem música que mexe sim, claro. Tem música que você
canta a realidade, você está cantando ali, música de lamento, da
opressão, do oprimido, então, tem música assim que mexe. No
caso, tem os momentos assim que você canta a música e quando
você está pensando na coisa que é consoante com aquela música
da luta né? Mexe com os sentimentos da gente, da gente que é
apegado assim. Falando na Marcha Nacional, que teve a
finalização, o encerramento que os caras do Movimento, o João
Pedro Stédile e todos os caras da direção nacional fizeram os
discursos lá e daí soltaram umas músicas lá, então, nossa, mexe
com o coração, com a alma da gente, acho que mexe com a alma
mesmo né? (Ide).
A música “mexe”. Mexe com o coração, com a alma, nos diz este
sujeito. Em outras palavras, o encontro de Ide com a música, é um
encontro estético. Neste sentido, Vygotski (1998) aponta que a arte é o
social em nós e o social existe onde há apenas um sujeito e suas
emoções singulares. “Por isto, quando a arte realiza a catarse e arrasta
para esse fogo purificador as comoções mais íntimas e mais vitalmente
102
importantes de uma alma individual, o seu efeito é um efeito social”
(VYGOTSKI, 1998, p. 315).
O autor russo fala que na relação estética mediada pela arte, há a
reconstrução do comportamento e por isso, sempre significa uma
atividade sumamente complexa de luta afetiva e reflexiva, que se
conclui na catarse (VYGOTSKI, 1999, 2001). A catarse é um processo
de superação dos sentimentos, e não uma descarga destes. Por isso, ela
não gera de si mesma uma ação prática, mas prepara o sujeito para tal.
Sawaia (2006) esclarece ainda que a catarse é uma experiência estética
que transforma o pensamento e a sensibilidade. A catarse desloca o
sujeito do seu cotidiano e o potencializa para a vida, transformando sua
existência. Para ela “a arte é recurso para se atingir a liberdade e as
mudanças pessoais e sociais por sua qualidade educativa e de técnica
das emoções, uma vez que a experiência estética pode reorganizar
sentimentos e vontades” (SAWAIA, 2006, p. 92).
A música produz esse movimento quase inexplicável pelos
sujeitos participantes da entrevista, que é de “mexer” de modo afetivo e
reflexivo. Durante as entrevistas, senti a minha dificuldade em formular
a questão, bem como, percebi a dificuldade dos sujeitos em expressarem
a resposta em palavras. Talvez por ser algo que realmente é muito mais
sentido do que falado. De qualquer forma, a fala desses dois sujeitos foi
selecionada para esta discussão, por terem sido os que melhor
conseguiram expressar, no discurso verbal, essa afetação produzida pela
música no cotidiano do MST.
Neste sentido, na relação dos sujeitos com a música, novas
composições são criadas, pois se constitui de encontros estéticos que
podem aumentar ou diminuir a potência de agir, de existir e de criar
desses sujeitos, pois existir, como diz Pelbart (2009), é variar em nossa
potência. Às vezes os sujeitos ouvem músicas que os emocionam de
forma triste e também de forma alegre. Os bons encontros são aqueles
que nos tocam de alegria ou de tristeza, porque são aqueles que
aumentam nossa potência de vida.
No MST as músicas são predominantemente de animação e de
alegria e procuram dar força aos sujeitos para seguirem em frente na luta
pela reforma agrária. Compreendemos que as canções que possibilitam
uma afetividade na tristeza também podem aumentar a potência de ação,
desde que possibilitem a ampliação dos sentidos na direção de um
fortalecimento para a luta. Assim, o encontro dos sujeitos com a música
103
é sempre uma questão de experimentação, pois o que emociona uma
pessoa pode não emocionar outra, o que afeta uma pessoa de forma
alegre, pode afetar outra de forma triste. São vivências singulares,
concretas, condicionadas histórica e socialmente. Mas por meio dos
significados compartilhados em torno da música e das experiências
singulares travadas nesta discussão, compreendo que a música no MST -
objetivação político-artística - compõe o aumento de potência dos
sujeitos através da relação estética proporcionada pelo encontro entre
sujeito e música, e neste sentido, contribui com o aumento da potência
de ser e agir do Movimento.
104
Elaine Tavares (2007)33 nos conta que o exército cercou as
famílias Sem Terra e diversos apoiadores de outros movimentos sociais,
com armas nas mãos e os tanques do exército no chão, criando uma cena
de guerra. A ocupação não durou muito tempo, pois todos foram
obrigados a sair da terra, sob ameaças do uso da força, contra todos que
ali estavam.
33
Elaine Tavares é jornalista e escreveu uma matéria sobre este acontecimento. “Camponeses
sem-terra de Santa Catarina vivem abril vermelho”, 19 de abril de 2007. Obtido de
http://www.mst.org.br/node/4015 em primeiro de fevereiro de 2010.
105
Então, lá nós estava juntamente com meu irmão animando,
cantando sabe? E o que me chamou bastante atenção, que é uma
música, aí tem uma música que fala da organização, que o povo,
por exemplo, tem aquela que nós cantamos, “este povo não tem
onde ir, é a terra para o povo planta, os sem terra precisa morar,
ele não quer matar, ele quer só trabalhar”. Então isso me chamou
bastante atenção, porque comoveu assim, nós cantando, acho que
o lado da força dominante que eu digo que é outro lado, enfim,
acho que teve certo momento que chamou atenção aquilo, eles
fizeram uma reflexão creio eu assim, por isso que me chamou
bastante atenção assim, nós cantando, tinha o exército lá
(Leonel).
106
E aconteceu o tal despejo. E aí pelas leis criadas e pelas
autoridades né? E por um certo ponto assim, eles não vêem a
realidade do movimento, porque que o movimento faz isso, então
foram fazer o tal despejo, o exército, foi o exército (Leonel).
107
Então a gente chegou lá e chegou meio assim né? Báh e agora? A
primeira vez, não tinha ensaiado, meio só no grito, né?(Jhon).
Então, sabe, é uma coisa que a gente não sente quando a gente
toca em bailão pra povo assim, nunca tinha sentido aquilo que a
gente sente ali quando é o pessoal que tem a mesma ideologia que
você sabe? Que admira teu trabalho. É uma sensação inexplicável
sabe, porque ali, você tá fazendo um trabalho, o povo reconhece
teu trabalho, sabe de onde tu vem, onde tu quer chegar, então,
eles dão um apoio assim bem maior de quando tu vai tocar um
baile, por exemplo, num clube. O que que é, o pessoal paga, ele
108
quer entrar lá e quer ver uma música de qualidade e na verdade
não olha pra pessoa né? Eles querem saber da música né? E
dentro do MST, essas saídas que a gente sai pra tocar, eles vem,
conversam com você, então eles procuram olhar além da música,
você. Então acho que tem um diferencial bem grande, pode sair
tocar o mundo inteiro que tu não vai sentir isso sabe? Mas, como
aquilo que te falei, é uma família (Jhon).
109
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
110
para além do que estava previsto no roteiro. Além disso, a experiência
de entrevistar pessoas em tempo e espaços distintos possibilitou o
aprimoramento do roteiro e a busca por novas informações que em
entrevistas anteriores não haviam sido pensadas e, também, caracterizou
a pesquisa como um processo de avanços e recuos, construídos no
caminhar.
O estudo sobre a mediação da música no cotidiano do MST nos
possibilitou compreender aspectos desta mediação e, a construção de
algumas considerações. A música, como linguagem reflexivo-afetiva,
precisa ser compreendida no paradoxo que a coloca, desde que a
abordemos em forma de canção. As canções articulam a linguagem
musical com a linguagem verbal e, assim, estabelecem o entrelaçamento
entre o que não é possível significar a priori e o significado que já é
estabelecido coletivamente. A mediação que a música engendra no MST
é, desde esta perspectiva, paradoxal. Ela ocupa o lugar polissêmico do
sentido das objetivações artísticas, produtos de movimentos de
subjetivações abertas e inacabadas que caracterizam o humano. Ao
mesmo tempo, elas buscam dizer alguma coisa, elas intencionam falar,
na linguagem verbal, o que acontece e o que precisa acontecer, o
ocorrido e o presumido.
Neste sentido, compreendemos que a música no MST
potencializa os sujeitos Sem Terra, já que em relação com a música, os
sujeitos se sentem animados para a luta. A música no MST também
media processos de significação, principalmente, pela apropriação das
letras das canções, o que permite aos sujeitos Sem Terra realizar a
produção de sentidos. Consideramos, também, que a música contribui
com a manutenção do MST, pois os sujeitos entrevistados apontam,
claramente, que a música dá força e coragem nos momentos de ação
coletiva e faz importante mediação no aumento da potência de ser e de
agir deste movimento social. Neste sentido, a música afeta o Movimento
no campo político, ético e estético.
Entendemos que a música no MST media a constituição dos
sujeitos Sem Terra e tece processos de identificação coletiva e, quando
tocamos na questão da identidade, sobretudo na identidade coletiva,
estamos necessariamente no campo da política (SAWAIA, 1999). Deste
modo, as músicas utilizadas no cotidiano do MST, são objetivações
111
político-artísticas, pois expressam e compõem a luta deste movimento
social, possibilitam vivência estética e processos de criação.
A criação de poesias e canções no MST configura o que
Vygotski (2001) aponta como o irredutível humano, sua possibilidade
de criar o que até então não existia. Tal processo faz do humano um ser
sempre voltado ao futuro, ao que ele ainda não é e, assim, pode-se
afirmar que a possibilidade de criação é, antes de tudo, criação e
recriação da própria existência.
A maioria das letras das canções no MST possui como
característica o “engajamento” político e, neste sentido, levantamos
algumas questões como: a música no MST não se constituiria como a
reposição do mesmo? Qual a intenção do Movimento com essas
músicas? A música é capaz ou não de transmitir ideologia? A
priorização temática nas letras das canções utilizadas pelo MST, não
gera também, limitações quanto à produção de sentidos?
Compreendemos que estas canções se constituem como processos
de criação do novo e, também, como legitimadoras do universo
simbólico do Movimento. Nesta perspectiva, elas também possibilitam,
por meio de suas letras, a manutenção dos valores, idéias e projetos do
MST, podem produzir sentimentos de coletividade, união e engajamento
político, sendo utilizada como uma estratégia de atuação do MST. Por
outro lado, mesmo como instrumento ideológico, a música é uma
invenção momentânea de novas estratégias de engajamento político
neste movimento social.
O Encontro de Violeiros do MST se destaca como um espaço
onde a música mediou à produção de sentidos outros, pois este encontro
tinha como objetivo o resgate e a valorização da música caipira, ou seja,
a música que, segundo os Sem Terra entrevistados, é a música do
homem rural, a música raiz. Neste Encontro, o foco não eram os valores
somente do Movimento que estavam em jogo, mas os modos de ser e
viver destes sujeitos que se constituem em sua maioria, mediados pelo
contexto histórico e cultural com características do meio rural do sul do
país.
Consideramos que apesar da presença significativa da música no
cotidiano do MST, o registro e arquivamento das criações musicais dos
Sem Terra, pelo menos em SC, ainda é um desafio para a organização
do Movimento. Acreditamos que, a partir do primeiro Encontro de
Violeiros no estado, esta tarefa de organização da história cultural do
112
MST será cada vez mais resgatada e registrada, pois são nesses
encontros que muitos criadores anônimos Sem Terra irão apresentar
suas canções.
A idéia nestas considerações finais não é realizar um
fechamento do estudo, mas abrir novas possibilidades de pesquisas,
novas reflexões e contrapalavras, pois há muito ainda o que investigar e
aprofundar. Vislumbramos então, a importância de novos estudos acerca
das objetivações artísticas mediadoras dos movimentos sociais, pois fica
a curiosidade em saber se há em outros movimentos este processo de
criação artística? E ainda, como se dá no MST o processo de criação,
também do teatro e da poesia? Como acontecem as oficinas de música,
teatro e artes plásticas no IEJC e, de que forma essas oficinas mediam os
processos educacionais? Também cabem novas investigações sobre o
que seriam das músicas no MST se elas não fossem configuradas em
canções, ou seja, se elas não tivessem uma letra, se elas não se
articulassem a linguagem verbal?
É certo que as possibilidades de novos engajamentos
investigativos ultrapassam estas considerações, pois no campo das
ciências humanas há diversos olhares teórico-metodológicos e inúmeros
focos possíveis de estudo.
Chego ao final deste processo contente pelo que foi produzido e
motivada a continuar pesquisando a interface entre os movimentos
sociais e as objetivações artísticas, a política e a arte. Estou motivada,
também, a ampliar o leque teórico, a partir do já utilizado neste estudo,
para qualificar ainda mais tais discussões. Por fim, vivenciei nesta
pesquisa relações que dialetizaram o campo da ciência e da vida,
tornando este trabalho um processo dotado de sentido. Trabalho que
agora se conclui formalmente, mas que continuará “caminhando e
cantando e seguindo a canção”.
113
6. REFERÊNCIAS
114
CALDART, R. S. (2004). Pedagogia do Movimento Sem Terra. São
Paulo: Expressão Popular.
115
FREITAS, M. T. (2003). A contribuição de Mikhail Bakhtin: a tripla
articulação ética, estética e epistemológica. In FREITAS, M., JOBIM e
SOUZA, S. & KRAMER, S. Ciências Humanas e pesquisa: leitura de
Mikhail Bakhtin. São Paulo; Cortez.
116
MAHEIRIE, K. (2001). "Sete mares numa Ilha": a mediação do
trabalho acústico na construção da identidade coletiva. Tese de
Doutorado em Psicologia Social. Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, PUC/SP, Brasil.
117
MELUCCI, A. (1999). Acción colectiva, vida cotidiana y democracia.
México: El Colegio de México, Centro de Estudios Sociológicos.
118
PRADO, M. A.M & LARA, N. J. (2003). A mística e a construção da
identidade política entre os participantes do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra no Brasil: um enfoque
psicossociológico. In Revista Virtual de Psicologia Política, ano 1, n.
4, Dezembro. Obtido de
http://www.psicopol.unsl.edu.ar/dic03_nota1.htm em 07 de junho de
2008.
119
SCHERER-WARREN, I. (2008). Redes de movimentos sociais na
América Latina: caminhos para uma política emancipatória? In Cad.
CRH [online], v.21, n.54, (505-517).
120
VIGOTSKI, L. S. (1998). Arte e Vida. In Psicologia da Arte. São
Paulo: Martins Fontes.
121
Apêndice: Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
Meu nome é Apoliana Regina Groff e estou realizando uma pesquisa sobre o
lugar da música no cotidiano do MST. Este estudo está sendo desenvolvido
juntamente com o Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade
Federal de Santa Catarina, sob a orientação da professora Dra. Kátia Maheirie.
Eu, ______________________________________confirmo que a pesquisadora
Apoliana Regina Groff conversou comigo sobre o trabalho de pesquisa que a
mesma está desenvolvendo sob orientação da professora Kátia Maheirie e que o
objetivo da pesquisa é estudar o lugar da música no cotidiano do MST. Sendo
assim, fui convidada (o) a participar da pesquisa, por meio de uma entrevista,
aceitando a gravação em áudio da mesma e concordando com a utilização da
gravação de minha entrevista para fins da pesquisa. Compreendi que não se
trata de uma pesquisa a serviço de finalidades políticas ou legislativas, mas que
se trata de um estudo psicossocial. Compreendi que participando desta pesquisa
estarei contribuindo para a produção de conhecimento no campo da psicologia
social, em especial, na relação desta com os movimentos sociais. Fui esclarecida
(o) pela pesquisadora que a qualquer momento que eu tiver dúvidas a respeito
da pesquisa, ou quiser retirar o meu consentimento para a utilização das
entrevistas, posso contatar a pesquisadora Apoliana pelos telefones (48) 3304-
1929 ou (48) 8466-7672 e pelo correio eletrônico: poligroff@gmail.com.
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