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INDIANA

UNIVERSITY
LIBRARY
.\
,

FELICIANO GALDINO A

lendas

matogrossenses

"\ .„.,,- Z.AkUtí

CUIABÁ' — MATO GROSSO

1919

. . .- .' v .v\'r J

/■-
417368

vc\\Y::;:
v.
-

fibras de leliciano Saldino

Luz e sombras.
Lyrio e violeta.
A Região dos mares.
Lendas matogrossenses.
Os fanaticos.

A bastão, a chicote !

Novellas do coração.
Waldemiro— drama em 4 actos.
A legião das covas— drama em 3 actos.

^ Quanto pôde um inspector de quarteirão — Co-


c£ media em 3 actos.
m Os intrépidos da Uberdade— drama em l acto.
o. A Retirada da Laguna — drama em 4 actos.
<^>
Amor e vermes— drama em 4 actos.

Paginas intimas.

y
v

' V4 L'.Vi...
rõ illastre matogrossen.se <$om

^Francisco de inquino Worrêa, wispo


de Wrusiade e Wresidente do Wstado de
XÀto-wros9o, offereco esta obra que se

publica em homenagem ao bi-centenario da

nossa terra.

fui Aba, 2 de $hril de W9-


mmwmm 4-

azul
A princesa branca do vestido

/As saudades dos tempos idos que


e
não voltam, melancolia infinda que nos
a

opprime, quando nos lembramos que mo

a
cidade passou, como um sonho, para nun
ca mais voltar, tudo isso nos faz mesmo
crer, quando

estamos velhos, que ou


trora mocidade era mais ditosa, que no
a

mundo se folgava mais, céu, mais encan


o

tador poético, os campos, mais cheios de


e

recamos as manhans, mais bellas.


e

Mas, quando os velhos do Livramento,


daquella terra feliz, daquelle paraizo mato-
grossense se reunem começam decan
a
e

tar as bellezas d'aquelles tempos que se


perdem longe, daquellas manhans que não
desabrocham mais, fazem mesmo crer que
a região passou, devéras por uma grande
tranzição climaterica.
Era por uma das manhans daquelle tem
po, manhans de que os velhos tanto falam
que hoje só conhecemos no harpejar dos
e
8 £e«3o5 -matojeo>5eit5e5

poétas,... era por uma daquellas manhans.


Uma innocente creança, que podia con
tar, no maximo, quatro annos, tendo dei
xado o lar paterno, entrou no bosque que
corre por entre os arroios do Menino Jesus
e João Leme, seduzida, talvez, pelos encan
tos da natureza, attrahida pela musica
alegre da s; aves.. ; . .v..-i..
Errava a tenra creança de um para ou
tro lado, levantando de balsa em balsa, com
sua chegada, nuvens de borboletas q#e se
confundiam com as flores; errava a creança
inconscientemente, tão seductora é a natu
reza que às proprias creanças arrasta.
Phebo, pelo céu de azul extreme, linha
percorrido qúasi a metade do seu curso-
0 dia, estava quente; as borboletas fugiram
para as, margens do' João Leme, o piano
mavioso do passaredo emmudecéu comple
tamente. Murchavam as flores os apolineos
raios.
".-

.".'"
.'.

Tinha sede creança, tinha fome tambem.


a

Lembrou-se então do lar paterno, levan


tou cabecinha loura nenhuma casa
a

avistou,. teve medo, quis chorar.


— Mamãe, — exclama — onde estás
?
'

Vem. buscar- 'piei.


'".'

..
Caminhou, tendo encontrado estrada
a
e

que reva Cuiabá, seguiu por ella toda


a

amedrontadinha.
do João Leme
E,

ao chegar margem
á

'
encontrou uma Senhora que ao vel-a, se
approximou delia e, sorrindo, a tomou de
licada e carinhosamente pelo bracinho:
— Vêm comigo, belleza, vem comigo flor,
tua boa mãe te procura.
E a mimosa creaturinha, toda espantadi-
nha, a seguiu, fitando-lhe os çlhos, com a
boquinha entre-aberta, toda admirada pela
sua incomparavel belleza, pelo perfume
das suas vestes azues e pela bastidão dos
seus cabellos doirados.
Na villa, por toda parle, era procurada,
desesperadamente a loura creança.
Os escravos, uns percorriam os bosques
e outros, acompanhavam, impressionada-
mente, o curso dos riachos proximos.
Julgavam haver desapparecido, de uma
vez, a innocente creaturinha.
E a bella moça que a guiava, tendo che
gado com ella á entrada da villa c, prestes
a encontrar-se com aquelles, que desde ce
do procuravam a innocente, parou:
— Sabes quem te conduz de onde esta
vas, para pertinho da tua querida mãe?
— Não, não sei.
— Pois, si t'o perguntarem, dize-lhes que
é a melhor das mães, a melhor das ami
gas: — a princesa branca do vestido azul.
A moça abençoou a creança e sumiu por
entre o arvoredo reclolente...

A' tarde, se reuniram, em grande numero,


na capella, os habitantes da risonha villa.
10 £e-n3a» tnatoytOMtnot»

a convite dos paes da creança, para rende


rem acções de graças á Senhora do Livra
mento, padroeira do logar, a quem fizeram
muitas promessas para o encontro do pe
queno desapparecido.
E o pequeno, tendo entrado tambem na
capella, conduzido pelos seus carinhosos
paes, cravou os olhos no altar, estava tão
espantadinho. Fez-se pallido, por fim e,
apontando a seus paes a bella imagem da
Senhora do Livramento, exclamou :
— Mamãe, está alli no altar a moça que
me conduziu para casa, esta manhan. E'
ella... a Princesa Branca do vestido azul...
As minas dos Martyrios
A terra é virgem, homens, parae.
Bandeirantes que vos internaes pelos
sertões Araés, a procura do gentio que vos
odeia de morte, sustae os vossos passos,
é virgem a terra que pisaes.
Penitencia, e oração. Tirae da men
te a idéa da escravisação dos indigenas
da ubertosa terra, são elles vossos irmãos,
Deus não admitte escravos.
Audaciosos desbravadores dos sertões
Araés, alimpae a vossa alma, intrépidos
bandeirantes, só assim é que podereis ver
em todo o seu esplendor esta parte do ter
ritorio matogrossense em que penetraes.
Anchieta, o catechista modelo, o anjo das
florestas, o pioneiro da nossa civilização,
atravessando brenhas profundas, descobria
o segredo das florestas e as feras acompa-
nhavam-no humildes, quaes cordeiros man
sos. Considerae, as féras dobram as cabe
ças perante as almas limpas, perante os
corações puros, sem mancha.
Com as almas puras, corajosos sertanis-

417368
]2 Zcnda» matogío»aiuaiâ

tas, tudo vos será propicio.


Bandeirantes dos sertões Araés, alongae
a vista por onde palpitaes em ancia.
Vede aquelles montes, aquellas matas,
estes campos ! Vede que rios, que céu eque
sol! E'o territorio matogrossense com toda
a pujança dos seus singulares dons.
Que espectaculo sem solução de continui
dade; que vistas soberbas, apparatosas, en
cantadoras; que abysmo de belleza sem ri
val; que orchestração eterna, celestial ! E'
a plaga virgem matogrossense tocando to
das as gammas da poesia da terra....
Os bandeirantes descobrem a grandiosa
terra encantada. Pimpona e soberana de
quantas pelo mundo há, occultava-se na
parte mais central do continente america
no com o cofre das suas riquezas exposto
ao sói.
Setembro ! Os paratudos, as piúbas e ta-
rumeiros estavam cobertos de flores que
amarellavam, avermelhavam e roxeiavam
as planicies, os montes e os horizontes —
nota sublime da orchestração amoravel
que precede as outras, cada vez mais se-
ductoras da veneranda terra virgem.
Aborigenes donzellas, no florejar dos an-
nos, com saiotes de fios de pindahyba,
brincavam alegres- ás sombras das arvores,
cantando as arias selvaticas das suas tra
dições e, cantando, dansavam com raminhos
de flores nas mãos, ora de braços dados,
Selician» §aí3tno ] 3

ora cruzando as ramas no ar, ora perfilan-


do-as ou meneiando-as.
Dansavapi,em longas alas,umadansa es
tudada, sympathica, jovial e amoravel, dan-
savam, as donzellas selvagens contentes
e felizes, no sombreiro vasto da perfumo
sa flóra.
As floreteadas alas vinham umas ao en
contro d'outras e, fazendo alegre mesura,
recuavam fazendo tregeitos. ricocheteavam
em delicados e innocentes mucangos.
— "Dansemos e cantemos, a mocidade é
longa nas florestas, nossos paes vivem fe
lizes, as flores são nosso amor.
"Bellas são as nossas flores, as flores
com que brincamos, louvemos, sempre can
tando a Tupan que as gerou, a Tupan que
manda chuvas para as flores do nosso
amor.
"Cantemos, irmans, cantemos, debaixo das
nossas flóras, as floras do nosso amor."
Era um quadro mythologico, alegres jó
gos floraes... , \
Os bandeirantes passavam e se interna
vam pela regjão encantada, pisando o solo
borrifado das pétalas que cabiam, em bran
do chuveiro das arvores festivas.
Caminharam rumo Norte. .
Na grandiosa terra virgem, sorprezas in-
contadas aguardavam os seus descobrido
res: os leitos dos seus piscosos rios eram
granidos de ouro,- de diamantes e deesme-
l 4 Sícndat matog-t-Oí»eti/í»

raldas e suas chans accidentados, abun


e
dantes de aves e de milhares de especies
de animaes desconhecidos e de facil caçada.
E corriam pelo sólo abençoado, rios de
aguas crystallinas, rios de aguas azues e
rios de aguas côr de leite.
A serra que vinha de regiões longinquas,
por alli passava, ondulosa e serpeante, com
os seus ramaes e contrafortes e era a mais
elevada de quantas havia na região até
aquelle ponto descoberto.
E, do cume mais elevado da alta serra,
um grande fóco de luz sahia, nas horas
em que mais ardia o sói.
E aquelles fócos de luz, aquelles raios fe
rinos que vinham mendigar reflexos na
mantaria verde das arvores,seviam mesmo
de ionge. -
0 chefe da grande bandeira deixou por
algumas horas todos os seus camaradas e,
profundamente impressionado com aquelle
importante phenomeno, se metteu pela ma
ta a dentro, acompanhado de seu filho me
nor, seguindo a direcção daquella altura e,
com muita difficuldade chegou ao logar
desejado.
Um thesouro enorme, inestimavel, alli
estava exposto á luz do sol. O ouro alli
brilhava, fulgia, em monstruosas barras de
difficil remoção e dispostas de modo e for
mas taes pela Providencia, no dia da crea-
ção que o chefe dos bandeirantes se pôs
Scticiano SoOtno I5

de joelhos e orou, bemdizendo o Deus Cre-


ador.
A corôa, a lança e os cravos do martyrio
de N. S. Jesus Christo, alli estavam repre
sentados no ouro pesado e estupendamen
te abundante da assombrosa mina.
— Pae, ouro tudo isto?
— Cala-te, meu filho. A ninguem dirás
de modo algum, nada de quanto vês. E' uma
riqueza fabulosa e estupenda tudo quanto
presenciamos neste instante.
— Pae, estamos ricos, immensamente ri
cos!
—Mais ricos que o proprio rei de Por
tugal, mais ricos, talvez, que todos os reis
da terra; mas, filho, silencio e o mais ri
goroso segredo para que não despertem cu
riosidades. Estas minas nos pertencem em-
quanto sobre ellas guardarmos sigillo.
Eram as "Minas dos martyrios" assim
chamadas pelas semelhanças das lanças,
coroa e cravos do martyrio do bom Jesus,
feitos de monstruosas peças de ouro que se
viam naquellas alturas mysteriosas.
Eram as "Minas dos martyrios" desço-,
bertas pelos corações puros, em que em vão
tentarão os exploradores chegar, emquan-
to não for banida pelo sopro regenerador
do Evangelho a imperante corrupção dos
homens.
*
. * *
Terra maravilhosa, arca immensa de pre-
l6 Rendai matoaío»iiftie»

ciosas gemmas, tu,que tens em teu gran


dioso seio um thesouro assombroso com o
qual podes submetter todos os reinos da
terra, conserva fechadas as tuas riquezas
antes que os homens que te desejam a ruina
usem cfellas para mais te envergonharem.
Terra encantada em que nasci, é grande
e horrorosa a corrupção que se alastra! Fe
cha, minha amada, fecha as tuas opulentas
urnas !
Fecha aos exploradores das minas e do
povo as veias das tuas riquezas, fecha-lhes
para sempre o caminho dos "Martyrios" l
Fecha, terra do meu amor, terra do meu
coração, terra dos meus cuidados e since
ro devotamento, fecha as tuas urnas aos
inimigos do teu progresso, do contrario as
tuas riquezas, lhes servirão para compras
de consciencias e ficarás pobre e vasia e
serás vendida em leilão nas orgias, dos fal
sos representantes da Republica !
Fecha, terra do meu amor, fecha as tuas
arcas, fecha as tuas urnas, fecha as tuas
riquezas incomparaveis...
ira na afortunada zona dos gaturamos
edo abemolado chilreio dos coriós...
Era na plaga perfumante do Iuaeberó
que espreguiça em seu leito de famosos
diamantes, recebendo sorrisonho, manso e
agradecido, as homenagens dos seus cal
mos tributarios...
Era sob o céu proverbial dos poentes e-
denicos... onde a alliança dos araés aos
carajás, temperou a égide invulneravel da
sagrada terra contra todas as invasões.
O Iuaeberó que o bando invasor profa
nou com o tredo nome de rio das Mortes,
deslizava como um estendal faiscante de
branco jaspe, completando a paizagem ma
gnifica de verdes desertos e de capões al
tivos, de cômoros graciosos, de bréjos e i-
garapés, da tapinhoam e das baraúnas.
Da margem esquerda para além, se es
tendia o immenso paiz de Camapuan, onde
o sopro da civilização bafejou, entre os pri
meiros, os seus naturaes, fazendo d'elles
um povo laborioso e bom. orgulho da pa
tria afortunada.
18 2cnda» tnaXoyto*3tn»c>

Bartholoraeu Buêno da Silva, o lendario


c engenhoso sertanista, á frente de sua
grande e audaz bandeira, penetrou, pelo
lado de Goyaz, a terra das ricas devezas e
das grutas mysteriosas.
A escassez dos viveres que trazia, fel-o
retroceder um pouco, á procura de melhor
terreno para fazer uma grande roça.
Por meio da grande plantação feita, pe
la grande bandeira, se serviu o solo de
monstrar a sua portentosa fertilidade. Mas,
quando o milharal soltava ainda os pen
dões, já os generos de alimentação haviam
acabado de uma vez.
O gentio, soberano do selvoso territorio,
por uma, duas e tres vezes, já havia inti
mado a retirar-se o bando profano e, ao
cabo de cinco lunações foi levar-lhe outra
intimação que jurou ser a ultima.
Bartholomeu Buêno estava só, á beira
da corrente, pensativo. Já sem viveres, con
fiando só na pesca para alimentar a nu
merosa leva, pensava tentar grangear a
benevolencia dos gentios que já o amea
çavam seriamente.
Sentado á sombra de copariseiros que
verdejam ás ribanceiras das aguas tran-
quillas, o heroe do sertão concertava um
grande ardil, um plano infallivelmente segu
ro á submissão das nações bravias que não
pudera capti var e de quem nada podia obter.
Pequenos camalotes de agua-pés come-
cSvficicuto SaíSitK) l9

cavam a rodar, desde alguns instantes e


se vinham enganchando ao saranzal que,
em toda parte, curvado á borda das cor
rentes, se manifesta o eterno idólatra das
aguas.
Repentinamente, o bandeirante sentiu to-
car-lhe ao hombro pesada mão e em lin
gua indigena :
— Dormes?
E voltando assustado a face, deparou a
a seu. lado um indio corpulento.
— A que vens?
— Em mim ves o chefe dos araés. Ainda
te não retiras com teu bando ? Queres
morrer com todos que te pertencem pela
guerra epela fome? Tres dias e tres noites
gozarás ainda de paz, depois virá a guerra.
A Bartholomeu Buêno se lhe esfusiou
no cérebro o bello ardil qne havia pouco
engenhara.
—Gentio araés, és grande e forte e por
isso mesmo, cá vim á procura de tua a-
mizade, porque a grandeza e a fortaleza
sempre protegi. Vim para te fazer feliz em
tua sagrada selva e de tua parte só en
contrei ciladas. Procurei-te, mas fugiste-
me. Amei-te, com tudo odeiaste-me. Jul-
guei-te mais generoso e nobre do que re
almente és, mas hoje não preciso mais de
tua amizade, exijo teus serviços.
— Confundes-me e me irritas, velho chefe.
Alliado dos carajás, basta-me sua amiza-
20 i,«n?a> iivníocjto»«ii5<»

de e nada podes exigir de quem não são


teus escravos e na terra que te não per
tence.
— Gentio araés, é bem que meças tuas
palavras, porque, só agora vaes saber com
quem tratas. Eu sou o genio do fogo e das
aguas. Num instante posso fazer que o fo
go domine as aguas ou que as aguas do
minem o fogo. Gentio araés, queres ver
ardendo em chammas a tua selva natal e as
aguas que toda tua nação e alliados bébem?
O possante gentio impressionou-se
vi
vamente e soltou uma exclamação como
que chamando por alguem, e no mesmo
instante, um grande barulho se fez nagua,
como si fora um cardume de dourados
perto de um sebeiro, ao se lhe lançar is
cas em grande copia.
Uma grande porção de indios levantou
as cabeças sobre os camalotes de agua-
pés que pouco antes vinham rodando e en-
ganchando-se aos galhos do saranzal e
bordejando a praia.
Um instante depois, tinha o chefe sel
vagem, á sua disposição, algumas dezenas
de araés que logo se estremeceram ven-
do-se em frente dos heroes da grande ban
deira que, armados, correram immediata-
mente para o logar.
Bartholomeu Buêno não se fez de sor-
prehendido e, sorrindo para o ar, passea
va em frente do bravio araés, em que

•-
Seíiciano §aí?vno 2 1

divisou logo signal de fraqueza e, tendo se


occultado por detrás dos companheiros,
combinou com um d'elles a pratica do pla
no que pouco antes havia formulado. De
vido isso, trouxeram dahi a poucos mo
mentos, um borrachão de aguardente e de
que, á vista de Bartholomeu Buêno e dos
gentios, um d'aciuelles sertanistas despe
jou uma porção' numa cuia que trazia e
bebeu como para fazer ver aos selvagens
ser agua aquelle liquido.
— Gentio araés,— disse gravemente Bar
tholomeu Buêno--mando e não peço. In-
timo-te a mandares trazer-me de hoje pa
ra amanhan, as melhores caças, bois e por
cos de que ha em grande copia nos cam
pos, matas e catingas do teu dominio, as
sim como os melhores productos de tuas
plantações. Sou, repito, o genio do fogo e
das aguas e, si me não obedeceres, dentro
desse prazo, abrazarei as aguas que se es
tagnam ou cujas correntes se estiram até
nos ultimos confins do teu reino. As aguas
irão para as nuvens, em vapores, e todo
o verdejante paiz dos araés será em bre
ve cinza e carvão.
Um sorriso de pouco caso crispou os
roxiscuros labios do maior matogrossense
que olhos de bandeirantes contemplaram :
— Queres então prover-te de viveres á cus
ta de ardis e enganos, tolo aventureiro ?
E Bartholomeu Buêno se fez offendido:
22 Cenuo* w-atoato»MrvVS

e, bolsando uma tempestade de palavras


nesadas. ameaçadoras, desafiou os elemen
tos; declarou extincta desde aquella hora
a rjoderosa nação araés e todos os seus
alliados e ordenou :
— Despejem da agua d'esse borrachão
nessa cuia.
E log-o depois de cheia a vasilha, chegou
um tição de fogo em chammas á mesma
e, a aguardente, desconhecida pelos gen
tios, pegou fogo, pelo que, estes, presos de
espanto e tremulos de medo, cahiram to
dos, rosto por terra, protestando-lhe eter
na obediencia e exclamando: Anhangué-
ra! Anhançuéra ! (*) .
0 esperimentado sertanista, jubiloso de
haver dobrado a fronte aos soberbos gen
tios e, compenetrado de sua victoria, lhes
exprimiu o seu perdão com que atraves
saram novamente o rio, promettendo-lhe
trazerem tudo quanto exigia.
E no dia seguinte, uma dezena de ca
noas, commandada pelo senhor de Araés,
proveu de muito genero de manutenção a
grande bandeira."
— Grande Anhanguéra, a fama do teu no
me já vôa por toda a parte. Araés e Ca
rajás se prosternam perante teu poder im-
menso e, felizes pela graça que lhe fizeste,
de não inflammares nossas aguas e nossos

(II PipIm Ifflho.

-,
r ,
ÍcÍÍcíomo Qafêíne 23

campos, te abrem as portas do seu grande


paiz e te convidam a visitar as remanso-
sas tabas do seu viver. Vulto extraordi
nario, vem comnosco. Vem ver o recesso
da bôa vida, legado por nossos maiores,
que o enviado do bom rei do sol abenço
ou, antes de nos deixar para sempre.
E BartholomeuBuêno.jáchamadoo Anhan-
guéra, tendo accedido ao convite, se embar
cou, com grande numero de companheiros.
As canoas, ao impulso dos remos, desli
zaram pelo branco setim das aguas, para
o florescente paiz das lendas mysteriosas,
onde a robustez das nações legendarias,
condizendo á ostentação faustosa da terra
fecunda, lhe confirmava bem posto o no
me de Mato-Grosso.
* *
Da encantada bahia. onde começaram a'
penetrar, vinha resoando uma harmonia
longinqua e suave que se ia tornando de
mais a mais distincta e enfernecente.
Bordejava essa bahia mysteriosa a mais
garrida floração de que é capaz o solo ca-
roavef.
Por todos os horizontes que a vista de
vassava, a virginal deveza se havia feito
noiva e noiva innocentemente soberba da
eterna primavera da gleba fecunda.
A's praias, ás coloridas praias, reluzia
o ruivo pcllo dos fatos de capivaras que
dir-se-iam mansas.
24 2<n9o* inato^tí>»m><»

Ranchos de colhereiros (*) que se levan


tavam voando, faziam o céu côr de rosa
da encantadora patria selvagem.
Do lado em que o sol se ergue, canta
vam, sonorizando as ruivas praias as ro
xas auroras dos corações araés, e do lado
em que se despenha, brincavam as morê
nas carajás. nascidas para amaras aguas
e nas aguas sempre brincando.
E Anhanguéra, penetrava o paiz encan
tado das aguas sonoras, das camênas das
aves e da odorante floração, cujos natu-
raes, felizes do seu viver despreoccupado,
lhe pretenderam vedar para sempre en
trada aos extrangeiros.
O velho bandeirante, com as suas longas
barbas que os annos algodoaram, foi rece
bido em festas, numa e noutra margem pe
las filhas das selvas e desde os pequenos
até os mais robustos representantes das
nações, se curvaram reverentemente, reco
nhecendo nelle o genio do fogo e das aguas
a quem todos deviam respeito e submissão..
Depois de haver percorrido, em parte, a'
deliciosa região, tornou o velho Anhangué
ra para o meio dos seus, onde nunca mais
lhe faltou cousa alguma, até partir nova
mente para S. Paulo, porque se tornou o
idolo e o respeito das nações, como o ge
nio do fogo e das aguas ...

(I) Grandes avss cor de rosa.


CUIABÁ...
Moreira Cabral havia chega
faschoal
do com a sua bandeira á Forquilha,
trazendo para Mato-Grosso o bafejo da
vida que esperançosa agita na immensa re
gião.
Odeleitavel e pintorêsco rio, cujas cor
rentes havia vencido, estava ainda sem
nome.
Não lhe dariam o nome de rio das a-
ves, embora as multidões que fazem de
suas margens um viveiro permanente.
Não lhe dariam os nomes de rio do
ouro, rio dos diamantes, rio das esmeral
das, embora rolarem com suas aguas es
sas preciosidades tantas, que no volver
dos seculos vão enriquecendo as grandes
arcas do Oceano...
Rio deleitavel que sorri nos arcanos
de seus encantos para a terra e para o
céu da patria maravilhosa: rio paraiso, rio
Canahan, devia ser chamado.
Era na quadra das grandes lufadas.
Cardumes de piraputangas e corima-
tans e de centenas de outros peixes, su-
26 iUnSa» matòyt&»»cve5t-s

biam orio principesco ... era na quadra


em que as grótas se emmtidecem para es
cutar o marulho festivo da peixada sôfre
ga que, á porfia, se vão deleitar nas mor
nas e puras aguas da cabeceira.
A luminosa bandêira da civilização ha
via já conquistado ao coxiponés guerreiro.,
a região mysteriosa e opulenta.
Grupos de exploradores, num e nou
tro lado, percorriam um trecho da mar
gem deleitosa, por sob o saranzal amiga
que atufa e rendilha as beiras da corrente..
Uma turma daquelles sertanistas ha
via descido á praia para tomar agua.
E a cuia que um delles trazia, esca-
pou-se-lhe da mão, quando ia enchel-a e
lá se foi, levada pela correnteza sonóra.,
que se esgueirava para o pégo profundo-
E o bandeirante desapontado-:
— Cuia, bâ ... —Exclamou com sua pro
nuncia portuguesa, trocando o v por b.
E a cuia lá se foi rodando, em ligei
ras sinuosidades, lá se foi, aguas abaixo,.
cuia àquella de que se servira em todo 0
percurso da longa e arriscada viagem.
E o bandeirante, em pé, á beira da cor
rente, acompanhou com a vista a cuia ar
rebatada, até se sumir ao longo do estirão-,
Cuia, bá ...
E o bellosereno rio, até então sem
e
nome, recebeu a exclamação do sertanis-
ta desapontado e Cuiabá é o seu nome.

X
TTFTT
I 'alavanca mysíeriosa
Uma jazida riquissima havia attrahi-
do a attenção dos novos povoadores da
terra predestinada.
Isto se déra num dos intersticios do
outeiro da Prainha que partindo.. da hoje
capital matogrossense, deriva ondeante pa
ra o Nordeste, onde o São Jeronymo se
altêa como atalaia soberbo da cidade ri
dente.
Num d'aquelles desvãos, que abrem
passagem por entre morros, numa apo-
theóse festiva se altêa a chimbuveira e a
.chagueira com as suas grandes favas odo
riferas; braceja o tarumeiro, a nohre arvo
re dos nossos sertões opulentos que hom-
brêa ao loureiro flexivel, ao aricà de bella
apparencia e ás galhúdas tarumaránas ...
Alli, naquelle tempo, as cabaceiras se
curvavam sob seus vireos pingentes a es-
pelharem-se nos olheirões, de onde, aqui por
entre as arêas, alli, por entre a pederneira
rebrilhante, derivam as fitas de agua excel-
lente. que se vão precipitar, algumas de-
28 Senda» matog^o»»efwco

zenas de braças, ao relvoso plaino por on


de serpêa o aurifero córrego da Prainha.
Naquelle tempo, aquellas humildes cor
rentes requebravam por sobre um leito
granido de ouro.
O amor da recem-vinda malta aventu
reira pelo precioso metal, só se pôde aqui
latar pela distancia de mais de mil leguas
por ella percorrida, através dos nossos ser
tões bravios que encerram a vegetação
mysteriosa em sua pompa realenga; os la
gos e pantanaes enormes; as serras am-
phractuòsas e os melodiosos campos ge-
raes, cortados, em todas as direcções, por
uma rede de ribeirões, estes perpétuos, a-
quelles, ephémeros e pelos rios similhan-
tes a mares, que por si sós já revelam a
grandeza da nossa terra estupendamente
feraz.
Vindos, attrahidos pelo ouro, quasi so
mente nelle pensavam os descobridores do
fertilissimo torrão.
Haviam chegado, vencendo mil peripe
cias e provações sem fim, ao El Dorado des
lumbrante dos seus sonhos e convicções,
ao regaço abençoado das minas inexhau-
riveis.. .
E a malta, ousadamente aventureira, lo
go ao saber.pelos seus exploradores, da exis
tencia, numa ou noutra parte do caro metal,
para lá se abalava, como uma lufada im
petuosa, numa azáfama unica, esquadri-
peíiciotlO §oí?V1KS 29

nhando e revirando as pedras, excavando


o sólo, rebolindo a batêa e ajuntando, ca
da um por sua vez, ás preciosas pepitas
encontradas.

Estava destinada aquella garganta do


nosso querido morro a ser scenario de um
grande movimento, durante muitos dias,
de sol a sol.
Por um dos exploradores foi alli desco
berto muito ouro, uma riqueza assombro
sa e que parecia um sonho, e tendo elle
communicado o que havia visto, aos seus
chefes, lhes apresentou um saquitel cheio
do metal precioso que havia apanhado em
alguns punhados.
A bandeira em peso, precipitou-se em
massa, ao local e, como desesperada, doida
toda aquella gente, se apertou, naquelle lo-
gar, em delirante azafama em alvoroço fe
bril.
Ouro, mas ouro como nunca haviam en
contrado. De ouro, quasi só de ouro pare
cia ser a constituição geológica da terra
encantada.
Apanhavam-no em punhados, recolhen-
do-o ás batêas, aos bocós, aos surrões.
Dias e dias durou aquelle murmurinho'
á capta das tão cubicadas pepitas.
Quando começaram a manusear as ba
têas, já estavam ricos, assombrosamente
ricos os heróes aventureiros.
Mas, grandes veios auriferos deriva
vam para o centro da terra e, por isso, pro
cediam elles as excavações productivas.
Excavados alguns palmos abaixo do
solo, deram, repentinamente, com uma pon
ta de alavanca, grossa alavanca de ouro
que, admirados, experimentaram inutilmen
te arrancal-a
Espalhados já, depois de alguns dias
de lavra feliz, volveram todos, novamente
para o Iogar, attrahidos pela alavanca de
ouro, cuja ponta se mostrava.
Augmentou-se o numero de cavouquei
ros, mas, á proporção que cavavam, a a-
lavanca descia ...
Uma turma rendia outra, no cavoucar
apressado, afanoso, cansativo.
A ponta estava alli, rebrilhando, sob o
olhar do sói glorioso, enchendo de cubica
os corações da malta felizarda : meio pal
mo, um, dois palmos de fora e. repentina
mente se abysmava ...
Redobrava a azafama, duplicava o
murmurinho até o cahir da noite.
Muitos dias correram, naquelle cavou
car incessante, turmas após turmas de tra
balhadores.
A valia que se ia abrindo, já se havia
aprofundado muito e alargado num raio
de muitas braças, e a alavanca, quando
Sfeftciano êaí3ino 31

mais sorria a esperança e accendia a cu


biça nos corações dos mineiros, descia, ou
tra vez e se" sumia mesmo, aprofundando-
se consideravelmente...
Nova turma descia então ao buracão
profundo e continuava a excavação.
Não sabemos ao certo quanto tempo
durou aquelle covoucar incessante, aquelle
acompanhar ás profundezas a que se ia
sempre abysmando a mysteriosa alavanca.
Cavoucaram, pôde dizer-se sempre
mais afoitos, de mais a mais esperança
dos no desenterramento da barra fugidia
até que uma nota tragica pôs termo á es
perança de todos : — desabaram-se repenti
namente as barrancas do buracão, sepul
tando para sempre, em suas profundezas,
os pobres cavouqueiros.
Este facto, tendo enchido de terror os
circumstantes e toda a grande léva adven
ticia, ninguem mais ousou aventurar-se
á busca da mysteriosa alavanca que lhes
pareceu um chamariz da morte.
Do tragico buracão, hoje quasi todo
aterrado pelos enxurros do morro, ou pe
las arêas que descem do Areão, ainda exis
te eloquente vestigio na depressão que se
faz naquella viridente garganta do bello e
querido morro e nos olheirões de aguas
nuturaes, uns já extinctos e outros ainda
borbulhantes, que vão derramar seus fios
de lagrimas no seio do córrego da Prainha.
]Í^0
Rodrigo Cezar de Menezes, que pela
ambição e sede do ouro, se constituiu al
goz da população de Cuiabá nascente, des
envolvia atroz perseguição aos bandei
rantes.
Lévas de desbravadores do sertão
transpõem o rio Cuiabá, outras galgam as
serras de Leste.
Alli vae uma caravana afastando- se
da cidade, temendo a escolta que promet-
tia agarral-a, onde quer que fosse, e se
guia o rumo de onde tinha vindo, em bôa
parte, ao abençoado solo do ouro e dos
diamantes.
Foi num desses cerrados, tão vistosos,
que fazem da maior parte do territorio ma-
togrossense uma poesia perenne, foi num.
d'esses tépes onde a natureza estende ao
sol as suas alfaias cheirosas e de primor
dial encanto, que a caravana resolveu ficar.
As grandes pedras alvejavam, brilha
vam alli, sob as influencias da luz solar.
Os grandes troncos seculares, abati
dos um dia pelas grandes tempestades,
serviam de assento ou divertimento a umas
34 Senda» motogtoiscnacc»

dez creanças que se sentiam felizes em se


verem a salvo das carrancas vingativas der
Rodrigo. .
Por perto, uma senhora ainda jovemr
tendo a cabeça reclinada sobre uma gran
de trouxa, dormia, com o seu tenro primo
genito ao eólio. O pequenito, robusto pe-
raltinha, não dormia. Olhitos accesos, su
gava do seio da jovem mãe o leite suecu-
lento.
As pobres mulheres tomavam descan
so, em baixo das arvores.
Espalhados pelo sitio, os sertanejos-
exploravam o terreno, consultavam os loga-
res em que deviam levantar suas palhoças.
Lá em baixo, o Cuiabá espreguiçava as
suas aguas que iam marulhar lá, mais lon
ge, nas pequenas cachoeiras.
Horas depois, desceram os sertanejos á
praia e não levaram muito tempo a subir
com uma grande quantidade do melhor pei
xe do formoso rio que por alli passava.
— Pacús em grande quantidade, minha
bôa gente; temos a melhor comida, o me
lhor peixe do mundo...
As mulheres preparavam os appetito-
sos peixes da melhor maneira e na pró
pria banha; tão gordos estavam que foi re
servada a maior parte da gordura para
illuminação.
E', sem duvida, o pacú o melhor pei
xe do mundo. Quem lhe come a cabeça, diz;
»'e-Cvciavto §aí3vno 35

o adagio cuiabano— nunca mais sahirá de


Mato-Grosso.
Os matogrossenses se sentem felizes
e mais folgazãos, quando tomam uma bôa
barrigada do delicioso peixe.
E, por isso é que dizia um daquelles
foragidos:
'
— Já sei que nunca mais deixaremos
este logar, porque aqui viveremos felizes.
Até aqui, no curso superior do rio Cuiabá,
-apezar das tantas cachoeiras, o peixe ma
ravilhoso há em grande abundancia. For
tes crescerão os nossos filhos e viverão ao
nosso lado sempre risonhos e contentes ..

'* * *

Já as nuvens no occidente se fecha


vam, mal esbatidas pelos derradeiros raios
apolirreos.
Alli, pela fralda do cerrado, vae um
jovem robusto; ao parar ao pé d'uma li
xeira frondosa, a examina e revelando sa
tisfação intima, levanta o machado que
traz ao hombro e lhe começa a dar revi
dados golpes ao tronco, alguns palmos pa
ra cima. »

O mancebo cava. um altar no tronco


daquella arvore. Os mandantes d'esse ser
viço estão alli assistindo-o com uma ima
gem de Maria Virgem, a quem todos que
riam levantar as suas préces.
36 2cndai matoquoSM/nte*

E, em frente do altar, cavado no tron


co de umbrosa lixeira, á gracil imagem da
mais bella virgem que a luz do sol tem bei
jado a fronte, levantaram seus canticos e
préces.
No dia seguinte, estava o altarzinho
rodeado de pequenas folhas novas. Brotos
mimosos, rebentaram durante a noite, ajo-
rcando, admiravelmente o assento da pe
quena imagem.
0 velho chefe da caravana, respeita
do por todos pela sua prudencia, compos
tura e virtudes, tendo meditado sobre a-
quelle inesperado acontecimento, reuniu a
iodos, em frente do altarzinho e lhes disse
todo compenetrado :
Filhos, companheiros de exilio, vedes
o que acaba de acontecer? E' um milagre
da nossa Mãe Santissima, que nos protege.
De bôa fédémos-lhe hontem esse altar, não
tinhamos onde collocal-a e ella tão bem
o acceitou e faz a arvore brotar em torno
de si tantos raminhos, da noite para o dia.
Neste momento, a unica vacca de lei
te com bezerro novo que tinham consegui
do trazer, passa pastando, de um lado e
doutro, os mais novos rebentos dos galhos
e levantando a cabeça em frente ao altar,
abaixou-a-de novo, como fazendo profun
da reverencia á pequena imagem e sahiu
ligeiramente d'alli para continuar o pasci-
!To alhures,

-,
Miliciano ê<xt2ino 37

—Vede, bons filhos, tudo o que está


succedendo? Guardae pois, estes factos;
contal-os-eis, continuamente, a estes peque
nos que ainda os não comprehendem bem,
para que nunca se tornem esquecidos; que
passem á memoria de todos e á toda a nos
sa geração. Tu, oh l Santa virgem, em tor
no de cujo altar brotam folhas de um mo
mento para outro, faze que brote em nosso
peito o mais vivo amor por oh Virgem,

ti,

l
durante nossa vida. Senhora das Brotas
a

ficarás sendo chamada, Brotas passa ser

a
nome deste sitio que escolheste para
o

morada.
Virgem Santissima abençoou aquel-
E
a

passou mostrar quanto


la

bôa gente

a
a
e

amava.

vacca de que falamos, era unico


A

recurso de uma daquellas familias, cuja mãe


fallecera algum tempo depois que alli ha
viam chegado, deixando um pequenino no
leite da vacca era alimento
O

berço.
a
o

vida do pequerrucho, mas, tendo ella des-


apparecido, certo dia, ficou assim pobre
a

chorar de fome. pae, se pôs


O

creança
a
a

procural-a com todo empenho, tendo-a


o

achado morta num precipicio. Desespera


do pobre pae, põe sua confiança em Nos
o

sa Senhora do tronco que todos chama


vam Nossa Senhora das Brotas, acompa
e

nhado de todos, levou sua imagem até


a

logar onde jazia animal morto Nos-


o

e
38 SinSai inato^tojaíttNj.)

sa Senhora o resuscitou á vista de toda a-


quella bôa gente.
Seculos têm decorrido d'aquella data
até hoje. E, no logar em que vicejava a
arvore que abrigou a Senhora das Brotas,
se ergue uma vistosa capella, tão querida
do povo da fucturosa freguezia, uma das
mais notaveis do Estado.
aquilão soprava o frio pelo ser
tão cleshabitado : esse sertão de
poesia e grandeza, cujas planicies se es
capam como oceano, deslizam por entre
serras, sitiam penedias e sarças, se intro-
mettem aqui e alli pelas devezas e vão
beber com os nomes dos valles, campos e
veigas das aguas de caudalosos rios e tri
butarios ...
Os algentes suspiros do inverno, ris
pidos na planicie, não o eram menos nes
sas eminencias de tantos accidentes que
não são mais que continentes,- ilhas e ca
bos que, sobre o nivel desse oceano de ver
dura se levantam, ostentando perfis das
mais diversas e tocantes formas, com os
nomes de montes, collinas e serras ...
As neblinas branquejavam os pontos
onde o céu e a terra fingem eterno osculo,
e rorejavam as camparescas regiões.
Um varão, cavalgando um macho ra-
bicão, após acompanhar o curso duma ser
ra, pela fralda, parou, olhando demorada
mente para trás. ,
40 5v^vv?a» maloyio»»en»ut

Mostrava-se agitado. Parecia que uma


magua atroz lhe envolvia a alma. Trazia a
íiracollo um arcabuz de grosso calibre e
á cinta, um sabre largo e longo.
Era um viandante desconhecido. Era
essa a primeira vez que aquellcs campos
de tão doce enlevo, aquellas serras de per
fis tão bellos o viam por alli passar,
0 cavalleiro proseguiu a sua marcha,
abeirando a serrania, em cujo viso, branque
java o alvo manto das neblinas.
A tarde estava prestes a exhalar o ulti
mo suspiro.
0 vento, cada vez mais frio, rugitava a
verde coma do descampado e parecia cons
pirar com o nevoeiro denso, contra quem
talava aquella região.
E a região e seu doce esmalte, parecia
estarem a inquerir num virginio vozear :
— Oh! tu que passas circumspecto e bi
sonho, qual será o vento que te impelle as
sim, a este sertão deshabitado e invio?

A região parecia um grande leito de


princesa virgem: por docel, a abóbada ro
tunda do céu, por cortinado, a alva tela das
neblinas, por coxins, os açafates da herve-
cencia orvalhada, e por encostos, a saphyri-
ca massa das serras....
O qual varão de alma pura e
vesper,
santa, tinha já exhalado o ultimo sopro de
vida, morreu.... E a noite, sua doce esposa,
se cobriu logo de pesado lucto.
E o viandante, fatigado pelo abalo da
cavalgadura, sumiu longe, nas profundezas
do valle
* *
*

O astro, dez vezes despertou a natureza


com suas risadas de luz, dez vezes fugiu para
as bandas do occidente; veio outro dia.
O viandante vinha então marginando
um bello riacho que espreguiçava as suas
aguas por sobre um leito de seixos meú-
dos e alvos.
Um murmurio de muitas aguas vinha
a seus ouvidos, nas frescas azas do vento.
Devia ser alguma cachoeira que marulhava
além...
O cavalleiro andou mais e parou num
sitio ameno e delicioso.
E o quadro que se lhe deparava era
simplesmente agradavel e tocante.
Uma espantosa multidão de bolsas, sus
pensas aos galhos das arvores que bordeja
vam o lindo arroio, formava uma cidade aé
rea, do exclusivo dominio dos yapús.
E estas aves, ricas de plumagem, não ga
zeavam por sobre as casitas da sua povoa
ção aprazivel e pintorêsca como soem em
toda a parte.
42 Ceh3o« matoasotóênae»

O tuluxi espalhava por alli o seu cheiro


acree agradavel e cajus, ver
os lampos
melhos como rubim, offereciam sua polpa
e sueco deliciosos ao viandante que de lon
ge vinha.
Corria por alli uma estrada estreita e
tortuosa que vindo do Norte, findava á
margem do riacho, continuando e sumindo
emfim, no fundo da mata da margem op-
posta.
—O viajante não podia ajuizar de onde
vinha aquella estrada, porquanto a região
lhe era completamente desconhecida.
— Será esta a estrada que leva a Cuia
bá? Mas, ainda que seja... julgo que a uma
hora desta já tenha sido presa dos hespa-
nhóes.
E agitando o arcabuz com a sua mão
forte de soldado velho e valente, murmu
rou sentido:
— Oshespanhós!... Ah! Hespanhóesl...

0 viajor resolveu não ir avante. Uma


força mysteriosa o retinha e esta, alliada á
affeição terna que tomara adoce paragem,
o fez alli ficar.
As ruidosas palmas do oassú se offe-
receram a cobrir sua cabana e á margem
do limpido riacho que ainda hoje corta co
mo uma faixa de obsidiana crystallina e
fulgente poéticas campinas matogrossen
ses, á margem do meigo riacho levantou o
velho emigrante a sua humilde palhóça.
Erigiu nessa habitação modesta um pe
queno e engenhoso altar, com as alvadias
pedras lavadas pela corrente mansa das
aguas e, nesse modesto altarzinho assen
tou a sua companheira inseparavel : uma
pequena imagem de Nossa Senhora que tra
zia debaixo da sua tunica e que o havia
guiado atravez dos sertões.
E os labios da pequena imagem desa
botoaram num sorriso meigo que espantou
o viajante.
No mesmo instante, yapús em grande
multidão até então orphãos de vóz, rom
peram, sem preludio, a mais harmoniosa
orchestra e abandonando os quentes ni
nhos, passavam e repassavam em revoada
por sobre a palhoça que abrigava o altar.
B cantavam, cantavam.
No verde tugurio do emigrante sorria
a mais venusta aurora, a paradisiaca ima
gem da virgem dos canticos d'alma, sor
ria a imagem da virgem Maria— a ale
gria do mundo...
E cantavam, saudando essa linda Au
rora, mais encantadora que as alvoradas
de Abril, mais grandiosa que o mar, mais
fascinante e bella que o espectaculo ma
ravilhoso das noites do céu matogrossense.
A afinada lyra de gargantinhas quen
tes, traziam certamente á imaginação a-
44 VeiiAt.i tM-a-toqto»sen5iat

queljes canticos balbuciados pela lyra do


rei prophéta e ampliados pelos vates do
chrisiianismo, no perpassar dos seculos:
"Tu és o renovo do tronco de David, do
qual se elevou a flor cantada pelo prophéta.
"Elevada qual cedro sobre o Libano e
como o cypreste sobre o monte Sião.
"Tu, a palmeira de Cades e a rosa de
Jerichó.
"Tu, a nuvem prodigiosa do Carmelo
que pós termo á desolação da terra e nu
vem ligeira que entra no Egypto levando o
Senhor e á sua presença se conturbam os
idolos.
"Despedes fragrancia como o cinamomo
e como o balsamo aromatico. Exhalas sua
ve olor como a myrrha escolhida.
Balsamo derramado é o teu nome.
"Tu és a mãe do amor formoso e do
temor, e do reconhecimento e da santa es
perança.
"Tu és a flor do campo e o lyrio dos
valles; como a açucena entre os espinhos,
assim és tu entre as virgens.
"Formosa és e cheia de doçura: bella.
como alua, brilhante como o sol...

*
* *

As aves saudaram tambem o pôr-do-


sól.

A
Scliciano QaÚíuo 45

A cabana estava levantada e nella con


cretizada a origem da florescente povoa-
ção da Guia, no sertão matogrossense.
E aos primeiros viajantes que poral-
li passaram lhes contou o velho a sua
historia:
— Fazia eu parte da guarnição do presi
dio dos Prazeres, fundado em 1775, á mar
gem do rio Iguatemy, affluenie do Paraná.
Os hespanhoes, com quem estavamos
em guerra, atacaram, em l777, aquelle pe
queno forte.
Reduzido era o numero da .nossa gen
te e grande o dos inimigos.
Renhida foi a lucta. A artilharia em
continuas descargas abalava as muralhas
do forte que começaram a desabar, sepul
tando os meus valentes camaradas. Vi
me finalmente só\ Já os meus, que não es-
1
tavam mortos jaziam por terra agonizan
tes. E, quando os hespanhoes deram o ul
timo assalto, não encontraram mais ne
nhuma resistencia, porque para nós, tudo
estava completamente perdido.
E eu, depois de ser rolado para fora
do meu posto, pelos escombros que rola
vam do alto de um inclinado, consegui sal-
var-me. E, errando pelos invios sertões
protadençialmenfe protegido pela minha
Santa Guia Nossa Senhora, vim parar aqui,
onde a natureza é uberrima, onde quasi
não é preciso trabalhar para se manter. lia

r
4() Lcn3aa matoato»aen»ía

veação de toda a sorte, a maniva e fru-


ctos os mais agradaveis ha em grande a-
bundancia, o pequeno rio que por alli pas
sa está cheio dos melhores peixes.
E, na choupana do velho Iguatemy co
mo era chamado, faziam pousada os ban
deirantes que iam ás minas do Diaman
tino ou de lá voltavam e não sahiam d'el-
la sem venerar Nossa Senhora da Guia,
deixando-lhe sempre o seu óbulo com que,
mais tarde, "Iguatemy" construiu uma hu
milde capella, nucleo de uma povoação, cu
ja semente, por assim dizer, havia lança
do, sob a invocação de Nossa Senhora da
Guia.

I
^ãpssg^ç^

lenhora do livramento

se déra no venturoso povoado,


Jsto

hoje Villa do Livramento, rodeado


de ribe ros regatos, atacado de aguas
e

matacões penetrantes;
e

Empolgado, ao Sudoeste, pelos cerros


ondulosos que derivando da fonte perennal
do Bamba, vão encrespando quasi toda

a
região benéfica productiva que se expan
e

de entre osCocaes SanfAnna, até se es


o
e

barrarem ourela da faixa mimosa que


á

orla Cuiabá;
o

Emparaizado, ao Norte, pelos terrenos


adaptaveis toda sorte de plantações, por
a
a

bastos curiosos arvoredos por festivas


e

campinas que vão sitiar monte da Can


o

donga, ponto culminante de todo aquelle


o

vasto termo com sua superficie de cerca


a

de trezentas oitenta léguas quadradas


e
e

que tem por limite, desse lado» montuosa


a

região da Morraria ribeirão Pary;


o
e

Ostentando ao Poente luxo magnifi


o

co de suas matacões cantando aos ven


e

tos, ao luar ao sói poesia d'aquelle tra-


a
e
48 Vett3a» matoq/iottemeo

cto do termo, pela vóz. sonora do salto do


Brumado que agita o grande lenço de suas
aguas, como em um adeus, festivo adeus da
terra formosa ao viajante que passa.
*
* *
0 dia derivava gloriosamente.
Um viajante humilde e desconhecido,
que se não sabe de onde vinha nem para
onde ia, seguindo, a tocar um muar car
gueiro, havia vadeado os ribeirões Formi
gueiro, Pilões, Cocaes e João Leme e atra
vessava a então povoação do Livramento,
tendo-se, á entrada, provido de alguma cou
sa que já lhe faltava.
Dirigia-se pela larga estrada que leva
a Poconé, Caceres e á lendaria Villa Velha.
Passou pela rua Mataria e já havia
atravessado todo o largo que se fazia logo
adeante, sem que ninguem lhe houvesse li
gado a minima importancia.
Era um transeunte qualquer, dentre os
muitos que chegavam ou que atravessa
vam a pacifica localidade : boiadeiros e tro
peiros, emigrantes e immigrantes.
0 viajante, escarrapachado em sua ca
valgadura, levando á garupa o seu ponche
e sacco de mala, trazendo ao alção da sei-
la, a sua bôa espingarda, tocava o seu bur
ro cargueiro e ia olhando por todos os la
dos, dando a conhecera humilde localidade.
Ao chegar perto da encruzilhada dos
caminhos bifurcantes, por onde derivam
Feliciano êatômo 49

hoje as pequenas ruas do Retiro e do Tan


que, estacou o muar cargueiro.
foca-o a muchôchos o seu dono; a-
meaça-o com a táca, chegando a dar-lhe,
em seguida, algumas taeadas, mas, o bur
ro empacado, não dava para diante.
Toca-o para todos os lados, mas elle
só abana a cauda, bate as patas ao chão
e se não move.
Creanças e um ou outro desoccupado
se approximaram do logar.
O viajante desceu da sua cavalgadura
para puxar, pelo cabresto, o cargueiro es
tacado e o puxou para um e outro lado sem
que elle ainda se movesse.
Não era por fome nem por sêde. pois
havia pastado até poucos momentos antes
e descansado durante a noite, a pouca dis
tancia do nobre povoado.
Chegaram alguns mais, ao logar, jul
gando estes que o animal estivesse soffren-
do de alguma pisadura e aquelles, que es
tivesse mordido de cobra, mas nada nota
ram, depois de terem examinado o animal.
O viajante começou a dar de chibata
tio pobre cargueiro e deu-lhe muito, e o
animal somente gemia mas não desatava
os passos.
—Mas, afinal de contas, que é que le
va o cargueiro ?— perguntou um dos mo
radores.
50 CenSa» m&toçyiow/cmto

—Uma imagem cie Nossa Senhora.—


Respondeu o viajei ro.
— Descarregue, pois, o animal,— disse
ainda o morador, no qne foi applaudido»
por todos os presentes.
E o burro, depois de descarregado, deu
logo de andar para diante, a toda a pressa.-
Carregado novameifter outra vez em
pacou.
Tiraram então a imagem do surrão em
que vinha e puseram, em seu Togar, muitas
pedras, que formavam um peso muita
maior que o da imagem e da matalotagerrr
que ia de sobrecarga e o barro, logo que se-
lhe largou o cabresto, tomou espontanea
mente, a marcha do costume.
Feito parar o animal e substituido o-
novo peso peta imagem, estacou ainda, co
mo antes e não cedeu nem a chibatadas,.
nem a bordoadas, cahindo, desta vez, por
terra, gemebundo , . .
0 viajante, depois de muito lidar e de
algumas vezes chegar ao mesmo resultadoy
com a repetição da tróca e destróca da car
ga, resolveu deixar ficar no Togar a ima
gem, ainda envolta em palhas, com que
vinha encapada, para evitar estragos na
viagem, e foi ella recebida respeitosamente.
pelos habitantes do Iogar.
0 viajante continuou o seu caminho e
desappareceu, sem que jamais se tivesse
delle nem a mais vaga noticia.
Feliciano §at?ÍHo 51

Desencaparara, cheios de respeito a


sinagem.
Que olhos ! miniaturas do céu
duas
da patria,dois mimosos mensageiros, cas
tos mensageiros de Deus, vindos como pa
ra arrebatarem ao jardim de além nuvens,
das eternas symphonias, a alma simples
e sempre bôa da serena povoação serta
neja.
Prepararam então um altar condigno
á bella imagem que pôs alli termo á sua
certamente longinqua viagem e que viu,
naturalmente, que ninguem a havia de a-
mar e honrar mais que a população tran-
quilla d'àquella terrinha feliz,
Uregiram-lhe uma capella, hoje trans
formada em bello templo, o maior "de to
dos os das villas matogrossenses.
E, quando os sinos da torre branca con
vidam de todos os arredores os bons fi
lhos á préce, lhes parecem os seus sons
como o virginal accento da voz da Santa
padroeira a dizer-lhes:
"Filhos, meus bons filhos, deixae vos
sas enxadas, vossas roças, vossos enge
nhos; deixae vossos bois e cavallos, deixae
vossas casas e chegai-vos a mim, quero
ver-vos;
"Approximaí-vos de mim.meus bons fi
lhos para que me conteis vossas necessi
dades, para que me narreis vossos soffri-
mentos,
52 Scn3a> matoyzGitt-ii»c»

"Quero enxugar-vos as lagrimas, quero


alegrar-vos o coração;
"Povo, meu bom povo, deixai vossas
usinas, vossas pequenas fazendas, vossos
ranchos, vossas roças e approximai-vos de
mim."
Então, o povo intelligente, verdadeira
mente christão,afflue, de todas as cercanias
e enche a bella e querida igreja, e, com to
da a devoção e respeito, dirige suas préces
á Senhora do Livramento e lhe entôa um
hymno de amor, de supplica e de louvores ...
A LICÇÃO DO MORUBIXABA

efe
%'pproximava-se uma grande fa
zenda uma léva de indios de uma das
maiores tribus matogrossenses.
Uma india ainda moça trazia uma cre-
ancinha, lindo bugrinho de seus seis me
ses de idade, sua primogenita.
Acompanhava indio esposo era
o

a
e
primeira vez que visitava casa de civili
zados.
mulher do dono da fazenda, logo
A

ao ver creancinha india, cubiçou pe


a

a
e

diu sua mãe que lh'a recusou termi


á

nantemente dar.
fazendeira foi ao fundo da casa,
A

emquanto os outros engodavam os indios.


Logo depois, tendo sido rodeado os
indigenas por alguns camaradas, tomaram
força creancinha ájovetn mãe escor
á

raçaram da fazenda toda leva de selva


a

gens que amedrontados com os tiros que,


talvez, tão somente para pol-os em fuga
foram dados, se puzeram correr toda
a

força, perseguidos tambem pelos cães.


a

léva de indios batia em fuga pelo


A
54 £eiw)a» matoyto»Mn»co

campo fóra. As mulheres iam á frente e


os homens, atrás, para assim protegel-as

O crepusculo que o sol poente deixa


va de lembrança á terra era a imagem do
crepusculo que entrava n'alma do indio
pae, de cujo affecto haviam roubado o fi
lho innocente.
O carandazal, por onde depois de mui
to correr passavam, barulhava os seus
leques no ar, projectando suas esguias
sombras na explanada.
Pelas sombras do carandazal passa
vam as sombras da pequena léva de abo-
rigenes.
O carandá de longe, ou a sombra do
carandá, como a de todo o coqueiro é a si
lhueta do indio:
Como o d'elle, o seu perfil, como os
d'elle os seus cocares.
Os indios veem tão bem nelle o seu
porte que, quando lhes passam por bai
xo, as suas sombras confundindo-se com
as d'elles, lhes dão a idéa de que, de pou
cos que por vezes são, se transformaram
em grandes ordas.
Eram dez homens, seis mulheres e duas
creanças.
As indias ja haviam atravessado o pal
mar. A varonil cohorte principiava a atra-
^títciatto §aldino 55

vessal-o,- mas, repentinamente, parou como


que assaltada por uma idéa temeraria.
Os leques do carandazal redobraram
o farfalhar, visitados pela brisa nocturna.
As aves, á procura das pousadas, de
onde se distanciaram, passavam lestes, co
mo fléxas, disparadas na mais porfiada
pendencia e o coriangíi, symbolo da espi
onagem nocturna, pulava pela estrada, sol
tando a exclamação de que lhe vem o nome.
Uma cinta de fogo, um relampago lon
ginquo rasgon o céu, para o lado da ^fa
zenda como a setta inflammada do pae
da sua tribu, quando lançava ás feitorias
dos estrangeiros o fogo vingador.
O ardor guerreiro dos selvicolas, apa
gado desde aigumas horas pela decepção
de que foram victimas, na fazenda, se ac-
cendeu repentinamente.
— Irmãos, deixemos que sigam nossas
mulheres. Voltemos contra os tyrannos ...
Nova decepção, porém lhes veio aca
brunhar a alma abrazada instantaneamen
te, pelo sentimento de vingança: os arcos e
flechas lh'os haviam tomado na fazenda. E
não havia meio a fugirem á vergonha por
que iam passar, ao chegarem átaba, onde
o pae de um d'elles, o velho morubixaba,
contava continuamente as immorredouras
glorias da sua honrada tribu.
— E sem nossas armas que poderemos
fazer ? Julgue-nos o nosso pae e velho
56 £ew9aa m-atoa'toMtmt»

chefe; veiho, mas ainda forte e capaz de


restituir a nossa honra. Nenhuma preoccu-
pação, irmãos, confiança e a caminho !
Campinas, cerrados, matas e córregos
que perfazem a distancia que separa a fa
zenda da aldêa foram atravessados duran
te a tarde e uma parte da noite.
E a noite estava em meio quando a
pequena léva avistava os declivios do tépe
onde demora a aldêa.
0 velho cacique que a essa hora dor
mia, foi despertado pelo tropel das mulhe
res que chegavam fatigadas e afflictas.
— Pae, guerra, pae, guerra. Na casa dos
estrangeiros tornaram o filhinho de teu fi
lho. Vingança, pae, vingança !
— E onde está Jair, a mãe do meu pe
queno ? Onde está Jair que me remoça com
o seu sorriso, Jair que amamenta a auró
ra dos mais bellos dias de minha velhice?
— Jahir vem ahi, sem tua aurora, vem
com o crepusculo no coração.
0 velho cacique, sopitando a tempes
tade que se lhe ia irrompendo do coração,
ordenou silencio ás filhas da tribu para es
cutar outro tropel que se fazia perto. Eram
os indios que chegavam.
A cohorte, um instante depois se pros-
ternou ante o velho guerreiro :
—Pae, perdão. Na casa dos estrangei
ros que nos tomaram nossas -terras, ficou
a nossa honra, tomaram vosso netinho, o
cVítctano Saí2i-HO 57

bom netinho querido, grande pae, que vos


abraçava e beijava, que mais que a mim
vos queria.
— E Jair que não vejo ? Onde ficou que
me não apparece ?
Dentro de um instante se verificou,
com profunda magua, da parte dos selva
gens, um grande engano: Jair, a jovem mãe
da creança tomada na fazenda, por lá tam
bem havia ficado.
No momento em que foram escorraça
dos, atropelados pelos tiros que talvez só
para atemorizal-os foram dados de longe;
naquelle momento de confusão,em que man
daram ir correndo, na frente, as mulheres
a toda a força, não teve nenhum dos indios
a lembrança nem tempo de ver quem mais
iria atrás ou si todos iam na frente, mas
ninguem julgava que havia ficado pessoa
alguma para traz.
Viva ou morta Jair tinha ficado.
Jair, a boróra de gentil presença, Jair!
Coração bom que fazia d'ella amais que
rida filha da selva; alma candida e bella
por cuja candidez e bondade sobrepujava
todas as filhas da tribu. Morta, talvez de
morte a mais crua e dolorosa, affligida pe
la lembrança do seu primogenito, nascido
para reinar, mas já escravo desde a infancia.
Um murmurio de indignação febril
perpassou as fibras d'aquelles homens e
o peito do velho e possante morubixaba
58 £tn3ctô mato^toM^me*

se transformou emcascata rumorejante:


"Filhos da grande tribu, augustos ve
teranos do meu tempo, em pé!
"Pelos penhascos mil vezes protecto
res do nosso peito, pela lúa que nos alu
mia, pelo sói que nos aquéce, pelo cora
ção, pela alma de Jair, por Tupan, ás armas 1
"Nossa honra é prisioneira dos intru
sos de nossa terra. Liberdade queremos e
liberdade ou exterminio.
"Roubaram-nos nossas terras, limitam
nossas caçadas, roubam nossas creanças.
"Amoraveis filhos da tribu que ami
mei em meus braços e criei fortes !Os vos
sos arcos mais potentes, aos hombros vos
"
sas aljavas, a campo para morrermos !
E continuou bradando e chamando in
dividualmente cada um dos varões da tri
bu, accrescentando a cada nome: Liberda
de ou exterminio.
E quando o possante velho acabou de
falar, o seu antigo porta-recados contou
oitenta guerreiros perfeitamente apparelha-
dos para grande lacta, esperando ordem de
marcha.
E o amassa-barro ainda não havia
cantado quando a phalange guerreira, ten
do deixado o céspede natal, se derramava
pela verde alfombra das campinas . . .
II
Jair tinha ficado!
Seticiano Qafâíno 5^

Logo que se viu privado do filhinho e


no desamparo, vendo ainda todos os seus
desarmados, foi para o fundo do arvoredo
Chorar suas m aguas.
Estancou-lhe, porém, o pranto, o atro
pelo a que eram levados pelas persegui
ções e pelos tiros, ao serem expulsos da
fazenda.
Jair não podia fugir. E fugir como ?
Deixando para traz o thesouro e a melo
dia de sua vida ?
Filha das selvas, princesa venerada
dos livres guerreiros do céspede inexpugna
vel, lhes não faria écho os seus gemidos
de mãe, não vibrariam de indignação pela
escravidão do fucturo sói da gloriosa tribu
respeitada em seus penhascos por todas
as nações ?
— "Tupan, o nosso protector, impellirá
para onde a afflicção veio morar— todos os
guerreiros da tribu de Jair.
"Bom é Tupan para todos os que sof-
frem.
"Como o chefe dos ventos transporta
para outros céus as nuvens raivosas, Tu
pan bom como é, conduzirá os genios de
suas selvas para libertar o filho de Jair.

A fazenda era d'aquellas que serviam,


naquelle tempo, de escarneo á liberalidade
das nossas instituições.
A's mulheres que a muito custo con
seguiam sahir do captiveiro lhes não era
pcrmittido retirar os filhos.
Aquelles ricos-industriaes estrangeiros
que se installaram em Mato-Grosso, pro
vocavam questões com os pobres de outros
logares e terminavam por lhes tomar sem
pre os filhos que eram educados na roça,
affeitos, desde pequenos, a executar todos
os caprichos e vinganças de seus senho
res e desde pequenos já com dividas de
contos de reis, dividas essas que se iam
augmentando porque, o que recebiam, pe
lo muito que trabalhavam, nunca chega
va para occorrer ás suas insignificantes
despezas.
Ganhavam geralmente uns cinco tos
tões por dia, mas os seus patrões os ali
mentavam durante o dia com dois pratos
de carne e arroz mal cosidos com agua e
sal, bons cópos de pinga e cinco pitadas
de fumo, que lhes custavam diariamente
tres mil reis mais ou menos.
Esses homens, educados brutalmente,
escravizados desde pequenos, estavam sem
pre dispostos a executar as mais absur
das ordens dos seus patrões.
Os patrões, os tendo mandado enxotar
os pobres indios e dar alguns tiros por alto
para afugental-os e atemorizal-os, lhes de
ram a melhor e a mais divertida das incum
bencias.
§e(iciano §aí3in o 6l

Seria-ihes melhor que os mandassem


dar sobre elles algumas descargas para der-
rubal-os, porque tinham por costume di
zer, até em suas cantigas, que "rapaziada
sacudida era a que matava bugre no
sertão."

Noite a pino indicavam os astros; noi


te tambem a pino, no coração deJair.
De seus labios, havia longas horas, não
resumbrava nem o sorriso da esperança
quanto mais a esperança do sorriso.

Jair espreitava á beira


do çanna-
vial que rugitava por detrás das casas.
Havia cães na fazenda, entretanto ne
nhum latido mais havia ouvido desde que
sahira do fundo do cannavial onde se ha
via occultado desde o momento da fuga
de seus irmãos.
Guardava o fundo da casa uma cerca
de paus a pique.
A india rondou perfeita e cautelosa
mente por detrás do casarão e pulou a-
quella cerca devagar e cuidadosamente.
Descobriu uma porta aberta e por el-
la, com o coração a pulsar, entrou, esguei-
rando-se, num quarto escuro, onde tudo
62 Sew3ct>
-mcÀoi}Kii»t-tim

era silencio. Uma pequena luz, porém, sa-


hia por uma outra porta. Sem tempo a
perder, chegou a essa porta a meio cerrada.
A vela que dava a pequena luz esta
va bem perto d'essa porta. Tres redes, es
tavam armadas : na que lhes estava mais
proxima dormia o fazendeiro, noutra, sua
mulher e noutra emfim, que estava mais
além, se não mostrava quem, mas, pela
fórma, devia ser uma creança.
0 àmassa-barro cantou lá fóra a pró
xima vinda da barra do dia.
A madrugada raiava na curva do ho
rizonte... a madrugada tambem raiava no
coração de Jair ...
Pé por pé chegou áquella redinha, viu
que era realmente uma creança que dor
mia, não o seu filho, porém, o do estran
geiro escravizador.
A jovem india retirou com geito e mui
to geito, da rede, a creancinha com suas co
bertas; apanhou ainda a pequena vela que
allumiava o quarto e a apagou logo ao sa-
hir para o fundo e desappareceu.
111
se enfiaram em furia
Os fazendeiros
quando notaram a ausencia da creança
sem que ninguem soubesse dar noticia do
seu paradeiro.
Foram descobertos indicios do rapto.
0 sino da fazenda soou forte o toque
de raunir.
Dentro alguns minutos, cerca de
de
quarenta homens se agitavam no terreiro.
— Todos a cavallo Nos melhores ca-
!

vallos ! Os bugres penetraram em nossa


casa e me roubaram o uitimo filho !
Os escravos correram ao potreiro e
'dentro de uma hora estavam todos mon
tados e armados de espingardas a chum
bo e bem municiados.
Os cavalleiros foram divididos em du
as turmas, para seguirem porém, um pou
co distante de outra, peio mesmo caminho
e já de combinação para um prompto cer
co á aldêa, caso não fossem os selvagens
sorprehendidos e exterminados no caminho,
conforme intenção do fazendeiro que li
cenciou os seus escravizados para que des
sem pasto a todos os seus instinctos sobre
todos os selvagens que lhes cahissem nas
mãos.
Os dois bandos de cavalleiros iam a
meio galope.
Repentinamente, tornou nova delibera-
ração o fazendeiro: assim foi que determi
nou que a metade, á cuja frente se achava,
devia continuara carreira, seguindo o mes
mo caminho e a outra, devia desviar um
tanto de rumo para se concentrar do lado
opposto á sobranceira aldêa, afim de impe
dir a evasão dos aborigenes, caso o tentas-
m, quando se vissem impotentes sob o fo-
64 C*n3<v> -matot) to w »«<?>

go que nutrido lhes havia de infundir o pa


vor e a morte.
A marcha que este bando que tomou
nova direcção devia operar, tinha que ser
um pouco mais longa e por isso, esta outra,
que ia sob o mando do patrão teve que mo
derar um pouco a sua, para que o sitio á
aldêa fosse operado sob a acção conjuncta
dos dois bandos armados.
Decorrida meia hora de marcha, o ca-
valleiro que ia mais á frente, observou uma
mulher que ia depressa, longe, pelo ca
minho.
1
'. Avisados todos, foram destacados qua
tro cavalleiros para alcançal-a.
A mulher, porém, que ia andando ligei
ro, passou tambem a correr e logo se su
miu á entrada da mata.
Quando os cavalleiros se approxima-
vam da mata, por cujas entranhas serpe
ava a estreita senda, um globo defumo se
levantou á sua frente, seguido immediata-
mente de labaredas crepitantes, vorazes,
que os obrigaram a parar.
O sangui-sedento bando, se não ten
do demorado a chegar, sustara tambem a
marcha e não sabendo a que attribuir a
queimada que lhes impedia a passagem,
apeara e procurava inutilmente passagem
com seus cavallos pela mata a dentro, ma
ta essa onde a ramuda e espinhosa arvo
re do mal-me-quer matogrossense, pela a
bundancia e pelo viço. attestava a uberda
de do seu solo abençoado.

IV

Depois que raiou o dia, Jair accendeu


um fogo, pelo methodo indigena. Amamen
tou emseu seio, a'creança que, ainda som-
nolenta, nada extranhou e pror eguiu a via
gem, levando na mão um tição sempre fu
megante que havia de conservar fogo até
o fim, devida á qualidade da madeira.}
Dahi a espaço, ao longe.avistou os ca-
valleiros que lhe vinham ao alcance, a meio
galope.
Jair se pôs tambem a correr e quando
os cavalleiros a avistaram, já estava ella
perto da mata a que muito se tinha apres
sado a chegar.
Prender fogo aos lados da estreita sen
da, á entrada da mata, foi para Jair obra
de um instante, de modo que, quando a a-
avançada da fazenda alli chegara, já uma
maré de fogo, alargando o circulo voraz.era
um forte obstaculo á continuação da mar
cha accelerada em que vinham os caval
leiros.
Jair assoprou o tição fumegante ...
A aurora precede o dia, o dia precede o
crepusculo.
Quando, porém, na desesperada corri
da em que os cavalleiros lhe seguiam a pis-
6C )Jeu2a» mati>ato»eitt<»

ta, quando ainda depois que atiçou o fogo,


tendo continuado a correr, julgava ainda
ouvir atrás o tropel dos cavalleiros, da au
rora passou ao crepusculo o coração de Jair.
A correr, sempre a correr e, já quasi
exliausta, sahiu na planicie erma de arvo
res que se derramava para longe.
Nas aperturas daquella perseguição,
viu na erma planicie a imagem de sua alma
açoitada pelo vendaval das provações.
Parou irresoluta..
Do fundo da mata se levantava a
fumaça do pavoroso incendio que lhe con
sumia insaciavelmente as entranhas e sa
dirigia em todas as direcções. . ,

Ura ruido que parecia um prolongado


e rouco gemido que emergia do abysmo,
se vinha fazendo ouvir.
Os cavalleiros, embora fossem detidos
pela queimada, já teriam tido tempo de va
rejar a mata.
Jafr observou de todos os lados. Re
pentinamente, deudejou-lhe nos labios um
sorriso, d'esses que equivalem á mais do
ce expressão de jubilo.
H eram os guerreiros de sua tribu que
avançavam, a marcha forçada, em busca da
honra.
A esperança, — a risonha primavera do
mundo interior,— desdobrou no coração de
Jair o seu manto de esmeraldas ... •

x
y
efeticianc áaf?ino 67

Correu a filha da mata ao encontro dos


seus guerreiros que, dando com cila, estan-
cearam repentinamente.
A nabre tribu jamais havia passado
um momento de maior sensação que quan
do ouviu a vóz da sua princesa e lhe
contemplou a gentil presença.
Todos aquelles filhos do umbroso céspe
de se curvaram respeitosamente, saudando
nella a gloria e o encanto da patria querida.
O infante quetrazia nos braços era o
refém em que estava o destino do pequeno
herdeiro da va!ios"a tribu. A creança tinha
que voltar porque o grande chefe preciza-
va dar umalicção no mandão civilizado. A
grande e immorredoira gloria .de tão bons
filhos não podia ser offuscada no sangue
' .••
de amâ creança.
— Pae do filho de .íair,. abaixa teu ar
co, guarda tua setta; além da mata que es
ta á nossa frente, detidos pelo fogo, estan-
ceam os cavalleiros a que v^niós dar com
bate. R'. contra ellés que tomamos. nossas
armas, para vencer ou morrer.
A phalange guerreira, se tendo desvi
ado dó caminho, .proseguira a marcha con
tornando a mata,
'. O pântano por onde os fazendeiros e-
vitaram passar, foi preferido pelos Indige
nas, para lhes levar a mais terrivel sor-
preza. ... v-

/-
De volta, caminho de onde a cruelda*
de lhe roubara o filho, o gallinho da cam
pina, calhandra matogrossense,— pareceu
então cantar no coração de Jalr.

Os fazendeiros, tendo esbarrado a mar


cha um instante, julgaram ser de melhor
partido esperarem um pouco até que o fo
go se desviasse do caminho, ao em vez de
procurarem o lado do charco, cuja traves
sia seria muito morosa. O fogo, porém, sem
pre ganhando u fundo da mata e logo de
pois tambem o cerrado, obrigaram-nos a re
cuar. Naquella conjunctura critica, ante &
previsão de um encontro com os selvicolas.
no caminho, estando aquelles com a força
dividida, temendo o insuecesso da força que
lhes já devia ter ganho muita distancia, re
solveram tomar, a contra gosto, o rumo do
charco e lhe fazer, a toda a força a travessia,
antes que o fogo lhe levasse pelas beiras as
suas desvasiadoras avançadas, que mais
lhes haviam de difficultar a marcha.
Os cavalieiros, a meio galope desce
ram pela corixa que leva para o charco. De
repente, uma, cinco, dez, emfim, uma ven
tania de flechas gemia no ar e um, mais
outro, dentre os fazendeiros cahiram, este
com o seu cavallo e outro, deixando-o a
solta, em seguida.
Os cavalieiros, tomados instantanea
mente de pavor, fugiram do alcance das
flechas, afira de se porem em ordem para
um ataque decisivo.
Quandos os guerreiros bororos, deita
dos em linha, no capinzal, se iam levantan
do para perseguil-os, eis que se põem tam
bem em linha de fogo ea fumaça da quei
mada que obumbrava o espaço, se con
fundiu com a fumaça das espingardas.
Os tiros eram dados para o rumo de
onde as flexas partiam.
Chumbo e flechas ziniam no ar enfu
maçado e o fogo voraz, herbi-sedento, con
xinuava sua offensiva pelo campo e já se
approximava dos combatentes.
Os grandes nymbus de fumo, sahidos
dos bamburraes em combustão, se enno-
velavam no ar que estremecia ao fragor
confuso do detonar das espingardas e da
crepitação da grande queimada.
Os indios eram superiores em nume
ro e podia dizer-se que o eram tambem nas
armas.
Aquellas espingardas a chumbo, além
de serem de pequeno alcance, tinham que
se- calar por um não pequeno espaço de
tempo depois de darem cinco tiros segui
dos. E quando os turbilhões de fumo en
volveram os combatentes, nem mais um
tiro se ouviu.
Os fazendeiros, protegidos peia fuma-
rada densa, bateram em fuga, pelo rumo
da fazenda, deixando cerca de sete compe -
70 5.'<rn?a» iiiatogt0sai-M?í?

nheiros estirados no campo, mortos ou a-


gonizantes, á disposição do. fogo pavoro
so que cm linha cerrada, tudo vinha en-
cinerando.
A. noite já vinha estendendo peia ver
de alcatifa do sertão o seu manto de tre
vas, quando a phalange guerreira consum-
inou o cerco da fazenda.
Noite de terror para todos os habitan
tes do sitio. As flechas, apezar de raras, par
tindo de todas as direcções, se iam cravar
nas paredes ou nas janellas e, de vez em
quando, um tiro sahido do parapeito ou de
trás dos montes de pedras feitos trinchei
ras, feboava" pelo campo fora, como avi-
zando aos guerreiros selvagens que os ha
bitantes da fazenda alli estavam dispos
tos á mais tcnltz resistencia.
Os cães ladravam furiosamente, prin
cipalmente após os disparos das "espin
gardas.
Céo despovoado de estrellas. Só fulgu
ravam alguns representantes da Via-lactea.
Os selvagens haviam jurado : Oulivre
o filho dé Jair ou a morte do ultimo : bororo.
E por isso haviam de" luetar è luetar
com toda a coragem, com toda a energia
de que eram dotados por ser talvez essa a
unica vez que iam pelejar.
... "Livre a patria que nos deu Tu paru e
a' queremos livre para sempre.

'*,
cíeftciãiio SafíHuo 7 1

"Livre o vento que balança as fo


é
lhas; livres as aves que povoam as varzeas,
livres o trovão, o raio, a tempestade.
"Livre o fogo, quando devora os cam
pos, livres os peixes e as aguas do nosso
rio.
"Tudo foi feito livre : na terra, no ar
nas aguas ...
"Nasceram para reinar e não para es
cravos os filhos deTupan.
-
,-'

*.
*

"
*
.

Portas dentro. Uma candeia derra


a

mava uma luz tenue, fraca, muito fraca, no


pavimento, no interior da casa.
Ninguem diante das portas, uma ou
outras varejadas pelas rijas flechas dos

valentes boróros.
Encostado em uma das paredes do in
terior, dono da fazenda, tendo em posição
o

uma espingarda de dois canos, vigiava


e,

de vez em quando, entrava no quarto do


meio onde estava sua mulher filhos apa
e

vorados, temendo um provavel assalto da


parte dos Índios.
Deitado numa esteira de pripiri, dor
mia somno solto bugrinho prisioneiro
a

que, devido idade innocencia, estava


a

longe de comprehender drama que se


o

estava representando em torno de si.


— Marido, não poderemos eom os in
dios? Qfle será de nós? Não nos Valeu
a

pena termos to mau- bugrinho.


o
o
?2 &&h£qv inaiof^t^íiyíiío

—Pouca munição nos resta. Si o nosso


proprio não foi detido de qualquer modo
ou morto em caminho, antes que o sol es
teja a nado já estarão aqui, com certeza,
todos os nossos, para nos ajudar a escor
raçar para sempre os selvagens.
Tres esbeltas mocinhas, mudas e ge
ladas de terror e pelo terror unidas, pare
cia concentrarem nos olhos toda a angus
tia que se lhes aecumulara nos seios d'alma.
Estavam, desde a chegada dos selvagens a
um canto do mesmo quarto.

0 amassa-barro, o relogio do campei


ro, já desatava o seu chilrido gracioso
num dos galhos do grande tarumeiro que
bracejava nos fundos da casa.
As edenicas tintas da aurora vinham
tingindo o horizonte além...
Os fazendeiros, cada vez mais inquie
tos, esperavam anciosamente a chegada da
força que tinha ido esperai -os perto da al
deã. A munição somente restava para al
gumas cargas pelo que lhes ordenou o pa
trão que somente atirassem em caso de in
vestida da parte dos selvagens.
Esperavam inutilmente. Aquelles ca
maradas, tendo previsto com a chegada
do proprio, a triste sorte de seu patrão e
de todos quantos os rodeavam, aproveita
ram a bôa occasião que se lhes deparou pa
ia se libertarem
do infamante jugo e pro
curando o rumo de S. Paulo, nunca mais
se soube noticia d'elles.
Os selvagens começaram a pocema a-
terradora que costumam fazer para impri
mir o pânico em seus inimigos antes de
seus formidaveis ataques.
A vozeria metuenda e o sapateio rui-
doso dos oitenta guerreiros, despertaram o
-écho da florestaproxima e ao derradeiro
écho que retumbou além, succedeu o sus
piro das flechas disparadas contra os lo
cares guarnecidos.
Os valentes aborigenes mais aperta
ram o cerco.
Tudo havia sido combinado para um
assalto violento e terrivel.
De um lado a confiança nas flechas*
de outro, nas cargas que ainda restavam e
que deviam aniquilar os esforços e as pre-
tenções dos temerarios boróros.
Repentinamente, um grito possante e
indefinido, partiu do lado do campo e, um
instante depois, era a fazenda assaltada
por todos os lados pelos filhos das selvas.
Um alarido formidando partiu d'aquel
les peitos possantes, ao occuparem a fa
zenda, alarido que abafou um outro que
partiu do interior da casa invadida.
A dona da fazenda prosternada com
as filhas, no quarto do meio, levantou o bu-
grinho e supplicou misericordia.
74 Lcii3ct» iiTaíoc]rc"Wt:ir«>

O grande morubixaba empunhando a


pesada clava, mandou fazer alto aos seus
guerreiros e tendo tomado em seus braços
o pequeno suspirado da tribu, disse grave
mente:
—Mulheres estrangeiras, sangue deca-
ninana, em pé, malvadas. Onde está o che
fe dos civilizados, o senhor da fazenda ?
não estava entre os mortos, no caminho,
será tão covarde que se esconda?
Não estava entre os mortos nem entre
os feridos; o prepotente mandão sertanejo
estava escondido numa tulha de arroz. Tra
zido á presença do morubixaba tremeu di
ante d'elle. Ia ouvir a sua sentença inex
oravel.
"Estrangeiro cruel, escuta o que te vou
dizer :
"Tupan fez o sol para todos : para nós
os bons e para vós os maus.
"Emparaizou Tupan o coração das suas
creaturas dando-lhes os filhos que hão de
honrar com suas acções o sangue de sua
raça.
o que nos deu Tupan; és Um
"Roubas
perverso só digno de lastima e de com
paixão.
— "Toma, Jair, abraça o teu peqeno sol.
Em tua alma desceu a noite, agora raiou
o dia..
A patria do eterno sol pareceu vir de
morar no coração de Jair. Em seus more-
Seliciano 'êaiSino 75

nos labios doudejou um sorriso, desses


sorrisos ternos e mysticos, sorriso de mãe
que sahia da oppressão, da magua e da
saudade, sorriso que resumbrando amor,
trescala o que de mais nobre tem a alma.
Um chovisco de lagrimas orvalhou a
hirsuta cabeça do filhinho da prendada
filha da selva e um soluço extremeceu o
coração da humilhada mãe patrôa. d'esses
soluços que só podem ser. producto da mais
ingrata sensação ou da mais sorprehen-
dentes alleluias...-
— Extrangeiro, — disse gravemente o
morubixaba— os filhos da grande tribu não
vieram em tua habitação sinão para bus
car a honra da sua raça. Tua honra, po-
nho-a neste teu filhinho que te trouxemos;
eritrega-m'o e vae búscal-o depois na nos
sa taba por bem ou por mal, pois não que
remos escravos.
Os guerreiros lá foram cantando, cam
po a fóra as alleluias da victoria, levando
por trophéú o innocente filho do fazendei
ro, cuja familia ficou em prantos.

* *
No dia seguinte, humilde e abatido,
chegava áaldêa o dono da fazenda acompa
nhado de dois capangas desarmados, levan
do ao -velho cacique, a titulo de presentes,
correntes de ouro e muitas outras preciosi
dades.
76 £*n3o9 -mcUoyvoiSínetc

O velho chefe recebeu o seu malfeitor


com as mais vivas demonstrações de ale
gria. Ordenou que fosse preparado um fes
tim para celebrar a sua chegada e, ao ar
livre, em baixo do carandazal que derra
mava a sua sombra em torno da sagrada
taba, dansaram as indias moças as suas
bellas dansas, sob o estrépito das casta
nhólas e ás soadas das flautas.
Trouxeram aves assadas, trouxeram as
mais queridas fructas da quadra e bôa
chicha que desperta e fortalece e todos co
meram e beberam.
Terminada a refeição e com elia as
dansas, mandou o vetho chefe entregar a
creança ao fazendeiro e lhe perguntou :
— Extrangeiro, é bom privar os paes-
dos filhos que possuem ? E' bom alterar a
ordem estabelecida no mundo pela sabe
doria de Tupan ?
O fazendeiro abaixou a cabeça mur
murando envergonhado :
—Podem ficar tranquillos os filhos da
grande tribu que não mais lhes tornaremos
a tomar os filhos, nem a fazer-lhes perse
guição alguma.
E, tendo-lhe deposto aos pés os presen
tes que lhe haviam trazido :
— Acceita estes presentes como symbo-
lo da nossa amizade.
E todos os filhos da tribu se puzeram
a rir ao ouvirem estas palavras.
/ '
Síttcituto Sofêiwc 77

E o ancião,
ferido no seu orgulho de
monarcha das selvas matogrossenses, a-
aprumou o busto lançando ao fazendeiro
um olhar austéro. Um sorriso incolor, sor
riso de irreductivel desdém lhe crispou os
labios morenos, acostumados á pronuncia
grave da sua audacia irreductivel e so
berana :

— "Extrangeiro, Tupan creou todas as


coisas; fez do mundo uma patria de reis
e reis são todos os filhos da tribu.
"Tupan creou as aguas não para que
ás costas supportemos seu peso, mas pa
ra que nos matem a sede, nos alimpem,
supportem nossas canoas e as cruzemos
como reis que somos.
"Tupan desfraldou por todas as direc
ções as amplas campinas, dando-lhes acôr
do que mais ha no coração da mocidade—
a esperança; não para que ella se debru
ce sobre nossos hombros, acabrunhando-
nos com o seu peso, mas pana que sirva de
tapete a este grande salão do nosso reino,
cujo pavimento não tem baliza e cujo te
cto é o rotundo céu azul.
"Creando Tupan os metaes, creou tam
bem as pedrarias.
— "Brilham os astros sob os pés de Tu
pan, devem brilhar tambem o ouro e os dia
mantes sob os pés dos reis da terra, mi
niaturas de Tupan,
78 £*k3o» mato^toxumcs

"Os filhos da Tribu arrancam as plu


mas das araras que lhes passam por cima,
e os extrangeiros, sem um dedo de scien-
cia, arrancam de baixo da terra, de baixa
do pedestal do seu immenso throno tudo
quanto brilha e lhe illumina a planta dos
pés.
"Transgressor da lei natural, reversor
do papel dos seres, que entendes., que os
reis da terra se devam vergar sob o peso
do que devia jazer sob seus pés: ouro e di
amantes; põe ao hombro teu filho, toma tuas
joias, acompanha o curso do sol, segue
teu rumo...
E o fazendeiro, tendo deixado a aldêa,
levando seu filho ao collo aproveitou a lic-
ção do morubixaba e passou a ser mais
justo, mais clemente e sua prole povoa ho
je aquelles grandes sertões e suas fazendas
sempre prósperas, regidas pela justiça,
muito promettem ao fucturo da maravilho
sa terra,— gigante que dorme no. seio da A-
merica o somno, de monarcha, embalado
pela esperança de dias melhores.
I—,ra o dia que succedeu áquella noi
te tenebrosa, noite feia e de ingrata memo
ria, em que o olvido ao primeiro e maior
dos mandamentos, produziu na cidade mo
ça um grande cataclysmo moral.
Do Bahúao Porto, do Mundéo ao La-
va-pés, a acção nefasta dos nossos maus
hospedes se estendeu com toda a cruelda
de de que podem ser capazes os individuos
que a sede do ouro cegou é corrompeu.
—Morram os pés de chumbo !
- Era este o grito que rompia de todos

os bairros da cidade, naquella noite em que,


os aventureiros, como que esquecendo-se da
hospitalidade que recebiam dos matogros-
senses, se arvoraram senhores em casa a-
lheia e moviam seria perseguição dentro da
cidade, aos portugueses, nossos amados ir
mãos.
—Morram os pés de chumbo! — Grita
vam amotinados, forçando as portas das
casas, em Cuiabá; gritavam os arruaceiros
em horrorosas e infrenes depredações pe
los quatro cantos da cidade.
80 !U:u3aa matoatoa^euoe»

Ao romper d'alva, alli, pelas bandas do


Cae-cae, se viam tres cavalleiros, em rigo
rosa vigilancia, com a cabeça levantada, ou
vidos attentos. Aguardavam alguém ou al
gum signal.
Sem muito tardar, um assobio agudo
se fez ouvir. Os cavalleiros se movimen
taram, sem saber, com tudo, o rumo que
deviam seguir.
No mesmo instante, um vulto branco
relanceou lá em baixo do cerrado e soltou
um ontro assobio.
Era um outro cavalleiro que se tinha
destacado da companhia d'aquelles, para
examinar certo ponto.
Os tres que alli, de outra banda se a-
cliavam, cedendo toda a rédea aos seus ca-
vallos, galoparam em direcção ao compa
nheiro e, no mesmo instante, sahiu de u-
ma moita um quinto cavalleiro que ganhou
a todo o galope o rumo do Pary.
—Morra o pé de chumbo !

— E clle!...
—Pára ou morre !
Os perseguidores tendo tomado a to
da a brida a direcção do perseguido, ti
nham confiança na força e agilidade dos
seus cavallos.
E aquelle homem perseguido era um
bom português, accusado ao poviléo amo
tinado de haver enterrado grandes frascos
Scdcic.no §al2ino. . . 81

de ouro que possuia, de uma lavra de al


guns annos.
Aquelles perversos queriam agarral-o
para que lhes dissesse o logar das suas
riquezas e depois matal-o.
Desde as primeiras horas da noite lhe
davam busca; encontraram-no já pela ter
ceira vez, mas o seu cavallo, de puro san
gue matogrossense, franzino, mas veloz e
forte, quasi que voava com elle, quando
descoberto...
O perseguido parou um instante pa
ra ver si avistava os seus perseguidores e
julgando ter-se distanciado muito d'elles,
moderou a marcha para que não ficasse
extenuado o seu cavallo.
Pouco depois, porém, bateram-lhe per
to. Sentiu mesmo o bafo calido das mon
tadas dos seus incansaveis adversarios e
soltou de novo as rédeas . . .
Terreno ondulado e pedregoso, aquel-
le. Perseguidores e perseguido, lá iam em
sobe-desce, em péga-não pega.
atravessou uma estrada
O português
beradeou uma moita para lhes dar um en
gano; tomou porém, lá mais adeante. a mes
ma estrada e descendo por um areal, por
baixo de umas arvores, chegou num peque
no banhado, onde o cavallo parou para
beber, embora o correr das espóras do seu
dGno.
82 sítn9o» -ntoto^tosMtt»*»

Quando acabou de beber, ja sentia, de


novo, o ruido furioso dos cavallos que lhe
batiam á retaguarda.
Correu ainda. O clarão auroreal já tin
gia a barra do céu.
O fugitivo estava a todo o instante sob
as vistas dos inimigos e, tendo deixado ou
tra vez aquella estrada, que passava a cor
rer por utn pequeno campo, para ganhar
de novo o cerrado, deu um encontrão com
um dos perseguidores, dando os carallos
grande peitorada, rolando e cahindo com a
cabeça contra as pedras o perverso.
0 perseguido, correndo sempre as es
poras ao seu cavallo, ganhou bóa distan
cia aos inimigos que, por alguns instantes
pararam para reconhecer aquelle que ha
via cahido.
0 dia tinha raiado. Bello dia de sol,
dia de céu azul.
Aquelle homem havia cahi lo sem sen-
t'doc, mas os seus companheiras que nào
tinham tempo a perder, deixaram-no lá, pe
lo cerrado, e seguiram, ainda com mais em
penho, ao alcanço do bem homem tirador
de ouro que ora corria a toda a brida, o-
ra encurtava as rédeas ao seu c;oallo, tal
a confiança que tinha em sua ligeireza.
Neste momento, tendu certeza de ha
ver ganho bôa distancia aos seus inimigos,
parou para observar e escutar algum tro
pél. E o tropel que ouviu estava por perto

■,*,<

-•
e parecia que era então de maior numero
de cavalleiros. E eis que, tendo-se posto de
novo a correr, se lhe depararam á frente al
guns cavalleiros que vinham do Pary, e a*
medrontado, julgando. serem elles os seus
perseguidores, rodou o cavallo para a es
querda, mas. á vista do carautazal que ahi
se enfeixava expesso, intranzitavel, ia cor
rendo para o outro lado, quando dá frente
a frente com os inimigos a quem dando
mais uma vez rápido engano, num zig-zag,
passou por entre elles mais que depressa
Atravessou ligeiramente um arvoredo e deu
com um caminho, á cuja margem, uma ve
lha cruz de madeira abria os seus mise
ricordiosos braços como que para abraçar
o christão perseguido.
0 cavallo parou de repente; estava ex
tenuado de forças; cahlu afinal, com o ca-
valleiro que, graças á sua agilidade, nada
soffreu.
. Os perseguidores já vinham ainda ou
tra, vez perto. O tropel dos seus cavallos
íá se ouvia perfeitamente e o pobre per
seguido,, vendo-se completamente perdido,
se resignou a morrer, mas morrer abra
çado com a cruz.
Aquella cruz de madeira, plantada um
dia á beira da estrada, para indicar aos
transeuntes que um christào chamado às
contas finaes por Deus, entregou seu cor
po álli, ao pó de que foi formado, aquella
34 CrnSas inatocj£da>ciix^

cruz sacrosanta foi o oásis de sua alma


quasi desesperada pela afflicção.
E o- homem, abraçado áquella cruz an
tiga, com o coração desfeito em preces,
sentia o orvalho do céu descer em sua po
bre alma.
Confiante na . protecçãq da cruz, ne
nhum medo teve dos seus inimigos que
tendo Ic^o chegado, sustaram a corrida.
Estavam quasi pisando o cavallo do
perseguido e nem este nem o seu dono
que se achava a uns dez passos adiante,
podiam ver.
Procuraramos rastos do cavallo para
verem si havia subido ou descido o cami
nho, mas os mesmos rastos só vinham até
á beira da estrada : não continuavam nem
para diante, nem para qualquer dos lados.
Os perversos ficaram admirados, es
pantados, assombrados . . .
Os cabellos começaram aarrepiar-lhes
na cabeça; negro pavor começou a apode-
rar-se (Telles e uma sombra mysteri-
osa. começou a errar pelo chão,' sombra
de homem ! As corujas começaram a can
tar, os cavallos a espirrar, cheio de certo es
panto e os. malvados, sem dizer pala
vra alguma, fugiram como impressionados,
aterrorizados, procurando o rumo da cidade.
O homem se viu livre do perigo. A Cruz
foi o oásis da sua alma; a cruz foi o seu
conforto; a cruz, a sua salvação. E, ajoelhan*
3'cticiano Ba(ciuo 85

do-se ao pé cfella, recitou muitas orações


e cobriu-a de flores. E mais tarde, quando
entrou na cidade e ficou de posse, outra
vez, das suas riquezas, distribuiu parte d'el-
las entre a igreja e os pobres e quando lhe
perguntavam o seu nome, respondia: Um
devóto da Santa Cruz, porque foi elia, no dia
do mal, — o oásis de minlValma . . .
& EfllfâiEift 28 íSDii
gra uma vez um pequeno indio, de
seuá onze amos mais ou menos,
que trouxeram de um aldeamento para a
cidade.
Bomzinho como era, depois de haver
recebido o baptismo, fizeram-no frequentar
uma escola, onde todos os seus collegas,
á primeira vez que o viram, ficaram es
pantados, devido trazer o queixo furado e
duros e tesos cabellos que parecia terem
declarado guerra ao céu...
Alumno comportado. A principio se
mostrou de cabeça dura, porém algum tem
po depois, se foi desenvolvendo intellectu-
altnente, de modo a causar satisfação ao
velho mestre que lhe nào chegou a passar
nem um cascudo quanto mais... a palma
toria.
Aprendeu a ler e a escrever, chegou
mesmo a fazer a caixaria que era quanto
bastava para se ganhar a vida naquelle bom
tempo de consciencia e honra, mas os seus
88 ScnSa» 111j{0Cjt055ÍM-55e

educadores pensavam em envial-o á Corte


para continuar seus estudos e, tirar o di
ploma de "sem serventia" que era como
chamavam as cartas dos raros que se
formavam, porque, para os nossGS cam-
ponezes ninguem tinha serventia, si não
soubesse puxar a enxada na roça, ou a-
bolear o laço no campo.
Elle se estava tornando um rapaz de
sociedade, como se diz, e havia tomado tan
to gosto pelos divertimentos da cidade que
não perdia mais nenhum d!elles e mesmo
já sabia dansar.
Tornara-se um bugrinho cidadão e pa
recia haver se esquecido completamente
de sua meninice selvagem, de sua origem,
da sua floresta natal.
'
Era de tarde. Na cidade havia grande
festa promovida pelo divertido militar de
grata memoria que- governou a nossa então
Provincia, por aquelle tempo. Os convivas
banqueteavam e á noite ia haver baile.
O rapaz, depois de tomar parte no ban
quete, voltou para casa, sahindo, logo em
seguida, para o fundo aberto da mesma.
Era o fim da secca.O céu se tornara
brusco. Um vento fresco começava a soprar
lá do Sul e uma forte trovoada annunciou
ao povo matogrossense os derradeiros dias
da secca.
Não se pôde resistir a sensação que- as
primeiras trovoadas nos despertam. E tudo
cUcticlano §af3ino 89

acorda e se agita; ha um pronunciamento


indefinido na terra c nos ares e os cora
ções pulsam para os amores que estão lon
ge e attraem as saudades do passado.
As primeiras trovoadas 1 Quantas pro
ezas, quantos feitos dignos de memoria não
têm sido realizados sob o seu terrivel in
fluxo !
Neste, é o coração que cria azas, o a-
mor que reverdece; naquelle, a coragem que
vulcaniza o peito e a phantasia que tinge
das cores da poesia todos os seres da cre-
ação.
Cá, pela grandiosa terra, o lavrador
na roça e o vaqueiro no campo, soltam
brados de satisfação; o gado faz seus ro
deios mugindo festivamente. Haumaanar-
chia de vozes no ar, um revolutear de a-
azas; desparam de toda a parte veados e
antas e o tigre, a tyranno da floresta res
ponde ao brado de guerra dos elementos
corn seus urros pavorosos . . .
O jovem indio foi naquelle dia, victi-
ma, mais do que nunca, d'essa sensação em
polgante e poderosa, naquelles momentos,
em que o passado, visitando por um ins
tante o coração, parece vibrar a sua har
pa mysteriosa e d'ella tirar uns accordes
de entre a alegria e a tristeza e deixar a al
ma empregnada do que d'elle somos de
positarios : as lembranças, as saudades.
Viéra-Ihe, num Instante, toda a lem
brança do seu antigo viver selvagem e pre
feriu um dia de vida entre seus amores a
toda uma longa existencia de viver cidadão
e tendo sahido pelo fundo da casa, tomou o
rumo da região longínqua das selvas gran
diosas, onde havia nascido, onde tinha paes
e irmans e onde quis ficar para sempre...

, -

J
a^3) — —o— —@u-@u
t t

Coração de escravo
Senhor de muitos escravos, estava
seriamente furioso e passeiava pela frente
de dois dos seus carrascos que se acha
vam em pé, tendo nas mãos terriveis chi
batas.
—Escravos, força e valor, vergastem o
miseravel que derrubou uma arvore da mi
nha mata para tirar mél. Força e valor,
derrubem no, quero vel-o retalhado, a ver
ter sangue. Escravo passar a mél?!...
Escoltado por dois companheiros de
servidão, chegava um vistoso crioulo, tra
zendo nalma a triste sombra do temor e
das duvidas.
Amarrado pelo pescoço a uma arvore
do páteo do grande sitio, exclama:
—Meu senhor. podeis fazer de mim o
que quizerdes, sou um misero escravo.
Eo senhor ordenou o açoite:
—Chibata, chibata sobre o tirador de
mél.
E as chibatas começaram a estalar no
corpo do infeliz escravo
92 Ílett3a» iwoío^«sssíH»e»

Emilia, moça de quinze annos, correu


immediatamente para perto, do seu
pae :
— Papae, perdoa o pobre Gualberto
que me carregou quando eu era creança.
Papae, perdoa o Gualberto que me ensinou
a andar e a falar.
0 senhor dos escravos, màu pae de
familia, coração duro, levou a bôa Emilia
a pulso, para dentro da casa e a fechou
num quarto.
—Queres contrariar-me, maldicta? Fi
lha tem deveres, mas não direitos ! Fica
no escuro com os morcegos.

— Chibata, chibata
no escravo que quer
passar bem,extrahindo mél da minha mata I
0 corpo do infeliz Gualberto já esta
va todo cortado e deitava sangue em abun
dancia.
Um e outro escravos que vinham che
gando, passavam de largo, atemorizados e
de cabeça baixa. 0 seu senhor era violen
to e cruel; mandava açoitar seus servos
por um simples capricho ou por qualquer
dá cá aquella palha. Si os seus escravos
tremiam diante d'elle, os membros de sua
familia o não receiavam menos.
0 infeliz cahiu sem forças, todo dila
cerado e gemendo tristemente.
— Agora basta. Levem-no d'aqui, dêm-
lhe um banho de salmoura, não mais ha
de querer tirar mel.
0 bárbaro e poderoso senhor, foi ao
quarto onde havia prendido sua filha, a re-
prehendeu e a ameaçou brutalmente por
lhe ter pedido que perdoasse o seu servi
dor. Esta o ouviu calada e de cabeça baixa
e sahiu da sua prisão.
O homem terrivel tomou o seu cavai-
lo e sahiu offeguento, e preoccupado a ga
lope. Ia correr os campos e as roças mais
próximas. Ia, como de costume, não tanto
para inspeccionar os trabalhos dos seus
numerosos escravos, mas, para ter o gos
to de castigar alguns d'elles.
Emilia foi immediatamente ao rancho
onde gemia o seu escravo predilecto e co
meçou a tratar d'elle da melhor maneira e
a toda a hora lá estava, porém, escondi
da de seu pae que não consentiria, certa
mente, em semelhante tratamento. Mas E-
milia amava muito e muito o seu bom Gual-
berto que tanto cuidado teve com ella na
infancia e que tantas satisfações lhe vi
nha proporcionando na mocidade.
O rancho de palha onde estava o do
ente era um dos menores dentre os que
ficavam á beira da mata, ao fundo da lu
xuósa habitação do rico sertanejo.
O doente chegou a ficar muito mal, po
rém, Emilia, foi incançavel em lhe minis
trar os seus cuidados; não poupou esfor
ços para o seu completo restabelecimento;
94 SU/nSa» matojtcw»eníw

decorridos alguns dias, estava completa


mente fóra de perigo.
Mas o senhor dos escravos andava
seriamente desconfiado. Notava a ausen
cia de sua fiiha e julgou que estivesse
frequentando o rancho do seu antigo ser
vidor, para cural-s. Não disse, no entanto,
nada a ninguem e, tendo mandado buscar
o seu cavallo, deu ares de quem ia empre-
hender uma longa viagem. Partiu.
Em uma moita que ficava de outro la
do do rancho e não a muita distancia, foi
elle ficar em rigorosa vigilancia.
A tarde ia expirando ...
A' luz do sol poente reverberavam os
azulejos da fachada da luxuosa habitação
sertaneja.
0 terrivel senhor, depois de ter obser
vado o que desejava, ou melhor, tendo vis
to Emilia entrar no rancho do escravo, cor
reu as esporas ao seu cavallo e, tendo che
gado á roça proxima, chamou tres dos seus
escravos e com elles, se pôs de novo de
espreita.
A bôa moça, nesse instante, estava
perto de um pequeno fogão -que levantava
uma fumaça ténue. Ora assoprava o fogo
e ora mechia uma panellinha de barro. Pro
vou a comida que fazia ao doente e descen
do a panella, levou-a para dentro do rancho.
Nesse instante, já estava meio escuro
e o senhor que já havia instruido os escra-
SMUvcmo Qatdvno 95

vos que trazia comsigo. sobre que deviam


o
fazer, correu, seguido por elles, contra a
palhoça e fechando-lhe a pequena porta por
fóra :

— Fogo sobre o rancho ! Morram esses


desgraçados !

Dois gritos se levantaram e morreram


lá dentro. Num instante, as palhas do ran
cho crepitavam sob a acção do fogo. Uma
grande chamma se levantava, em forma de
pyramide para o céu, depois se veio incli
nando, pelo effeito do pequeno vento que
começou a soprar, mas esse sopro foi o pre
nuncio de um grande tufão que. um minuto
depois, assolou furiosamente. ..
Faiscas incandescentes voavam por to
da a parte e as linguas das chammas, alon-
gando-se, communicaram immediatamente
b incendio a outros ranchos e, por sua vez,
tambem as fagulhas que voavame, m tor-
vellinho, levaram as iras do incendio ás
casas de telha, chegando por fim, a ser
attingido pelo fogo, a propria habitação do
cruel senhor.
De toda parte sahia gente correndo
a
com potes d'agua; toda a grande fazenda
estava alvoroçada e aterrorizada.
Os escravos que ficaram para dormir
nas roças, vieram correndo, tendo avista-.
do o grande fogo,
96 JusmScw tnatoatoaetv»e»

Do lado de dentro do rancho de Gual-


berto, braços fortes brandiam um macha
do, cujo gume cahia de rijo na porta.
Alguns formidaveis golpes deram com
ellano chão e dois vultos, um de homem,
outro de mulher, appareceram, em pleno
clarão das chammas e, no mesmo instante,
desappareceram por entre o fumo expesso
e quasi asphyxiante do incendio indomi-
navel . . .

0 tufão alimentava, de mais a mais o


incendio. A vasta fazenda foi transforma
da numa montanha de fogo.
Inauditos foram os esforços dos se
nhores e de toda a escravatura para sal
var, ao menos o que havia de mais pre
cioso, na luxuosa habitação, mas tudo foi
baldado.
As casas visinhas e os ranchos, foram,
em pouco tempo, transformados em um
montão de cinzas e o grande edificio, a-
sylo do fausto, da riqueza, do orgulho eda
crueldade, ardia, ardia, numa coma mene-
ante de fogo vivo, que tomava todas as po
sições.
Ardeu, durante toda a noite, aquelle fo
go iracundo, raivoso, até que, do grande
edificio, não ficasse pedra sobre pedra.
Emilia, acompanhava o seu escravo
que. fugia para o rumo de Minas-Geraes.
Gualberto levava como unica arma o
seu machado com que, em alguns fortes gol-
ifeticiàno §atdin« 97

pes havia lançado por terra a porta da sua


casa, machado que havia de querer guardar
por toda a vida, pois, com elle havia ex-
trahido um favo de mél silvestre, por cu
jo crime fora tão barbaramente castigado.
Tendo viajado algumas leguas, arran
jou um commodo á sua Senhora, á beira
da mata e ambos se descansaram até o
romper d'alva.
Logo, pela manhan, encontraram um
burrinho daíazenda que havia meses estava
fugido. Qualberto, a custo o prendeu e nel-
le fez montar a sua senhora e assim. pu
deram andar mais depressa.
Muitos dias durou a viagem; chegaram
a um povoado de Minas-Geraes, onde fi
xaram residencia.
Qualberto, trabalhava para sustentar a
sua senhora e, trabalhador como era, pôde
logo ajuntar algum dinheiro de economia,
mas tudo entregava á sua senhora, a quem
venerava como santa.
Chegou um dia naquelle logar um mis
sionario catholico que alli se demorou al
guns dias. O sacerdote trouxe para aquelle
logar uma grande nova: annunciou ao
povo o confortativo decreto da extincção da
escravatura no Brazil.
Não havia -mais escravos.
Cidades, villas, sertões, tudo era festa,
cantavam os pobres infelizes os canticos
da liberdade.
9$ i*n^o5 matoytOMewtav

Annos correram.
Gualberto, tendo deixado bem ampa
rada a sua bôa senhora, foi ver si ainda
existiam os paes de Emilia, porque correu,
por aquella paragem, a noticia da sua gran
de ruina e completo abandono.
Montado no burrinho de sua senho
ra, chegou disfarçado, depois de alguns
dias de viagem, pelas visinhanças do sitio.
Nem uma só das habitações que por
alli havia, encontrou mais, porquanto, só
existiam os seus vestigios.
No logar onde se levantava outr'ora o
grande sitio do seu soberbo senhor, somen
te as ruinas do grande incendio se viam,
cobertas de hervas damninhas.
Tudo tinha desapparecido.
Gualberto, parou, esquecidas horas, no
logar e, comparando o que foi e a que esta
va reduzido então, sacudiu a cabeça e sus
pirou :
— Como se acabam as glorias do mun
do !

ex-escravo desceu pela encosta do,


O
monte que se levantava por perto e tendo
chegado á beira da estrada que levava ao
povoado que ficava d'ahi algumas léguas,
encontrou um ranchinho de capim, onde
uma velha fiava algodão, emquanto um ve
lho de longas harbas brancas assava ba
tatas, num pequeno brazeiro.
—Deus lhe dê bons dias. meu velho.
— Seja bemvindo cavalleiro. Apeie, é
servido comer do pouco que mal me chega
a mim e a minha mulher?
—Obrigado, somente quero descansar-
me á sombra do vosso rancho um pouco,
venhoj de muito longe. Não me dá noticia
do rico senhor que habitava outr'ora este
sitio?
—Ah! esse senhor é morto, desde mui
tos annos.
A velha, tendo encostado a um canto
o seu fuso, passou a olhar para o viajante.
—Morreu? Deus dê á sua alma o e-
terno descanso.
— Assim seja, meu viajante, devemos
sempre pedir a Deuspelos mortos. Mas, en
tão não é servido comer comnosco estas
batatas ?
E ia descascando as cheirosas batatas
doces que eram umas, roxas como a berin
gela e outras, amarellas como o açafrão.
—Não, obrigado. Tenho comida bas
tante, na garupa do meu burrinho.
A velha, de vez em vez suspirava e o
velho correspondia a estes suspiros, triste
e com pronunciado acabrunhamento.
Os anciãos depois de come; aqueljas
batatas se sentaram, perto de GuaiOcrto. ris
te, tirou do seu alforge, uns pedaços de do
ce e Ih'os offereceu.
—Oh ! obrigado, Deus o pague, estamos
vivendo, quasi exclusivamente de esmclas
1 00 Senda» nvatojto»5un»e5

dos viajantes, mas creio que não iremos


muito tempo assim, porque já temos che
gado ao fim de nossa vida. O mundo é is
to .. . éifto... Mas porque perguntas do
Senhor que antigamente vivia nestas pa
ragens ?
— Foi meu Senhor, e por isso vim vêr
se ainda existia.
— Foi seu senhor ? Então teve tão máu
Senhor? Lamento seu passado, meu viajan
te, porque avalio o quanto soffreu durante
o captiveiro. 0 castigo de Deus desceu so
bre elle. Seu grande sitio foi preso pelo fo
go, seus escravos fugiram, abandonaram-
no. O soberbo e incomparavel perverso fi
cou irremediavelmente perdido e morreu,
completamente desamparado. Pobre ! e sua
filha, em terra tão distante, não sabe si já
é orphan !
O velho abaixou os olhos e a velha le
vantou a cabeça :
— Mas elle deixou filha ?
—Sim, uma filha, e esta mora longe
daqui, em Minas-Geraes.
— Mas está bem certo d'isso ?
— Senhor,embora já brilhar, desde mui
to tempo, o sói da liberdade, em nosso im-
menso Brazil, eu continuarei sempre escra
vo voluntario d'essa moça que respeito
mais do que si fosse minha filha, que ve
nero como santa e que me chama Pae
Oualberto
Sreficiauo §alõine lOl
— Oualberto !

— Gualberto !

— Emilia?!...
Naquella agri-doce exclamação, Gual
berto distinguiu, com pasmo, a voz rouque-
nha do seu antigo Senhor.
— Gualberto, vive ainda a minha Emi
lia ? Você me tem perdoado ? De você e
de minha filha somente mui vagas e des
encontradas noticias tenho tido, apezar de
ter plena certeza de que escapou com el-
Ia da grande desgraça a que os quis sub-
metter, quando cego pelas fallacias d'este
mundo, fazia das mesquinhas vinganças
uma das partes integrantes da honra.
—Mas, a que misero estado ficou redu
zido o meu antigo senhor !
— Assim se acabam as glorias do mun
do, Gualberto, não extranhe. A riqueza sem
virtude conduz o homem á maior humilha
ção. Eu te disse que o soberbo senhor des
tas terras morreu, sim, é verdade: morreu
para a gloria e para o mal e quem nelle vive
nãoésinãoum pobre humilhado, para dizer
aos ricos que passam por esta estrada que
Deus humilha o soberbo e exalta o humil
de, para lhes dizer finalmente, que tudo no
mundo se não aproveita, tudo desapparece
a não ser a virtude e a pratica das bôas
obras.
Gualberto, mui compadecido do misero
estado dos seus antigos senhores, tirou do
102 2cnèa9 ■matoytomvnae

sacco de viagem uma carta escripta por


Emilia a seus paes. Essa carta era curta,
mas expressiva: convidava-os a irem para
sua companhia, em Minas-Geraes, onde ha
via recebido noticias da sua triste situação
e onde, com os trabalhos de Gualberto e os
seus, havia adquirido uma bôa proprieda
de e conseguido fazer Uma bôa economia
que já lhes dava para passar vida mais
ou menos socegada.
Os velhos viram a letra de sua filha e
reconheceram a bondade do coração de
Gualberto. Este lhes narrou a situação de
sua bôa filha e pondo um véo entre o passa
do e o presente, pintou com cores vivas e
reaes os prazeres e as alegrias que estavam
destinadas aos ultimos annos dos seus an
tigos senhores, junto de sua filha e, tendo
montado a ambos no velho jumento, ven
ceram em alguns dias muitas dezenas de
leguas e chegaram á risonha terra das al
terosas montanhas.
Paese filha, apartados, durante muitos
annos, por circumstancia que se propuzeram
nunca mais lembrar, passaram, depois de
mil peripécias, a viver felizes, na mais do
ce communhão evangelica, na pratica das
virtudes christans.'
Gualberto havia ['guardado como triste
lembrança o velho machado com que derru
bara um dia a arvore do mél, machado que
lhe serviu ainda para abrir caminho áfuga,

..
mas, lançou-o ao fundo do rio, logo qne
chegou com os seus antigos senhores.
Gualberto trabalhava sempre; em casa
nada faltava, servia sempre e de coração
alegre a todos os seus; vivia sempre conten
te porque tinha a gloria de ver felizes a bôa
Emilia e os seus velhos paes.

«í»
*
I
Frei
pesca k José

Kgosto ardia em cólera, derribando às


folhas das arvores, sustando as correntes
dos regatos disseccando, impiedosamen
e

te, as graciosas lagôas da terra maravilho


sa.
juba esverdinhenta das varzeas ser
A

tanejas, crestara-a canicula rigorosa, sol


a

o
escaldante do mês de Agosto os alegres
e

bandos que estação das aguas impellira


a

para Norte,da pradosa região, de ha mui


o

to haviam despovoado, indo retocar seus


a

ninhos na zona baixa, para augmento da


o

maviosa prole.
Era nessa quadra ingrata para via
o

jante que Frei José, meigo missionario, ta


o

lava sertão longinquo, levando ás palho


o

ças de nossos camponezes beatifica luz


a

da civilização christan.
Seguido de dois bons sertanistas, que
conheciam, para assim dizer, palmo pal
a

mo, aquellas paragens, parou, pouca dis


a

tancia de uma pequena lagôa, onde devia


pernoitar.
Já era noite.
1 06 Í*«3o5 v>vaíoijto»JCH9t.> 1

quarto crescente subia pelo céu azu-


O
lino com seus dois chifrinhos de prata e
sua luz doce e mimosa caiava o folhêdo
adusto da visinha mata.
Frei José, pediu então a um dos compa
nheiros que tomasse do anzol que trazia e
fosse pescar alguns peixes á beira da lagoa,
para a cêa da noite.
0 companheiro sorriu:
—A lagôa que se faz alli, por este tem
po está completamente secca, Snr. Vigario,
nem vale a pena ir-se até lá.
— Qual, retorquiu o missionario, fique
certo que tem agua e peixe, vá e verá.
O companheiro andou em torno da la-
goinha secca e a atravessou e examinou,
indo ter em seguida com Frei José :
— Snr. Vigario, não achei nem uma pe
quena póça d'agua, quanto mais peixes.
— Dê-me cá o anzol, fiquem os dois a
minha espera, mostrarei si ha peixes ou
não.
santo missionario, tendo tomado do
O
anzol, se encaminhou para a lagôa secca.
Seus dois companheiros de viagem acom
panharam no com a vista.
Chegou á beira da lagôa, desnovelou
a linhada ess pôs á pesca. E, á luz da lúa,
de vez em vez brilhava um peixe, outro e
outro mais, da pesca abundante de Frei José.
Os companheiros, convictos da não
existência de agua, naquelle logar, não lo-
graram imaginar como conseguira o missi
onário aquelles peixes, no leito enxuto da
lagoa.
E no dia seguinte, logo pela manhan, ten
do ido verificar o logar, encontraram, de
facto, a lagôa completamente sccca, aQui e
alli algum lamêdo repisado pelo gado da
fazendóla proxima, os rastos de Frei José,
onde se detivéra pescando, algumas esca
mas de peixes e nada mais !
^^m-

ESPIÕES

m jovem estudante cultivava no


Ui kempo das ferias, no suburbio da
cidade, um pequeno terreno que adquiri
ra, para nelle, aos poucos, levantar uma ca
sinha afim de abrigar sua mãe e irmans, a
quem era pesado o aluguel da casa em que
moravam.
O moço, sem grande sacrificio, havia
cercado o seu terreno depois de lhe roçar
uma parte, onde já havia semeado arroz,
milho, onde jà havia plantado batatas e ra
mas de mandioca.
Emquanto cultivava o seu pequeno ter
reno que lhe promettia uma bôa colheita
para d'ahi a poucos meses, frequentavam a
sua casa dois moços que se diziam norte-
americanos. Estes moços eram alegres, de
licados, andavam sempre bem vestidos, bo
nitos moços . ..
Haviam clles encontrado algumas ve
zes o jovem estudante carregado de livros
e conversaram com elle uma ou outra vez.
As bôas maneiras do moço captivaram-
nos, a sua vivacidade, a sua pontualida
de cm responder as questões que lhe eram
feitas, o seu discernimento judicioso entre
coisas e factos, tudo lhes excitou a attenção.
0 bom noço estudante, inconsciente
mente se impôs á estima d'aquelles bellos
nort-,;-ai5-ericanos de macia fala; embora sem
o saber, ficara prisioneiro de suas sympa-
ihias.
Quendo appareceram em sua casa, pe
la primeira vez, para procural-o, o estudan
te os recebeu com frieza e. da mesma for
ma, sua mãe e irmans.
0 mancebo não era amante de compa
nhias, assim o creára sua sensata mãe.
Não era amante de festas. Sô a serviço sa-
hia á rua, salvo raras excepções e assim e-
ra toda aquella familia. Nem de visita gos
tava para não as corresponder.
Era gente de muito trabalho e pouca
conversa.
0 trabalho e o silencio muito bem se
irmanaram naquella casa e faziam a gran
deza dalma d'aquellabôa familia.
Certo dia. aquelles individuos depois
de conversarem um pouco com o moço,
convidaram-no a darum passeio com elles
e chegar até á casinha onde estavam re
sidindo para lá passarem algumas horas
com elle e lhe darem um presente"que lhe
haviam guardado.
0 mocinho a tudo recusou, terminante
mente, dizendo não ter tempo para passeio
'
3c(kiano SatSUio !: i

e nem costume de andarem companhia de


extranhos.
Os dois individuos cahiram de palavras
sobre o jovem, dizendo terem elles vontade
de protegel-o, dando lhe uma collocação tão
lucrativa como talvez não imaginasse, le-
vando-o comsigo para onde se iam retirar,
affirmando-lhe que do bom ordenado que
lhe iam proporcionar podia deixar uma ter
ça á sua familia, que só bastaria para a sua
subsistencia.
Os individuos, quando chegaram eram
tres, cujo serviço era levantar secretamen
te e ás furtadelas, plantas, calculai* a popu
lação, a força militar, receita e despeza pu
blicas, agricultura, industria e commercio,
riquezas em mineraes vegetaes e animaes,
condição de individuos, sondar o sentimen
to patriótico, levantar, emfim, a estatistica
geral da antiga provincia que, como todas
as outras do Brazil, nem siquer desconfiou
ainda d'esses homens amaveis que se espa
lham por todo o territorio, mostrando-se
nossos amigos quando não passam, ás
mais dâs vezes de espiões.
Dos tres, um morreu (o que devia ser
vir de tropeiro) e, por isso, procuravam se
duzir o pobre estudante, para com elles se
guir pelo sertão a fdra.
Era ajuizado e muito ajuizado o moci
nho, por signal que as instancias, as pro
messas vantajosas, as labias e toda sorte
112 £eh3o« matogio»acnoe»

de seducções de que lançaram mão, foram


insufficientes para demovel-o do seu pro
posito de se não arredar de perto de sua fa
milia.
Devido tudo isso, a affeição que cria
ram por elle se converteu em mágua, depois
em raiva e, finalmente, em ódio e juraram
vingar-se.
O moço accordou cedo, no dia seguinte
e, ao amanhecer, já estava em sua pequena
roça.
As sementes que havia lançado na ter
ra fertil já estavam quasi todas nascidas.
Reforçava então a cerca feita antes, prote
gendo assim a sua pequena roça contra as
investidas do gado.
Pelas oito horas mais ou menos, da
manhan, foi sorprehendido alli com a pre
sença d'aquelles tres individuos. O moço.
a principio ficou bem amedrontado, mas de
pois teve mais coragem.
—Oh ! Então como vae ? — disse um
d'elles.
— Mas,
que é isso ? Você está pallido,
tremulo. Está com medo ? Commetteu al
gum crime ?
Outro: —Viemos cá para ver o seu ser
viço, pois disseram-nos que você estava
cuidando de lavoura.
—Mas, como está bonitinha a planta
ção d'elle, hein ? Mas em verdade I Não sa-
Seticiano êoOtno ll3
biamosque você tinha gosto pela agricul
tura.
— 0 jovem estava quieto, parado eos
dois sugeitos foram entrando no cercado.
— Ora, hontem á noite, comprehende-
mos que você, ao recusar a nossa compa
nhia o fizesse por se achar em presença
de sua familia. Mas já que estamos aqui.
distantes de sua casa, vamos conversar di
reito. Estamos certos de que você ha de
concordar comigo.
O moço afastou-se d'elles, depressa :
— Não, senhores, não temos mais con
versa alguma sobre esse assumpto. St o
vosso fim neste Iogar é seduzir-me, per
destes um bom tempo que bem podia ser
aproveitado, por exemplo, em plantar ar
roz, milho ou ramas de mandióca.
— Bem, bem; não se azangue comnos-
co por isso. Vamo-nos embóra. Tomemos
primeiro um golinho d'este licor e você to
me tambem.
— Sou estudante e não devo beber l—
Assim falou o moço.
Os dois entreolharam-se e se avança
ram contra elle a um mesmo tempo e, a-
garrando-o, fizeram-no beber.
Era veneno I
O moço sentiu, immediatamente um
calor terrivel nas entranhas e, tendo pro
curado a porteira para fugir, foi impedido
pelos malvados, que logo se puzeram do
lado de fora. Queriam embargar-lhe a sahi-
da para que alli mesmo morresse e puxa
vam os galhos seccos que lhes estavam ao
alcance para taparem completamente a por
teira.
O moço, passando porém, a mão á sua
foice a agarrou e a brandiu, approximando-
sc dos seus inimigos; estes, se defendiam
muito bem e impediam 'a sahidaao mo
ço envenenado.
Luctaram alguns momentos e, afinal,
os malfeitores acovardando-se ante a teme
ridade d'aquelle, cuja morte queriam assis
tir, se puzeram em fuga, para esperal-o
talvez adiante. Correram, subindo o declive
que alli perto se fazia.
O moço correu mais para outro rumo,
pelo pequeno valle que ia dar numa rua
logo adiante; valle que corria bordejado
por poças d'agua e densos banánaes.
Alli, pouco adiante da entrada da rua,
morava uma familia conhecida. O jovem
entrou precipitadamente, cansado, rosto a-
fogueado, por estar envenenado e pedindo
um pouco deleite para beber.
O leite que havia naquella casa foi re
servado para cangica, e já fervia com o mi
lho branco na panella.
A dona da casa desceu immediatamen-
te a panella do fogo, esfriou afflicta e apres
sadamente uma porção de leite, que o mo
ço bebeu de um fôlego e sahiu correndo.
Sdiciano iSatdlno ] l5

Ao chegarem sua casa o infeliz cahiudes-


fallecido, sem forças. Antes de tomar o lei
te, já o terrivel veneno se havia eníiltrado
em todo o seu organismo.
Sua familia acudiu espavorida ao seu
grito e o moço expirou, logo depois, excla
mando : — « Morro envenenado... envene
nado..."
Levado ao conhecimento da policia, es
ta agiu. mas em vão. A pobre mãe do jo
vem estudante martyrisado ficou louca.
Meses depois, correu noticia que dois
moços de bella apparencia, demandando a
fronteira da Bolivia, passaram por Livra
mento, Poconée Caceres, vendendo bugiai ias
e dando com palavras e obras os mais
bellos exemplos de amor á nossa terra e...
tirando estatistica e levantando plantas...
1
AA^c&^c&A

O epilogo do

D<resde muito, um individuo que vin


do não sabemos de qual dos outros Esta
dos da União, ganhou bôa fortuna em Mato-
Grosso, se havia tornado o oppressor e o
flagello dos arredores do seu sitio.
Comprava dos lavradores vizinhos tu
do por infimo preço, por elle mesmo im
posto e tudo lhes vendia por um boi de
ouro.
Certa vez, não tendo alcançado o que
desejava de uma das familias de lavrado
res que moravam em terra limitrophe ás
suas, appareceu, certa manhan, á frente de
capangas armados e tendo dito áquella fa
milia que se mudasse d'alli, ordenou a der
rubada dos ranchos, existentes no Iogar.
Emquanto os machados cahiam nos es
teios, toda a gente tirava depressa, sem dizer
palavra alguma, tudo quanto havia em suas
palhoças. Puzeram todos os seus trens pa
ra fóra.
118 Vm?a» •matoaeo5aeiue»

As mulheres e as mocinhas ajudaram


os homens e antes das casas serem des
truidas, ficaram vasias.
O prepotente julgava que aquelles po
bres lavradores haviam de lhe pedir mercê
para então lhe poder fazer novas imposi
ções, mas ninguem lhe implorou coisa algu
ma. Nem o mais leve desgosto lhes transpa
recia, por isso, no semblante. •
Depois que as casas foram destruidas,
se retiraram os malfeitores e, todo o ga-
dinho que encontraram d'aquella gente, to
caram para os seus campos. Os pobres la
vradores, sem demora. levando tudo quan
to podiam carregar, fugiram para longe.
Volveram annos. As discordias politi
cas lançaram o Estado na desordem. O fa
cho da revolução, ateado por toda a parte,
produziu um dos grandes abalos que têm
concorrido para a sua lenta marcha, pela
senda do progresso.
Aquelle senhor, revolucionario por am
bição, se metteu na lucta armada com to
dos os seus elementos. Cuiabá, sitiada por
loiças revolucionarias, ficou durante mui
tos dias debaixo de uma trovoada de arti
lharia e fuzilaria e, um conjuncto de cir-
cumstancias oriundo da guerra civil, fez a
desgraça completa d'aqueMe senhor, que
passou pelo dissabor de perder todos os
seus haveres, tendo mesmo ficado sem ca
sa para morar.
SAiclano êatdino ]19

Pobre, reduzido á miseria, todos fugiam


. d'ellecomo se foge do contagio da peste.
De caminho para certo logar, estando
muito doente, foi obrigado a passar num
sitio, onde havia muitas casas cobertas
de palha.
Ao chegar, acompanhado do seu unico
camarada, em frente de uma d'aquellas ca
sas, se lhe depararam umas moças, que ao
vel-o, correram para dentro:
— Papae, os malvados já descobriram
onde estamos, eil-os que nos vêm perse
guir. Hscondamo-nos a toda a pressa.
0 velho lavrador chegou logo á porta
e reconheceu, immediatamente, o seu antigo
malfeitor.
—Oh ! O meu perseguidor por aqui ?
Muito bem, mas como foi isso? Que fazeis
em tão triste estado ?
0 desventurado e orgulhoso senhor de
outr'ora, tremulo de cansaço e de fraqueza
e ainda mais pelo desapontamento, nada
respondeu e abaixou a cabeça. O seu ca
marada que nada sabia das* coisas que ti
nha havido outr'ora entre o patrão e a-
quelles pobres lavradores, interrompeu :
— O meu patrão está tão fraco que nem
pode falar. A ultima revolução lançou-o
na miseria, uma terrivel molestia lhe mi
na a existencia. Vou leval-o para o sitio
de um seu parente e passamos por aqui
para ver se lhe podeis dar de esmola um
1 20 SUnda» tnatoyto»tente»

pouco de leite e mais alguma coisa para a


viagem.
— Leite ?— Perguntou o velho, compa
decido. — Não ha em minha casa. As pou
cas rezes que eu possuia, elle mesmo m'as
roubou. Mas, espera um pouco.
O velho, correndo para dentro, voltou
sem demora trazendo um prato:
—Olhe, tome este caldo; vou dar-lhe de
esmola um bom pedaço de carne e uma
bôa porção de farinha.
Mas o desgraçado não quis acceitar o
caldo e recusou receber outros favores d'a-
quelle bom homem. E fazendo alguns a-
cenos ao seu camarada, sem pronunciar u-
ma só palavra, retomou o caminho, a pas
sos vagarosos.
Os remorsos se lhe agitaram no cora
ção como um formigueiro terrivel, mas o
orgulho ainda o acompanhou, embora se
reconhecer ás portas da morte.
Receber uma esmola das mãos d'a-
quelle a quem tanto havia perseguido, arra-
zando-lhe a propriedade, roubando-lhe os
bens ? ... Via que suas forças não davam
mais para atravessar o sertão e chegar ao
sitio do seu parente que ainda estava mui
to longe; ainda mais, com a falta de alimen
to... Mas, preferia mesmo morrer á fome,
á mingoa, no sertão deserto, que receber
caridade das mãos d'aquelles a quem havia
lançado na desgraça.
SclMano êaOttio 121

E caminhando, pensava: hontem ex


pulsei aquelles pobres de suas casas, to-
mei-lhes as terras e o gado e hoje me fa
zem o mesmo mal que fiz aos outros. Si
eu soubesse que fazer mal ao proximo é
fazel-o a si mesmo, eu teria vivido como
um bom christão. Si eu soubesse que o di
nheiro mal ganho é o gorgulho da fortuna,
nunca eu teria roubado aos pobres : com-
prando-lhes barato e vendendo-lhes caro,
nunca lhes teria tomado as roças e as casas.
O desventurado ia fazendo estas refle
xões e sentindo estar proximo o fim da sua
nociva existencia neste mundo, pensou que
sem se reconciliar com os seus principaes
desaffectos, não podia alcançar de Deus mi
sericordia, em seus ultimos momentos.
E errava pelo sertão. Cuidando já se
approximar do logar onde queria chegar,
veio, novamente dar, e alta noite, nas im-
mediações do mesmo sitio dos seus anti
gos perseguidores, de onde havia sahido
fazia horas.
O seu pobre camarada que não sabia
o caminho do logar para onde seu patrão
o levava, o acompanhava, sem lhe fazer ob
servação alguma, não obstante cuidar que
tomava com elle rumo incerto.
Já poucas estrellas brilhavam no céu,
quando penetraram o jatobeiral frondife-
ro que domina aquellas amadas planicies.
l22 Ícn3a» ,matoyzo»»en»ts

O vento sul soprava desesperadamen


te a sua furia louca, incomplascente... e ge
mia e uivava prolongada e lugubremente
no arvoredo ...
li repentinamente enfiado
se estacou,
de assombro o antigo oppressor dos pobres.
E aquella música macabra, que dir-se-
ia diabólica, produzida pelo harmatão de
encontro ao jatobeiral, imprimiu na men
te já baralhada d'aquelle individuo de má
ventura uma impressão que do assombro
passou ao terror, ao delirio irremediavel e
começou a correr como arrebatado, de um
lado para outro.
Amedrontadissimo o camarada do pa
pel que o inditoso representava, naquelle
scenario, não se atrevia a correr para elle
afim de o deter, tendo-se limitado a acom-
panhal-o á distancia.
0 infeliz parecia ver em cada uma das
arvores que assomavam á sua frente, um
dos seus antigos perseguidos, a quem gri
tava os nomes, a quem pedia perdão e de
quem se desviava ou recuava a todo o ins
tante.
A ventania, ora semelhava um coro
de viúvas, uma lamentação profundamen
te dorida, ora um demorado rugido de um
grande bando de bugios.
As poucas estrellinhas, esparsas pelo
céu turvado, illuminavam aquelle scenario
Miliciano SJaf3iuo l23

onde se representava uma peça em que o


analphabetismo d'alma sendo o protagonis
ta, tinha por comparsas a voz da nature
za inconsciente e os espectros mudos das
arvores annosas.
Hstava o pobre homem louco, furiosa
mente louco e gritava circumvagando, ton
to, azoinado, fugindo d'esta e d'aquella ar
vore que deparava, indo por vezes, dar com
as costas noutras de que no recúo se ap-
proximava e de que tambem fugia.
Enrouqueceu-lhe por fim a voz que qua-
si já se confundia á ulullação daxventania
e, se tendo safado d'aquelle bosque, là se foi
para o meio do campo, sempre gritando e
chamando pelos seus martyrizados.
Tendo acudido a estes gritos os mora
dores dos ranchos de que de mais a mais
se approximava, vieram, novamente re
conhecer nelle o seu antigo malfeitor e ven-
do-o assim, tão furiosamente a disparatar
agarraram-no e, conhecendo o seu estado
deploravel, recolheram-no a um dos ran
chos e só depois que teve fé de se achar
nas mãos d'aquelles por quem mais cha
mava, se acalmou. Punha sangue pela boc-
ca e de sangue estavam injectados seus o-
lhos desvairados e' quando o dia assomou,
tendo voltado á razão, expirou arrependi
do, nos braços d'aquelles mesmos bons la
vradores, as maiores victimas de suas tro-
124 SUnda* tn.atog*o»»ett»9e»

pelias, mas almas como a de todo o mato-


grossense, que faz do perdão ao inimigo um
dos maiores brazões da nobreza no seu
coração irreductivelmente magnanimo e
da superioridade de seu espirito.

«sm-
ladainha nos mz

Conta-se que um papagaio fora apa


nhado no mato, ainda quando mal voava,
e trazido para uma próspera casa do cam
po fóra, habitada por gente mui trabalha
dora e devota.
Aprendera a ave a falar o "papagaio
real" e, deccorrido não muito tempo, co
meçou a tagarelar a ladainha de Nossa Se
nhora que ouvia a familia rezar.
Todas as noites, prestava attenção, bem
quiéto, á reza, feita por aquella gente e, na
manhan seguinte, cada vez com mais cla
reza, repetia uma bôa parte da oração.
E achavam isso interessante, curioso
e agradavel os velhos e se divertiam com
isso as creanças.
Andava por toda a casa e subia por
toda a parte e lhe pediam uns os pés e ou
tros o amimavam.
Tão manso já estava o auri-verde tre
pador, que até já deixava que se lhe
tocasse á preta, secca e macia lingua.
126 Xeiv2a»1ivnÍ0^£05MH5e5

Deixaram de aparar-lhe, portanto, as


azas, de modo que o falante voador co
meçou a voar ás arvores mais baixas, de
pois ás mais altas, sem que ninguem se
importasse com isso, devido á confiança
que já inspirava, pela sua mansidão.
Um bello dia, passou, voando por ci
ma da casa um bando de papagaios, ten
do muitos d'elles descido aonde "estava o
seu companheiro manso que se alegrou, ar
repiando as lindas pennas, batendo as lin
das azas e secundando os gritos dos seus
semelhantes : curau ! curau ! curau ! ...
Logo que as meninas que d'ellc cuida
vam, tiveram conhecimento da má compa
nhia em que estava, gritaram, atirando pe
dras para afugental-a; mas, o papagaio
manso, seduzido por todos aquelles que o
rodearam, bateu com elles as azas e seiu-
corporou ao bando que passava.. .

v
depois de alguns mêses,
Certa tarde,
uma algazarra clamorosa e entrecortada,
enchia o espaço.
—Ladainha nos aresl
Era o papagaio amansado que passa
va, inesperadamente, pela primeira e der
radeira vez, por cima da casa, á frente de
um bando enorme de companheiros de to-
fiUcioM* gaí3i«o '
127

das as edades, certamente aquelle a que


se havia incorporado, no dia da sua fuga.
E passava tirando a ladainha, cujo "o-
ra pro nobis" era respondido numa retum
bante algazarra, semelhante ás vozes de
muitas buzinas, cada uma em seu tom, que
fazia o observador comprehender que to
dos, sem excepção, respondiam, com pre
cisão, as santas invocações, desde os a-
colytos do papagaio emancipado, até os
altimos bandos retardatarios ...
OE

B.'oiada! Uma boiada ! ...


Pelos lendarios e sempre hervecidos
campos de Pocone passava uma grande
boiada que, vinda lá das bandas do Pira-
hym era tocada para Cuiabá.
A cantiga dolente dos boiadeiros se
derramava pela campanha e um. ruido
sem solução de continuidade, semelhante
a um furacão, d'essesque no tórrido mês
de Agosto soem arrotar em Mato-Grosso
toda a furia da natureza, parecia brotar do
seio do boqueirão, ao longe.
Era a boiada que lá vinha como um
vagalhão impetuoso. A' frente, pelos flan
cos, pela retaguarda, iam os vaqueiros
boiando, de vez em vez.
Passa. Diversas são as raças que a
compõe. Grande é a manada, assombroso
o aspecto.
l 30 &n3o» matog*o55eH*e»

E' o perigo que vae passando ... peri


go para os boiadeiros, perigo para os via
jantes que encontra.
Uma ave que lhe passa por cima, uma
outra que grita além, uma simples visão
de objectos extranhos, um ruido qualquer
na folhagem, pelo caminho, são os moveis
das ondulações repentinas que se notam, a
cada instante, produzindo o pequeno estou
ro que se ouve a modo de uma trovoada
distante, ou de uma longinqua descarga de
artilharia.
Esgarra-se da manada um touro.
O exercitado cavallo que dá serviço
d'esse lado não espera pela determinação
do seu dono; sae da linha contra o esgar-
rado, o vence na corrida e o repõe na
boiada.
E assim faz todo o cavallo campeiro.
Sempre cioso pela boa marcha da boiada,
elle a vigia continuamente e mais activo
que o seu proprio dono.
0 chão parecia gemer com o peso bru
to da caudalosa avalanche, cujo estrupo en
chia o ar.
Vaqueirada bôa a que passava, ra
paziada sacudida e zafimêra, como se diz
na bella e lendaria terra poconeana.
0 poconeano é o gaúcho matogrossen-
se. Não é por lá homem de verdade quem
ainda não derrubou um garrote pelo rabo.
0 médico, o advogado, o dentista, o
photógrapho certamente teriam por lá bôa
clientela si á sua sciencia e pericia reunis
sem as qualidades de vaqueano.
Iam boiando, a intermittentes.
Morava naquelle tempo, nas immedia-
ções da Cotia- um velho patricio chamado
Joaquim Gomes, já alquebrado pelas lides
do campo, vaqueiro de fama, que todos res
peitavam. Ao vel-o, todos os rapazes tira
vam o cigarro da bocca, se descobriam resr
peitosamente e lhe tomavam o louvado.
Pae Joaquim estava em seu rancho de
capim a embalar-se em sua bôa rede, d'a-
quellas de linha de mão que se tecem a-
inda hoje em Livramento e que são as me
lhores, mais baratas e de grande duração,
chegando a aguentar bons dez annos de
sóva.
Pae Joaquim se levantou, tomou o ul
timo copo de guaraná do dia e logo em
seguida, ouviu o melancólico boiar dos va
queiros, não já muito distante e sahiu ao
terreiro para ver que boiada era aquella.
0 velho já havia dado baixa do servi
ço de vaqueano, mas lhe parecia que ha
veria de morrer logo si não estivesse a ou
vir continuamente o mugir do gado por per
to do seu rancho. .Por isso, logo depois que
se recolheu, de uma vez, para a sua casi
nha, no beiral do car^o, fez pae Joaquim
um moxirum e levantou perto da sua mo-
1 32 íinío» nM(e^<«9o(nMM

rada um grande curral, com capacidade pa


ra conter mil bois e pol-o á disposição do
todos os fazendeiros, para o pernoitar da
sua boiada, quando de passagem por alli.
A porteira estava aberta. Os boiadeiros
queriam recolher o gado ao curral, mas es
te estava a refugar a porteira. Tres ou qua
tro ensaios já haviam operado. Rodeios
bem feitos; todos boiavam para acalmar,
pacificar o gado, porém, logo que iam che
gando novamente á porteira, dava estouro,
não queria por modo algum chegar os fos-
sinhos curral a dentro.
O sol desapparecia.
Pae Joaquim pôs a mão á cintura e
sorriu contrafeito :
— Que é que aquelles tolos estão fa
zendo qne não recolhem o gado ? Que me
ninos a tôa esses de hoje. Qual nada ! E'
como sempre eu digo : o mundo está mes
mo arruinado. Um menino do meu tempo
valia mais que cem dos de hoje. Eu, embo
ra já andar de porrete na mão e como ca
sa velha e engoteirada, garanto que me
não tróco por esses rapagãos de hoje que
não valem uma pitada de fumo macáia.
E' verdade... tudo está mesmo ás avessas...
Assim monologava, quando um dos
boiadeiros veio a galope para onde elle es
tava.
—Louvado seja N. S. Jesus Christo,
Pae Joaquim, como vae voncê ?
9elida.no SaOino 133

—Louvado para sempre, menino. Que


estão vaçuncês fazendo que não recolhem
o gado ?
—Ora Pae Joaquim, não sei o que de
vemos fazer; parece que o gado está ven
do o cuca no curral porque já por três ou
quatro vezes tem refugado a porteira. Só
Pae Joaquim nos poderá tirar deste aperto,
ensinando-nos o que devemos fazer.
—Que cuca nem mané cuca, menino'
vocês todos são para mim uns pichótes que
não eram ainda nascidos quando eu já es
tava cansado de derrubar garrote pelo ra
bo. Vocês para mim ainda são creanças
de cueiro eque precisam ainda de apanhar
de chinellos e levar alguns puxões de ore
lhas. Estão vocês pensando que birimbáu
é gaita ? Vocês, nada vezes nada sabem
ainda d'essa luctade campo.
— Mas é por isso mesmo que cheguei
até aqui, Pae Joaquim, para lhe pedir que
me ensinasse. Já estamos á bocca da noite
e precisamos recolher o gado.
— Pois sim, já que vaçuncê m'o pede,
lhe eu vou ensinar o ultimo recurso que ha
na sciencia do vaqueiro,- a que se possa
lançar mão, em caso como esse. Escute bem
e guarde na cachóla o que lhe vou dizer.
— Fale, Pae Joaquim, sou todo ouvidos,
— Vaçuncê faça primeirair *»nte o rodeio
do gado, reze em seguida um Padre Nosso,
134 Ctn-Sa» ttvoto<j«099*noe.>

uma Ave-Maria e um Creio em Deus Padre-


que são as melhores orações... está ouvin
do?
— Sou todo attenções, Pae Joaquim.
—Muito que bem ! feitas essas orações
diga em voz alta, por tres vezes e que o
ouça toda a boiada: — "Assim como os
advogados nunca refugaram a porta do In
ferno, assim tambem vocês bois, não refu
garão a porta do curral". Grite em seguida:
•'Para dentro !" E todo o gado o obedecerá
promptamente.
O jovem vaqueano rodou o cavallo e
foi ter com os companheiros.
Foram cumpridos á risca os conselhos
de Pae Joaquim. E o grito: "Para dentro"
partido do largo peito do poconeano, tendo
reboado pelo virente cerrado, foi correspon
dido, em continente, pelo estouro medonho
da boiada que num instante entrou no cur
ral.
Pae Joaquim era tido como o sabio do
sertão, o profundo conhecedor da arte boia-
deira.
i
ÍNDICE

Obras de Feliciano Galdino


Dedicatoria
.... 3
5
A princesa branca do vestido azul . . 7
As minas dos Martyrios 11
.17
......
Anhanguéra
Cuiabá 25
A alavanca mysteriosa 27

.....
Brotas 33
Iguatemy

....
39
Senhora do Livramento 47
A licção do Morubixaba 53
O oasis d'alma 79
A nostalgia do indio 87
Coração de escravo 91
A pesca de Frei José lo5
Kspiões ; . . . 109
O epilogo de uma existencia . . . .117
Ladainha nos ares . ., 125
Sabedoria de vaqueiro 129
"N
,•
Date Due

LlDrary buroau Cat. no. 1137

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THE HECKMAN BiNDFRY
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3 9000 005 824 342

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