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NARRADORES DE JAVÉ: uma análise do filme.

O filme Narradores de Javé tem uma narrativa curiosamente interessante para se


refletir acerca de memória, patrimônio e aquilo que se constitui como patrimônio. Javé,
uma pequena e humilde cidade de interior termina vitimada pelo avanço e pelo
progresso. Nesse caso, vale salientar, demonstra aqueles que poderiam e deveriam ser
afetados pelas transformações e avanços da sociedade moderna. O fato é que com a
possibilidade de se construir uma nova represa na localidade a pequena cidade de Javé
seria sacrificada e daria espaço a uma nova barragem. Coloca-se, portanto, uma
importante questão: como salvar Javé ante a construção da nova usina? A resposta dada
é de que a única possibilidade de salvar a pequena cidade era se ela tivesse um valor
patrimonial de relevância. Esse elemento é de suma importância para que possamos
pensar algumas questões empreendidas nos primeiros textos da disciplina, tanto sobre
aquilo que entendemos como patrimônio material quanto o imaterial.

O tombamento de algum espaço, obras artísticas ou monumentos para que


adquira o caráter de patrimônio envolve um conjunto de ações do poder público e ou
jurídico de naturezas distintas. A questão relevante é que o tombamento nem sempre
atende ou inclui os diferentes segmentos envolvidos com aquele espaço. No texto Para
além da pedra e cal: por uma concepção ampla de patrimônio cultural, por exemplo,
traz o exemplo da Praça XV, do Rio de Janeiro, cujo tombamento ignora a carga afetiva
e os diferentes sujeitos envolvidos com aquele espaço. Mercadores, negros alforriados
ou escravizados, muitos eram os sujeitos que ocuparam aquele espaço e todos estes
foram alijados dessa contemplação enquanto espaço patrimonial. Assim podemos
pensar a população da pequena Javé. Um lugarejo de gente humilde e calejada pelo
tempo, mas que carrega em suas trajetórias de vida um enorme conjunto de vivências e
lembranças. Um local cuja simplicidade e a pobreza se enunciam nas roupas, nos
sorrisos e nas casas. Talvez seja por essas singularidades que tomaram a decisão de
apagar Javé do mapa em favor de um “bem maior” para a população.

A mobilização do povo em tentar salvar Javé suscita questionamentos acerca


daquilo que entendemos como patrimônio, os processos de construção desse arcabouço
patrimonial e aquilo que entendemos como patrimônio imaterial. Ademais, é possível
entrever as relações entre patrimônio e identidade, uma vez que a trajetória de vida de
seus habitantes estava intrinsicamente conectada àquele local. Muitos demonstravam em
seus relatos o pertencimento, bem como as origens de gerações anteriores de sua família
ligadas ao local. Contudo, pelos padrões definidos pelo aparato jurídico constitucional
poderíamos dizer que Javé não representava um patrimônio que demandasse
preservação e ou permanência.

Os habitantes então se mobilizam na tentativa de demonstrar, cientificamente, a


importância de que a cidade fosse preservada. O caráter científico do processo traz
implícita uma ambivalência; de forma que só pode ser considerado como patrimônio
aquilo que um conjunto de elementos da prática científica endosse como tal à medida
que exclui toda e qualquer trajetória de memórias, afetos e experiências imateriais. Não
cabe na presente síntese descartar os princípios e as normativas envolvidas no processo
de tombamento, todavia não podemos desconsiderar que esses mecanismos nem sempre
alcançam regiões e espaços mais interioranos, assim como possuem um caráter
excludente. Descartando com isso um conjunto de vivências e experiências de vida que
constituem a identidade daquela localidade. Esse é o caso do filme Narradores de Javé.
O filme explicita um conjunto de experiências que eram caras àquele povo e que
sumariamente foram ignoradas pelo poder público e pela iniciativa privada. O povo
pobre e simples termina não conseguindo construir uma narrativa que demonstre a
relevância de Javé, haja vista que elas são múltiplas e cada qual guarda suas
singularidades. Com isso, Javé acaba encontrando o terrível destino do apagamento.
Isso não quer dizer que Javé morria com a afluência das águas, uma vez que as
memórias de seu povo não poderiam ser eliminadas. Essas seriam transportadas de pai
pra filho através da lembrança e da oralidade.

Talvez, o argumento de maior relevância do filme, e que vai ao encontro de


alguns apontamentos levantados no texto Para além da pedra e cal: por uma concepção
ampla de patrimônio cultural, é exatamente o caráter excludente que as ações para a
constituição do arcabouço patrimonial. Quando se preserva o lugar nem sempre se
preservam as memórias e as inúmeras identidades que aquele espaço carrega consigo.
Dessa forma, mesmo com enorme relevância, a ação patrimonial é arbitrária e tem por
objetivo preservar o espaço físico na mesma medida em que sufoca as afetividades
contidas naquele local.

Referências:
FONSECA, M. C. L. Para além da pedra e cal: por uma concepção ampla de patrimônio
cultural. In: ABREU, Regina e CHAGAS, Mario (orgs.). Memória e
patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro, DP&A, 2003.

ZANIRATO, S. H. Patrimônio e Identidade: retórica e desafios nos processos de


ativação patrimonial. São Paulo: Revista da USP, v.13, n.25, p. 7-33, jan./set. 2018.

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