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Editorial

Persp. Teol. 27 (1995) 293-296

PARA UMA S E G U N D A RECEPÇÃO D O


VATICANO II

Há trinta anos, no dia 8 de dezembro de 1965, se dava a Clausura desse


magno evento eclesial do nosso século: o Concilio Ecumênico Vaticano II. No
dia anterior tinha sido aprovada uma de suas Constituições mais significati-
vas: a G a u d i u m e t s p e s . D o i s acontecimentos merecedores da atenção da
comunidade eclesial e da reflexão teológica, que justificam o destaque que lhes
é dado neste número da P e r s p e c t i v a Teológica.

Numa perspectiva histórica ampla, trinta anos é tempo irrisório, pelo


horizonte limitado que apresenta. E, contudo, foram três décadas decisivas
para captar a significação do Vaticano II como acontecimento eclesial. Tempo
da p r i m e i r a recepção. Tempo necessário para que o impacto inicial do Con-
cüio pudesse repercutir na comunidade eclesial, fosse assimilado, e operasse
aos poucos a indispensável reorganização da vida da Igreja em todas as suas
dimensões. Por isso mesmo, período de tensões entre o velho e o novo. Tempo
suficiente também para revelar as resistências que sua recepção iria encontrar.
E, destarte, momento crítico para o que poderá ser o futuro do Vaticano II.

Não é este o lugar de fazer um balanço do que foi essa primeira recepção.
A história nos ensina como são delicados e importantes os primeiros tempos
que seguem a todo Concüio. Delicados porque neles está em jogo não só a
"aplicação" de alguns decretos e conclusões mas a "assimilação" de um modo
de ser novo. E importantes porque neles se decide, através de tensões e con-
frontos, o destino de um Concüio e o que ele significará no futuro da vida
eclesial. Das formas mais diversas, todo Concüio é um confronto entre duas
maneiras de entender o cristianismo. E o Vaticano II não foi exceção. O
confronto entre duas eclesiologias (A. Acerbi) poderia ser estendido igualmen-
te ao confronto entre duas concepções da revelação, duas maneiras de entender
a tradição, a liturgia, etc. e, finalmente, duas maneiras de entender a missão
e a relação entre a Igreja e o mundo. O fato de o Concüio não se ler expressado
em decretos e declarações dogmáticas torna mais evidente esse confronto. Por
isso, a recepção do Vaticano II — como toda recepção — não é uma mera
questão jurídica mas um problema teológico: questão de "espírito" e do "Es-
pírito".
A s tensões dos primeiros tempos pós-conciliares são inevitáveis e exigem
muito discernimento. Porque nem sempre têm a sua origem no Concüio. É
o caso do Vaticano 11. Muito cedo as dificuldades, que foram surgindo depois
do Concüio, foram atribuídas ao Concüio. Mas só uma memória muito curta
poderia culpabilizar o Concilio por uma "crise" que tinha as suas causas
muito antes e alhures, mesmo que ficássemos só no âmbito intra-eclesial.
Desde a crise modernista ate' as resistências ao ecumenismo, passando pelo
problema dos padres operários, a "nouvelle théologie" e as dificuldades en-
frentadas pelo movimento bíblico e litúrgico, a Igreja pré-conciliar viveu de
sobressalto em sobressalto. Por isso, identificar o pós-Concüio com a crise é
idealizar o pré-Concüio como um tempo de serenidade que nunca existiu.

Parece cada vez mais claro que a intenção de João XXIII ao convocar o
Concüio era reconciliar a Igreja com o mundo moderno, ou seja, pensar
aquele "presente" à luz da grande Tradição e do Evangelho. O que implici-
tamente significava uma tomada de posição com relação ao domínio absoluto
da "pequena tradição", mesmo várias vezes centenária. Só uma lúcida sintonia
da assembléia conciliar com essa proposta pode explicar os rumos inespera-
dos do Concüio diante do que eram os projetos das comissões preparatórias.

Um juízo histórico mais sereno e objetivo é condição indispensável para


reconhecermos que esse foi o objetivo do Vaticano II. Trinta anos depois,
num horizonte religioso, social e cultural profundamente diferente, é-nos,
talvez, mais fácil superar a tentação de ver no Concüio a origem de todos os
males. Só assim poderemos recuperar a sua "memória" verdadeira e assumir
responsavelmente o seu legado. Sem cair na sutil tentação de domesticá-lo.
E muito menos de esvaziar abertamente o seu "espírito". Estaríamos traba-
lhando assim para o que Y. Congar chamou a "re-recepção" do Concüio, ou
seja, uma "segunda recepção".

S e g u n d a recepção porque ela se faz num outro contexto, sob outra luz
e diante de outros desafios. Mas ela pressupõe que exista inegavelmente um
"espírito" do Concüio. Espírito que certamente não se esgota na l e t r a , nem
pode ser deixado à a r b i t r a r i e d a d e das interpretações subjetivas, como tam-
bém não pode ser reivindicado em exclusividade por uma única i n t e r p r e t a -
ção a u t o r i t a t i v a . E s s e "espírito" deve ser buscado na t o t a l i d a d e d o a c o n -
t e c i m e n t o c o n c i l i a r ; desde o anúncio de João XXIII, e o que eram as suas
preocupações, até a primavera pentecostal que foi o seu resultado final, pas-
sando pelas tensões e confrontos através dos quais se deu a lenta e difícü
gestação dos textos. Porque é através de tudo isso que o Espírito se foi
manifestando. Nessa totalidade e em cada um dos documentos deve ser res-
gatado esse "espírito".

E onde há espírito há dinamismo. O Concüio não pode ser lido como um


depósito de verdades, como um "thesaurus" de frases com as quais tudo pode
ser provado. Estaríamos transformando-o assim numa forma atualizada da
antiga "Denzinger-theologie". O espírito do Concilio exige que ele seja inter-
pretado de maneira aberta. E a direção dessa abertura nos é indicada pelo que
foi a intenção do Concilio, pelo que ele quis ser e fazer, e pelo que de fato
mudou.

A intenção do Concüio não é apanágio de alguns poucos iniciados. Ela


pode ser descoberta porque está inscrita na objetividade dos acontecimentos,
desde o seu anúncio por João XXIII, e não menos nas orientações de Paulo VI
que o levou a feliz termino. Nesse sentido parece urgente voltar de novo a
atenção para os grandes textos destes dois Papas que, como ninguém, foram
artífices decididos da renovação buscada pelo Concüio.

O que o Vaticano II quis está igualmente visível no que as comissões


aceitaram e rejeitaram. Desse ponto de vista é inegável que ao rejeitar certos
esquemas, sem mesmo chegar a discuti-los, a assembléia estava indicando a
mente do Concüio. Com esses esquemas era rejeitado um modo de ver a
revelação, a liturgia, a Palavra de Deus e, finalmente, a Igreja ea sua missão.
Ao rejeitá-los, o Concüio rejeitava o que eles representavam. Verdadeira "re-
volução copernicana", pela qual se abandonava uma concepção de revelação,
como depósito fixo e imutável de verdades, para uma concepção hermenêutica,
que ousava interpretá-la para o homem e a mulher de hoje levando em conta
as suas experiências mais significativas. É dentro dessa mudança de perspec-
tivas que se opera a transformação da chamada "minoria" conciliar em "mai-
oria". E, por outro lado, a resistência que encontraria esse "novo espírito".

Por isso o Concüio foi tão desconcertante para muitos. Ao se apresentar


como "pastoral", ele apontava para o que estava em jogo: não o combate de
quaisquer heresias, nem uma tomada de posição num debate dogmático, mas
um modelo de catolicismo, o tridentino, com tudo o que ele significava, tanto
para a vida interna da Igreja como para as suas relações com o mundo. E esse
foi de fato o cerne da questão nestes trinta anos pós-conciliares. Como é
também o desafio que se apresenta nesta s e g u n d a recepção.

Trinta anos de Concüio. É pouco mais do que o tempo de uma geração.


Mas ele envolve, de maneira diferente, três gerações. Lentamente vai saindo
de cena a geração dos protagonistas, dos que viveram por dentro o aconteci-
mento. E, com ela, o aspecto agônico do Concüio, as marcas do confronto
entre duas mentalidades que ficaram inscritas nos textos e se fizeram sentir
também no tempo pós-conciliar. A herança do Concüio passa cada vez mais
às mãos daqueles que foram testemunhas admiradas do dinamismo que aquele
sopro do Espírito despertou na Igreja. É a geração dos que sabem por expe-
riência em que consistiu a virada epocal do Concüio. E, por isso, poderíamos
dizer, a geração que o pôs em prática e a que mais sentiu as tensões pós-
conciliares. Há, enfim, a geração dos "pós-conciliares", aqueles que nasceram
com o Concüio, para os quais o Vaticano II é sobretudo um fato do passado.
Desconhecido com freqüência e, de qualquer forma, insignificante. Por que se
preocupariam em saber o que está em jogo com a sua recepção? Como todos
os "pós", vivem de resultados por outros conquistados e de valores pelos
quais nunca lutaram.

O momento histórico e eclesial que vivemos exige de nós uma s e g u n d a


recepção do Vaticano U. Ele se nos apresenta como a maneira responsável
de recolher e levar adiante o legado do Concüio. As novas gerações, às quais
é confiada esta tradição, representam a consciência viva da comunidade
eclesial, com as suas exigências e expectativas. Essa é uma das condições de
uma autêntica recepção. Mas ela pressupõe que se resgate a "memória"
integral do que foi e quis ser o Concüio como acontecimento do Espírito.
Porque tal memória é a condição indispensável para que a transmissão
(tradere-traditio) não seja traição ao "espírito".

Esta passagem, em que a geração dos protagonistas vai saindo de cena,


significa também que a eficácia histórica do Concilio (a sua
Wirkungsgeschichte) dependerá, em primeiro lugar, da sua força intrír^eca
e, portanto, da capacidade que tivermos, como comunidade eclesial, de resgatá-
la e de nos apropriarmos dela. Levá-la até as últimas conseqüências signi-
ficará: tomar consciência do que poderíamos chamar a nova "condição cris-
tã" no mundo; elaborar uma teologia e uma espiritualidade conseqüentes,
capazes de sustentá-la, e criar e pôr em prática um conjunto de estruturas
coerentes nas quais possa ser traduzida essa nova vida. A nova recepção do
Concüio exige que ele seja tomado na totalidade do que foi o seu objetivo e
do que quis ser a obra por ele deixada. Em nossas mãos está torná-la vida.

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