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Karl Monsma
Professor adjunto do Departamento de Sociologia, da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS). E-mail: karlmonsma@uol.com.br
INTRODUÇÃO
* Versões anteriores deste artigo foram apresentadas no XVI Encontro Nacional de Estu-
dos Populacionais, em 2008, e no seminário Imigração e raça na conformação das identi-
dades e da estrutura social paulista, na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar),
também em 2008. Agradeço os comentários dos participantes de ambos os eventos, espe-
cialmente Sérgio Nadalin e Oswaldo Truzzi. Também agradeço a ajuda dos funcionários
da Fundação Pró-Memória de São Carlos. Daniela Barcellos ajudou na organização do
banco de dados. Esta pesquisa recebe o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimen-
to Científico e Tecnológico (CNPq) (bolsa produtividade e auxílio à pesquisa).
DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 53, no 3, 2010, pp. 509 a 543.
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Este debate não diz respeito somente ao Estado de São Paulo. O fato de
que São Paulo recebeu muito mais imigrantes que qualquer outro esta-
do brasileiro significa que as consequências da imigração foram senti-
das com maior força pelos negros paulistas, permitindo a investigação
de tendências para a discriminação racial que possam também existir,
embora de forma mais sutil ou velada, em contextos com fluxos imi-
gratórios menores. No fim do século XIX e início do XX, São Paulo tam-
bém emergiu como o estado brasileiro mais populoso, rico e poderoso,
o que significava que as desigualdades e discriminações raciais desse
estado repercutiam nacionalmente, por meio das oportunidades eco-
nômicas abertas ou fechadas para migrantes negros de outros estados,
da influência paulista nas políticas públicas nacionais e do alcance dos
produtos culturais paulistas. Finalmente, São Paulo e outras regiões
do Brasil que receberam grande número de imigrantes constituem ca-
sos excepcionais na história mundial, em que imigrantes e seus des-
cendentes rapidamente alcançaram posições econômicas melhores
que a maioria da população já existente no lugar que os recebeu. Enten-
der como isso aconteceu pode contribuir para apurar teorias sociológi-
cas de processos migratórios e de desigualdades raciais e étnicas.
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proporção dos que haviam sido cativos era ainda maior, porque um
número desconhecido de outros eram libertos. A alta proporção de es-
cravos e filhos de escravos reflete a posição de São Carlos naquela épo-
ca na fronteira próspera de expansão da cafeicultura. Em função da
alta demanda por mão-de-obra nas fazendas de café do Oeste paulista,
os fazendeiros dessa região relutavam em libertar os cativos até a vés-
pera da abolição.
Tabela 1
Mudanças na população de São Carlos, 1886-1907
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Tabela 2
Cor e nacionalidade de trabalhadores
nas fazendas de São Carlos, 1899
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Tabela 3
Distribuição ocupacional dos homens chefes de família de São Carlos em 1907,
por categorias de nacionalidade e cor
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Quase não existia uma elite negra para empregar e defender os negros
pobres, e obviamente não havia cônsules negros, o que aumentava a
vulnerabilidade dos negros pobres à exploração e aos abusos dos em-
pregadores, da polícia e de aproveitadores. Para a maioria dos negros,
os únicos protetores possíveis, em um país onde os pobres muitas ve-
zes precisavam do auxílio dos poderosos para resolver problemas cor-
riqueiros, encontravam-se entre a elite branca brasileira. A inserção
dos negros mais afortunados nas redes clientelistas de brancos pode-
rosos tendia a manter a subordinação de negros a brancos e inibir a
ação coletiva dos negros em defesa de seus interesses.
ACESSO À PROPRIEDADE
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Tabela 4
Porcentagem de chefes de família classificados como proprietários
e porcentagem com título de terras rurais,
por categorias de nacionalidade e cor
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ESTRUTURA FAMILIAR
Tabela 5
Porcentagem de famílias chefiadas por mulheres,
por categorias de nacionalidade e cor
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tos e mulatos são mais altas que as de brasileiros brancos. Entre a popu-
lação adulta (com 21 anos ou mais) e incluindo os viúvos, a porcenta-
gem de negros que já casou ou vive em união estável – condições geral-
mente indistinguíveis neste censo – é um pouco maior que a entre bra-
sileiros brancos. Entre as mulheres adultas, 86,6% de pretas, 89,1% de
mulatas e 83,9% de brasileiras brancas já haviam se casado. Entre os
homens, 77,7% de pretos, 75,6% de mulatos e 68,9% de brasileiros bran-
cos eram casados ou viúvos. Novamente, os resultados não são coeren-
tes com a ideia de que existisse maior “anomia” entre os negros. De
fato, houve uma onda de casamentos de libertos no interior paulista
nos primeiros meses depois da abolição, sugerindo que muitos escra-
vos queriam se casar e formar famílias, mas eram impedidos por seus
senhores8.
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Tabela 6
Tamanho médio da unidade familiar,
por categorias de nacionalidade e cor do chefe de família
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A ALFABETIZAÇÃO
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Tabela 7
Porcentagem alfabetizada com quinze anos ou mais,
por gênero e categorias de nacionalidade e cor
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estudar com sete anos já teriam entre dois e três anos de estudo, tempo
suficiente para se alfabetizarem, quando completaram dez anos.
Tabela 8
Porcentagem alfabetizada entre jovens nascidos no Brasil,
por gênero, faixa etária e categorias de nacionalidade e cor do chefe da família
Filhos Filhas
10-14 Total 15-20 Total 10-14 Total 15-20 Total
Chefe da Família
Anos Anos Anos Anos
(%) (%) (%) (%)
Brasileiro
Preto 13,5 178 14,2 134 6,2 194 10,9 101
Mulato 26,7 45 29,4 34 28,9 38 44,0 25
Branco 51,7 323 67,7 229 55,8 339 64,8 230
Estrangeiro
Italiano 23,7 782 39,6 235 20,7 726 28,3 187
Português 37,8 119 39,5 43 29,8 114 28,0 50
Outro imigrante 35,2 105 50,0 40 29,5 78 63,0 27
Total 30,3 1.552 43,9 715 28,1 1.489 41,1 620
Fonte: Censo Municipal de 1907, Fundação Pró-Memória de São Carlos.
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Por que as taxas de alfabetização dos jovens pretos e pretas eram tão
baixas? Sem dúvida, muitas escolas privadas simplesmente recusa-
vam alunos pretos, mesmo nos casos excepcionais, em que os pais ti-
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Tabela 9
Porcentagem alfabetizada entre os filhos brasileiros de colonos, por gênero,
faixa etária e categorias étnico-raciais do chefe da família*
Filhos Filhas
10-14 Total 15-20 Total 10-14 Total 15-20 Total
Chefe da Família
anos anos anos anos
(%) (%) (%) (%)
Brasileiro
Preto 3,1 96 5,0 80 1,1 89 4,9 41
Branco 6,4 78 25,6 39 8,1 62 19,5 41
Estrangeiro
Italiano 5,8 497 21,4 140 1,9 465 7,0 100
Total 5,5 671 17,0 259 2,4 616 9,3 182
Fonte: Censo Municipal de 1907, Fundação Pró-Memória de São Carlos.
*Inclui somente os grupos com número de filhos brasileiros suficientes para produzir estimativas
relativamente estáveis.
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CONCLUSÕES
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Este artigo aponta três áreas em que os negros, sobretudo os pretos, so-
friam desvantagens nítidas com relação aos imigrantes. Primeiro, qua-
se não existia uma elite negra, ao passo que havia um bom número de
comerciantes, profissionais escolarizados e alguns grandes fazendei-
ros entre os imigrantes. Foi, em parte, porque havia uma elite imigran-
te escolarizada de comerciantes, jornalistas, médicos e padres, sobre-
tudo entre os italianos, que os imigrantes podiam lutar contra os abu-
sos de fazendeiros e da polícia, e contra os estereótipos negativos deles
que circulavam entre os brasileiros (Monsma, 2007). A elite imigrante
também fornecia empregos em fazendas, oficinas e lojas, e ajudava os
compatriotas pobres e analfabetos a lidar com a burocracia do Estado.
Os negros, geralmente, não tinham acesso a tais benefícios, a não ser
que conseguissem a proteção de brancos poderosos, o que inibia a or-
ganização coletiva dos negros.
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são social se integravam com as elites locais muito mais facilmente que
os negros com os mesmos níveis de escolarização e riqueza. Estudando
outra cidade do interior paulista, Oracy Nogueira (1998:181-182) ob-
servou que, ao longo da primeira metade do século XX, a ascensão so-
cial de famílias negras quase sempre foi acompanhada por um proces-
so de branqueamento, mediante casamentos com brancos, sejam brasi-
leiros ou imigrantes, e a perda da identidade negra, o que aparente-
mente era necessário para serem aceitas pela elite local. “Em conse-
quência, cada conquista do negro ou do mulato que logra vencer eco-
nômica, profissional ou intelectualmente tende a ser absorvida, em
uma ou duas gerações, pelo grupo branco [...]” (Nogueira, 1998:182).
Muitas famílias de origem imigrante em vias de ascensão social tam-
bém se casaram com brancos brasileiros, o que, provavelmente, facili-
tava sua integração com a elite local, mas estas famílias também po-
diam ganhar a aprovação da elite sem o casamento com brasileiros e
sem rejeitarem suas origens e mudarem sua identidade étnica.
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NOTAS
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ABSTRACT
Advantages for Immigrants, Disadvantages for Blacks: Employment,
Property, Family Structure, and Literacy in Post-Abolition Western São
Paulo
Based on data from a municipal census in 1907, this study compared the
situations of Blacks, White Brazilians, and various immigrant groups in early
20th century Western São Paulo. Contrary to assertions in the literature, many
Black families were small coffee farmers, and Blacks competed with
Europeans in various other manual occupations. Meanwhile, Blacks were
almost completely absent from the elites, and literacy rates were extremely low
among Blacks, including in the new generation, born after Abolition. The
study analyzes the advantages and disadvantages of these various groups,
thereby contributing to new hypotheses on the consequences of large-scale
European immigration for the Black population.
RÉSUMÉ
Avantages de l'Immigrant et Désavantages du Noir: Emploi, Propriété,
Structure Familiale et Alphabétisation après l'Abolition de l'Esclavage
dans l'Ouest de l'État de São Paulo
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