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07/05/2019 Uma geração de não filósofos - JOTA Info

FILOSOFIA DO DIREITO

Uma geração de não lósofos


O desinteresse pela zetética jurídica é herança do positivismo jurídico ou deturpação dele?

MICHAEL GUEDES DA ROCHA

07/05/2019 07:22
Atualizado em 07/05/2019 às 13:43

Crédito: Pixabay

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Não é nada incomum numa conversa que envolve estudantes de Direito surgir a
famosa pergunta “Qual sua área favorita?” e Direito Penal, Direito Civil, Direito
Constitucional ou Direito Trabalhista serem uma das respostas. Dentre tantas áreas
com características muito distintas a única coisa que as reúne é o fato de serem
normalmente classi cadas como “dogmáticas”.

Segundo Tércio Sampaio, são disciplinas dogmáticas aquelas voltadas ao aspecto


“resposta”, não havendo uma preocupação em questionar as premissas de que se
parte. Em contrapartida a essas disciplinas que estão preocupadas em sistematizar
e organizar o Direito em torno de premissas inquestionáveis, estão as chamadas
“disciplinas zetéticas”. Segundo Tércio, são disciplinas zetéticas as com enfoque no
aspecto “pergunta”, preocupadas, portanto, em questionar até mesmo premissas de
um raciocínio.

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Se existe algo que talvez seja sintomático certamente é o fato de que em relação a
pergunta sobre disciplina favorita muito provavelmente não se escutará como
resposta Filoso a do Direito, Teoria do Direito, Sociologia do Direito, etc. Ou seja,
di cilmente, a resposta será voltada a uma área de investigação que se dedica a
uma abordagem sem interesses imediatos com a aplicação do Direito.

Isso é, eminentemente, re exo do fato de que o Direito em última análise é


essencialmente um mecanismo de resolução de con itos, o que fará com que,
inevitavelmente, os estudiosos, em especial os que pretendem trabalhar com a
prática jurídica, se debrucem na dogmática jurídica, no aspecto técnico.

Ainda que se tenha em mente a necessidade de se atentar ao domínio da letra da lei,


o grande problema é quando se dá atenção apenas a ela. A completa ausência de
interesse numa formação que vá além do simples conhecimento dos códigos e
técnicas é totalmente insu ciente para lidar com os desa os que circundam a
realidade prática do Direito.

Mas qual o originador desse “fetichismo pela lei”?

É muito provável (e irônico) que, uma vez que se reconhecesse o problema, o


originador apontado por qualquer estudante de Direito fosse o chamado positivismo
jurídico, ou ao menos a tese que rotineiramente se atribui à corrente. A ironia reside
precisamente no fato de que em geral, em especial no pós-guerra, o positivismo

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jurídico caiu em grande decadência, mas, ainda assim, é de conhecimento geral que
em muito in uencia o estudo do Direito, ainda que em sua versão deturpada.

Essa versão deturpada seria, precisamente, a de que o positivista jurídico é todo


aquele que defende, primeiro, que o Direito deve ter sua validade analisada única e
exclusivamente por critérios formais e não valorativos, segundo, que uma vez que
essa norma seja válida deve portanto ser aplicada.

Essa interpretação do positivismo é deturpada na medida que corresponde ao que


teóricos como Santiago Nino classi cam como positivismo jurídico ideológico.
Segundo Nino nenhum positivista seria realmente adepto e segundo Norberto
Bobbio a tese seria atribuível na melhor das hipóteses a Hobbes.

A tese que Santiago Nino atribui como a de nidora de todo positivista é a do


chamado positivismo jurídico conceitual, que se liga à ideia de que “…se deve
caracterizar o conceito de Direito em termos não valorativos, fazendo referência a
propriedades fáticas…”.

É uma tese meramente conceitual, que vai postular que a conceituação do Direito, e
não sua aplicação, seja desprendida de uma análise de valor. Noel Struchiner
classi ca essa tese como “normativamente inerte”, no sentido de que não se
pronunciaria univocamente o positivismo sobre como se deve aplicar o Direito e sim
apenas em relação a como reconhecê-lo.

Com a adoção dessa nova tese em mente, como se extrai de Struchiner, há uma
brecha investigativa para toda uma discussão acerca de como efetivamente deveria
o Direito ser aplicado. Nesse sentido, o positivismo jurídico antes poderia ser usado
como argumento para uma aplicação técnica e não re exiva do Direito, o que
explicaria a falta de preocupação entre seus estudiosos sobre o estudo da Filoso a,
Sociologia e tantas outras. Agora, abre uma brecha para ser encarado não como o
causador do “problema de uma era de não lósofos”, mas sim como solução para o
surgimento deles.

Há uma efetiva diferença, portanto, entre reconhecer a necessidade de, para ns de


autonomia e su ciência do campo jurídico, descrevê-lo não valorativamente e, em
contrapartida, dizer que por isso não cabem dentro do Direito re exões maiores, que
superem a mera análise de competência formal e material.

A nal, se o objetivo maior no Direito é a resolução de con itos, o estudioso que


trabalha com o mesmo no dia a dia, certamente, precisa se aprofundar em
discussões teóricas voltadas ao que o Direito já tem rmado. Mas, também, precisa

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aprender a lidar com os chamados hard cases (“casos difíceis”) que se apresentam
em suas mais variadas formas não no momento de conceituar, mas sim de aplicar o
Direito.

Nessa medida, reforça-se, o positivismo em sua tese mais genuína não só não é
justi cativa para se excluir a importância de re exões losó cas sobre o Direito
como, surpreendentemente, pode ser compreendido como o responsável por dar a
grande brecha para tal.

Mas a nal, se a prática é o que interessa, de que maneira a zetética pode ajudar?

Considere-se, então, que a simples ideia de que um estudioso do Direito deveria ser
alguém que vá além do simples conhecimento de artigos e quando se aplicam (o
que, convêm dizer, não é algo muito complexo de se fazer) não é su ciente. Qual
seria, a nal, a importância de que alguém preocupado com a prática jurídica ainda
assim saiba zetética?

Para um juiz é extremamente importante que esteja atento não somente ao


problema da justiça (que aqui não será o enfoque) como também ao problema da
verdade num processo e para o problema de que ao raciocinar sobre fatos nem
sempre poderá realizar um raciocínio com nalidade de alcançar a verdade deles.

Matida e Herdy, nesse sentido, apontam os compromissos não só epistêmicos


como também normativos e interpretativos aos quais um juiz está sujeito no
momento da tomada de decisão. Há, destacam, cenários em que o juiz precisará,
inevitavelmente, utilizar-se de mecanismos como regras de presunção, regras de
ônus da prova e técnicas de interpretação sobre fatos para formular uma hipótese
fática.

Dessa forma, o que efetivamente diferenciará um juiz bom de um ruim é seu


conhecimento, não somente sobre o que a lei diz, mas sim sobre o que está por trás
de dispositivos como, por exemplo, o da presunção de inocência.

O que está por trás da preferência institucional por presumir inocente até que se
prove o contrário é, deve o juiz saber, uma preocupação fortemente rea rmada pelos
estudiosos da Filoso a do Direito por uma preferência ainda mais subentendida de
que o juiz deve se atentar ao fato de que em cenários que identi car incerteza ele
deve decidir absolvendo independente do que particularmente ache.

O que diferenciará um juiz bom de um ruim será aquele que demonstra preparo e
fundamentos, portanto, para lidar com situações em que não terá dispositivos com

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motivos anexos tão óbvios. E mais, também aquele preparado para lidar com
situações em que nem mesmo terá dispositivo, precisando recorrer, por exemplo, a
estratégias de resolução de con ito como cções jurídicas.

Independente do cenário judicial, existe, não à toa, o chamado princípio do livre


convencimento motivado, o que obriga o juiz a justi car sua decisão, sobretudo, em
cenários difíceis. Assim, o que efetivamente diferenciará um juiz arbitrário de um não
é o que demonstrar em cenários difíceis capacidade de fazer uso de conceitos e
re exões inerentes a zetética jurídica em vez de recorrer a pura e infundada
convicção.

Agora voltando-se ao advogado, o que efetivamente vai fazer um bom advogado não
será sua capacidade de apontar artigos, isso talvez seja o menos relevante. O
diferencial de um advogado, o que o dará maiores chances de vitória numa
controvérsia será, precisamente, sua capacidade de reconhecer os mais
diversi cados métodos de se interpretar um texto e sagazmente aplicar aquele que
lhe concede o melhor resultado.

Ou, recorrendo à categorização de Shecaira e Struchiner, reconhecer as


características, forças e desvantagens de uma argumentação institucional (que
invoca normas e instituições como motivos) ou substantiva (que invoca questões
morais políticas e econômicas como motivos). E, uma vez que se reconheça essas
formas de argumentar em suas mais diversas manifestações, seja capaz de
escolher e aplicar suas estratégias da forma mais e caz à sua vitória.

Ainda em relação ao advogado e levando em conta a categorização de Taruffo sobre


narrativas boas e narrativas verdadeiras, é muito comum encontrar advogados não
tão compromissados com a verdade dos fatos ou mesmo inocência de seu cliente.

Se pensarmos em séries como How to get away with murder e a advogada Annalise
Keating, protagonista estrelada por Viola Davis, isto talvez que bem evidente, entre
outros motivos, pelo fato dela nem mesmo se preocupar em questionar aos seus
clientes sobre sua inocência.

É precisamente importante para um advogado estar consciente da notável diferença


entre uma história verdadeira e uma história convincente. Isso para que aprenda a
lidar com cenários judiciais em que a parte contrária usará de estratégias para
deturpar a verdade dos fatos em sua vantagem e, eventualmente, tal advogado
esteja preparado para reconhecer e contornar essas estratégias que resultarão em
narrativas extremamente boas, mas falsas.

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O que preparará esse advogado para rebater essas situações, ou eventualmente até
fazer o mesmo, é a obtenção de uma forte base não apenas prática, mas também
teórica, envolvendo conhecimentos sobre as modalidades probatórias e todas os
estudos que existem sobre suas di culdades e brechas, algo que vai, certamente,
muito além de códigos ou “senso comum jurídico”.

O que se quer enfatizar aqui, nalmente, é a tese de que, até mesmo para um
estudioso do Direito que não tem pretensões de seguir área acadêmica e de
pesquisa, o estudo e a atenção a todas essas discussões de fundo propriamente
teórico são de extrema importância. E o positivismo jurídico, em sua compreensão
mais genuína de corrente jus losó ca, não é o que in uencia o desapego a esses
outros estudos, mas sim o que efetivamente dá brecha a eles, uma vez que não se
manifesta propriamente sobre a aplicação do Direito.

A zetética não é, como muitos tratam ainda que não manifestamente o digam, inútil,
mas é precisamente a chance de garantir que se forme um estudioso do Direito
capaz de estar preparado para questões muito mais complexas que fogem ao
escopo da dogmática e que inevitavelmente esbarrarão na prática jurídica.

Torna-se o lósofo, então, capaz de tomadas de decisões muito mais bem


fundamentadas e racionais e, em última análise, para o que se considera mais sagaz
e descompromissado com o certo, torna-se a Filoso a um caminho para criar o
caos e, eventualmente, isto: vencer.

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Referencias Bibliográ cas

BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico – Lições de Filoso a do Direito. São


Paulo: Ícone, 1995, pág. 137.

FERRAZ J R., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão,


dominação. São Paulo: Atlas, 2003, págs. 39 a 41.

MATIDA, Janaina; HERDY, Rachel. As inferências probatórias: compromissos


epistêmicos, normativos e interpretativos. In “Epistemologias Críticas do Direito”
(ed. José Ricardo Cunha). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016, págs. 222 a 233.

NINO, Carlos Santiago. Introdução à análise do direito. São Paulo: Martins Fontes,
2010, págs. 36 a 45.

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SHECAIRA, Fábio, STRUCHINER, Noel. Teoria da Argumentação Jurídica. Rio de


Janeiro: Ed. Puc-Rio e Contraponto, 2016, págs. 35 e 36.

STRUCHINER, Noel. Para falar de regras: O Positivismo Conceitual como cenário


para uma investigação losó ca acerca dos casos difíceis do direito. Tese
(Doutorado em Filoso a), Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro,
Departamento de Filoso a, 2005, págs. 47, 52 e 53.

TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. São
Paulo: Marcial Pons, 2016, págs. 88 a 93.

MICHAEL GUEDES DA ROCHA – Discente no 8º período da graduação em Direito da UFRJ. Monitor de


turma de Filoso a do Direito e de Argumentação Jurídica e Teorias da Decisão. Pesquisador na área de
Epistemologia Jurídica aplicada aos tribunais

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