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Revista Brasileira de História


Print version ISSN 0102-0188

Rev. bras. Hist. vol. 18 n. 35 São Paulo 1998

doi: 10.1590/S0102-01881998000100010

Redefinindo o Conceito de Imagem

Annateresa Fabris
Escola de Comunicação e Artes
Universidade de São Paulo

COMENTÁRIO BIBLIOGRÁFICO

RESUMO
O que é a imagem hoje? A coexistência de diferentes tipos de
imagem não permite mais conceder primazia à representação,
alicerçada na relação entre imagem e realidade exterior. O modelo,
fruto de abstrações formais, está tomando cada vez mais o lugar da
imagem especular, marcando a passagem da natureza para a
linguagem e redefinindo o regime da visualidade contemporânea.
Palavras-chave: imagem, representação, modelo, simulação.

ABSTRACT
What is an image nowadays? The coexistence of several kinds of
images does not allow anymore to confer priority to representation,
founded on the relationship between image and external reality.
The model, generated by formal abstractions, replaces oft and oft
specular image. It designates the passage from nature to language
and a new system for contemporary visuality.
Keywords: image, representation, model, simulation.
Num breve, mas denso ensaio publicado em 1989, Alain Rénaud
propõe uma reflexão instigante sobre o estatuto da imagem nos
dias de hoje, que não pode deixar de ser levada em consideração
por todos aqueles que desejam discutir a problemática da
visualidade contemporânea.

Deixando de lado o conceito de imagem em prol da noção de


"visibilidade cultural", Rénaud convida-nos a pensar nas
transformações advindas dos processos de simulação interativa,
que permitem antecipar o real físico, reproduzí-lo e manipulá-lo.
Dentro dessas novas estruturas, aquela que o autor denomina
"imagem espetáculo", substituída pelo "simulacro interativo", o que
gera uma transformação radical não apenas do conceito de
Representação, mas sobretudo da relação com o real. A imagem
deixa de ser o antigo objeto óptico do olhar para converter-se em
imagerie (produção de imagens), práxis operacional que insere o
sujeito numa "situação de experimentação visual inédita", acrescida
pela possibilidade de integrar outros registros da sensibilidade
corporal, sobretudo o tato.

Se estas considerações são de âmbito geral, resultando, na


verdade, de processos técnico-industriais, Rénaud não deixa,
contudo, de apontar o que o novo estatuto da imagem, passível de
produzir nos terrenos da estética e da arte. Embora discretamente
estaria tomando corpo um novo regime estético, que o autor assim
enuncia:

em direção a uma estética de procedimentos na qual o processo se impõe sobre o


objeto: a forma cede lugar à morfogênese; vivemos o fim da hegemonia do
espetáculo fechado e estável: a cenografia subordina-se à cenologia. Em direção a
relações inéditas entre o Corpo, a Materialidade e o Artificial, em direção ao
deslocamento tecno-estático da ordem representativa analógica.

Deslocamento que Renaud propõe pensar na dimensão de uma


"antropologia cultural das superfícies", capaz de dar conta "das
mediações visuais, simultaneamente técnicas, semânticas e
estáticas que organizam (especular e especulativamente) a
produção e a reprodução dos sujeitos humanos concretos de uma
cultura singular".

Uma vez que isso implica por fim a uma visão idealista da arte,
segundo a qual a imaginação, separada das condições técnico-
materiais de produção e funcionamento, o autor articula uma
proposta de leitura centrada na pop art e no hiperrealismo para
discutir uma questão central da imagem clássica, o conceito de
identificação. A leitura de Renaud é instigante, pois ele detecta a
crise da ordem da representação não na abstração, mas em
operações fundadas na figuração que corroem a figura até
transformá-la apenas em superfície, em pura imagerie. Exemplar
nesse sentido, a proposta de Warhol, que transforma a figura
humana numa forma-superfície, a testemunhar uma existência
alusiva, uma identidade pelicular, a antecipar as interfaces de
conversão da imagem numérica.

A passagem da superfície à interface, do óptico ao num, rico


pressupõe uma outra ordem visual, alicerçada não num objeto, mas
num modelo e em suas regras formais de manipulação. Passa-se da
imagem especular à imagerie especulativa, da contemplação à
ação, o que gera uma nova situação iconográfica, assim descrita
por Rénaud:
(...) a Imagem informática não é mais o ponto de chegada visual de um corte ou de
um enquadramento óptico que manifesta, por projeção - na ordem da Representação
- uma essência objetiva atribuída por antecipação ao mundo e revelada pelo Olhar de
um Sujeito universal e soberano (...); não é mais a `passagem do Fundo à Superfície'
(...) mas um acontecimento aleatório, ponto de chegada de um processo, que remete
ao jogo de toda uma série de mediações específicas que o traduzem e o conduzem
até o estágio de `imagem' terminal.

Se as novas tecnologias da imagem se regem muito mais pelos


procedimentos e pela morfogênese do que por resultados
imediatos, isso significa que elas não são portadoras de
possibilidades de inovação artística? Não é nisso que Rénaud
acredita, embora não deixe de apontar o perigo de um uso gratuito
ou estereotipado das novas tecnologias. Vendo nelas "laboratórios
experimentais" da sensibilidade e do pensamento visual, o autor
aposta num uso ativo e criativo de suas possibilidades, sem, por
outro lado, profetizar o aniquilamento das formas anteriores de
visualidade e materialidade. Estas serão transpostas para novos
registros de significação e de fruição, a partir de uma rediscussão
de seus mecanismos constitutivos e de suas relações com a
existência1.

As questões apontadas por Rénaud permitem pensar de maneira


profícua e dialética a relação entre o passado e o presente da
imagem, posto que o autor não pretende substituir um sistema pelo
outro, mas antes alertar para o caráter temporal de qualquer
sistema e para a necessidade de pensar a problemática visual numa
perspectiva histórica e antropológica ao mesmo tempo. Não se
trata, portanto, de fazer a apologia das novas tecnologias e
desacreditar o que as antecede, mas de perceber como os
diferentes sistemas de produção da imagem estão vinculados às
estruturas técnicas e culturais particulares, que determinam sua
relação com a realidade e os modos de configuração dessa mesma
realidade.

Embora com outras intenções, também Gillo Dorfles propõe uma


reflexão sobre o momento atual da arte, a cavaleiro entre dois
"perigos", uma produção de" retaguarda", "depositária de uma
tradição obsoleta", e outra falsamente de "vanguarda", "fanatizada
pela adesão franca e esnobe aos últimos achados tecnológicos". O
que Dorfles pretende discutir não é o anacronismo de técnicas
destituídas de qualquer intencionalidade, e sim os perigos que
podem resultar de um encontro acrítico entre cultura e tecnologia.
Entre esses perigos ou equívocos, o autor lembra, em primeiro
lugar, a possibilidade de um esgotamento da fantasia em
conseqüência do deslumbramento com as potencialidades
manipuladoras dos novos meios e a libertação da dimensão
manual, o que levaria a um hedonismo progressivo, e não a uma
autêntica experiência artística.

A perda de ritualidade e a falta de uma "experiência vivida" na


fruição estática são outros problemas sobre os quais Dorfles chama
nossa atenção. Este segundo aspecto recobre a esfera da
simulação, que o autor aproxima da "perda da aura", analisada por
Benjamin na década de 30 a partir do fenômeno da
reprodutibilidade. Se Dorfles não desconhece o alcance da
revolução da reprodução, não hesita, porém, em falar em
"falsificação das imagens" e em alertar para a pseudocultura que
está na base de "equivalentes" quase absolutos e, por vezes, mais
atraentes que os originais.
A análise de uma possível relação entre técnica e estética
completa-se com um alerta final: a necessidade de não conferir aos
produtos forjados pelas novas tecnologias as mesmas prerrogativas
dos produtos manuais, bem como de não subjugar as criações
artísticas de derivação artesanal aqueles processos reprodutivos
que alteram sua verdadeira natureza e suas mais profundas
qualidades expressivas2.

Os vários alertas de Dorfles repousam numa concepção nostálgica


da arte, que tem consciência da perda da dimensão utópica que o
projeto moderno lhe havia conferido, e não consegue vislumbrar
outras possibilidades para ela numa sociedade dominada por uma
estetização difusa propiciada pelos meios de comunicação de
massa.

Se é evidente que o fascínio tecnológico não é suficiente para


elaborar novas formas de linguagem, de nada adianta, porém,
pensar a arte a partir de categorias ainda humanistas, buscar um
tipo de fruição que se perdeu com a exposição constante do olhar à
imagem onipresente. Poder-se-ia dizer, ao contrário de Dorfles,
que, freqüentemente, os ensaios das novas tecnologias redefinem a
relação do fruidor com a obra, obrigando-o a ter uma atenção
concentrada num fluxo contínuo, que só pode ser apreendido em
sua totalidade, a introjetar a temporalidade proposta pelo artista,
enquanto não é raro um olhar transeunte sobre os produtos
tradicionais, que nada mais fazem do que exibir estruturas e
relações perceptivas conhecidas de sobejo.

O que é importante sublinhar, se quisermos pensar em estratégias


de ensino em consonância com o momento atual, é que as
mudanças técnicas implicam necessariamente mudanças de
pensamento e de visualidade. Como afirma Pierre Lévy:

Uma mudança técnica é ipso facto uma modificação do coletivo cognitivo, implica
novas analogias e classificações, novo mundos práticos, sociais e cognitivos3.

Tal como Rénaud, Lévy não deixa de ter uma visão histórica da
relação entre técnica, tecnologia e sociedade. Em Les Téchnologies
de l'Intelligence, insere a rede numérica na continuidade de uma
história das tecnologias intelectuais e das formas culturais a elas
associadas4, que faz consistir em mais dois tempos específicos, o da
oralidade ("palavra e memória") e o da escrita ("escrita e história").

Faz-se necessária, pois, uma visão histórica e antropológica da


relação entre técnica e cultura, capaz de fornecer ao educador da
atualidade a exata dimensão dos diferentes momentos de um
diálogo, que não pode ser tomado como absoluto, mas que deve
ser visto em suas interações e em suas contradições. Se o universo
da técnica e da tecnologia gera novos modos de pensamento e de
visualidade, é sobre essas articulações temporais que deverão
incidir seu discurso, sem transformar uma articulação possível num
modelo a partir do qual irão ser julgadas as estruturas anteriores e
posteriores. Não se trata, portanto, de depreciar toda a arte
anterior ao advento das novas tecnologias, por não oferecer suas
possibilidades de manipulação e de interação, nem de julgar as
propostas oriundas destas a partir de categorias estéticas
tradicionais, incapazes de dar conta de sua dimensão antes de tudo
projetual.
Talvez alguns exemplos concretos possam mostrar mais claramente
o que se pretende sugerir. Será tomada como eixo a oposição entre
imagem especular e imagerie especulativa, esboçada por Rénaud,
porque ela permite pensar, em grandes linhas, a história da arte do
Renascimento aos dias de hoje.

A imagem especular, própria do Renascimento, não é resultado de


uma ação apenas artística. O fruto de uma combinação entre arte e
ciência, que tem na observação e descrição do referente exterior
seu modo peculiar de afirmar um universo laico e empírico, não
mais sujeito às constrições da religião. O artista do Renascimento
supera o anterior estágio artesanal, intrinsecamente vinculado ao
domínio de técnicas manuais, e se converte num pesquisador, no
organizador de uma nova visualidade, que tem na perspectiva seu
produto mais sofisticado.

Modelo de organização e de racionalização de um espaço


hierárquico, a perspectiva é bem mais do que a aplicação de leis
geométricas e matemáticas. É a possibilidade de estruturar a priori
o universo mutável da natureza, a partir de um ponto de vista que
é aquele de um sujeito onisciente, capaz de tudo dominar e
determinar. Não se pode esquecer, por outro lado, que o momento
da perspectiva é o momento da imprensa, o momento do
armazenamento e da distribuição de um conhecimento cumulativo,
interessado na preservação do passado e na difusão do presente,
que busca na forma fiel e rigorosa um novo estilo cognitivo,
baseado na "demonstração visual"5. Mesmo imagens de derivação
tecnológica como a fotográfica e a vídeo-eletrônica ainda são
elaboradas a partir de uma realidade visível pré-existente,
integrando, portanto, o universo da especularidade.

Bem outra é a lógica da imagem numérica, fruto de manipulações


formais e linguísticas, produto de uma abstração formal que
sintetiza uma imagem ex nihilo e confere autonomia simbólica aos
objetos conceituais que dela derivam. É a passagem de uma
representação do mundo real à elaboração de um modelo pré-
concebido, do concreto ao abstrato, da natureza à linguagem, como
pontua Philippe Quéau6.

A idéia clássica da janela é substituída pela interação permanente


entre imagem e modelo, pela possibilidade de penetrar no interior
da imagem, que se transforma em lugar, ao ver abandonada a
bidimensionalidade à qual estava condenada. Experiência em si, em
potência, que possui outras possibilidades para além daquelas
imediatamente visíveis, a imagem virtual constitui para Quéau não
apenas uma nova técnica, mas, antes de tudo," a aparição de uma
nova escrita", tão determinante quanto o alfabeto e a imprensa7.

Não é dessemelhante a postura de Pierre Lévy, que detecta no


computador o dispositivo técnico a partir do qual o homem percebe
o mundo, não apenas em termos empíricos, mas também
transcendentais, uma vez que a sociedade atual concebe "mais e
mais o social, o vivido ou os processos cognitivos com uma grade
de leitura informática". A experiência pode ser estruturada pelo
computador, o que não significa que seus produtos sejam apenas
instrumentais. Lévy acredita, ao contrário, que os produtos da
técnica moderna podem ser fontes de imaginário, entidades que
participam da configuração de mundos manifestos8.
Na era da informática redefinem-se os conceitos de espaço
(mobilização permanente), de tempo (pontual), de memória
(passagem da verdade à operatividade e à velocidade), de
conhecimento (simulação, exploração interativa), de fruição (fim da
recepção em prol da seleção, da recomposição, da interação,
graças às interfaces), de cultura (distribuição de representações)9,
o que implica o fim da epistemologia clássica e a necessidade de
inventar novos modos de pensamento e, logo, de visualidade.

Se, como afirma Lévi-Strauss, a técnica é parte, produto e condição


da cultura10, não se pode pensar o ensino da arte dissociado de
suas condições materiais de produção e de circulação, pois isso
implicaria transformar um sistema em absoluto. O que este
momento crucial para a existência da imagem está apontando é
justamente o contrário. A coexistência simultânea de imagens-
objeto (fotogramas), de imagens-efeito (planos televisivos) e de
imagens-projeto (computacionais ou virtuais) mostra que a
materialidade11 de cada tipo, inerente a determinados sistemas de
pensamento e de produção, que devem ser investigados em suas
estruturas fundamentais a fim de que a nova visualidade seja
percebida como um momento, crucial sem dúvida, no qual podem
vir a se encontrar presente e memória sem necessidade de
exclusões mútuas.

NOTAS
1
RÉNAUD, Alain. "Pensare l'Immagine Oggi. Nuove Immagini, Nuovo Regime del
Visibile, Nuovo Immaginario". In V.A., Videoculture di Fine Secolo. Napoli, Liguori,
1989, pp. 11-27. [ Links ]

2
DORFLES, Gillo. "Interferenze tra Arte e Tecnica in Rapporto ai Nuovi Media". In
Epipháneia, Napoli, nº (0), mag. 1995, pp. 32-33. [ Links ]

3
LEVY, Pierre. Les Téchnologies de l'Intelligence. Paris, Seuil, 1993, p. 166.
[ Links ]

4
Idem, p. 86.

5
Idem, p. 112.

6
QUÉAU, Philippe. Éloge de la Simulation. Seyssel, Éditions du Champ Vallon, 1986,
pp. 31-32 e 186-187. [ Links ]

7
"Nouvelles Images, Nouveaux Regards". In V.A., L'Empire des Techniques. Paris,
Seuil, 1994, pp. 128-129. [ Links ]

8
LÉVY, P. op cit., p. 16.

9
Idem, pp. 129; 131; 135; 138; 147 e 158.

10
"Les Techniques et l'Humanisme". In V.A., L'Empire des Techniques, op cit., p. 236.

11
Idem, p. 237.

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