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AFFONSO AVILA E A GERACAO DE TENDENCIA Anténio Sérgio Bueno’ Resumo ste trabalho procura chamar a atenglo do leitor para a importincia ida contribuicio da revista Tendéneia para a cultura mineira e bra- sileira contemporiinea e, em especial, sublinhar a qualificada participa- cdo, na revista, de Affonso Avila, tanto como critico literrio, quanto como poeta. Vinte anos ap6s 0 langamento do primeiro naimero de Tendéncia (agosto de 1957), Paulo Leminski, em carta a Régis Bonvicino, prenuncia: Talvez ndo haja mais tempo ‘para grandes GESTOS INAUGURAIS como a Poesia Concreta foi a Antropofagia foi a Tropicdlia foi Agora é tudo assim ninguém sabe 4s certezas se evaporam Nas palavras de Leminski ja encontramos a dificuldade de articulagao gru- pal para qualquer expresso de cultura, a negagao das utopias, o bombardeamento das chamadas vanguardas. O individualismo feroz passa a inviabilizar gestos coleti- vos também no plano das manifestagoes culturais e artisticas. 1957, 0s brasileiros estavam voltados para a defesa do petréleo, a cons- trugdo de estradas ¢ de Brasilia, Havia um imenso apelo nacionalista. Daf a muito pouco tempo nao havia mais espago para os chamados pensamentos desinteressa- “Universidade Federal de Minas Gerais 53 SGRIPTA, Belo Horizonte, « 1.2, p. 53-59, 1 sem, 1998 ArrONSo Avia F A GERAGAO DE TENDENCIA dos. Engajamento era a suprema palavra de ordem. Todos se engajavam a esquerda © A direita ¢ se transformavam em militantes. Cobravam-se posigoes € definigdes. Patrulhay: Nesse ano de 1957, sob a diregao de Fabio Lucas, e tendo na Comissao de Redagio Affonso Avila, Rui Mourdo e Fritz Teixeira de Salles, foi langada a re ‘Tendéncia, que alcangaria grande repercussio para a época. Do editorial desse primeiro nimero € possivel depr ol6gico: “Estamos empenhados na investigagio do sentimento nacional em nossa lite- ratura, no descurando também das manifestagdes deste mesmo sentimento nos ou- tos ramos da cultura e do saber humano.” ‘Além do desprezo pela neutralidade ou isengao, ha uma busca de homoge- neidade, uma disposigao para um “trabalho comum”, um “trabalho de grupo”. “Es- colher um rumo, eleger uma tendéncia, um trabalho comum”. No editorial do tiltimo nximero de Tendéncia lemos: “(A nova estética da se. ta -nder um projeto ide- revista) s6 tem wm tema, que é a consciéncia nacional”. Nas vésperas dos anos 60, temos um clima de radicalizagio semelhante ao da década de 30: necessidade de se tomar posigéo diante das polarizagoes ideolégi- lo para com as fronteiras culturais do pafs leva a afirmag6es que tangenciam as do velho Verdeamarelismo da década de 20: “A defesa de nosso patri- ) Mas nos repug- na qualquer tentativa de absorgiio ou de deformagao com que culturas estranhas tem-nos assediado no curso de nossa Histéria, em variadas formas de apropriagio intere: ménio cultural induz a repulsa de culturas transplantadas” ou “( ada”, Esse tom nio € muito diferente daquele do segundo editorial de A Revista (1925), de Martins de Almeida: “Nao podemos oferecer nenhuma permeabilidade aos produtos e detritos das eivilizagdes estrangeiras”. O primeiro editorial de Tendéncia anuncia 0 propésito de “analisar o que é especifico ¢ inconfundivel em nosso carter”. Essa disposigo ser4 reafirmada no edi- torial do n. 3, na proposta de estabelecer “uma frente tinica nacional” contra a “in- capacidade econémica” e a “apatia mental”, Assim termina esse editorial: “Nosso propésito, desde o primeiro ntimero desta revista, foi o de sugerir as bases da forma- Gio de uma consciéncia critica em torno do fendmeno literdrio que, no nosso enten~ der, é tanto mais auténtico, quanto mais nacional”. (p. 8) Ainda no mesmo editorial, insiste-se na énfase em um “compromisso que assinamos com o futuro”, a necessidade de “armar laboratérios que trabalhem para o futuro”, Perceba-se a enorme chamada “agoridade” (Haroldo de Campos) desta nossa década de 90. No caso especffico da participagdo de Affonso Avila em Tendéncia, passo a comentar seus poemas. Era natural que estes refletissem 0 engajamento do poeta nas questdes de ordem politica e social, embora jamais abdicasse de um certo patamar de sempre 0 produto verbal da lavra de Affonso Avila. incia que separa esse futurismo da década de 60 da ‘SCRIPTA, Belo Horizonte, « 1,02, p. 53-59, lsem, 1998 Anténio Sérgio Bueno No niimero | de ‘Tendéncia, encontramos o poema “Concflio dos planta- dores de café”. O préprio Affonso afirma que esse texto é “formalmente indefinido”. Nao penso assim. Vejo no poema uma forte aproximagdo formal em relagio a “O operdrio em construgio” de Vinicius de Morais, texto-slogan, muito repetido na dé- cada de 60, ¢ que apresenta um inconfundivel corte de Literatura de Cordel. Ambos 08 poemas se estruturam em rendondilhas maiores — os versos de maior alcance popular na métrica de lingua portuguesa: Vinicius: Notou que sua marmita Era prato do patrio Que sua cerveja preta Era o uisque do patrio Que seu macacio de zuarte Erao temo do patrio A. Avila: Nos arbustos derradeiros O tempo esmera a demao E essa mancha aureolada Ba sua coroacho Proponho ao vosso conselho Que se dé povoagéo De gado de corte e leite Aos campos que restariio Onde a estrela dos pastores Nos conduza a outra nagao Reforca a condigio engajada de “Coneilio dos plantadores de café” 0 voca- tivo “companhciros”, na intervengao do terceiro orador, lugar-comum em comicios c assembléias sindicais. Este poema de Affonso Avila foi também publicado no livro Carta do Solo (1961) com o subtitulo de “planfeto”, explicitando a finalidade a que o poeta o tinha destinado, embora a eficacia estética do poema transcenda de muito sua destinacao engajada. Neste mesmo livro é também reproduzido 0 poema “Morte em Efigie”, que jé fora publicado no n. 3 de Tend@neia. Esse poema, muito mais sofisticado que interior, apresenta superior vontade de estrutura e vem vazado num registro que critica hoje chama de construtivista. ‘Algum tempo depois, seria langada em Sao Paulo, pelo antigo grupo dos poetas concretos, ao qual Affonso se ligou por amizade ¢ afinidade artistica, a revista de arte de vanguarda Invengao. Muitos processos utilizados pelos concretos ja se anteciparam em “Morte em Efigie” de Affonso Avila. Mas 0 engajamento politico no esta ausente desse poema. Nele, o sujeito poético formula a idéia de julgamento de um “entreguista”, ou seja, um intelectual (ou homem ptiblico) que nao passava de “agente de um pensamento imperialista, inteiramente contririo aos interesses nacionais”. Essa pessoa se camuflava, dificul- SCRIPTA, Belo Horizonte, 1 ea 55 Atvonso Avia Fa Gexacio be Tenpencia tando sua identificacgao. Por isso, no podendo submeté-lo ao julgamento real, 0 sujeito poético recorre & imagem da “morte em efigie”, instituto juridico existente desde o perfodo medieval e que, no século XVIII, chegou até Minas. O personagem- entreguista do poema recebe, como 0 criminoso do passado, a sentenga final, em caixa alta: “GRAVA-SE NA MOEDAV/SUA MORTE EM EFIGIE”. Este poema resolve, magistralmente, a questo colocada por Ezra Pound nos seguintes termos: “De uma perspectiva empirica, o verso tem usualmente um ELEMENTO FIXO c um ELEMENTO VARIAVEL; qual dos elementos deve ser fixo e qual deve ser variavel, ¢ até que ponto, é 0 problema do autor”. O poema “Morte em Efigic” € um momento de equilibrio entre o compromisso ideoldgico ¢ o rigor formal. Essa alternancia entre um nticleo fixo ¢ um eixo rotativo de palavras é 0 que chamo de ESCRITA RADIAL. Um exemplo retirado de “Morte em Efigie”: — Ao diabo com seus favos Provou no feltro da lingua Ao diabo com seus sexos gozou no ménsiruo da vinka — Ao diabo com seus poldros ‘montou nos fusos da vdreca Ao diabo com seus veios Buscou nos ossos da lavra — Ao diabo com seu cédigo Rogou no oficio do logro — Ao diabo com seus gumes Cobriu nos pelos de engodo. Oimpe legio do vocabulirio poético, na justa adequacao entre os andamentos ritmicos ¢ as unidades referencias do texto. A parte I apresenta quatro seqiiéncias de trés quarte- tos um distico, todos em decassilabos heterométricos. Alinha ritmica vai se acelerar na parte IT, composta de disticos em redondi: Iha maior. Uma nova simetria se instala, aderente & agilizagao dos dados referenciais. Na parte II, 0s versos se contraem ainda mais em redondilhas menores agrupadas ‘el apuro formal de “Morte em Efigie” est, além da refinada se- em oitavas ladainha No mesmo tom de ladainha, a parte IV — correspondente & sentenga final ~ 1-se em oitavas, cujo primeiro verso funciona como um mote condenatério € O primeiro verso se repete no oitavo ¢ 0 recheio compée uma espécie de organiz 08 sete demais compdem uma glosa indignada que justificard a condenacio final. O tiltimo poema que comento aqui éa “Carta sobre a Usura”, que se divide em quatro partes. A primeira parte ONZENARIO ~ apresenta uma seqiiéncia de sei d na ditima, uma técnica barroca muito conhecida. A segunda parte — AS ARCAS ~ estrofes em que os elementos s eminam nas cinco primeiras e se recolhem compac-se de 0} 0 estrofes rigorosamente simétricas, denunciando as diversas agdes 56 'SGRIPTA, Belo Horizonte, « 1, 0.2, p. 53-59, sem, 1998 Antinio Sérgio Bueno do ouro, seu amplo leque de atuagao. A terceira parte— ELABORAGAO DA FOME, — mostra uma escalada em espiral dos efeitos da fome ca tiltima parte ~ COROA- GAO DO URSO ~ compie-se de dez tercetos também simétricos que trazem um didlogo interno entre os dois versos, os quais falam do urso (imagem do usuririo) €a resposta subalterna dos 4ulicos no terceiro verso. Se, no primeiro poema, a fungio engajada domina as demais, nos outros dois h4 um perfeito equilibrio entre empenho ideoldgico e caréter construtive da lin- guagem. As caracteristicas da poética de Affonso Avila nesses textos podem ser assim resumidas: * uma planificagao do poema; * uma farta consulta a materiais de criagio; * uma técnica ITERATIVA, que confere certo carater didatico aos poemas; * uma linguagem rigorosamente SUBSTANTIVA e SINTETICA. Mas Affonso Avila tem também importante participagéo como critico nos quatro ntimeros de Tendéncia. Como critico de poesia comparece no primeiro ni- mero com um “Depoimento” sobre o livro Duas Aguas de Joao Cabral de Melo Ne- to, publicado em 1956, Avila classifica Cabral como “o primciro grande poeta post- modernista do Brasil”. Embora perfeitamente capaz de discernir os amplos recursos técnicos da poética cabralina, Avila cai algumas vezes nas malhas dos preconceitos conteudistas da 6poca ¢ acusa como falha em O cdo sem plumas uma “construgio preciosa” Acrescenta que somente em Morte e vida severina, Joao Cabral se apoderara de seu “almejado processo de comunicagio” e vé neste livro 0 esbogo do que deve ser “a verdadeira (sic) linguagem poética nacional”. Era um tempo em que nao havia clima para uma convivencia plural de posigdes nem na Politica, nem na Arte. “Tempo de partido, de homens partidos”, de monélogos intolerantes. No ntimero 3 de Tendéncia, comentando o livro Espistola do Sao Francis- co para os que vivem sob sua jurisdigao, no Vale de Dantas Motta, Avila fala em uma “verdadeira épica nacional” a afirmar-se em futuro bem préximo ¢ que teria nguagem clegante, o critico traga um amplo painel de autores brasileiros que se voltaram para 0 rio como expre: anseios coletivos ou angiistias individuais, dentre os quais vale lembrar a cachocira de Paulo Afonso de Castro Alves, o rio Paraiba de Alberto de Oliveira, o ribeirao do Carmo de Cléudio Manoel da Costa e Alphonsus de Guimaraens, 0 Capibaribe de Manuel Bandeira, o Amazonas de Raul Bopp, o Mundati de Jorge de Lima ¢ 0 Tieté de Mario de Andrade. ‘Trata-se, sem diivida, de fina percepgio critica de um filo extremamente rico na hist6ria da literatura bra explorado pela critica especializada. Volto ao primeiro ntimero para comentar um exemplo em que Affonso Avila a critica de prosa. Trata-se de um registro da publicagao de Vila dos Confins de como centro tematico a imagem do rio. Em. io de ileira ¢ que, até nossos dias, nao foi devidamente reali SGRIPTA Bab Vonamie va, pS PO 57 ‘Avronso Avits sa Greagio br Tewpénets Mario Palmério. Louv 1c 0 acerto das posigdes do critico: Vila dos Confins receberi sérias restricoes se examinado como romance. (...) trabatho de ficgdo sem estrutura, ritmo ou mesmo sem histéria. ‘alta a Vila dos Confins a contencao e precisio de linguagem O tinico clogio vem daquela necessidade da época de valorizar tudo que parecia buscar a chamada “identidade nacional”: “O que devemos louvar nesse es- treante éa sua contribuigdo a reestruturagdo tematica que se opera em nossa literatu- ra € 0 fato de nos haver revelado mais um lance da realidade estuante de sugest6 que €0 sertio mineiro”. Entretanto, o analista da prosa de Mério Palmério nao consegue fugir de um certo marxismo mecénico que grassava, entio, entre os melhores espiritos nacio- nais da época. A sombra de um sociologismo determinista paira sobre estas palavras do critico: “Por forga de leis que regem a economia dos povos, assistimos no Brasil superagiio do colonialismo agricola, cuja ctipula é 0 café, determinada pelo incipien- te mas célebre processo de industrializagio”. No quarto ntimero de Tendéneia retorna Affonso Avila como crftico de prosa em “O homem sem fungio” na segdo “Comentirios”, resenhando o livro de contos Duas faces de Ivan Angelo ¢ Silviano Santiago. A clara percepgio, revelada pelo analista, do habil dom{nio dos meios expressionais da narrativa curta por parte de Ivan Angelo ~ por exemplo, “os planos intercalados do contraponto” no conto “Homem sofrendo no quarto” ~ mostra que Affonso poderia, se quisesse, ter avanga- do muito mais no caminho da eritica da narrativa no Brasil HA um detalhe, entretanto, que incomoda oleitor de hoje que revisita Ten- no s6 nos textes criticos de Affonso, mas em todos os demais, aparece um \sto crivo moralizante de avali: ss6es como “visio ima- (0, que reponta em expr zes inauténtica do mundo” (p. 148), “apreciagio honesta de seu esforco de tura e&s ve invengao formal” (p. 150) ¢ “autenticidade criadora” (p. 150). No final do quarto nimero de Tendéneia brilha ainda Affonso Avila como critico de cultura com um texto intitulado “Eixo Sao Paulo-Minas”, em que esboga, cm poueas linhas, um inteligente quadro histérico das relagdes cultura dois estados, com énfase na Literatura. entre os Avila inicia seu painel pelos vinculos entre Bernardo Guimaries e a gera- cdo romantica de Sao Paulo, passa pela famosa conferéncia de Oswald de Andrade em Belo Horizonte — “O caminho percorrido” —, lembra 0 ensaio de Mario de An drade sobre o Aleijadinho ¢ © poema “Noturno de Belo Horizonte” do mesmo Mé- rio, recorda a caravana modernista paulista de 1924 atravessando as cidades histéri- cas de Mi Desse encontro Avila esperava “um projeto comum da fundagao de uma expresso literdria de autenticidade nacional”. (p. 163) concreta ¢ a revista Tendéncia. Jas € termina no rico didlogo entre a poesi 88 a Ba Fee pa Anténio Sérgio Bueno De Tendéncia safram vozes importantes paraa cultura mineira e brasileira Fabio Lucas desenvolveu uma obra relevante na critica literdria nacional, Rui Mou- rio é um ficcionista respeitével, Maria Luiza Ramos € a professora universitéria ¢ ensaista que todos admiramos. Affonso construiu, a meu ver, a obra poética mais importante em Minas depois do Modernismo, além de ser um critico do Barroco de renome internacional. Espero que estas anotagées sem maiores pretensdes sirvam, pelo menos, para chamara atengio de alguns leitores para a importdncia da revista Tendéncia na hist6ria da cultura e, particularmente, da literatura em Minas Gerais. Résumé, Gs article veut attirer l'attention du lecteur sur l'importance de la contribution de la revue Tendéncia 3 la culture “mincira” ct méme brésilienne contemporaine, en mettant accent sur la participation ex- ceptionnelle d’Affonso Avila soit comme critique, soit comme porte. 3, eam IB 59 SCRIPIA, Belo Horizonte, 10-2,

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