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Assim caminha

a modernidade…
denise marques bahia

Criemos e manifestemos a arte dos tempos presentes. Ressurreições? Jamais!


(Le Corbusier, em 1936, a bordo do Zeppelin, a caminho do Brasil)

moderno, modernismo, termo moderno pode referir-se tanto a mani-


modernista e modernidade festações desse movimento específico – como
A análise da significância da arquitetura utilizaremos neste texto - ou, no senso comum,
moderna na contemporaneidade, de sua per- quanto a qualquer objeto ou fato novo, diverso
manência ou superação, requer uma elucidação do conhecido, o que pressupõe uma relação
acerca dos termos modernidade, moderno, temporal, uma experiência anterior. Apontar
modernismo, modernista. algo como moderno pode significar uma
Por modernidade, entende-se um processo, singularização do objeto, mas não sua definição
ainda em curso, que teve início com a renovação precisa [2], na linguagem coloquial.
científica do século XVII e a decorrente mu- Além da necessidade de se elucidar o cor-
dança na visão de mundo e nas formas de sua reto sentido dos termos, cabe ressaltar que o
expressão pelo homem nas artes, na arquitetura, Modernismo, ou o moderno, não pode ser con-
na cultura. A explicação teocêntrica do uni- siderado um movimento unívoco mas plural,
verso dá lugar à subjetividade, à compreensão abrangendo diversas expressões e linguagens
racionalizada, ao cogito cartesiano. Consolida- diferenciadas, ligadas a questões culturais e
se a crença na racionalidade emancipadora, na características individuais de seus atores. Sob a
instrumentalização da técnica para domínio da mesma designação - “moderna” - encontram-se
natureza. Ao mundo fechado medieval, abre-se obras bastante distintas, mas com um denomi-
o universo infinito da ciência moderna. Arte, nador comum.
ciência, religião, política definem-se em esferas Na contemporaneidade, o Modernismo vem
distintas. se consolidando como patrimônio histórico e
 Como um desdobramento desse processo cultural e ressurge como nítida referência nos
surge o Modernismo, no começo do século XX, conceitos e práticas da produção arquitetônica
como um movimento estético e cultural que, na recente.
experiência brasileira, assumiu características Nesta perspectiva, é necessário e urgente a
próprias, somando os conceitos e práticas das revisão crítica de suas proposições, das fraturas
vanguardas artísticas européias às buscas de no seu projeto utópico de transformação social,
reafirmação da identidade nacional, através da sua importância na cultura brasileira e o
da valorização do legado colonial barroco e exame de sua permanência.
das artes ditas populares. Este movimento,
chamado Movimento Moderno, no caso da ar- a arquitetura moderna no brasil:
quitetura brasileira, inscreve-se historicamente a expressão de um projeto de nação,
no período de 1928 a 1960. A historiografia trata do desejo de progresso
dessa arquitetura como arquitetura moderna. O Modernismo no Brasil surge na década de
Para Lucio Costa [1] é fundamental a distinção 20 a partir de um movimento pendular entre o
entre moderno e modernista. No primeiro caso desejo de internacionalização, de consonância
tem-se uma arquitetura consistente, fruto de com as pesquisas e discussões estéticas mun-
um processo enquanto que modernista designa diais e a necessidade de reafirmar a identidade
obras alegóricas, equivocadas, pastiches. O nacional, de redescobrir os valores e tradições

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autóctones, para enraizar e legitimar as novas proposições, assimilado e passou a simbolizar o desejo de ser moderno, de
as novas formas de expressão. O advento da industrialização status, de pertencimento e inclusão social no projeto desen-
e a formação de uma sociedade cada vez mais urbana trans- volvimentista, de modo a ser referenciado nas mais singelas
forma a paisagem natural, como bem retratam os quadros regiões, distantes dos eixos do poder central, na arquitetura
de Tarsila. A metáfora da antropofagia exprime o processo vernacular, informal.
de redescobrimento do país, do reconhecimento de suas No Brasil, como aponta Lucio Costa, ao contrário de ou­
origens culturais e exalta a inventividade de um povo que tros países, não houve antagonismo entre tradição e moder­
não quer se fechar para as influências externas num naciona- nidade e este aspecto talvez seja o que acabou por definir a
lismo estúpido, mas que é capaz de se beneficiar com novas singularidade da arquitetura brasileira frente ao movimento
experiências, sem prejuízo de sua identidade. internacional, além das condições econômicas.
Durante a Segunda Guerra Mundial, com o Estado Novo,
o nacionalismo de Vargas e a política norte-americana da o modernismo na contemporaneidade: ainda modernos?
“boa vizinhança” surge a invenção de um Brasil expressa Esta questão vem ganhando relevância nos debates
num imaginário popular de grande difusão no exterior. contemporâneos sobre cultura e na crítica das artes e da
É o período do samba-exaltação de Ary Barroso. E dá-lhe arquitetura. Em 2005, deu origem a uma exposição realizada
Carmen Miranda, Walt Disney, Zé Carioca exaltando o em Paris, intitulada Encore moderne? Architecture brésilienne
“Brasil brasileiro”, “o coqueiro que dá coco”, compondo uma 1928-2005 e a uma publicação de autoria de Lauro Cavalcanti
iconografia de uma aquarela histórica. No Estado Novo, o [4] . A exposição e o livro abordam a arquitetura brasileira
samba de Ary; no governo JK, a bossa-nova é a trilha sonora produzida no período considerado “heróico” – décadas de
que ganha análoga repercussão internacional na construção 1930 a 1960 - e obras e projetos recentes, contemporâneos.
da imagem de um país moderno, expressa na obra de Oscar Buscou-se, como explica Cavalcanti, identificar a relação
Niemeyer. entre a nova geração de arquitetos com o legado dos mestres
Na arquitetura, o Modernismo surge então como lin- da arquitetura moderna nacional.
guagem, como um sistema de signos, mas também como O crescente interesse pelo moderno, bem como a diver-
expressão de um projeto político desenvolvimentista que sidade de suas manifestações nos quatro cantos do mundo,
culmina com a construção de Brasília. Neste contexto pode ser verificado também nos seminários e publicações
ideológico a monumentalidade ganha destaque. No início do DOCOMOMO [5]. É impressionante a quantidade de
da década de 40, por iniciativa de Juscelino Kubitschek é pesquisas, inventários, trabalhos acadêmicos e ações de
criado o Complexo Arquitetônico da Pampulha, propiciando preservação de bens modernos em diferentes culturas.
a grande oportunidade para que Oscar Niemeyer realizasse A arquitetura moderna como objeto de preservação revela
um conjunto de obras inovadoras, de grande repercussão in- o paradoxo de um movimento que buscava ser a expressão
ternacional, explorando as possibilidades técnicas e plásticas material de seu tempo, apontando sempre para o futuro,
do concreto armado: apostando nas novas possibilidades trazidas pelas inova-
ções tecnológicas, inserido num projeto de modernização
se o prédio do Ministério projetado por Le Corbusier consti- e progresso, e que agora se consolida como patrimônio
tuiu a base do movimento moderno no Brasil, é à Pampulha histórico e cultural. O que era moderno é agora história, pas-
– permitam-me dizê-lo – que devemos o início da nossa sado continuamente reatualizado e reinterpretado na vida 
arquitetura, voltada para a forma livre e criadora que até hoje cotidiana das cidades.
a caracteriza. [3] Mas qual é exatamente o legado do modernismo para
a cultura brasileira e como se dá a sua permanência ou
Em 1943, é realizada a exposição e publicado o livro Brazil influência verificada em projetos e obras recentes? É notável
Builds em Nova Iorque, um marco na difusão da arquitetura a permanência do moderno na produção contemporânea
moderna brasileira e na consagração de Niemeyer como da arquitetura, como podemos verificar nas diversas publi­
maior representante, expoente máximo da arquitetura cações e exposições de trabalhos de jovens arquitetos.
moderna brasileira no cenário mundial. Refiro-me a uma produção que pode ser interpretada como
Nas décadas de 40 e 50, destacam-se as obras de Affonso uma releitura do modernismo, não mais quanto à proposta
Eduardo Reidy, Irmãos Roberto, Sérgio Bernardes, Oswaldo utópica globalizante de transformação social, nem tam-
Bratke, Vilanova Artigas, Lina Bo Bardi, Eduardo Mendes pouco como mera manipulação do conhecido vocabulário
Guimarães, entre outros. O Modernismo se consolida em formal corbusiano, ou como pastiches afetados e efêmeros
diversas regiões do país, passando a se manifestar não que atendem aos modismos do mercado de consumo. Não
somente em monumentais obras institucionais, públicas, se trata também de um retorno nostálgico, saudosista e
mas também na arquitetura residencial e em obras de anacrônico: afinal, “chega de saudade” depois de Brasília, da
pequena escala. O movimento que se iniciou nas elites, com bossa-nova e do pós-modernismo. O que ocorre nesses casos
patrocínio colossal do Estado nas obras públicas, foi sendo é o que Lauro Cavalcanti bem define como um “modernismo

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em movimento, mais dialético e conciliador(…). nas recentes coletâneas elaboradas por Roberto
Uma arquitetura múltipla e plural praticada por Segre: “Arquitetura Contemporânea Brasileira”
profissionais que, sem reverenciar um tempo já e “Jovens Arquitetos-Brasil” (Editora Viana &
passado, sabem nele encontrar riquezas e não Mosley, 2004). Mas deixo ao leitor este desafio,
fardos.” este jogo crítico de identificar afinidades,
Cabe investigar, como propõe este evento características modernas eletivas.
“mdc”, quais são as características essenciais Essas arquiteturas têm em comum a unidade
comuns entre essas obras, denotativas dessa entre linguagem estrutural e arquitetônica;
releitura, e quais os indicativos dos novos a experimentação de novas possibilidades
rumos apontados para a arquitetura moderna técnicas; a clareza formal; a potencialização da
e para a modernidade em seu sentido mais expressividade dos materiais; a linguagem a
amplo. A tarefa que se coloca nesta discussão é um só tempo moderna e contemporânea. Além
identificar qual o denominador comum, quais desses aspectos, essas arquiteturas expressam
as interseções entre essas arquiteturas con- uma postura bem moderna em sua concepção:
temporâneas além da linguagem, do repertório buscar no “passado válido”, como costumava
formal. dizer Lucio Costa, as bases para fundar um novo
Como exemplos dessa manifestação, desta­ processo investigativo. Os arquitetos modernos
cam-se os trabalhos do grupo de arquitetos recorreram ao legado colonial barroco para
Alexandre Brasil, André Luiz Prado, Bruno reconhecer a identidade nacional, para conciliar
Santa Cecília, Carlos Alberto Maciel, Danilo tradição e inovação, para ancorar as novas
Matoso Macedo, Fernando Maculan, Hum- proposições políticas, sociais, estéticas, cultu­
berto Hermeto, Pedro Morais que compõem a rais e os arquitetos contemporâneos recorrem
exposição “Diálogos”, a qual tive oportunidade analogamente ao legado moderno! Seria um
de visitar na Casa do Baile, em Belo Horizonte, sinal de continuidade do modernismo?
então intitu­lada 8 Arquitetos. 54 Projetos, em
abril de 2004 – ver projetos publicados neste o futuro do moderno
e nos demais números da MDC. Podemos e o curso da modernidade
destacar várias obras contemporâneas tam- Quando o crítico de arte Mário Pedrosa
bém representativas deste “modernismo em afirmou que o Brasil era um país “condenado ao
movimento”, como por exemplo: a Casa em moderno”, no final da década de 50, analisando
Aldeia da Serra (2002), SP, de autoria de MMBB a construção de Brasília, estava alertando para
Arquitetos (Ângelo Bucci, Fernando de Mello o fato de existir um projeto político autoritário
Franco, Marta Moreira e Milton Braga), que de uma modernização aparente e impositiva
revela uma nítida influência da arquitetura de criada artificialmente. Nos relatos dos trabalhos
Paulo Mendes da Rocha, é um volume uni- desenvolvidos no II Congresso Nacional de
tário de concreto e vidro, composto de duas Críticos de Arte, realizado em São Paulo, em
 lajes sobre pilotis definindo três níveis que se 1961, Pedrosa declara:
articulam ao terreno inclinado por passarelas; a
Residência Rio Bonito (2003) de Carla Juaçaba, O Brasil é, essencialmente, um país conde-
localizada em Nova Friburgo, RJ, que apresenta nado ao moderno. O Brasil, já tenho dito
a concepção estrutural - muros de pedra que várias vezes, é um dos raros países do mundo
servem de apoio a quatro vigas metálicas de com uma certidão de batismo; a partir de
12m de comprimento - evidenciada na forma certa data, de um certo ano de um certo
pura valorizada pelos materiais – ver MDC 1; século, o Brasil passou a existir e antes não
o Estacionamento de veículos E Box (2003), existia. Nós sabemos disso. E daí começou a
em Porto Alegre, do Studio Paralelo (Luciano ser construído de cima para baixo. (…) Brasília
Andrade, Gabriel Gallina e Rochelle Castro) só se explica também porque é um país que se
– obra singela que apresenta notável solução constrói de cima para baixo. [6]
plástica definida pela integração de um volume
principal composto de blocos de concreto Houve aí a denúncia de um descompasso en-
aparentes e vidro com um “contêiner” suspenso tre o progresso prometido e as reais condições
que abriga o escritório administrativo. Além objetivas e definitivas para alcançá-lo de modo
dessas, várias outras obras poderiam ser assim irrestrito e democrático. É como se a arquitetura
identificadas na produção atual bem mapeada moderna, formulada segundo modelos euro-

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peus, viesse do futuro longínquo e pousasse no • trabalhar coerentemente o sistema construtivo
meio do nada, ou ignorando qualquer cultura e a linguagem formal, utilizando da melhor
existente. Ocorreria, então, nesta perspectiva, maneira os recursos disponíveis;
uma modernização sem modernidade, de- • manter uma consciência crítica e avaliativa
senraizada. Hoje, passados mais de 45 anos constante do moderno.
da construção da capital do país, o moderno
já se consolidou como tradição, nas artes, Esses me parecem ser os elementos essen-
na arquitetura, na cultura e os megaprojetos ciais que constituem o mínimo denominador
urbanísticos impostos e bancados pelo Estado comum compartilhado por um considerável
não se aplicam mais. número de projetos e obras na arquitetura
A falência do projeto moderno no Brasil, contemporânea. Então estes seriam os ingre-
quanto aos seus propósitos sociais totalizantes dientes da receita para continuar moderno,
é hoje inquestionável, fato consumado e não certo? Errado. Estes são os fios que, entrelaça-
cabe aqui discuti-la. No entanto, vale rever os dos, compõem tramas mutáveis, “parangolés”
conceitos fundamentais do movimento, para arquitetônicos que assumem diferentes formas
entendermos, numa perspectiva contem- e configurações, principalmente a partir do
porânea, sua importância histórica, cultural e movimento dos sujeitos que os incorporam.
entendermos porquê e como se manifestam nas Talvez o resgate dessas proposições possa nos
obras recentes. colocar no rumo certo das trilhas da moderni-
Hoje, com a complexificação da sociedade, dade e promover uma equilibrada conciliação
com o agravamento dos efeitos perversos do dos tempos – passado, presente e futuro. n
subdesenvolvimento, com a consciência de que
a identidade brasileira é múltipla e que a nossa notas
1. Costa, Lucio. Registro de uma vivência. São Paulo, Empresa
cultura é plural, o que fazer no “país do futuro” das artes, 1995.
para retomar a modernização perdida e seguir 2. Sobre este tema ver Coelho Neto, José Teixeira. Moderno
Pós Moderno – modos e versões. São Paulo, Iluminuras,
conciliando inovação e tradição? O retorno ao 2001.
moderno, agora com o devido distanciamento 3. Xavier, Alberto (org.). Arquitetura moderna brasileira
– depoimento de uma geração. São Paulo, Pini; Associação
histórico, temporal e uma visão crítica menos Brasileira de Ensino de Arquitetura; Fundação Vilanova
apaixonada, sugere que há uma necessidade de Artigas, 1987.
4. Cavalcanti, Lauro e Correa do Lago, André. Ainda moderno?
recuperar a dimensão ética da arquitetura.
Arquitetura brasileira contemporânea.http//www.
Para que a modernidade não seja uma conde- vitruvius.com.br/arquitextos/arq066.
nação e se efetive, para que a arquitetura não 5. Docomomo – Documentation and Conservation of Build-
ings, Sites and Neighbourhoods of Modern Movement.
se restrinja ao problema da forma e não se 6. Arte em Revista, ano 2.n.4, São Paulo, Centro de Estudos de
omita quanto às suas responsabilidades num Arte Contemporânea, março de 1983, p.85.

mundo tão complexo, contraditório e cheio de


denise marques bahia (1964)
desigualdades, sejamos, sim, ainda modernos, Formada em Arquitetura e Urbanismo (UFMG, 1989); Mestre
no sentido de operar as seguintes proposições, em Arquitetura e Urbanismo (UFMG, 1999); Especialização 
curso multidisciplinar “As escolhas e as contingências: a
tipicamente modernas: produção da vida e das idéias na modernidade” – PREPES,
PUCMinas (1993); Professora do Depto. de Arquitetura e
Urbanismo da PucMinas desde 1994; Professora do Depto.
• exercer a vocação humanista da arquitetura; de Projeto Arquitetônico da Escola de Arquitetura da UFMG
• manter uma abertura constante para a experi- (1999-2000); Professora do curso de Especialização em Ar-
quitetura Contemporânea (2000, 2001), Design de Mobiliário
mentação;
(2004) e Arquitetura de Interiores (2002 a 2005) do Instituto de
• considerar sempre a questão da alteridade na Educação Continuada IEC-PucMinas.
concepção e produção da arquitetura;
Contato: dmbahia@uol.com.br, dmbahia@pucminas.br
• realizar uma pesquisa continuada de novas
técnicas construtivas;
• conceber a arquitetura como expressão mate-
rial de seu tempo;
• manter o equilíbrio fundamental entre a
responsabilidade social, coletiva e o trabalho
individual, autoral de criação artística;
• manter a postura “antropofágica”;
trabalhar o equilíbrio entre o ambiente natural e
o construído;

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