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ARTIGO DA REVISTA LÍNGUA PORTUGUESA

ED. 42 – ABRIL/2009

Pausa duvidosa
Certas vírgulas viram problema quando separam o que não deveriam

Josué Machado

No seguinte trecho do analista político de um jornal


brasileiro há uma vírgula, que costuma ser
intrometida em muitos textos, mas no caso foi para
lá de inconveniente.

"Uma coisa é certa: em qualquer crise e qualquer


tempo, quem contrapôs a teoria da 'ilha de
tranquilidade' às ameaças da 'Coisa', (vírgula
corrupta) comprou um lindo mico, como o que
subiu no ombro de George Bush."

Bush já era, mas a vírgula ainda é.

Em outro dia, do mesmo bom articulista:


"Quem não deve não teme, assim como quem não
está encenando diligências espetaculosas,
(vírgula maligna) nada tem a reclamar."

Mais uma vez, desse articulista:


"Quem produz seja lá o que for com mão de obra
aviltada, agressões ecológicas ou desleixo
sanitário, (vírgula infernal) deverá lutar por seus
negócios."

Já o psiquiatra Içami Tiba deu o seguinte título a


um livro: Quem Ama, Educa! É o mesmo título de
sua coluna no Jornal da Tarde, de São Paulo.

Separações
Graciosas as frases e gracioso o título. Só que separar o sujeito ("quem contrapôs...") do predicado
("comprou...") com vírgula, na primeira frase, equivale a arrasar um casamento feliz. Não fica bem.
Quem comprou o mico buliçoso? Foi quem contrapôs a tal teoria.

Portanto, a vírgula depositada entre "Coisa" e "comprou" é absolutamente malufosa, isto é, indevida,
imprópria, adventícia, aventureira, depravada, corrupta. Separa o sujeito oracional do predicado. Na
segunda frase, do mesmo articulista, o "quem" aparece duas vezes. Na primeira, curta, ele não é
tentado pela pausa natural a virgular indevidamente (Quem não deve não teme).

Quem não teme? Quem não deve. É claro que "quem" não deve é também "quem" não teme.
Na segunda, longa, cai na tentação da pausa e desaba com a vírgula respiratória asmática ("...quem
não está encenando diligências espetaculosas, [virguleta dungosa] nada tem a reclamar.").

"Quem" não tem nada a reclamar é "quem" não está encenando diligências espetaculosas.

Quanto ao título do livro e da coluna (Quem Ama, Educa!), menos razão ainda há para a vírgula mal-
educada, porque as duas orações são pequeninas e não há pausa que justifique a vírgula.
Quem é que educa? O amoroso educador ou o papai ou a mamãe.

Suspense
O que o senhor Tiba quis foi criar uma pausa de suspense: Quem ama (tchan, tchan, tchan, tchan)
educa!
É a vírgula tchan vezes 4, como a da abertura da Quinta Sinfonia de Beethoven.
Se ele queria marcar pausa, poderia ter utilizado reticências: "Quem ama... educa!" Ou travessão:
"Quem ama - educa!" Ou uma cerca, mas nada de vírgula.

Tanto nos textos jornalísticos como no título do livro e da coluna, a vírgula malufosa tenta separar casais
indissolúveis.
Será leviandade dizer, e alguns sábios lamentarão, mas, no caso de incerteza, o melhor é omitir vírgulas
do que aplicá-las a cada ofego depois de fraseados mais longos.

Se o redator estiver redatando e andando, ofegará mais e virgulará mais.


Já se vê que a pausa para ofego não é bom critério virgulatório.

Aventureira
É verdade que alguns livros de autores distraídos admitem a separação por vírgula dos dois elementos
de provérbios para marcar a pausa.

Por exemplo:
"Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura".
"Quem com ferro fere, com ferro será ferido".
Mas a vírgula será sempre inconveniente, mesmo nesses casos, porque está a separar, como dizem os
lusos, o sujeito do verbo - coisa sempre imprópria.

Água e bate; quem e será. (Quem bate? A água mole em pedra dura.)
Portanto, esses provérbios devem ser redigidos sem a vírgula aventureira. Assim:
Quem não tem Filipão escala com Dunguinha.

Sem vírgula, já se vê, mas sempre na defensiva: goleiro, nove no meio e um no "ataque".
Os do meio de preferência saracoteando para os lados com graciosas embaixadas, principalmente o
Ronaldo Cabeleira.
(Bem que o Pelé falou e disse: "No meu tempo não havia esse negócio de equilibrar a bola no cangote;
a gente ia pro gol".)

Provérbios
Algumas pessoas vão lembrar, em benefício do Dunga, que o Brasil ganhou de Portugal por 6 a 2;
esquecem-se de que os lusos para cá vieram no fim do ano passado gozar umas férias e apreciar
mulatais rebolados descontraídos.
De volta aos provérbios, há alguns nos quais a vírgula é essencial:

Quem furta pouco é ladrão, quem furta muito é barão.

Barão, político, conde, político, banqueiro, político, manipulador do mercado acionário, político, lobista,
político e por aí vai.

No caso desse provérbio, a vírgula é essencial porque separa as duas frases paralelas, cada uma com
sujeito, verbo e complemento próprios.

E o provérbio é perfeito, embora não seja aplicável a nenhum caso conhecido neste país.
Claro que não.

Servirá quando muito para a Bananândia, terra de políticos corruptos e justiça cheia de meandros
conhecidos pelos endinheirados.
Outro mundo.

Josué Machado é jornalista, autor de Manual da Falta de Estilo (Editora Best-seller)

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