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NOTA LIMINAR fazer a eletrônica e os cartões perfurados, parece retomar o sabor medieval das

Por Michel Mourlet pseudo-ciências, outrora denunciado por Rabelais ou Molière. Desejam imitar os
físicos na sua exploração infinitesimal da matéria, sem ver que os resultados destes
Se houvesse alguma beleza e alguma utilidade na ingrata função da implicam efeitos e usos, enquanto nenhuma dissecação literária poderia resultar
crítica, seria a condição de despertar em outro, por uma forma de comunicação em uma das duas únicas justificativas do empreendimento: um aumento na
poética, o sentimento que uma obra suscitou em nós. Se necessário, falar-se-ia admiração por Balzac ou a posse das receitas de seu gênio. Da mesma forma, a
igualmente bem de outra coisa, de um nascer do sol sobre o Vésuvio ou da explicação de um trabalho pelos temas e os temas de seus temas: fumaça, nada,
pelugem de um gato, para descrever um romance de Stendhal ou os quartetos de tempo perdido. Ao invés de desvelar afoitamente as obras de outros, faça obras
Beethoven. Eu veria, no fim das contas, algo como um poema deveras você mesmo, ou caçarolas de papel. Mas aqui tocamos a verdadeira razão da
mallarmeano, onde as sonoridades sutis e a concomitância das palavras evocariam, proliferação crítica: a impotência criativa da nossa época. Não se pode ao mesmo
acumulando em suas linguagens paralelas, a impressão global que sentimos diante tempo falar e agir. Uma escolha se impõe. Escolhemos falar.
de tal ou tal movimento da arte. Falar por falar, escolhi contar uma história. E é uma bela história a vida
Chega de sonhar. Certos exercícios críticos por mim praticados uma vez de Cecil B. DeMille. Acredito sinceramente que ela é muito mais interessante que
trouxeram-me a convicção de que deveria se dizer tudo de um artista em quatro os julgamentos que eu poderia exercer sobre o seu trabalho. Além de quê é
páginas, no pior dos casos. Uma só página é melhor. E ainda, talvez fosse mais divertido contar uma história, mostrar que a vida de um homem tem começo,
conveniente nada dizer. meio, fim, peripécias, tangências, raízes, um certo significado; muito mais
O saber não possui sentido fora de sua utilidade, imediata ou posterior: divertido e verdadeiro que se esforçar em não contar uma história, como fazem os
um saber inútil não é apenas inútil, mas também prejudicial, pois o esforço de romancistas de hoje. Para isso, pontilhei abundantemente a autobiografia do
adquiri-lo toma o lugar de um ato ou de um prazer. Creio que seja melhor cineasta, contentando-me na maioria das vezes em fixar-me aos eventos para
libertinar ou observar a grama crescer no jardim de Luxemburgo que aprender melhor ilustrar suas relações.
coisas as quais não servirão a nada. Como era necessário, ainda assim, dizer algumas coisas sobre os seus
Entendo bem que exista um prazer do saber, e que o homem honesto filmes, pedi a Michel Marmin, autor de um excelente estudo sobre Raoul Walsh,
descubra uma espécie de deleite complementar na análise de suas sensações ou na para escrever uma introdução a esta arte simples e clara. Eu creio, e é um grande
verificação de suas idéias. Mas isso se trata, portanto, de uma atividade diferente e elogio, diga-se de passagem, que ele conseguiu não complicar nem obscurecer um
quase sem relação com o meu desejo, que é de fazer descobrir. Falo aqui em trabalho que, de The Squaw Man a Os Dez Mandamentos, possui a força suficiente
termos de ação, de crítica dinâmica. da evidência.
Além disso, embora eu reconheça o interesse relativo da crítica de Finalmente, uma parte importante desta obra, composta de diversos
consumação, não posso deixar de dizer que fico um pouco assustado pela documentos, textos de DeMille, testemunhos de seus colaboradores, notas de
abundância desta literatura, que hoje tende a substituir a outra, a verdadeira, e tomadas, matérias da imprensa, completará por tornar objetiva a imagem de
proliferar como uma vegetação parasita sobre uma criação cada vez mais anêmica. DeMille que talvez será formada aos olhos do leitor, uma vez a leitura terminada.
Quando uma obra necessita de um comentador para ser recebida, é claro que lhe Quanto às idéias, é seguramente mais fecundo e saudável que cada um as encontre
falta precisamente o essencial: a encarnação da sua proposta na sua matéria. em si mesmos, enquanto vêem os filmes deste grande cineasta desconhecido.
É a obra em si, e não a sua explicação posterior, que deve criar o choque
decisivo, determinar o sim ou o não. A análise se limita a confirmar o consumidor
na sua aceitação ou rejeição, e se ela o abala, é em detrimento de sua sinceridade. "Note Liminaire", Cecil B. DeMille, Éditions Seghers, 1968.
Quanto a ensinar realmente, isso só pode se produzir em alguns casos raríssimos
de jovens sensibilidades ainda informes mas bem nascidas. Isso, dirão, justifica a Tradução: Bruno Andrade, Felipe Medeiros, Matheus Cartaxo Domingues.
análise: eis porque a cometemos de tempos em tempos. Revisão: Sérgio Alpendre.
Bem. Ainda assim é necessário que ela seja breve, e mais síntese do que
análise, para tentar recriar as condições afetivas do choque. Saber quantas vezes
Balzac empregou o adjetivo "branco" na Comédie Humaine, e contribuir para se

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