Você está na página 1de 54

BRUNO DUARTE

OS POEMAS
POSSÍVEIS

Editora Recanto das Letras


OS POEMAS
POSSÍVEIS
Bruno Duarte

OS POEMAS
POSSÍVEIS

Editora Recanto das Letras


© Bruno Duarte

Editora Executiva: Cássia Oliveira


Revisão: Bruno Duarte
Projeto gráfico e Diagramação: Denes Miranda
Impressão e Acabamento: Forma Certa

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Andreia de Almeida CRB-8/7889

Duarte, Bruno
Os poemas possíveis / Bruno Duarte. -– Sorocaba :
Recanto das Letras, 2018.
56 p.

ISBN: 978-85-69943-81-5

1. Poesia brasileira I. Título

18-0259 CDD B869.1

Índices para catálogo sistemático:


1. Poesia brasileira
EDITORA RECANTO DAS LETRAS
www.recantodasletras.com.br/editora
editora@recantodasletras.com.br

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta


obra pode ser reproduzida ou transmitida por
quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo
fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer
sistema ou banco de dados sem permissão escrita do
autor.
Para minha tia Ana Maria Crovitz,
pelo apoio de sempre.
SUMÁRIO

CATAR ....................................................... 10
MANHÃ, TARDE E NOITE ..................... 12
SUBMERSO .............................................. 16
POEMA LÍQUIDO ................................... 17
MEU CORPO ........................................... 18
EM SEU CORPO ...................................... 20
EPÍLOGO .................................................. 23
MONÓLOGO DE UM RIO ..................... 26
ALICE ........................................................ 28
NO PRINCÍPIO ........................................ 32
AS TETAS DA MISÉRIA ........................... 35
BICHO ...................................................... 37
ASSIM É BOM ........................................... 39
ELE SE FOI ................................................ 43
MUNDO in MUNDO .............................. 45
CUSTOS .................................................... 47
TODAS AS PUTAS .................................... 51
1
O poema
antes de escrito
não é em mim
mais que um aflito
silêncio
ante a página em branco

Ferreira Gullar
BRUNO DUARTE

CATAR

sair catando
bitucas
de cigarros
à beira da pista
à beira do mar
catando
conchas
catar retalhos
para formar
um cobertor
e me aquecer
do frio
catar migalhas
para matar
minha fome
e catar
as palavras
à beira da
solidão
10
BRUNO DUARTE

para compor
minha dor
cantar as
misérias
as sujeiras
do mundo
e me esquecer
da vida

11
BRUNO DUARTE

MANHÃ, TARDE E NOITE

os dourados
cabelos da manhã
penteio
em sorrisos diáfanos
quando
me despertas
colocando
suas mãos
férvidas
sobre meu
corpo recém
sonhado

12
BRUNO DUARTE

quando me
despertas
suave
tarde de primavera
beijando-me
com seus
lábios florais
molho-te
até a raiz
o caule
defloro
sua flor
de
perfume
espectral

14
BRUNO DUARTE

e quando
finalmente
tuas mãos
noturnas
me embalam
num
sono profundo
sobre suas
pálpebras
mergulho
num lindo
ressoar
de poesias

e eis
então
meu primeiro
poema feito
em sonhos

17
BRUNO DUARTE

com imagens
um tanto quanto
abstratas
e adormeço
sob o negro
lençol de
sua imensa
escuridão

15
BRUNO DUARTE

SUBMERSO

sub
merso
em versos da
taciturna solidão noturna
vou aos poucos me perdendo
o ar cada vez mais rarefeito vou
me dissipando paulatinamente até
por fim transformar-me nessa luz miúda
duma vida escura que a chamam de poesia

16
BRUNO DUARTE

POEMA LÍQUIDO

não queira
beber de meu poema
tampouco banhar sua alma
em meus versos
não queira congelar meu poema
em cubos de sofrimento
nem refletir-se em suas cristalinas
linhas com sua arrogância narcisista
não queira engarrafar meu poema
em pequenos vidros de veneno
e com ele envenenar as pessoas por dentro
nem queira assassinar essas almas desavisadas
afogando-as em minha lírica de sangue

com meu poema apenas lave suas mãos

17
BRUNO DUARTE

MEU CORPO

meu corpo
é um hospício
onde reside
um poeta louco

é um abrigo
onde abriga
um poeta perdido

é um templo
que guarda em si
um poeta sem fé

é uma alcova
onde adormece
um poeta devasso

18
BRUNO DUARTE

é um túmulo
onde está preso
um poeta assombrado

é uma estrada
onde caminha
um poeta errante

é uma taberna
onde repousa
um poeta ébrio

é um livro
que guarda
todos os versos
de um poeta

que só escreveu silêncios

19
BRUNO DUARTE

EM SEU CORPO

em seu corpo carrega


outros corpos que carregam
outros corpos que carregarão
outros corpos que enterrarão
corpos em covas rasas
raras paisagens noturnas esqueléticas
em seu corpo carrega
o fogo que reverbera de suas entranhas
estranhas figuras humanas sem cabeças
em seu corpo carrega
um campo de concentração com milhares
de crianças mortas de fome que choram
dentro de ti noite e dia
em seu corpo carrega flores mortas pútridas
sentimentos dúbios olhos fundos
moribundos cactos e crânios descarnados
em seu corpo carrega toda a estética
fúnebre da miséria o bojo o nojo
a bactéria moscas varejeiras

20
BRUNO DUARTE

em seu corpo carrega todo o excremento


mundano
a poesia esquecida a loucura forjada
em seu corpo carrega
o filé mignon a salada italiana a marmita azeda
em seu corpo carrega
o estômago vazio um segredo sombrio
a falta dum outro corpo em seu corpo
carrega a bomba que explode
a dor que eclode o perfume da morte
em seu corpo carrega o oco
o muito pouco o turvo céu
em seu corpo carrega
toda a cicatriz o câncer a febre amarela
em seu corpo carrega
um esgoto a céu aberto
ninhos de serpentes e ratos
em seu corpo carrega
mil estilhaços de vidros que cortam
pulsos imaginários
em seu corpo carrega

21
BRUNO DUARTE

o arrependimento na cruz que carrega no


pensamento de fogo e larvas e enxofre
em seu corpo carrega ainda
toda a vitória perdida águas vencidas
rios poluídos tempos perdidos
em seu corpo carrega
trovões trovoadas vulcões insistências
outras existências
em seu corpo carrega
toda a carga dum amor que carrega
toda a carga dum ódio que carrega
toda a carga dum peso que carrega
toda a carga disso que chamamos vida

22
BRUNO DUARTE

EPÍLOGO

não busque
olhares em meus olhos
nem sorrisos
em meus lábios
tudo que havia
para dizer já foi dito
nenhuma expressão
você verá em meu rosto
e de meus beijos
já não mais sentirá o gosto

não busque
calor em meu corpo
não espere de
meus braços abraços
algum
pois tudo que
havia para amar amei
tudo que havia para
chorar chorei

23
BRUNO DUARTE

de minhas mãos
nem mais um afago
de meu coração
nem mais um palpitar apaixonado
de minhas manhãs
nenhuma será ensolarada
e de minhas noites
estrela alguma brilhará
em meu céu escuro

tudo que havia


para dizer já foi dito
tudo que havia
para amar já foi amado
não haverá mais
o revoar de pássaros
em meu horizonte
apenas corvos negros
dando rasantes em
meu céu de cinzas

24
BRUNO DUARTE

e sobretudo
não espere de mim
mais do que flores
numa coroa com teu
nome escrito
no dia de seu funeral

25
BRUNO DUARTE

MONÓLOGO DE UM RIO

afogaram-se
em mim todos
os amores

apenas restando
rancores
submersos no limbo
obscuro de alguma caverna

e as dores
ah as dores
às vezes ressurgem em minha
superfície
feito corpos putrefatos
e infestam a tudo
com seus fétidos odores

26
BRUNO DUARTE

à minha margem
brincam crianças
desprovidas
de futuro
sem rumo
a esmo no mundo
escuro
infinita noite

sou um lugar
perigoso
cheio de armadilhas
um passo em
falso

te puxo
para o fundo sem
fim do abismo da solidão

de minha existência líquida

27
BRUNO DUARTE

ALICE

ali
Alice estava
contemplando abismos
dum país distante
diante
do precipício ali
Alice estava
caminhando pelos
labirintos de sua alma

ali
Alice estava
experimentando o ópio
da existência humana
na toca do coelho ali
Alice estava mergulhada
no êxtase da loucura
sentindo-se
um tanto quanto diminuta
28
BRUNO DUARTE

ali
Alice estava
formando rios de lágrimas
após comer do bolo de larvas
correndo em círculos
no esgoto ali
Alice estava ouvindo
estórias de um rato
fétido e asqueroso

ali
Alice estava
após se perder pelos
caminhos escuros ali
Alice estava fumando
da pedra que trocou
por sexo oral em plena
luz do dia jogada na rua afogada
em vômitos da overdose ali Alice está

29
2
o gari vai varrendo o mundo
e nada fica limpo
a sujeira tá no coração do homem

Miró, poeta recifense


BRUNO DUARTE

NO PRINCÍPIO

no princípio era
o verbo
agora é a verba
os dez por cento
da miséria
por uma lavagem
cerebral no
centro orbital
da guerra
nesse mar de caos
de cabeças decapitadas
de rendas per capitas
do mal
de lamas de
quinze minutos de fama
de estupros coletivos
de garotas propagandas

32
BRUNO DUARTE

no princípio era
o verbo
hoje é o abismo
o precipício
o fundo do
fundo do poço
da fé cega
do buraco de minhoca
do buraco negro
do medo
que espreita
da dor que
espreita
da fome de fome
da sede de sede
vamos todos
indo rindo
de nossas próprias
graças desgraças
caminhando
mergulhando nesse
33
BRUNO DUARTE

rio de merda
nos afundando
cada vez mais
no fundo do
fundo do fundo
desses dias tão rasos

no princípio
era o verbo
mas agora é
o que me falta

34
BRUNO DUARTE

AS TETAS DA MISÉRIA

não há mais leite


nessas tetas
apenas pele pelanca
um gosto purulento
de desgraça e fome

não há mais leite


nessas tetas
apenas um saco
murcho e flácido
escárnios da violência

não há mais leite


nessas tetas
apenas desprezos
odores fendas
sulcos sem sucos

35
BRUNO DUARTE

não há mais leite


nessas tetas
apenas sofrimentos
e o odor acre
da dor de meu povo

não há mais leite


nessas tetas
mas ainda mamam
impunemente o sangue
o pus e a fétida água virulenta

das murchas tetas da miséria

36
BRUNO DUARTE

BICHO

não
não é um bicho
ali mexendo na
sua lata de lixo
não é um bicho
ali naquela jaula
bicho não é
ali sangrando no
meio da rua
crivado de bala
bicho não é
ali mendigando uma
moeda
bicho não é
ali deitado na calçada
drogado de cachaça
bicho não é ali
morto largado na vala
enterrado sem nome

37
BRUNO DUARTE

nem nada
bicho não é ali
gritando entrega
a porra da bolsa
se não atiro na
sua cara
bicho não é
aquele ali vivendo
feito bicho não
não é um bicho
ali vivendo
naquele lixão

38
BRUNO DUARTE

ASSIM É BOM

Quanto mais
eles trabalham
menos eles pensam
assim é bom
assim é bom

Quanto mais
doentes ficam
mais remédios
vendemos
assim é bom
assim é bom

39
BRUNO DUARTE

Quanto mais cedo


eles morrem
mais caixões
fabricamos
menos previdências
pagamos
assim é bom
assim é bom

Quanto mais
eles se matam
entre si
mais audiências
ganhamos
e mais propagandas
vendemos
assim é bom
assim é bom

40
BRUNO DUARTE

Quanto mais
medo
mais cercas elétricas
mais câmeras
mais livros de
autoajuda
mais igrejas
abertas
mais pessoas
trancadas
assim é bom
assim é bom

Quanto mais
guerras
mais armas vendidas
menos pessoas no mundo
assim é bom
assim é bom

41
BRUNO DUARTE

Quanto mais
desordem e caos
mais ordem para
o povo
mais progresso
para nós
ordem e progresso
assim é bom
assim é bom

assim é bom

42
BRUNO DUARTE

ELE SE FOI

ele se foi
nem disse adeus
apenas disse até mais
foi cedo demais
embora já fosse tarde da noite

ele se foi
nem barulho fez
embora o impacto
tenha sido violento

43
BRUNO DUARTE

ele se foi
e deixou um vazio
que encheu
todo o ser daquela mãe

ele se foi
pra onde eu não sei
só sei que quando se foi
estava indo pra São Paulo
pela rodovia Fernão Dias

44
BRUNO DUARTE

MUNDO in MUNDO

a hiena
come carniça
e ri

penso nisso
olhando
as pessoas
ali no lixão

a felicidade
nos olhos
quando se
aproxima mais
um caminhão

45
BRUNO DUARTE

penso no
verso de Miró de
Muribeca
que diz
que urubu
come carniça
e voa

e noutro
verso que diz
que a sujeira
tá no coração
do homem

vou pensando
enquanto cato
minhas latinhas
que brilham ao sol
do meio dia

46
BRUNO DUARTE

CUSTOS

Quanto custa
viver a vida?
Qual o custo
de ver a vista?
Qual desconto
pagar à vista?

Quanto custa
ser bem visto?
Pra ter o visto?
Ficar bem vestido?

Quanto custa
cada coisa que se finda?
Cada veste cada vista?
Ser bem atendido?

47
BRUNO DUARTE

Quanto custa
cada sonho? uma boa
noite de sono?
Cada sorriso quanto custa?

Se é em dinheiro
ou não?
Cheque especial?
Cartão?

Quanto custa então?


Se para tudo
que não tem preço
qual o valor?

Me diz:
Quanto custa
qual o custo
para ser feliz?

48
3
só as putas sabem o valor do amor
Marcelo Yuka, em Astronautas Daqui
BRUNO DUARTE

TODAS AS PUTAS

Em cada puta
De cada esquina
Deixei um pouco
Da minha grana
Da minha fome
Da minha sede

Em cada puta
De cada esquina
Deixei um pouco
Da minha febre
Do meu vazio
Do meu sangue

Em cada puta
De cada esquina
Deixei um pouco
Da minha porra
Da minha pele
Da minha poesia
51
BRUNO DUARTE

Em cada puta
De cada esquina
Deixei um pouco
Do meu silêncio
Do meu grito
Do meu abismo profundo

Em cada puta
De cada esquina
Deixei um pouco de mim

E agora em mim
Resta um pouco
De cada puta de cada esquina

além duma gonorreia dos infernos

52
Este livro foi impresso pela gráfica Forma Certa
para a Editora Recanto das Letras
em abril de 2018.
ISBN 978-85-69943-81-5

9 788569 943815

Editora Recanto das Letras

Você também pode gostar