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Doutrina Estrangeira
9 Criminal Complicity: Accomplices Criminal Liability
to the Criminal Offences: a Compartive Analysis
Between the Egyptain Criminal Law System and the
Criminal Law System of the United States of America
(Mohamed A. ‘Arafa)
Doutrina Nacional
95 A Salvaguarda das Garantias Constitucionais-Penais
Diante do Supremo Tribunal Federal: Quem Deve Ser
o Guardião da Constituição?
(Douglas Carvalho Ribeiro, Victor Cezar Rodrigues da
Silva Costa e Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira)
*
Doutorando em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – Uniceub, Mestre em Filosofia
pela Universidade Federal do Piauí, Especialista em Ciências Criminais pelo Ceut, Bacharel
em Direito pela Universidade Federal do Piauí, Advogado e professor do curso de Direito do
Centro Universitário Uninovafapi, do Instituto Camillo Filho – ICF e de diversos programas
de Pós-Graduação, Vice-Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção Piauí –
OAB/PI.
**
Professor da Graduação e dos Programas de Mestrado e Doutorado em Direito e Políticas
Públicas do Centro Universitário de Brasília – Uniceub, Doutor em Direito, na Especialidade
Sociologia Jurídico-Penal (Universidade de Barcelona), Pós-Doutorado em Sociologia
(Universidade de Brasília/John Jay-NY), Promotor de Justiça em Brasília.
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INTRODUÇÃO
O debate sobre o potencial da arte na hermenêutica jurídica tem despertado
o interesse de pesquisadores na área. Assim como as ciências sociais (sociologia,
criminologia, antropologia, psicanálise, ciência política), a literatura, a música e o
cinema propiciam um arsenal de artefatos semânticos para repensarmos a teoria
e a prática do Direito2. O repertório conceitual das teorias, estabilizado pela pro-
Alfredo. Direito & Literatura: discurso, imaginário e normatividade. Porto Alegre: Nuria
Fabris, 2010. Sobre as interconexões entre cinema e criminologia, ver MACHADO, Bruno
Amaral; ZACKSESKI, Cristina; PIZA, Evandro C. Cinema e criminologia: narrativas sobre
a violência. São Paulo: Marcial Pons, 2016. Sobre arte e psicanálise, ver RIVERA, Tânia.
Arte e psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. Em relação ao tema, sob a perspectiva
sistêmica, conferir BEEBEE, Thomas. Can Law-and-Humanities survive Systems Theory?
Law & Literature, n. 244, 2010.
3 LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Trad. Javier Torres Nafarrate. Cidade do
México: Herder, 2005. p. 457.
4 MACHADO, Bruno Amaral. A cor púrpura: imagens e representações sociais sobre a
violência no sul dos Estados Unidos. In: MACHADO, Bruno Amaral; ZACKSESKI, Cristina;
PIZA, Evandro C. Cinema e criminologia: narrativas sobre a violência. São Paulo: Marcial
Pons, 2016. p. 38-39.
5 CARRIÈRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2006. p. 30.
6 CARRIÈRE, Jean-Claude. Op. cit., p. 118.
7 GONÇALVES, Elizabeth Moares; ROCHA, Rosa E. O mundo discursivo do cinema: a
construção de sentidos. Razón y Palabra, n. 76, p. 1-2, maio/jul. 2011.
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termino esta história, irmãos, não sou jovem, não mais, ah, não. Alex tipo assim
cresceu, ah sim.9
O tema é controverso. Circulam versões de que esse final teria sido acres-
centado por Burgess, a contragosto, na obra, como condição da editora para que
o livro pudesse ser publicado – motivo pelo qual a obra, nos EUA, não conta com
esse capítulo final e, também, a razão pela qual Kubrick o teria ignorado em sua
tão feliz adaptação ao cinema. Nesse sentido, explica Gabrielle Stricker do Valle:
Um dos pontos cruciais para compreendê-lo é que o final do livro na edição
europeia, repudiado pelo próprio autor, foi escrito como condição de sua publi-
cação. A película, muito provavelmente fazendo jus com o que Burgess ideali-
zou (uma vez que foram contemporâneos), tem conclusão diversa – e a própria
edição do livro, nos Estados Unidos, utilizado por Kubrick ao escrever o filme,
vem sem final algum.10
os leitores europeus do livro. Você precisa decidir por conta própria qual é o
seu final preferido.11
11 BURGUESS, Anthony. Nota a Clockwork Orange 2004. In: BURGUESS, Anthony. Laranja
Mecânica. São Paulo: Aleph, 2012. p. 340/341.
12 FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a sexualidade. In: Obras psicológicas completas de
Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago, v. VII, p. 119 e ss., 1996.
13 Conferir, entre outros: ANITUA, Gabriel Ignacio. Historia de los pensamientos criminológicos.
Buenos Aires: Del Puerto, 2005; MACHADO, Bruno. Discursos criminológicos sobre o
crime e o direito penal: comunicação e diferenciação funcional. Revista de Estudos Criminais,
n. 45, p. 77-116, abr./jun. 2012; PARK, Robert Ezra. Sugestões para investigação do
comportamento humano no meio urbano. In: VELHO, Otávio Guilherme. O fenômeno urbano.
Rio de Janeiro: Zahar, 1976. p. 27-67; SUTHERLAND, Edwin H. White-Collar Criminality.
American Sociologica Review, v. 5, n. 1, p. 1-12, fev. 1940. Ver evolução dos modelos de justiça
juvenil idealizados historicamente e análise do contexto brasileiro: ANDRADE, Anderson
P. de; MACHADO, Bruno Amaral. Justiça e processo penal juvenil: paradigmas, discursos
jurídicos e o modelo brasileiro. In: ANDRADE, Anderson P. de; MACHADO, Bruno
Amaral. Justiça juvenil: paradigmas e experiências comparadas. São Paulo: Marcial Pons/
FESMPDFT, 2017. p. 38-39.
14 BECKER, Howard S. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
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Castle, no romance Walden II, de B. F. Skinner17, e reflete uma das críticas recor-
rentes ao behaviorismo: a mitigação da liberdade humana pelo uso de técnicas
científicas de condicionamento (domesticação). Sobre a questão, da liberdade, o
próprio Burgess procura esclarecer o sentido de sua obra:
Mas homens não são máquinas, afinal, e o limite entre um impulso humano e
outro é sempre difícil. [...]
O que tentei argumentar, com o livro, era o fato de que é melhor ser mau a
partir do próprio livre-arbítrio do que ser bom por meio de lavagem cerebral
científica. Quando Alex tem o poder da escolha, opta apenas por violência. En-
tretanto, existem outras áreas de escolha, como ilustra seu amor pela música.18
17 Idem, ibidem.
18 BURGUESS, Anthony. A condição mecânica. In: BURGUESS, Anthony. Laranja Mecânica.
São Paulo: Aleph, 2012. p. 300/3001.
19 Idem, ibidem, p. 300.
20 MARQUES, Oswaldo H. Duek. Fundamentos da pena. 3. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes,
2016. p. 125-130.
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de todos aqueles para quem fez mal: seus pais, o velho mendigo, os seus antigos
droogies, o idoso escritor “subversivo”.
Ao fim, o que a obra parece trazer à tona é que a pena, seja ela vista como
retribuição de um conflito confiscado da vítima pelo Estado, seja como método
de ressocialização (domesticação), seja como vingança privada, nada mais é do
que um exercício de poder político sempre violento e irracional, uma forma de fa-
zer sofrer o outro. Laranja Mecânica pode levar a crer que é mais razoável respon-
der de maneira agnóstica à pergunta sobre qual a função da pena, como sugere
Zaffaroni24. Para que serve a pena? Não se sabe ao certo sobre suas finalidades/
funções positivas (declaradas), mas é possível perceber que possui funções não
manifestas que sugerem descrevê-la como exercício irracional e violento de um
poder meramente político que deve ser reduzido, em respeito ao Estado de Di-
reito e à lógica dos direitos humanos.
24 Cf. por exemplo, ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da
legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2012.
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Ocorre que, se a pena não cumpre suas funções manifestas, atinge funções
latentes, sendo a principal delas exercer um papel configurador da sociedade ou,
utilizando o vocabulário foucaultiano, um poder disciplinar que incide sobre os
corpos, tornando-os dóceis, úteis e submissos27. Esse poder configurador da vida
25 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Derecho penal: parte general. Alejandro Alagia; Alejandro W.
Slokar; Eugenio Raúl Zaffaroni. Buenos Aires: Ediar, 2011. p. 44.
26 Idem, ibidem, p. 23.
27 Cf. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.
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28 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema
penal. Rio de Janeiro: Revan, 2012. p. 24.
29 FOUCAULT, Michel. Op. cit.
30 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Derecho penal: parte general. Alejandro Alagia; Alejandro W.
Slokar; Eugenio Raúl Zaffaroni. Buenos Aires: Ediar, 2011. p. 45. Tradução nossa.
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cer a função da pena (já que nega sua capacidade de solucionar conflitos ou de
preveni-los).
Nesse caminho, várias sanções que tradicionalmente não seriam conside-
radas de natureza penal passam a sê-lo: as medidas de segurança aplicadas aos
doentes mentais e aos adolescentes, as prisões preventivas, quando não aplica-
das para neutralizar lesões em curso ou iminentes, bem como uma série de outras
situações que tomam curso no “sistema penal subterrâneo” às quais se poderia
atribuir a natureza de penas ilícitas (torturas, execuções sem processo, maus tra-
tos carcerários etc.). Assim, devem passar a ser consideradas penas pelo fato de
que são capazes de infligir dor e inaptas a solucionar conflitos. A pena, portanto,
resta reduzida a um ato de poder que só tem explicação política. A consciência
da pena enquanto ato de poder político, como o próprio Zaffaroni faz questão
de enfatizar em suas obras, aparecia já no século XIX no pensamento do jurista
brasileiro Tobias Barreto, da Escola de Recife, para quem
O conceito de pena não é um conceito jurídico, mas político. Este ponto é ca-
pital. O defeito das teorias usuais na matéria consiste justamente no erro de
considerar a pena como uma consequência do direito, logicamente fundamen-
tada. [...]
Quem estiver em busca do fundamento jurídico da pena deve também buscar,
se já não o encontrou, o fundamento jurídico da guerra.31
32 Não ignoramos o enorme debate no campo da sociologia das penas. Especialmente vale
revistar a interpretação de que o castigo na modernidade cumpre diferentes papéis sociais,
tanto simbólicos quanto instrumentais. Trata-se, certamente, de complexa instituição social.
Conferir, especialmente: GARLAND, David. Punishment and modern society: a study in social
theory. Chicago: University of Chicago Press/Oxford University Press, 1990; GARLAND,
D. The culture of control: crime and social order in contemporary society. Oxford: Oxford
University Press, 2001.
33 NIETZSCHE, Friedrich. A genealogia da moral. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 55.
34 Idem, ibidem, p. 56.
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35 NIETZSCHE, Friedrich. Aurora. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 24/25.
36 NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 122.
37 Nietzsche, em distintos momentos de distintas obras, utiliza, para se referir a esse “gozo”
cruel exercido sobre o outro e sobre si, o substantivo Genuss e o verbo genieβen: “Es giebt einen
reichlichen, überreichlichen Genuss auch am eignen Leiden [...]” (NIETZSCHE, Friedrich. Jenseits
von Gut und Böse. In: Sämtliche Werke: Kritische Studienausgabe in 15 Bänden, V, Berlin:
de Gruyter, p. 166, 1999) ou “denn der Grausame genieβt den höchsten Kitzel des Machtgefühls”
(NIETZSCHE, Friedrich. Morgenröthe. In: Sämtliche Werke: Kritische Studienausgabe in 15
Bänden, III, Berlin: de Gruyter, p. 30, 1999).
38 Cf. FREUD, Sigmund. Mais além do princípio de prazer. In: Obras psicológicas completas. Rio
de Janeiro: Imago, v. XVIII, 1996.
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39 FREUD, Sigmund. O mal-estar da civilização. In: Obras psicológicas completas. Rio de Janeiro:
Imago, v. XXI, 1996.
40 ALAGIA, Alejandro. Hacer sufrir. Buenos Aires: Ediar, 2013. p. 173/174.
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liação, mais que a alocação de culpa”44. Assim, conforme René van Swaaningen,
o abolicionismo “implica uma crítica negativa das falências fundamentais da jus-
tiça penal que representam um impedimento à justiça em si mesma, oferecendo
tanto uma alternativa de pensar o delito como uma abordagem radical à reforma
penal”45.
De outro ângulo, o abolicionismo penal não existe como movimento teó-
rico e político homogêneo. Apresenta diversas variantes em distintas culturas46.
Foi, inicialmente, um fenômeno principalmente europeu, mas, mesmo na Eu-
ropa, desenvolveram-se distintas correntes no movimento, com marcada dife-
rença entre os representantes da Europa continental e da Grã-Bretanha. Os pri-
meiros abolicionistas, como Thomas Mathiesen, Nils Christie e Louk Hulsman,
propunham uma visão alternativa da política de justiça penal – Mathiesen com
um marco teórico marxista; Christie, a partir de uma perspectiva fenomenoló-
gico-historicista, propondo um abolicionismo que, posteriormente, tenderia ao
minimalismo penal; Hulsman defendendo a necessidade de uma revolução na
linguagem utilizada para lidar com as situações-problema que costumamos cha-
mar crimes. Os neoabolicionistas, ou abolicionistas de segunda geração, aceitam
muitos dos princípios dos originários do movimento, como o rechaço ao conceito
de delito e à pena como “metáfora última da justiça”47. No entanto, os neoabo-
licionistas britânicos (entre eles Box-Grainger, Ryan, Ward, Hudson e Joe Sim)
também advogam por um trabalho intervencionista destinado a propor uma
48 SIM, Joe. The abolitionist approach: a British perspective. In: Penal theory and practice:
tradition and innovation in criminal justice. Manchester: Manchester University Press,
p. 275-276, 1994.
49 Op. cit.
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O fato de que não haja teoria capaz de superar essa contingência, no en-
tanto, não significa que se deva abraçar nem a pequena crueldade (praticada por
um indivíduo contra o outro) nem a grande crueldade (praticada pelo Estado
contra o indivíduo)51. A resposta abolicionista, que pretende o abandono do trato
cruel punitivo (exemplo maior da grande crueldade), ajusta-se a um modelo de
solidariedade pós-metafísica que, embora não se pretenda absoluto e universal,
certamente parece desejável. A solidariedade, como oposição ao trato cruel, não
é algo que precisa ser desvendado e desvelado das ocultas profundezas de um
saber ontológico, não é algo que precisa ser descoberto, senão que deve ser cria-
do. É preciso forjar a solidariedade nas contingências da linguagem. Essa solida-
riedade, como sugere Rorty, “é criada pelo aumento de nossa sensibilidade aos
detalhes particulares da dor e da humilhação de outros tipos não familiares de
pessoas. Essa maior sensibilidade torna mais difícil marginalizar pelo pensamen-
to as pessoas diferentes de nós”52.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em nossa análise anterior sobre as interconexões entre cinemas e crimino-
logias, sugerimos que a narrativa do cinema pode reproduzir estereótipos, pa-
drões sexistas ou racialmente orientados, com a força dos “saberes poderes” dos
discursos científicos53. O cinema pode reproduzir preconceitos e reafirmar moral
hegemônica. Contudo, pode se constituir em instrumento útil para a reflexão e
a crítica social. A forma como o cinema captura, apropria-se e transforma os dis-
cursos da criminologia supõe compreender a lógica e racionalidade da produção
artística, interesses econômicos envolvidos, organizações, produtores, atores.
50 RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. São Paulo: Martins, 2007. p. 18/19.
51 Sobre a redescrição rortyana da crueldade, cf. FONTENELE, Edinalva Melo. Por que não ser
cruel? – A redescrição rortyana da crueldade. Edinalva Melo Fontenele – 2010. Disponível
em: <http://www.ufpi.br/subsiteFiles/eticaepistemologia/arquivos/files/Edinalva%20
Melo%20Fontenele%20Disserta%C3%A7%C3%A3o%20de%20Mestrado.pdf>.
52 Idem, ibidem, p. 20.
53 MACHADO, Bruno Amaral. A cor púrpura: imagens e representações sociais sobre a
violência no sul dos Estados Unidos. In: MACHADO, Bruno Amaral; ZACKSESKI, Cristina;
PIZA, Evandro C. Cinema e criminologia: narrativas sobre a violência. São Paulo: Marcial
Pons, 2016. p. 49-50.
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Obras de arte como “Laranja Mecânica” muitas vezes são mais úteis que
tratados de criminologia ou pesquisas científicas sobre as funções da pena. A
literatura e o cinema dialogam diretamente com o grande público, com relação a
quem, em épocas de “pós-modernidade” e de verdades líquidas, parece mais útil
e prático seduzir do que argumentar. Nesses momentos, arte e filosofia retomam
sua primazia diante de um discurso científico que tende ao esgotamento sem
que tenha sido capaz de atingir os movimentos sociais e as grandes camadas da
população, despertando nelas a reflexão sobre as crueldades do sistema penal.
Certamente, a obra propicia valioso arsenal para repensar a fragilidade
das teorias racionalizadoras da pena. É nessa denúncia radical que “Laranja
Mecânica” torna-se uma obra monumental para um aporte crítico radical como
aquele promovido pelo abolicionismo penal. Instiga seus leitores e espectadores
a indagarem se sistema penal não acabou personificando a crueldade, em relação
simbiótica com as teorias penais, em clara imbricação com os discursos científicos
que investem e justificam a racionalização do trato cruel.
REFERÊNCIAS
ALAGIA, Alejandro. Hacer sufrir. Buenos Aires: Ediar, 2013.
ANDRADE, Anderson Pereira de; MACHADO, Bruno Amaral. Justiça e processo penal juvenil:
paradigmas, discursos jurídicos e o modelo brasileiro. In: PEREIRA, Anderson Andrade;
MACHADO, Bruno Amaral. Justiça juvenil: paradigmas e experiências comparadas. São Paulo:
Marcial Pons/FESMPDFT, 2017.
______; ______. Justiça juvenil: paradigmas e experiências comparadas. São Paulo: Marcial Pons/
FESMPDFT, 2017.
ANITUA, Gabriel Ignacio. Historia de los pensamientos criminológicos. Buenos Aires: Del Puerto, 2005.
BECKER, Howard S. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
BEEBEE, Thomas. Can Law-and-Humanities survive Systems Theory? Law & Literature, n. 244, 2010.
BURGESS, Anthony. Laranja Mecânica. São Paulo: Aleph, 2012.
CARRIÈRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
CHRISTIE, Nils. Uma razoável quantidade de crime. Rio de Janeiro: Revan, 2011.
CLONINGER, Susan C. Teorias da personalidade. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
FONTENELE, Edinalva Melo. Por que não ser cruel? – A redescrição rortyana da crueldade. Edinalva
Melo Fontenele – 2010. Disponível em: <http://www.ufpi.br/subsiteFiles/eticaepistemologia/
arquivos/files/Edinalva%20Melo%20Fontenele%20Disserta%C3%A7%C3%A3o%20de%20
Mestrado.pdf>.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.
FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas. 24 volumes. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
GARLAND, David. Punishment and modern society: a study in social theory. Chicago: University of
Chicago Press/Oxford University Press, 1990.
GARLAND, David. The culture of control: crime and social order in contemporary society. Oxford:
Oxford University Press, 2001.
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