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O calvinismo holandês

Paulo Matheus de Souza

Figura 1: Decapitação de Johan van Oldenbarnevelt, em Haia, norte da Holanda (1619).

No contexto do debate teológico entre calvinistas e arminianos – talvez os dois movimentos


mais influentes do período posterior à Reforma no mundo – não há como desprezar o local que seria
o palco principal desta divergência. Também conhecida como Países Baixos, pelo fato de alguns
territórios se encontrarem abaixo do nível do mar, a Holanda de nossos dias é lembrada
popularmente por ser uma terra tolerante ao consumo de maconha e de onde 82% da população
nunca ou quase nunca visitou uma igreja; culturalmente, por Anne Frank ou Vicente Van Gogh; na
filosofia, com Erasmo e Espinoza; simbolicamente, pelos moinhos de vento, tamancos, diques e as
tulipas. Tulipas, estas, não somente as flores.

1 – Contexto histórico e geográfico

Não tão receptiva aos Luteranos durante a Reforma Protestante no século XVI, a Holanda se
identificou mais com o Calvinismo através da região de Flanders, ao norte. Próximo dali, em
Roterdã, o holandês Desidério Erasmo já havia dado o pontapé inicial na Reforma, publicando
críticas a ambos os movimentos sem ser martirizado, por assim dizer (contudo, talvez o mais
apreciado pelos reformadores na região neste período tenha sido o germano-holandês Thomas de
Kempis, autor de A imitação de Cristo). Calvino e Erasmo, ainda que de gerações diferentes,
tinham aspirações em comum, como o humanismo e o interesse por Sêneca1.
Entretanto, primeiramente, teremos que desenhar a situação geopolítica e religiosa da região
naquela época, que não era das mais animadoras: os Países Baixos (dezessete províncias, que
falavam três idiomas diferentes e que não formariam o atual país – controlados pela dinastia
católica dos Habsburgos – já que hoje, além da Holanda, englobavam também as atuais Bélgica e

1Sêneca (4a.C-65) – Advogado – assim como Calvino – e escritor do império Romano, é conhecido como proeminente
do Estoicismo, ou a crença segundo a qual os seres humanos deviam aceitar o momento em que vivemos, sem interferir
nele com nossos “desejos e angustias”. A teologia estoicista, por exemplo, levaria a conceitos como o panteísmo
fatalista, ou determinismo cósmico, ou ainda o próprio naturalismo, já que nada poderíamos fazer para modificar as leis
da natureza. Sêneca, contemporâneo de Jesus, supostamente, se correspondeu com o Apóstolo Paulo de Tarso.
Luxemburgo) eram dominados pela Espanha, conseguindo a independência apenas em 1588, para
se tornar a República dos Sete Países Baixos até 1795, se transformando posteriormente em outros
reinos até, por fim, se tornar o Reino dos Países Baixos a partir de 1839. Antes de tudo disso, o
território fazia parte do chamado Sacro Império Romano-Germânico, governado por Carlos V
(Carlos I da Espanha), o grande opositor da Reforma Protestante, ainda que ele tivesse sido educado
na região. Isto até 1555, quando então assumiu seu filho Felipe II, ambos católicos. Apesar da certa
autonomia política local concedida pela Espanha, administração feita pelos Habsburgos na região
era autoritária na perseguição dos protestantes (mulheres anabaptistas, por exemplo, eram
enterradas vivas) e abusiva na questão dos impostos.
O protestantismo na Holanda é oriundo dos movimentos em terras alemãs. O luteranismo
foi, neste caso, o primeiro a se apresentar nos Países Baixos, contemporaneamente a Erasmo e
Lutero, mas compunha uma minoria. Um pouco depois, o anabatismo desembarcou nas fazendas
holandesas, fazendo alguns adeptos, dentre eles Menno Simons2. Todavia, a chamada terceira onda
do protestantismo, o calvinismo, foi a mais duradoura, a partir de 1540.
A figura mais destacada e que é considerado um pai da pátria holandesa é William I, o
Silencioso (1533-1584), príncipe de Orange. Ao lado de outros nobres ricos, William liderou a
chamada revolta holandesa contra a Espanha e sua influência nos Países Baixos. Convertido ao
calvinismo, o príncipe de Orange desejava a liberdade religiosa – ou a não obrigatoriedade do
catolicismo sobre as províncias holandesas. Das camadas mais populares, onde o calvinismo
também tinha mais adeptos, uma onda de iconoclastia (destruição de imagens e representações de
santos pela Igreja Católica) tomou conta da região em 1566, em uma resposta à Inquisição
Espanhola, que já havia executado cerca de 1300 pessoas por heresia. Após essa chamada Revolta
Holandesa dentro do império espanhol, William reuniu um exército protestante que logo dominaria
os antigos territórios de Zelândia e Holanda, em 1572. Esses dois eventos marcariam o início da
guerra dos oitenta anos entre Holanda e Espanha, evento que coincidiria com a mais violenta guerra
religiosa da Europa, a Guerra dos 30 Anos, finalizadas em 1648 com a Paz de Münster, atrelado ao
tratado de Vestfália.

2 – Estabelecimento do calvinismo

Aos poucos, vários territórios teriam príncipes e a própria população, muitas vezes à força,
convertidos ao calvinismo. A Universidade de Leiden, formada em 1575, se tornou um cento de
estudos calvinistas após a cidade ser liberta de um cerco militar – cerco este em que um soldado
protestante teria dito: “Sabei que temos dois braços e que se a fome chegar a tal ponto, nós
comeremos um deles para poder continuar lutando com o outro”. Entretanto, pela censura católica a
outras religiões e pela guerra entre Espanha e Holanda ser motivada pelo embate entre “calvinismo
x catolicismo”, os territórios holandeses praticavam tolerância para com outros protestantes e os
judeus. As ideias do francês Descartes, por exemplo, que viveu grande parte da vida na Holanda,
foram censuradas pela Igreja Católica. Ainda que William, o Silencioso, tenha sido assassinado em
1584, a derrota da armada espanhola pelos ingleses tinha dado certa liberdade à Holanda para tratar
de seus assuntos teológicos.
Em meio aos conflitos de independência, a primeira confissão de fé holandesa é creditada a
Guido de Bres (1522-1567), um pastor da Valónia e estudioso de João Calvino e Teodoro de Beza,
tendo como revisor Francis Junius, um pastor calvinista da Antuérpia. A confissão, conhecida como
“Confissão Belga”, elaborada em 1561, é em grande parte baseada nas Institutas de Calvino e na
francesa Confissão de La Rochelle. Em 1571, um sínodo nacional realizado em Emden definiu a
liturgia presbiteriana como administração eclesiástica. A Confissão Belga e a Confissão de
Heildelberg foram, por assim dizer, as adotadas pelos Países Baixos.

2Menno Simons (1496-1561) – Ex-padre católico, nascido na Frísia e símbolo do anabatismo nos Países Baixos a
partir de 1536, talvez pela morte do irmão em conflitos anabaptistas na Alemanha. Esta violência característica da
Reforma Radical parece ter sido suprimida dos seguidores de Simons, denominados menonitas, seita relacionada de
onde surgiriam os amish, e que possuem cerca de 2 milhões de membros no mundo, segundo dados de 2015.
De todas os outros ramos religiosos, inclusive os jesuítas e reformistas católicos
(Jansenistas, sul da Holanda, chamados de “calvinistas católicos”) a partir do início do século XVII,
nenhum conseguiu exercer maior influência que o calvinismo em terras holandesas.

3 – Um problema interno

De dentro da própria universidade calvinista de Leiden surgiria alguém que traria a


controvérsia que perdura até os dias de hoje. Jacó Armínio (1560-1609), nascido em Utrecht, órfão
cedo, tivera uma educação essencialmente calvinista por seus tutores, tanto em Leiden como em
Genebra, tendo aulas inclusive com Teodoro de Beza, o sucessor de Calvino. Entretanto, havia uma
certa liberdade de pensamentos na Universidade de Leiden, talvez não tão aparente quanto se
imaginava. Apesar de poucos, haviam pensamentos oriundos do anabatismo, luteranismo e
zwinglianismo, além da influência de Erasmus, Melanchton e até mesmo de Menno Simons. Um de
seus professores, Johann Kolmann, por exemplo, já havia alertado que a “excessiva soberania de
Deus havia o tornado um tirano e um carrasco”. Caspar Coolhaes (1536-1615), ministro reformado
de Leiden, também tinha uma visão contrária a certos aspectos do calvinismo, principalmente na
característica teocrática da punição capital de hereges, além de recusar a Confissão Belga, sendo
excomungado em 1582.
Armínio foi posteriormente chamado para pastorear em Amsterdã, em 1587. Não é possível
dizer quando exatamente Armínio começou a discordar das doutrinas calvinistas (alguns citam que
até mesmo em Genebra ele já diferia das opiniões de Beza), mas lhe foi incumbida uma missão que
talvez o tenha despertado por um caminho diferente: ele foi empregado pelo Tribunal Eclesiástico
de Amsterdã para refutar Dirck Coornhert3, que rejeitava a doutrina supralapsariana4 de Beza,
mas ao estudá-lo, foi conquistado por seus argumentos. Armínio, ao expor seu ponto de vista, sofreu
oposição instantânea de Franciscus Gomarus (1563-1641), teólogo holandês que também era
professor em Leiden. Gomarus identificou os ensinamentos de Armínio como sendo pelagianos5,
ou seja, de que o homem por si só poderia se salvar, negando o pecado original e a graça divina. Os
dois, inclusive, debateram no chamado Estados Gerais dos Países Baixos (uma espécie de câmara
de representação política de cada província holandesa). Armínio, então, sugeriu que deveria haver
um sínodo específico para solucionar estas questões.
Em 1609, com a morte de Jacó Armínio, mesmo ano da assinatura da trégua de 12 anos entre
a Espanha e Holanda (e que seria o início de um conflito religioso interno), coube a Conrad Vorstius
(1569-1622) substituí-lo na Universidade de Leiden e na questão “arminiana”, por assim dizer. No
início de 1610, em Haia, um documento em forma de protesto foi apresentado aos Estados da
Holanda e da Frísia, elaborado por Johannes Wtenbogaert (1557-1644), que viria a ser um dos
líderes dos “Remonstrantes”, colocando cinco pontos essenciais de discordância da doutrina

3Dirck Coornhert (1522-1590) – Erudito holandês nascido em Amsterdã, humanista e teólogo, conhecido pelo
discurso da tolerância religiosa, escrevendo diversos artigos contra a pena capital de hereges. Foi um grande
contribuidor da língua holandesa, já que Erasmo escrevia seus textos em latim – o que, sem dúvida, o tornou mais
famoso. Assim como Eramo, Coornhert era a favor do livre-arbítrio, escreveu contrariamente à doutrina de
predestinação em 1589. Deixou inacabada a tradução do Novo Testamento para o holandês antes de morrer.

4Supralapsarianismo – O lapsarianismo é uma doutrina calvinista relacionada com a permissão divina da Queda do
Homem, em relação ao plano de salvação dos eleitos, sendo defendida por alguns o supralapsarianismo, ou seja, a
eleição e a condenação predeterminados antes da Queda, e por outros, o infralapsarianismo, onde os planos de Deus
quanto a eleição foram feitos após a Queda.

5Pelagianismo – Termo relacionado a uma doutrina de salvação, originado de Pelágio da Bretanha (350-423), que
negava principalmente a graça divina e o pecado original. Combatido contemporaneamente por Agostinho de Hipona,
foi considerada uma heresia em 418, no XV Concílio de Cártago. Seus discipulos supostamente usavam o texto de
Deuteronômio 24:16 (os pais não morrerão pelos filhos, nem os filhos pelos pais; cada um morrerá pelo seu pecado )
como argumento a favor; mais tarde, atribuído a João Cassiano, surgiu o semipelagianismo, que previa o nascimento da
fé pela iniciativa de Deus mas com a posterior aceitação do homem (mais próximo do catolicismo e do arminianismo).
Foi, assim como o pelagianismo, condenado no II Sínodo de Orange, em 526.
calvinista (ou os chamados Cinco Artigos de Reparação). Em 1611, o movimento contra-
remonstrância elaborou um artigo criticando as visões arminianas da salvação, ainda que haja uma
controvérsia sobre Armínio no tocante de suas reais afirmações (algumas fontes dizem que ele não
rejeitava propriamente a Confissão Belga, o que pode não significar nada já que ela rejeita o
pelagianismo, que seria diferente do arminianismo).
As disputas só foram cessadas em um definitivo sínodo realizado durante sete meses de
1619, em Dort, sul da Holanda. Este sínodo, de caráter internacional (alguns convidados eram
representantes de igrejas nacionais como a comunhão anglicana e escocesa). Simon Episcopius
(1583-1643), teólogo holandês e líder remonstrante, conhecido por combater o caráter
excessivamente teórico do cristianismo calvinista, não concordou com as premissas do sínodo e
acabou sendo expulso logo no início. Sendo assim, não houve nenhuma rejeição argumentativa com
relação aos pontos questionados da Confissão Belga e aos ensinos de Calvino e Beza, surgindo do
sínodo os até hoje conhecidos como Cinco Pontos do Calvinismo, integrantes do Cânone de Dort: a
Depravação Total, Eleição Incondicional, Expiação Limitada, Graça Irresistível e a Perseverança
dos Santos (a sigla mnemônica TULIP, que significa “tulipa”, é usada para resumir os cinco pontos
e como símbolo comum do calvinismo).

Figura 2: A trégua dos 12 anos em 4 momentos: (1) a câmara dos Estados Gerais dos
Países Baixos, onde houveram as primeiras discussões; (2) o debate entre arminianos e
calvinistas; (3) o Sínodo de Dort e; (4) o cânone reformado de Dort.

O sínodo reverberou drasticamente na esfera política. Os remonstrantes estavam protegidos


por Johan van Oldenbernevelt (1547-1619), estadista que ocupava o cargo de primeiro-ministro e
havia conquistado diplomaticamente a trégua dos 12 anos, além de ter desempenhado papel
importante na independência da Holanda. Seu opositor político, Maurício de Orange (1567-1625),
filho de Guilherme I, o Silencioso, era um ferrenho defensor dos calvinistas. Identificando a
conveniência arminiana do primeiro-ministro como perigosa para os interesses nacionais,
Oldenbernevelt e outros personagens importantes tais como o estadista Gilles van Ledenberg e o
jurista Hugo Grotius6, foram presos em agosto de 1618 a mando do Príncipe de Orange.
Oldenbernevelt foi decapitado apenas quatro dias após o término das reuniões do Sínodo de Dort,
ainda que muitos tivessem pedido clemência e as provas tenham sido infundadas. Ledenberg, que
cometeu suicídio antes do julgamento, teve a pena executada e, curiosamente, foi enforcado. Já
Grotius conseguiu escapar em um baú de livros com a ajuda da esposa.
Maurício de Orange, após a decapitação de Oldenbernevelt, ficaria fortalecido no poder da
Holanda e o calvinismo se tornaria de facto a religião do Estado. Mas suas decisões insensatas
levaram a quebra da trégua com a Espanha e a retomada dos conflitos, desta vez sob a alcunha da
Guerra dos 30 Anos, a guerra religiosa mais sangrenta da história europeia. Ele morreu em 1625,
durante um cerco em Haia.

4 – Colonizações holandesas

O período de colonização holandês se iniciou em 1602, a partir de sua autonomia em relação


ao domínio espanhol. Apesar não ter sido tão amplo como os outros impérios ultramarinos, a
Holanda conquistou territórios em todos os continentes, inclusive no Brasil. Até 1975, pertenciam a
esse império a Indonésia, África do Sul e Suriname. As heranças do idioma ficaram preservados
para o Suriname e a Indonésia até hoje. O calvinismo, entretanto, é uma lembrança vaga. No
Suriname, menos de 10% dos habitantes são considerados “reformados”, e na Indonésia, cerca de
7%.
O estabelecimento de territórios holandeses durante o século XVII no nordeste brasileiro
seja talvez um dos momentos mais emblemáticos do calvinismo no Brasil, se comparado ao seu
evento antagônico, a chamada tragédia da Guanabara, pelos huguenotes, ocorrida um século antes
no Rio de Janeiro. O poderio do governo holandês, que investia na produção de cana-de-açúcar na
região, se mostrou semelhante ao que os primeiros colonizadores portugueses praticaram em solo
brasileiro, matando cerca de 150 católicos camponeses de duas cidades do Rio Grande do Norte,
por não aceitarem o calvinismo.
Na África do Sul, a herança do calvinismo holandês é mais notório na questão do chamado
“calvinismo africânder”, um grupo étnico composto em sua maioria por holandeses e uma boa parte
de alemães e descendentes de huguenotes, que estabeleceram inclusive uma língua própria. Eles
desenvolveram fortemente a região do Cabo e foram responsáveis por um movimento nacionalista
sul-africano, onde até mesmo algumas organizações secretas calvinistas, como o Broederbond
(comparado a maçonaria) eram tolerados. Além da escravidão durante o período colonial, utilizada
como meio de evangelização, as políticas dos africânderes do século XX culminariam no
vergonhoso episódio do apartheid. Em 1990, a Igreja Reformada Holandesa na África do Sul
reconheceu publicamente seu erro em um documento denominado “declaração de Rustenburg”.
A influência nos Estados Unidos também merece atenção. Para se ter uma ideia da
colonização holandesa, a cidade de Nova Iorque se chamava Nova Amsterdã de 1624 até 1674,
depois que o tratado de Westiminster, elaborado após o fim da terceira guerra anglo-holandesa,
cedia o território do Suriname aos Países Baixos. Entretanto, diferente da África do Sul por
exemplo, os holandeses não estabeleceram uma igreja própria, por assim dizer.

6Hugo Grotius (1583-1645) – Jurista holandês, conhecido pelos conceitos de sociedades internacionais baseadas em
leis e acordos, e também pelo conceito de livre comércio (principalmente no conceito de “liberdade dos mares”). No
campo da teologia, defendeu o arminianismo e diversos conceitos (alguns controversos, como a teoria governamental)
que anteriormente foram abordados por Coornhert, principalmente sobre tolerância quanto a questões doutrinárias, o
que era visto como inadmissível para contemporâneos como Jacobus Trigland. Após os episódios da condenação e da
fuga em um baú de livros, Grotius escreveu trabalhos filosóficos – principalmente durante seu exílio na França – que
mais tarde influenciariam os arminianistas metodistas.
5 – Os séculos posteriores na Holanda

Com os séculos XVII e XVIII dominados massivamente pelos calvinistas, a Igreja


Reformada da Holanda teve poucas transformações. Ainda neste século, sofreu algumas reformas
internas, durante a chamada Reforma Adicional Holandesa, influenciadas pelos puritanos ingleses,
tendo alguns nomes destacados como o teólogo Gisbertus Voetius (1589-1676), conhecido por
condenar a filosofia de seu contemporâneo Descartes, e o pastor Wilhelmus à Brakel (1635-1711),
que se preocupou com a rápida decadência da fé viva na igreja de seu tempo.
O século XIX não foi menos problemático. A revolução belga (1830-1831), a luta pela
independência da Bélgica, é marcado novamente pela disputa calvinismo x catolicismo. Os francos
e demais habitantes da região consideravam Guilherme I e seu governo despótico, além de
desfavorecer diversas liberdades, principalmente religiosas. A revolta foi o marco da independência
da Bélgica, e a matriz católica permaneceu até hoje na região (metade da população belga se declara
como católico, e apenas 2% como protestantes).
As questões nacionais da Holanda fizeram com que o calvinismo entrasse em declínio,
observando diversas divisões dentro da Igreja Reformada, diante também do chamado liberalismo
teológico. Um dos cismas foi liderado pelo teólogo Abraham Kuyper (1837-1920), que estabeleceu
as Igrejas Reformadas na Holanda, que, diferente da Igreja Reformada Holandesa, não era apoiada
pelo Estado. Kuyper é mais conhecido pelo termo “neocalvinismo”, que seria nada mais que uma
reformulação ou até mesmo um avivamento calvinista, já que ele considerava que a influência do
pietismo7 tinham feito “adormecer” a fé em seu país. O neocalvinismo de Kuyper enfatizava a
soberania de Jesus sobre todas as coisas, rejeitava o legalismo bíblico e colocou em pauta a
chamada graça comum, que amenizava a crença na graça irresistível, principalmente no tocante do
bem-estar universal. Contudo, em seu livro “Calvinismo”, Kuyper tece duras críticas aos demais
credos, especialmente ao catolicismo e a falta de liberdade religiosa em países católicos (apesar de
nos Países Baixos o livre culto de judeus, por exemplo, ser autorizado apenas em 1796). De 1901 a
1905, Kuyper ocupou o cargo de primeiro-ministro dos Países Baixos. Contemporâneo dele, Max
Weber indicou, em seu estudo mais conhecido, que o calvinismo em si e principalmente a ênfase na
dupla predestinação (conceito este que integra além da predestinação dos eleitos aos céus, a
predestinação dos condenados ao inferno como consequência) haviam desenvolvido o espírito
capitalista nos países protestantes e consequentemente a afirmação de que a graça se manifestava
apenas nos eleitos por Deus, citando inúmeras vezes o caso holandês como mais ferrenho neste
aspecto do que os outros países.
Já o século XX foi marcado pela ultrapassagem do catolicismo frente ao protestantismo,
atribuído à constante secularização marcante deste século, em grande parte dissidentes das próprias
igrejas reformadas. Neste período, podemos destacar Cornelius Van Til (1895-1987), filósofo
calvinista, conhecido pela apologética pressuposicional, que, em outras palavras, se preocupa em
defender o cristianismo como única base racional, concentrando, por exemplo, boa parte das ações
apologéticas provando as falhas de outras religiões. Ele era membro da Igreja Presbiteriana
Ortodoxa, sendo por isso influenciado pela teologia de BB Warfield.
A secularização influenciada pela política liberal com relação a aborto, drogas, prostituição e
eutanásia causou um declínio ainda maior na fé holandesa, levando as principais denominações
protestantes (luteranos e reformados) a se unirem. Em 2004, após a fusão das Igrejas Reformadas na
Holanda e da Igreja Evangélica Luterana do Reino dos Países Baixos, surgiu a Igreja Protestante da
Holanda (considerada tanto calvinista quanto luterana), tendo um número aproximado de 1,6 milhão

7Pietismo – Movimento oriundo do luteranismo, mas que influenciou os reformados e diversos seguimentos do
protestantismo no século XVIII, baseado na prática efetiva do cristianismo. Seu percursor, o luterano alemão Philipp
Spener (1635-1705), acreditava que alguns pontos deveriam ser assimilados, dentre eles o sacerdócio universal, o
estudo particular e devocional da Bíblia, a prática do cristianismo de forma visível e, o que talvez causasse maior
controvérsia, o distanciamento da relação dos cristãos com o mundo (em seu tempo, algo inconcebível em virtude da
relação Igreja Estado). Este movimento influenciou profundamente o início do movimento metodista de John Wesley e
o protestantismo norte-americano de uma forma geral.
de membros segundo dados de 2016. Um número inexpressível próximo ao de ateus e agnósticos,
que gira em torno de 8,6 milhões (50,1% da população, segundo dados da mesma pesquisa).
Curiosamente, a Bélgica, antigo território holandês e em boa parte católico, possui cerca de 1,7
milhão de ateus (14,9% da população).

6 – Considerações gerais

Diante dos fatos mais recentes associados a Igreja Reformada Holandesa, não seria uma
previsão falaciosa dizer que seus números tendem a continuar caindo. Ainda que,
proporcionalmente, não esteja próximo dos países nórdicos – que anteriormente poderíamos chamar
de países luteranos – em números de ateus, as políticas liberais nacionais e europeias,
principalmente após a onde imigratória e o consequente aumento do islamismo do início do século
XXI, fazem com que o protestantismo Países Baixos viva em constante declínio. Uma conclusão
quase bastante nítida é a estreita relação da teologia com a política, que pode ter contribuído com
essa tendência.
A união entre as fés luteranas e reformadas calvinistas na Holanda representa algo
significativo, talvez não para os nossos dias, já que, em 1529, a disputa de Marburgo8 fracassou,
mas talvez como um argumento de que a teocracia pode distorcer o real papel cristão no Estado.
Não há discordâncias teológicas quando o principal mal é a diminuição da fé.

7 – Referências

BRYSON, GEORGE L. The Dark Side of Calvinism. Calvary Chapel Publishing (CCP), Santa Ana, 2004.
CAIRNS, EARLE E. O Cristianismo Através dos Séculos. Ed. Vida Nova, São Paulo, 1995.
FENOULHET, JANE, GILBERT, LESLEY. Narratives of Low Countries History and Culture. - UCL
Press, Londres, 2016.
GONZALEZ, JUSTO L. Uma História Ilustrada do Cristianismo vol. 6 – A Era dos Reformadores. Ed.
Vida Nova, São Paulo, 1995.
HUGO GROTIUS. Câmara dos Representantes, Capitólio dos Estados Unidos. Washington, 1950.
Disponível em: https://www.aoc.gov/art/relief-portrait-plaques-lawgivers/hugo-grotius
IGREJA REFORMADA HOLANDESA NA ÁFRICA DO SUL (NGK). Declaração de Rustenburg.
Rustenburg, 1990. Disponível em: http://kerkargief.co.za/doks/bely/DF_Rustenburg.pdf
KUYPER, ABRAHAM. Calvinismo. Ed. Cultura Cristã, São Paulo, 2008.
MOREAU, A. SCOTT. Evangelical Dictionary of World Mission. Baker Books, Grand Rapids, 2000.
PETTEGREE, ANDREW, DUKE, ALASTAIR, LEWIS, GILLIAN. Calvinism in Europe, 1540-1620.
Cambridge University Press, Cambridge, 1996.
WEBER, MAX. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Companhia das Letras, São Paulo, 2004.
WILSON, PETER H. Europe’s Tragedy: The Thirty Years’ War. Penguin Books, Londres, 2009.

8Disputa de Marburgo - Considerado um primeiro Concílio Protestante, o colóquio ocorreu entre 1 e 4 de outubro de
1529, no Castelo de Marburgo, na Alemanha. O debate central era a presença real de Cristo na Santa Ceia. Organizado
por Felipe I de Hesse, integraram o debate, além de Lutero e Zwinglio, Stephan Agricola, Johannes Brenz, Martin
Bucer, Phillipp Melanchton, Johannes Oecolampadius e Andreas Osiander. A principal motivação do príncipe era a de
fortalecer os protestantes com fins políticos, mas, mesmo com quatorze pontos em comuns, não houve acordo por um
único ponto: na Santa Ceia, Lutero acreditava no realismo do corpo de Cristo, e Zwinglio no simbolismo.

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