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Controle interno da qualidade em citopatologia: o dilema da


subjetividade
Internal quality control in cytopathology: the subjectivity dilemma

Ednéia Peres Machado1 Resumo


Mirian Braga Moreira Alves 2 Objetivo: O objetivo desse estudo foi realizar o monitoramento interno de qualidade em
Mary Mayume Taguti Irie2 citopatologia cervicovaginal em amostras coletadas no período de 2013 e 2014 e identificar
possíveis resultados falso-negativos, relacionando-os com os exames obtidos pelo Sistema
Flávia Ferrari Zrzebiela3
Único de Saúde (SUS). Métodos: Foram analisados 313 esfregaços cervicovaginais pelo
Péricles Martim Reche4 método de Papanicolaou nos anos de 2013 e 2014. O controle interno de qualidade foi
Danielle Cristyane Kalva Borato1 realizado pela revisão de 100% dos esfregaços. As amostras com resultados discordantes
entre a análise citológica pelo Projetopap e controle interno de qualidade foram reavaliadas
por uma equipe de quatro citologistas. Resultados: Das 313 amostras analisadas pelo
SUS, 100% foram NILM; pelo Projetopap, 309 (98,8%) foram NILM, uma (0,3%) AIS e três
(0,9%) insatisfatórias. No controle interno de qualidade foram: 260 (83,1%) NILM, 44 (14%)
amostras insatisfatórias, sete (2,3%) ASC-US, uma (0,3%) LSIL e uma (0,3%) AIS. Conclu-
são: O estudo ressalta a importância de um sistema de controle de qualidade em citopatologia
e alerta para a possibilidade de emissão de laudos falso-negativos.

Palavras-chave
Controle da qualidade; Teste de Papanicolaou; Neoplasias do colo do útero

INTRODUÇÃO do tempo de escrutínio, o controle da carga de trabalho do


escrutinador, a revisão hierárquica dos esfregaços e a re-
No Brasil, os programas de controle de qualidade em visão dos esfregaços negativos.(3)
patologia clínica foram introduzidos na década de 1970 e O método convencional de Papanicolaou é eficiente
1980 pelo Programa Nacional de Controle de Qualidade e de fácil aplicação, por isso foi eleito para uso nos pro-
(PNCQ) da Sociedade Brasileira de Análises Clínicas gramas de rastreamento do câncer do colo uterino,(4) po-
(SBAC) e Programa de Excelência para Laboratórios Clí- rém tornou-se alvo de inúmeras críticas por altas taxas de
nicos (PELM) da Sociedade Brasileira de Patologia Clíni- resultados falso-negativos, acarretando ao sistema de saú-
ca (SBPC), culminando na Resolução de Diretoria Cole- de gastos sem resultados devido a erros de coleta, de es-
giada (RDC) 302/2005, que estabelece requisitos mínimos crutínio e de interpretação do diagnóstico.(3,5)
para a medicina diagnóstica, impondo parâmetros de qua- O erro de coleta ocorre pela não representatividade
lidade analítica e de validação via procedimentos contro- da junção escamo-colunar (JEC), sobreposição celular e
lados, com vistas à melhoria contínua da precisão e exati- hipocelularidade no esfregaço.(4) O erro de escrutínio dá-se
dão das análises através de um sistema de gestão de qua- pela não identificação e reconhecimento de células neoplá-
lidade.(1,2) sicas representadas no esfregaço, seja por falta de aten-
Como a maioria dos laboratórios de citopatologia exe- ção e concentração, tempo insuficiente para analisar o
cutam exames de forma artesanal e subjetiva, o monitora- esfregaço, fadiga mental ou pouca experiência do profissi-
mento interno da qualidade ocorre por meio de um conjun- onal. O erro de interpretação sucede quando as células
to de ações sistematizadas, executado regularmente a fim neoplásicas são reconhecidas, mas são interpretadas como
de monitorar a adequabilidade da amostra, a observação benignas ou subavaliadas e classificadas erroneamente,

1
Professora assistente da Universidade Estadual de Ponta Grossa – Paraná, Brasil.
2
Farmacêutico(a)-bioquímica, citologista do Laboratório do Hospital Santa Casa de Ponta Grossa – Paraná, Brasil.
3
Farmacêutica.
4
Professor Adjunto da Universidade Estadual de Ponta Grossa – Paraná, Brasil.

Instituição: Universidade Estadual de Ponta Grossa – Paraná, Brasil.

Recebido em 04/01/2018
Artigo aprovado em 06/11/2018
DOI: 10.21877/2448-3877.201800662

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Controle interno da qualidade em citopatologia: o dilema da subjetividade

seja pela inexperiência do citopatologista ou por informa- Na automação, os sistemas mais utilizados são o
ções clínicas inadequadas.(6) PapNet e AutoPap, cuja revisão dos esfregaços negativos
A inquirição de programas de rastreamento de base mostra-se vantajoso para a detecção de células atípicas,
populacional relata ser a escala de produção um dado ex- mesmo quando escassas.(11) Apesar da automação ser ca-
pressivo para a qualidade do exame citopatológico.(5) As- paz de detectar resultados falso-negativos devido a erro de
sim, a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda escrutínio, não informa sobre erros de amostragem ou de
o processamento de 20 mil a 30 mil exames anuais para interpretação.(6)
manter experiência aceitável.(7) O Colégio Americano de Este estudo teve como objetivo identificar resultados
Patologistas (College of American Pathologists - CAP) de- falso-negativos através do monitoramento interno de quali-
tectou maiores taxas de erro no screening em laboratórios dade em citopatologia cervicovaginal em amostras coleta-
que realizam exames abaixo de 5 mil por ano,(3,5) o Reino das em duplicata pelo SUS, no período de 2013 e 2014,
Unido credencia para rastreamento laboratórios que pro- pela revisão de 100% dos esfregaços, no qual utilizou os
cessam pelo menos 15 mil exames anuais e, na América critérios de Bethesda.
Latina, a Sociedade Peruana de Citopatologia não certifi-
ca laboratórios que processem menos que 5 mil exames MATERIAL E MÉTODOS
anualmente.(3) No Brasil, o Ministério da Saúde, pela por-
taria nº 3.388, de 30 de Dezembro de 2013, recomenda a Por meio de estudo descritivo analítico foram anali-
produção mínima de 15 mil exames por ano pelos labora- sados 313 esfregaços cervicovaginais pelo método con-
tórios de citopatologia, com exceção de laboratórios vin- vencional de Papanicolaou, nos anos de 2013 e 2014, apro-
culados aos hospitais habilitados como Unidades de As- vados pela Comissão de Ética em Pesquisa pela Universi-
sistência de Alta Complexidade (Unacon) ou Centro de Alta dade Estadual de Ponta Grossa com o Parecer Consubs-
Complexidade em Oncologia (Cacon) e hospitais universi- tanciado nº 1.614.753.
tários.(5,8) Essa pesquisa envolveu quatro Unidades Básicas de
Aliada à recomendação mínima de demanda, os mé- Saúde (Antônio Saliba, Cesar Milleo, Antero de Melo e Nilton
todos de revisão de esfregraços no controle interno de qua- Castro) do município de Ponta Grossa, Paraná, o Ambula-
lidade vislumbram a revisão aleatória de 10% dos esfre- tório da UEPG, que realiza coleta cervicovaginal para o SUS,
gaços negativos, revisão de 100% dos esfregaços, revisão e o projeto de extensão "Prevenção e educação na atenção
rápida de 100% dos esfregaços negativos e pré-escrutínio à saúde da mulher: coleta de exame Papanicolaou
rápido de todos os esfregaços. Já para exames automa- (Projetopap) pela Universidade Estadual de Ponta Grossa
tizados é recomendada a revisão dos esfregaços negati- (UEPG)”. As mulheres que procuraram espontaneamente o
vos.(6) Sistema Único de Saúde (SUS) para a realização do exa-
A revisão aleatória de 10% dos esfregaços negativos me preventivo do câncer do colo uterino concordaram em
é o método mais utilizado, porém a maior porcentagem dos participar do estudo, assinando o termo de consentimento
esfregaços não é revisada mostrando-se ineficiente para livre e esclarecido.
detectar lesões não diagnosticadas no escrutínio de rotina.(6) A coleta de material cervicovaginal foi realizada por
Recomendado como método padrão, a revisão de 100% enfermeiros, em duplicata, sendo a primeira amostra en-
dos esfregaços consiste no duplo escrutínio detalhado de caminhada normalmente para o SUS e a segunda amos-
todas as preparações, e, por ser um método mais minucio- tra, que se caracterizou por um segundo esfregaço reali-
so, reduz erros de escrutínio na rotina.(9) A revisão rápida de zado com o resíduo de material cervicovaginal existente
100% dos esfregaços negativos de escrutínio entre 30 e 120 na espátula de Ayre e escovinha cervicovaginal, foi envia-
segundos, todos os esfregaços interpretados como negati- da para o laboratório de citologia do curso de Farmácia
vos ou insatisfatórios e os esfregaços identificados como da UEPG.
suspeitos são submetidos a uma revisão posterior detalha- As informações clínicas foram obtidas nas fichas de
da por profissional experiente que determina o diagnóstico anamnese da paciente, segundo recomendação do Minis-
final.(5) O método de pré-escrutínio rápido de todos os esfre- tério da Saúde, a saber: hemorragia genital, pós-menopau-
gaços tem por finalidade aumentar a sensibilidade do exa- sa, sangramento ectocervical de contato, evidência de in-
me citopatológico, que realiza leitura rápida de todos os fecção sexualmente transmissível (IST), alterações macros-
esfregaços em, no máximo, 120 segundos antes do escrutí- cópicas ao exame especular, rádio ou quimioterapia, resul-
nio de rotina, porém acarreta alto índice de falso-positivos, tados anteriores com alterações atípicas de significado
por encaminhar maior número de esfregaços considerados indeterminado, lesões pré-neoplásicas ou neoplásicas
suspeitos para revisão detalhada, mesmo assim, mostra- escamosas e/ou glandulares.
se como eficiente ferramenta para diminuir resultados fal- O método de controle interno de qualidade utilizado
so-negativos.(5,6,10) foi a revisão de 100% dos esfregaços, em microscópio

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Machado EP, Alves MBM, Irie MMT, Zrzebiela FF, Reche PM, Borato DCK

óptico de luz comum, em objetiva de 10x e 40x. O escrutínio vergência de leitura relatada pelo controle interno de qua-
foi realizado pela técnica de Turret. As amostras que apre- lidade (Figura 2).
sentaram resultados discordantes entre a análise citológica
pelo Projetopap na leitura de escrutínio e na leitura do con-
trole interno de qualidade foram reavaliadas por uma equi-
pe de quatro citologistas experientes.
Também as amostras do Projetopap (controle interno)
cujos resultados discordaram da primeira amostra enviada
ao SUS foram reavaliadas pela equipe de citologistas revi-
sores.
Os resultados discrepantes foram reavaliados e clas-
sificados segundo o sistema Bethesda, como a seguir: ne-
gativo para lesão intraepitelial ou malignidade (NILM);
atipias celulares de significado indeterminado em células
escamosas (ASC): escamosas possivelmente não neoplá- Figura 1. Comparação em porcentagem entre os resultados do SUS e
sicas (ASC-US) e escamosas onde não se pode excluir le- Projetopap e a discrepância entre esses resultados nas amostras
colhidas em duplicata.
são intraepitelial de alto grau (ASC-H); lesão intraepitelial
em células escamosas de baixo grau compreendendo o efei-
to citopático pelo HPV (LSIL); lesão intraepitelial em células
escamosas de alto grau (HSIL); lesão intraepitelial em célu-
las escamosas de alto grau não podendo excluir micro-
invasão; carcinoma epidermoide invasor; atipias em célu-
las glandulares (AGC): células glandulares possivelmente
não neoplásicas, células glandulares em que não se pode
afastar lesão intraepitelial de alto grau e glandulares de ori-
gem indefinida, células glandulares de origem indefinida, pos-
sivelmente não neoplásicas, e células glandulares de ori-
gem indefinida em que não se pode afastar lesão intra-
epitelial de alto grau; adenocarcinoma in situ (AIS) e adeno-
carcinoma invasor (cervical ou endometrial). A avaliação
estatística foi realizada por frequência simples. Figura 2. Comparação em porcentagem entre os resultados do Projetopap
e controle interno de qualidade pelo método de 100% de revisão.
RESULTADOS
Das amostras que apresentam divergência de leitu-
Das 313 amostras analisadas pelo SUS (primeira ra entre a primeira (SUS) e segunda amostras (Projetopap)
amostra colhida), os resultados foram 100% NILM e nenhu- e o controle interno de qualidade, nove (2,9%) apresenta-
ma insatisfatória, e das amostras enviadas ao Projetopap ram atipias celulares, por isso foram revisadas por quatro
(segunda amostra) 309 (98,8%) foram NILM, uma (0,3%) citologistas experientes. Observou-se um consenso de lei-
AIS e três (0,9%) insatisfatórias. Entre as leituras realiza- tura em 66,6% para ASC-US na amostra 1, 83,3% de NILM
das pelo SUS e pelo Projetopap houve oito (2,52%) discor- para as amostras 2, 4, 7, 8 e 9, 66,6% de NILM nas amos-
dantes (Figura 1). tras 3, 5 e 6 e 50% de AIS na amostra 7. A relação de con-
Entre as discrepâncias houve um caso reconhecido cordância entre a primeira leitura e os quatro citologistas
como adenocarcinoma "in situ" na amostra enviada ao frente ao controle interno de qualidade foi a seguinte: 1/3 na
Projetopap relatada como NILM pelo SUS. O caso foi com- amostra 1, 1/0 nas amostras 2, 4, 8 e 9, 1/ 1 nas amostras 3,
provado como positivo para AIS em biópsia. 5 e 6 e ½ na amostra 7 (Tabela 1).
Das amostras enviadas ao Projetopap, o resultado Quanto aos dados clínicos, durante o exame especu-
obtido no controle interno de qualidade pelo método de lar das amostras que apresentaram lesão celular, a enfer-
revisão de 100% dos esfregaços, foram: 260 (83,1%) magem relatou presença de lesão visível no colo uterino em
NILM, 44 (14%) amostras insatisfatórias, sete (2,3%) ASC- duas amostras, cinco amostras apresentaram leucorreia e
US, uma (0,3%) LSIL e uma (0,3%) AIS. A discrepância três amostras colo friável (Tabela 2).
entre a primeira leitura e o controle interno de qualidade As amostras que apresentaram alteração no exame
foram em 49 resultados NILM, 41 amostras insatisfatórias, citopatológico na segunda amostra, realizada com resíduo
sete ASC-US e uma LSIL, num total de 98 (31,3%) de di- de material cervicovaginal ratificada por quatro citologistas,

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apresentaram alguma alteração no exame especular, seja Quanto à representatividade da junção escamo-
pela presença de secreção no caso de ASC-US ou na ob- colunar (JEC), não apresentaram células endocervicais 168
servação de lesão, presença de secreção e colo friável na (53,78%) das amostras do SUS, e essa ausência foi obser-
presença de adenocarcinoma in situ. vada em 206 (65,81%) amostras do Projetopap.

Tabela 1 - Percentual de consenso entre os resultados citopatológicos no controle interno de qualidade


Citologistas revisores Relação de
Concordância
Controle concordância
Amostra 1º Leitura entre as
Interno A B C D frente ao controle
leituras (%)
interno
1 NILM ASC-US NILM ASC-US ASC-US ASC-US 66,6 1/3
2 NILM ASC-US NILM NILM NILM NILM 83,3 1/0
3 NILM LSIL LSIL NILM NILM NILM 66,6 1/1
4 NILM ASC-US NILM NILM NILM NILM 83,3 1/0
5 NILM ASC-US ASC-US NILM NILM NILM 66,6 1/1
6 NILM ASC-US NILM ASC-US NILM NILM 66,6 1/1
7 AIS AIS AIS NILM NILM NILM 50 1/2
8 NILM ASC-US NILM NILM NILM NILM 83,3 1/0
9 NILM ASC-US NILM NILM NILM NILM 83,3 1/0

Tabela 2 - Tabela relacionando os dados do exame especular com No controle interno de qualidade foram observados 14% de
o resultado do consenso entre citologistas no resultado do exame
esfregaços inadequados, um percentual maior que os
citopatológico
insatisfatórios registrados pelo SUS, ressaltando que o
Amostra Lesão Secreção Colo Friável Consenso
percentual de discordância entre o SUS e Projetopap (esfre-
1 não observada presente não ASC-US
2 Observada ausente não NILM
gaço residual) foi pequeno (2,52%), favorecendo a tese da
3 não observada presente sim NILM
presença de grande quantidade de material residual nos
4 não observada presente não NILM instrumentos de coleta após a confecção de esfregaço. Isso
5 não observada presente não NILM possibilitou a comparação entre os resultados do SUS e a
6 não observada ausente não NILM amostragem residual (Projetopap), e com esta a realização
7 Observada presente sim AIS do controle interno de qualidade pela metodologia da revi-
8 não observada ausente sim NILM são de 100% dos esfregaços.
9 não observada ausente não NILM A revisão de 100% dos esfregaços é o método mais
minucioso para reduzir os erros de escrutínio de rotina. Con-
siste na dupla leitura microscópica detalhada de todos os
DISCUSSÃO esfregaços, por isso tem alto potencial para reduzir o maior
número de resultados falso-negativos e alta capacidade de
Esse trabalho, baseado em amostra cervicovaginal detectar esfregaços anormais, apesar de consumir maior
colhida em duplicata, utilizou a segunda amostra de tempo.(9,12) Neste estudo, ao se comparar o resultado do
esfregaço realizado com resíduos da espátula de Ayre e SUS com o primeiro escrutínio do Projetopap realizado com
escovinha, com fundamento em estudos, demonstrando material residual, houve em torno de 98% de concordância
que, mesmo após ótima coleta, apenas 18% do total das entre os resultados, porém, na realização do controle inter-
células obtidas alcançam a lâmina por erro de transferên- no de qualidade, a divergência entre as leituras do
cia, pela retenção de células tumorais nas fibras da Projetopap foi expressiva, em torno de 30%, pela consta-
espátula ou da escovinha cervical, o que ocasiona a perda tação de maior número de esfregaços insatisfatórios (hipo-
na coleta de lesões pequenas ou inacessíveis, fato que celularidade e sobreposição de células e/ou hemácias e/ou
influencia significativamente taxas de falso-negativos.(11) leucócitos), ASC-US e LSIL, interferindo na redução do nú-
Esse estudo detectou AIS em esfregaço residual, confir- mero de NILM, portanto um número relevante de possíveis
mado em biópsia. falso-negativos.
O Ministério da Saúde preconiza que o percentual mí- Esse percentual expressivo de discrepância entre a
nimo de amostras insatisfatórias deve perfazer no máximo leitura do exame pelo Projetopap e o controle de qualidade
5% dos esfregaços.(5) Foram observadas amostras insatis- deu-se pela quantidade de preparados classificados como
fatórias em 0,9% na primeira leitura do esfregaço residual. insatisfatórios na revisão de amostras. Os critérios de

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satisfatoriedade pelo SUS baseiam-se na presença de cé- menos três vezes comparado com a célula intermediária
lulas em quantidade representativa (sem valorizar a presen- normal, grau variável de hipercromasia, anisocariose,
ça de células da junção escamo-colunar), bem distribuídas, com presença de bi ou multinucleação, distribuição regu-
fixadas e coradas de modo a permitir uma conclusão lar da cromatina, porém grosseiramente granular, nucléo-
diagnóstica. O controle interno de qualidade do Projetopap los ausentes ou diminutos quando observados. Os núcle-
aderiu ao Sistema Bethesda, considerando amostras satis- os apresentam contorno irregular e o citoplasma apresen-
fatórias, esfregaços contendo 8 mil a 12 mil células esca- ta típica cavitação perinuclear (coilócito) sugestiva da
mosas no esfregaço e, no mínimo, dez células endocervicais presença do vírus HPV.(3)
e/ou metaplásicas(13) aliado aos critérios de insatisfato- O controle interno de qualidade registrou sete ASC-US,
riedade, que são material acelular ou hipocelular com me- um LISL e um AIS, e, em consenso entre os citologistas,
nos de 10% do esfregaço e/ou leitura prejudicada em mais apenas uma amostra das sete amostras de ASC-US man-
de 75% do esfregaço com sobreposição por sangue, teve-se nessa classificação LSIL; o consenso foi para NILM
piócitos, artefatos de dessecamento, contaminantes exter- e AIS, sendo que apenas um revisor concordou com essa
nos ou intensa superposição celular.(14) Somente a adoção classificação, caso este confirmado em biópsia.
da normativa do Sistema Bethesda, a rigor, diminuiu o nú- O consenso entre os escrutinadores deu-se em 83%
mero de falso-negativos de forma expressiva. em duas amostras e 66% em quatro amostras. A falta de
Pela subjetividade da leitura, quanto menor o número unanimidade no resultado da leitura dos exames citológicos
de células no esfregaço e maior o número de células atípicas explicita a subjetividade e seus riscos, cujas medidas
isoladas, a dificuldade do profissional em observar as anor- sugeridas para diminuir o impacto da avaliação subjetiva é
malidades presentes aumenta, existindo um consenso no o credenciamento por parte dos governos, de laboratórios
qual um esfregaço com menos de 200 células anormais cuja demanda seja alta, como forma de assegurar a experi-
aumenta a possibilidade de resultado falso-negativo. Quan- ência do profissional.
do o número de células no esfregaço cai para menos de 50, Outra forma de prognosticar a capacidade do escru-
potencializa em 24 vezes o resultado falso-negativo. (12,15) tinador na avaliação de lesões celulares é o percentual de
Neste aspecto, a aplicação dos critérios de Bethesda na positividade. Assim, o Ministério da Saúde determina que o
qualificação da amostra como insatisfatória aumenta a sen- percentual de positividade no rastreamento do câncer do
sibilidade do teste. colo do útero no Brasil é considerado: muito baixa: abaixo
Os resultados ASC-US, LSIL e AIS foram submetidos de 2,0%; baixa: entre 2,0% e 2,9%; esperada: entre 3% e
à avaliação por quatro citologistas experientes. Como a 10%; e acima da esperada acima de 10%.(19)
amostragem com resultados discrepantes e/ou alterados foi O monitoramento interno de qualidade em citopatologia
pequena, a análise estatística foi realizada por frequência embasado em critérios de avaliação e registro dos resulta-
simples. dos encontrados permite a melhoria por direcionar medi-
ASC-US, termo que identifica processos inflamatóri- das corretivas, seja detecção da identificação incorreta do
os, reativos ou reparativos, atípicos ou mais intensos, mas material coletado a problemas relacionados aos procedi-
que não são suficientes para serem interpretados como mentos laboratoriais, desde a coloração, análise microscó-
displasia cervical (NIC).(16) A célula apresenta aumento nu- pica e emissão do laudo. Assim, identifica as causas de
clear em 2,5 a 3 vezes da célula intermediária, porém com erros, avalia o desempenho, implementa ações de melhorias
discreto aumento na relação núcleo/citoplasma, podendo do desempenho diagnóstico.
se fazer presente bi ou multinucleação, discreta
hipercromasia, contorno nuclear geralmente regular com CONCLUSÃO
presença de anisocariose e pleomorfismo.(17) A classifica-
ção ASC-US é uma alteração problemática, pois reflete a O presente estudo ressalta a importância da adoção
incapacidade do citopatologista em estabelecer um diag- de uma sistema de controle de qualidade em citopatologia,
nóstico definitivo. Bethesda preconiza que a frequência de evidenciada pelo aumento de amostras insatisfatórias en-
ASC-US e/ou AGC deve ser inferior a 5% do total dos re- tre a primeira leitura e a leitura do controle interno.
sultados e preconiza ainda que os resultados de ASC-US/ Visto que o exame citopatológico apresenta altas ta-
AGC não devem ultrapassar o dobro das lesões de baixo xas de resultados falso-negativos, é necessário que se ava-
grau (LSIL).(18) lie o método mais eficiente de controle interno de qualida-
LSIL representa alterações celulares em epitélio de. A revisão de 100% dos esfregaços negativos é consi-
escamoso compatível com displasia leve, uma vez que derada um método eficiente, pois permite a revisão de mai-
as alterações citológicas ocorrem em células intermedi- or número possível de esfregaços.
árias. As células podem aparecer isoladas ou agrupadas, A não classificação da amostra AIS, confirmada em
com citoplasma abundante, núcleo aumentado em pelo biópsia, por parte dos citopatologistas experientes e do

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Controle interno da qualidade em citopatologia: o dilema da subjetividade

SUS, mostra a falta de monitoramento de qualidade. Resul- 5. INCA - Instituto Nacional do Câncer.. Manual de gestão da qualida-
de para laboratório de citopatologia. Disponível em: <http://
tados falso-negativos culminam em tratamento mais com-
www1.inca.gov.br/inca/Arquivos/livro_completo_manual_
plicado, pois, quanto mais evoluído o adenocarcinoma e citopatologia.pdf>. Acesso em 07.08.2016
mais tarde diagnosticado, maior a dificuldade de reverter o 6. Tavares SBN, Amaral RG, Manrique EJC, Sousa NLA, Albuquerque
caso. ZBP, Zeferino LC. Controle da Qualidade em Citopatologia Cervical:
Revisão de Literatura. Revista Brasileira de Cancerologia. 2007; 53(3):
Os indicadores analisados em laboratório podem evi- 355-364
denciar problemas em etapas antecedentes da leitura do 7. WHO - World Health Organization. Programmes and projects. Cancer:
esfregaço. É compromisso do laboratório a educação con- screening for cervical cancer Disponível em: <http://www.who.int/
tinuada de toda a equipe na busca de melhor qualidade, cancer/detection/cervical_cancer_screening/en/index.html>. Aces-
so em 02.08.2016
colaborando no planejamento e na implementação de ações
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colaou, mostrando os erros e ações corretivas a fim de pro- 11. Maeda MY, Shirata NK, Longatto Filho A, Cavaliére MJ. Influência da
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Agradecemos o apoio e colaboração da Secretaria triumph and a tragedy. JAMA. 1989;261(5):737-43.
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Objective: The aim of this study was to conduct internal monitoring of programas de garantia de qualidade em citopatologia. J Bras Ginec.
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cytological analysis by Projetopap and internal quality control were re- a Turkish university hospital. Eur J Obstet Gynecol Reprod Biol.
evaluated by a team of four cytologists. Results: Of the 313 samples 2001;96(1):108-10.
analyzed by SUS 100% were NILM, by Projetopap 309 (98,8%) were 17. Morin C, Bairati I, Bouchard C, Fortier M, Roy M, Moore L, et al.
NILM, one (0,3%) AIS and three (0,9%) unsatisfactory. In the internal Cytologic predictors of cervical intraepithelial neoplasia in women
quality control were 260 (83,1%) NILM, 44 (14%) unsatisfactory samples, with an ASCUS Pap smear. Acta Cytol. 2000;44(4):576-86.
seven (2,3%) ASC-US, one (0,3%) LSIL and one (0,3%) AIS. 18. Arbyn M, Schenck U. Detection of false negative Pap smears by
Conclusion: The study shows the importance of a quality control system rapid reviewing. A metaanalysis. Acta Cytol. 2000;44(6):949-57. Dis-
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REFERÊNCIAS
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Assessoria Técnico-Científica da Gold Analisa Diagnóstica LTDA - Departamento de Análises Clínicas e Toxicológicas
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