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ICTERÍCIA

Introdução: a bilirrubina é um dos produtos finais do metabolismo do heme. A icterícia


se dá pelo desbalanço entre a produção e eliminação de bilirrubina.
Produção de bilirrubina: o heme é metabolizado pela enzima heme-oxigenase 1 (HO-
1), formando biliverdina, na única reação do corpo que produz CO, fisiologicamente. A
biliverdina, então, é transformada (pela biliverdina redutase) em bilirrubina não
conjugada, que é lipossolúvel.
Heme  Biliverdina + CO  Bilirrubina não conjugada (lipossolúvel)

Hb fetal X Hb adulta
 a Hb fetal apresenta menor tempo de sobrevida/maior turn over – dura cerca de 90
dias (sobrecarrega o sistema da heme-oxigenase 1), gerando mais bilirrubina. Hb
fetal tem maior afinidade pelo O2, pois a saturação de oxigênio do feto é baixa (40 –
50%) -> precisa captar bem O2
 Eritropoiese extra-medular: o ambiente intra-útero tem menor concentração de O2
do que o extra-uterino. Pela hipóxia, há aumento da produção de eritropoetina, levando
à eritropoiese extra-medular, que resulta em alto hematócrito (o Ht do RN é entre 55
a 60%). Após o nascimento, pelo aumento súbito da saturação de O2, a eritropoiese
diminui abruptamente, de modo que os sítios extra-medulares perdem função de
eritropoiese. Todo o estoque de ferro e grupamentos heme derivados do metabolismo
das hemácias vão para o sistema retículo-endotelial, então, formando maior quantidade
de bilirrubina (degradação de estoque).
 Aumento do turn over de citocromos: alguns citocromos apenas têm função intra-
uterina e são reciclados após o nascimento. O heme forma alguns desses citocromos,
formando mais substrato para a metabolização pela heme-oxigenase 1.
 Ciclo enterohepático

Transporte de bilirrubina no plasma: a bilirrubina não conjugada é lipossolúvel e


atravessa barreiras, inclusive BHE, onde produz lesão neuronal tóxica. Por isso, a maior
parte da bilirrubina não-conjugada liga-se à albumina, tornando-se menos lipossolúvel, e
é transportada até o fígado, onde é metabolizada. Problemas: 1) RNs apresentam
hipoalbuminemia em relação aos adultos, o que dificulta o transporte de bilirrubina para
o fígado. 2) A bilirrubina conjugada também se liga à albumina, competindo com a não
conjugada (tóxica).
Captação de bilirrubina pelo fígado e conjugação nos hepáticos: no hepatócito, há
Descombinação da bilirrubina da albumina por um processo semi-passivo. Assim, há
passagem da bilirrubina para o citoplasma do hepatócito. Em seguida, ela é transportada
ao retículo sarcoplasmático pela proteína ligandina, e, nele, ela é conjugada com ácido
glicurônico pela enzima UGT1A1, formando bilirrubina conjugada, hidrossolúvel e
menos tóxica.
Fígado  transporte pela ligandina  Reticulo Sarcoplasmático -> ação da UGT1A1
associando a 2 moléculas de ácido glicurônico  Bilirrubina conjugada
Excreção de bilirrubina e ciclo entero-hepático: processo celular dependente de
energia. O transporte ocorre em micelas formadas no hepatócito e composta por
bilirrubina conjugada, ácidos biliares, fosfolipídeos e colesterol, que vão até os
canalículos biliares, formando a bile. É transportada para a vesícula biliar depois ao
intestino, onde a bilirrubina conjugada sofre ação da enzima beta-glicuronidase
intestinal, que faz rápida conversão da bilirrubina conjugada em não conjugada,
lipossolúvel, que atravessa a barreira intestinal e retorna ao sangue, aumentando a
disponibilidade de bilirrubina não conjugada. A bilirrubina que não foi desconjugada
pode ser eliminada nas formas de urobilinogênio ou estercobilinogênio. Essa conversão
é necessária porque na vida intrauterina, a placenta não tem capacidade de excretar o
isômero da bilirrubina não conjugada produzida pela heme-oxigenase; portanto, é
necessária a “desconjugação” da bilirrubina para formar um isômero capaz de ser
excretado pela placenta. No entanto, após o nascimento, esse processo ainda ocorre,
portanto, a bilirrubina reabsorvida no intestino volta ao fígado para sofrer nova
conjugação: esse é o ciclo entero-hepático.
Bilirrubinemia fisiológica: 60% dos bebês a termo ficam ictéricos até o terceiro dia de
vida. Isso ocorre porque em torno de 48 a 120h de vida, há aumento em 3x da bilirrubina
basal porque a UGT tem atividade parcial (é imatura), além da degradação de heme,
citocromos que auxiliam nesse acúmulo. Em torno do primeiro mês de vida, há redução
dos níveis de bilirrubina (porque a UGT torna-se madura).
Zonas de Kramer: A evidência de icterícia ocorre a partir de 5-6mg/dl de bilirrubina
sérica e a instalação da icterícia se dá por distribuição cefalo-caudal. As zonas de
Kramer foram criadas no passado para acompanhar níveis de bilirrubina sem a dosagem
diária, que exigia coleta de grande volume de sangue. Na prática, até a zona 3, não se
coleta sangue. O diagnóstico de icterícia patológica ou fisiológica só pode ser fechado
com dosagem de bilirrubina e comparação com gráfico em percentual. A icterícia
com menos de 24h de vida é geralmente patológica.
1. Zona 1: Icterícia de cabeça e pescoço (BT = 6mg/dl)
2. Zona 2: Icterícia até no umbigo (BT = 9mg/dl)
3. Zona 3: Icterícia no joelho (BT = 12mg/dl)
4. Zona 4: Icterícia até os tornozelos e/ou antebraço (BT = 15mg/dl)
5. Zona 5: Icterícia até região plantar e palmas (BT = 18 mg/dl ou mais)

Hiperbilirrubinemia não conjugada patológica: fator de risco para lesão neuronal. O


diagnóstico é feito com a dosagem de bilirrubina sérica total. Pode ocorrer por desbalanço
entre produção, captação, conjugação, excreção ou reabsorção.
Excesso de produção de bilirrubina: indica hemólise, que tem várias causas, como
incompatibilidade Rh, incompatibilidade ABO, deficiência de G6PD.
1. Incompatibilidade RH: principal causa de hiperbilirrubinemia hemolítica grave e
causa comum de kernicterus. Teve redução na incidência após uso rotineiro de
RhoGAM. A incompatibilidade ocorre quando a mãe é Rh- e o bebê é Rh+, de modo que
produz IgG anti-antígeno D no contato com o sangue do feto.
 A transfusão fetal de sangue pode ocorrer na 22ª semana (2º e 3º trimestre – devido à
acomodação placentária) e no momento do parto, podendo desencadear resposta
imunológica da mãe.
 Fisiopatologia: A incompatibilidade Rh é gerada por memória imunológica;
portanto, em um primeiro contato apenas há sensibilização e produção de anticorpos
IgM – molécula pentamérica, que destrói as células transfundidas do feto para a
gestante e circula pelo sangue da gestante, mas tem dificuldade de passar pela barreira
placentária, não gerando repercussões/icterícia significativa do nascido de uma
primeira gestação. No entanto, na segunda gestação, se houver pequena transfusão
intra-útero, em uma mãe previamente sensibilizada, com memória imunológica contra
antígeno D, há resposta imune forte e rápida produzindo IgG, molécula menor que
atravessa a barreira placentária com facilidade. Portanto, os anticorpos maternos
passam para a circulação fetal e causam hemólise do sangue do feto, na eritroblastose
fetal. Pela hemólise de eritrócitos, há liberação de eritroblastos da medula do bebê
(desespero da medula). Desse modo, o RN nasce hidrópico (anemia -> taquicardia ->
insuficiência cardíaca -> edema na criança, que é hidropsia), edemaciado, com
derrame pleural, ascite, insuficiência cardíaca e icterícia.
 Prevenção: O soro RhoGAM deve ser usado para prevenir eritroblastose fetal porque
impede a geração de imunidade de memória de deve ser administrado em até 96h em
todos os casos de mãe Rh- com bebê Rh+. Contém anticorpos anti-Rh e liga-se ao
antígeno D e causando hemólise, impedindo a reação imune e produção de anticorpos
anti-Rh pela mãe.

2. Incompatibilidade ABO: principal causa de doença hemolítica imune do RN. Ocorre


com mãe O (zero) e RN A ou B. Acontece pela ocorrência natural de anticorpos
anti-A e anti-B (imunidade inativa) da mãe (que é O). É menos grave do que a
incompatibilidade Rh porque se formam é uma reação mediada por IgM, que atravessa
pouco a placenta. Pode causar icterícia em menos de 24h. Há Coombs direto positivo.

Observação: COOMBS
Coombs direto: sangue  pinga reagente de Coombs que facilita sedimentação 
aglutina se tiver anticorpo ligado a hemácia. Serve para o bebê, para avaliar se está
sensibilizado para hemolisar.
Coombs indireto: soro da pessoa + sangue de animal (p. ex.) com antígeno a testar 
centrifuga  pinga reagente  aglutina. Avalia anticorpos maternos contra o filho.

3. Deficiência de G6PD: G6PD é um estabilizador da membrana eritrocitária (impede


que a glicose seja transportada para fora da célula) contra estresse oxidativo. Na
cadeia respiratória, essa enzima atua convertendo glicose em glicose-6-P, retirando
hidrogênio (substituído por P) é capturado por NADHP. O NADHP cede hidrogênio
para a redução da glutationa oxidada, proteína que estabiliza a membrana
eritrocitária quando reduzida (quando oxidada, fica instável, de modo que a
membrana pode se romper). Na deficiência de G6PD, a glutationa fica oxidada (o
que é fácil já que há alto estresse oxidativo na hemácia por carrear oxigênio), a
membrana torna-se instável e a hemácia é destruída. A hemólise é desencadeada por
fator gatilho (estresse oxidativo) como alimentos, medicações (ex. sulfametoxazol) e
infecções.
Dosa G6PD 3 meses depois da crise hemolítica, porque no momento da crise está
normal já que as hemácias sem G6PD foram destruídas, restando apenas as que
possuem G6PD.

Redução da captação hepática/defeitos de conjugação:


 Hipotireoidismo (reduz conjugação por lentificação metabólica),
 Síndrome de Lucey-Driscoll: hiperbilirrubinemia não conjugada neonatal, remite
espontaneamente.
 Síndrome de Gilbert: deficiência qualitativa da UGT, de modo que em
períodos de jejum prolongado ou após libação alcoólica há icterícia benigna,
sem maiores repercussões. Um dos sintomas é o sono.
 Síndrome de Crigler-Najar: deficiência quantitativa da enzima, sendo a tipo
I – ausência total de UGT1, levando à morte por Kernicterus – e tipo II –
deficiência parcial, geralmente compatível com a vida.

Aumento do ciclo entero-hepático ou icterícia associada à amamentação:


 Baixa ingesta: quando o bebê não está bem alimentado, há redução do trânsito
intestinal, de modo que o bolo fecal permanece por mais tempo no intestino,
permitindo atuação da beta-glucoronidade intestinal e desconjugação da
bilirrubina, que vai para a corrente sanguínea, causando icterícia.
 Icterícia do leite materno: beta-glucoronidase é presente no leite materno, que
passa pelo estômago do bebê e promove desconjugação da bilirrubina no intestino.
Gera icterícia geralmente na 2ª semana de vida. Realiza-se prova terapêutica,
suspendendo o LM por alguns dias, e espera-se queda dos níveis de bilirrubina.
Depois de um tempo, com amadurecimento da UGT1A1 do bebê, a enzima
suporta a sobrecarga de bilirrubina que vai sendo reabsorvida no intestino e é
possível retornar à amamentação.

Encefalopatia bilirrubínica aguda: causada pela impregnação da bilirrubina não-


conjugada no cérebro. Pode ser transitória e reversível. Não necessariamente evolui
com kernicterus. Caracterizada por letargia, rejeição alimentar, hipotonia e choro
agudo e alto. Pode ocorrer opistótono. A principal sequela é deficiência auditiva
neurossensorial (diagnóstico por BERA), porque a bilirrubina é muito tóxica no canal
auditivo.
Kernicterus: é um diagnóstico histopatológico, dado pela pigmentação amarelada e
necrose neuronal em gânglios da base, córtex hipocampal, núcleos subtalâmicos e
cerebelo, seguida de gliose nos sobreviventes. Tétrade clássica: paralisia cerebral
coreoatetótica (incapacidade de andar após 2 anos – área motora próxima a cognitiva;
movimentos rítmicos), paralisia do olhar para cima, perda auditiva neurossensorial
e displasia dentária. As 4 alterações são necessárias para caracterizar kernicterus, mas o
diagnóstico definitivo só pode ser feito após a morte.
Diagnóstico
Métodos não invasivos de dosagem de bilirrubina: não substituem a dosagem
sanguínea de bilirrubina, mas são: bilirrubina transcutânea, mensuração do monóxido de
carbono no final da expiração (porque quando a heme-oxigenase quebra bilirrubina,
forma biliverdina e monóxido de carbono; níveis altos de monóxido de carbono indicam
hemólise e é a única reação que o libera no organismo) e relação molar
bilirrubina/albumina.
Após dosagem: por no gráfico de idade x valor de bilirrubina. Corte para fototerapia: 21
mg/dL; corte para exsanguineotransfusão: 25 mg/dL.
Gráfico: pontilhado – a termo sem fator de risco; traço: a termo com fator de risco ou
prematuro sem fator de risco; linha: prematuro com fator de risco -> muda linha para
avaliar.
Fatores de risco: incompatibilidade Rh, incompatibilidade ABO, deficiência de G6PD,
letargia significante, instabilidade da temperatura (os dois associados a encefalopatia),
sepse, acidose, asfixia (os três últimos associados a ligação ineficiente da albumina).
Tratamento:
Fototerapia: método mais estudado no manejo da hiperbilirubinemia. Tem 3
mecanismos de ação: fotoisomerização (transforma o isômero cis da bilirrubina em trans,
que é mais facilmente metabolizado; no entanto, após 3h, o isômero trans pode voltar a
se converter a cis, por isso não se pode interromper a fototerapia; a eliminação é
intestinal), ciclização intramolecular (a incidência da luz sobre a bilirrubina não
conjugada forma lumirrubina, que é hidrossolúvel e não se transforma de novo em
bilirrubina), oxidação (a incidência da luz em bilirrubina não conjugada causa sua
oxidação, mas isso é instável). O principal efeito é a fotoisomerização. A complicação é
a síndrome do bebê bronzeado, mas isso não gera repercussões clínicas.
Exsanguíneo-transfusão: terapia de escolha para o tratamento imediato de
hiperbilirrubinemia para prevenção de kernicterus e na correção da anemia na
eritroblastose fetal. Realiza troca de 2 volemias do paciente por sangue do doador,
resultando em redução de 50% do nível de bilirrubina em 2h. Tem como complicações
trombocitopenia (porque não são administradas plaquetas), trombose de veia porta (pela
proximidade do cateter umbilical com a veia porta), enterocolite necrotizante (porque a
retirada e colocação de sangue pode causar isquemia mesentérica), arritmia cardíaca
(proximidade do cateter com o coração), entre outras. Não é capaz de retirar a volemia
corresponde aos órgãos sólidos, de modo que é normal que a bilirrubinemia aumente em
até 50%, e o sangue represado nesses órgãos pode ainda causar hemólise quando voltar a
circular.
Farmacológica: fenobarbital (estimula a produção de ligandina nos hepatócitos),
metaloporfirinas (disputam o mecanismo da heme-oxigenase 1 com o grupamento
heme, portanto diminuem a metabolização de heme, impedindo a produção de biliverdina,
bilirrubina e icterícia. No entanto, a metabolização de metaloporfina por heme-oxigenase
1 produz porfirinogênio, de modo que há porfiria transitória. Por isso, é pouco
utilizada), imunoglobulina humana intravenosa (IgIV) (inativa anticorpos da mãe para
o caso de incompatibilidade Rh; aos poucos satura com anticorpo e não reage; não pode
ser feito sorologia para nada, pois dará alto; é a única medida que pode impedir
exsanguíneotransfusão).
Hiperbilirrubinemia conjugada: defeito ou insuficiência na produção biliar, no fluxo
biliar ou ambos. Se dá principalmente pela colestase, que pode ter diversas causas:
hepatite primária, má formação genética, defeito inato do metabolismo, doenças
hematológicas, etc. O diagnóstico de colestase neonatal requer USG abdominal para
identificar ou excluir o diagnóstico de atresia de vias biliares, que motiva a cirurgia de
urgência, impedindo a cirrose hepática por incapacidade de excreção de bilirrubina.
Geralmente, há necessidade de transplante posterior. No entanto, o prognóstico é muito
pior se o diagnóstico for feito depois do primeiro mês de vida. Tende a gerar icterícia
mais tardia.

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