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Lévi-Strauss, Claude. [s/d] O feiticeiro e sua magia.

In: Antropologia
estrutural. Tradução Beatriz Perrone-Moisés. Editora Cosac Naify, p. 181-200.

não há por que duvidar da eficácia de certas práticas mágicas. Porém, ao


mesmo tempo, percebe-se que a eficácia da magia implica a crença na magia,
que se apresenta sob três aspectos complementares: primeiro, a crença do
feiticeiro na eficácia de suas técnicas; depois, a do doente de que ele trata ou
da vítima que ele persegue, no poder do próprio feiticeiro; e, finalmente, a
confiança e as exigências da opinião coletiva, que formam continuamente uma
espécie de campo de gravitação no interior do qual se situam as relações entre
o feiticeiro e aqueles que ele enfeitiça.
a situação mágica é um fenômeno de consenso. Depende do quanto de
credulidade e quanto de espírito crítico intervêm na atitude do grupo em
relação àqueles a quem atribui poderes excepcionais, e a quem concede
privilégios correspondentes, mas dos quais também exige satisfação à altura.
Para demonstrar suas afirmações, o autor recorre a um caso vivenciado entre
um pequeno grupo de índios Nambikwara, não longe das nascentes do
Tapajós, no cerrado descampado do Brasil Central, de onde se extrai que a
explicação mágica e profana racional são logicamente incompatíveis, mas nós
admitimos que tanto uma quanto a outra possam ser verdadeiras; como são
ambas igualmente plausíveis, passamos facilmente de uma para a outra,
dependendo da ocasião e do momento, e para muitos elas podem
obscuramente coexistir na consciência.
Em outras observações feitas há um bom tempo entre os Zuñi do Novo México
pela admirável investigadora M. C. Stevenson (1905) percebeu-se que um réu,
acusado de feitiçaria e correndo por isso o risco de ser condenado à morte, não
conseguia ser absolvido se desculpando, mas sim assumindo o suposto crime.
E mais, melhora sua defesa apresentando versões sucessivas, cada vez mais
ricas, mais cheias de detalhes (portanto, em princípio, cada vez mais
incriminadoras). O debate não se faz, como em nossos julgamentos, com
acusações e denegações, mas com alegações e especificações. Os juízes não
esperam que o réu conteste uma tese, menos ainda que negue os fatos;
exigem que ele corrobore um sistema do qual possuem apenas um fragmento,
e querem que ele reconstitua o que falta de modo apropriado. [isso me faz
lembrar o instituto da delação premiada criado recentemente no Brasil para
corroborar a existência da corrupção sistêmica e legitimar o pacote anti-
corrupção criado por um governo para perseguir seus opositores políticos].
“Mais do que punir um crime, o que os juízes querem (validando seu
fundamento objetivo com a expressão emocional apropriada) é atestar a
realidade do sistema que o possibilitou. A confissão, reforçada pela
participação – cumplicidade, até – dos juízes, faz com que o réu passe de
acusado a colaborador da acusação... O acusado, preservado como
testemunha, fornece ao grupo uma satisfação de verdade, infinitamente mais
densa e mais rica do que a satisfação de justiça que teria dado sua execução”
(Levi-Strauss, O feiticeiro e sua magia, p.188).
Nosso autor ainda recorre a um fragmento de autobiografia indígena registrado
em língua kwakiutl (da ilha Vancouver, no Canadá) por Franz Boas (1930a,
parte ii: 1-41), onde descreve o caso de Quesalid, alguém que não acreditava
no poder dos feiticeiros ou, mais precisamente, dos xamãs, movido pela
curiosidade de descobrir seus embustes e pelo desejo de desmascará-los,
começou a freqüentá-los, até que um deles lhe ofereceu introduzi-lo no grupo,
onde seria iniciado e se tornaria rapidamente um deles. Se colocou diante de
várias modalidades de “falso sobrenatural”, levando-o a concluir que umas
eram menos falsas do que outras: aquelas em que seu interesse pessoal
estava envolvido, evidentemente. Enquanto isso, o sistema começava a se
constituir subrepticiamente em sua mente. A atitude inicial tinha-se modificado
sensivelmente, portanto; o negativismo radical dera lugar a sentimentos mais
matizados. Existem xamãs de verdade. E ele próprio? Quando o relato termina,
não se sabe. Mas é evidente que ele exercia seu ofício conscienciosamente,
que se orgulhava do próprio sucesso e que defendia acaloradamente, contra
todas as escolas rivais.
Os resultados a que chega é que “de um lado, a convicção de que os estados
patológicos têm uma causa e de que ela pode ser atingida e, do outro, um
sistema de interpretação em que a invenção pessoal desempenha um papel
importante, que ordena as várias fases do mal, desde o diagnóstico até a cura.
Essa fabulação de uma realidade em si desconhecida, feita de procedimentos
e representações, funda-se numa tripla experiência: a do próprio xamã que, se
sua vocação for real (e ainda que não o seja, em razão do exercício em si),
experimenta estados específicos de natureza psicossomática, a do doente, que
sente ou não uma melhora, e a do público, que também participa da cura...
Esses três elementos do que se poderia chamar de complexo xamânico são
indissociáveis. Mas percebe-se que eles estão dispostos ao redor de dois
pólos, um constituído pela experiência do xamã e o outro, pelo consenso
coletivo.” (p.194)
“os males do tipo que atualmente chamamos de psicossomáticos
freqüentemente cedem à terapêutica psicológica. Tudo considerado, é provável
que os médicos primitivos (xamãs), como seus colegas civilizados
(psicanalistas), curem ao menos parte dos casos que tratam e que, sem essa
eficácia relativa, as práticas mágicas não poderiam ter-se difundido tanto
quanto o fizeram, no tempo e no espaço”.
O fracasso ou sucesso são secundários. São concebidos como função de um
outro fenômeno, a diluição do consenso social, reconstituído, contra eles, em
torno de um outro praticante e de um outro sistema. “O problema fundamental
é, portanto, o da relação entre um indivíduo e o grupo, ou, mais precisamente,
entre um determinado tipo de indivíduo e determinadas exigências do grupo”
(p.196).
“em qualquer perspectiva não científica (e nenhuma sociedade pode ter a
pretensão de não fazer parte disso), pensamento patológico e pensamento
normal não se opõem, se complementam. Diante de um universo que anseia
por compreender, mas cujos mecanismos não domina, o pensamento normal
sempre busca o sentido das coisas nelas mesmas, que nada informam. O
pensamento dito patológico, ao contrário, transborda de interpretações e
ressonâncias afetivas, sempre pronto para aplicá-las sobre uma realidade de
outro modo deficitária. Para o primeiro, existe o não verificável
experimentalmente, isto é, o exigível; para o segundo, experiências sem objeto,
ou o disponível. Na linguagem dos lingüistas, diríamos que o pensamento
normal sempre sofre de uma deficiência de significado, enquanto o
pensamento dito patológico (ao menos em algumas de suas manifestações)
dispõe de um excedente de significante” (p.196-7) [e aqui fazemos o paralelo
entre a esquizofrenia enquanto modo de vida militante com o pensamento
patológico na capacidade de exceder significantes e não se deixar prender ao
pensamento normal deficiente e limitado de significado].
O autor ressalta que “é preciso que, tanto quanto o doente e o feiticeiro, o
público participe, pelo menos em alguma medida, da ab-reação, essa
experiência vivida de um universo de efusões simbólicas” (p.197). “a dupla
doente-feiticeiro encarna para o grupo, de modo concreto e vivo, um
antagonismo que caracteriza todo pensamento, mas cuja expressão normal é
sempre vaga e imprecisa: o doente é passividade, alienação de si mesmo,
assim como o informulável é a doença do pensamento, e o feiticeiro é
atividade, transbordamento de si mesmo, assim como a afetividade é a fonte
dos símbolos. A cura põe em relação esses pólos opostos, garante a
passagem entre um e outro e manifesta, numa experiência total, a coerência do
universo psíquico, ele mesmo projeção do universo social” (p.198).
“o valor do sistema não mais estará baseado em curas reais, de que se
beneficiam indivíduos particulares, mas sim no sentimento de segurança
infundido no grupo pelo mito fundador da cura e no sistema popular conforme o
qual, nessa base, seu universo se verá reconstituído” (p.199).
Para o autor, o tratamento com a psicanálise, longe de chegar à solução de um
distúrbio preciso, se reduz à reorganização do universo do paciente em função
das interpretações psicanalíticas.

Lévi-Strauss, Claude. [s/d] A eficácia simbólica. In: Antropologia estrutural.


Tradução Beatriz Perrone-Moisés. Editora Cosac Naify, p. 201-220.

A cura xamânica se situa a meio caminho entre nossa medicina orgânica e as


terapêuticas psicológicas como a psicanálise. Sua originalidade está em aplicar
a desordens orgânicas um método muito próximo destas últimas (p.213).
Em ambos os casos, propõe-se trazer à consciência conflitos e resistências que
até então haviam permanecido inconscientes, seja por terem sido recalcados por
outras forças psicológicas, seja – é o caso do parto – em razão de sua própria
natureza, que não é psíquica e sim orgânica, ou até simplesmente mecânica.
Também em ambos os casos, os conflitos e resistências se dissolvem, não
porque a paciente deles vá tomando progressivamente conhecimento, real ou
suposto, mas porque esse conhecimento torna possível uma experiência
específica, na qual os conflitos se
realizam numa ordem e num plano que permitem seu livre desenrolar
e conduzem ao seu desenlace. Em psicanálise, essa experiência vivida
é chamada de ab-reação. Como se sabe, ela tem como condição a intervenção
não provocada do analista, que surge nos conflitos do paciente pelo duplo
mecanismo da transferência, como um protagonista de carne e osso, em relação
ao qual o paciente pode remontar e explicitar uma situação inicial que
permanecera não-formulada.
Todos esses traços se encontram na cura xamânica. Também no caso desta
trata-se de suscitar uma experiência e, na medida em que essa experiência se
organiza, mecanismos situados fora do controle do sujeito se regulam
espontaneamente, desembocando num funcionamento ordenado. O xamã tem
um duplo papel, como o psicanalista. Um primeiro papel – de ouvinte no caso do
psicanalista, de orador no caso do xamã – estabelece uma relação imediata com
a consciência (e mediata
com o inconsciente) do paciente. É o papel do encantamento propriamente dito.
Mas o xamã faz mais do que apenas proferir o encantamento, ele é seu herói,
pois que é ele que penetra nos órgãos ameaçados liderando o batalhão
sobrenatural dos espíritos que liberta a alma cativa. Nesse sentido, ele se
encarna, como o psicanalista objeto da transferência, para tornar-se, graças às
representações induzidas no espírito do paciente, o protagonista real do conflito
que este experimenta a meio
caminho entre o mundo orgânico e o mundo psíquico. O paciente vítima de uma
neurose liquida um mito individual opondo-se a um psicanalista real. A
parturiente indígena supera uma desordem orgânica verdadeira identificando-se
a um xamã miticamente transposto. O paralelismo não exclui diferenças,
portanto. O que não deve causar surpresa, se atentarmos para o caráter psíquico
num caso, e orgâ-
nico no outro, do mal a ser curado. A cura xamânica parece ser de fato um exato
equivalente da cura psicanalítica, mas com uma inversão de todos os termos.
Ambas buscam provocar uma experiência, e ambas conseguem fazê-lo
reconstituindo um mito que o paciente deve viver, ou reviver. Mas, num caso, é
um mito individual que o paciente constrói com elementos tirados de seu
passado e, no outro, é um mito social que o paciente recebe do exterior e que
não corresponde a um estado pessoal antigo. Para preparar a ab-reação que,
nesse caso, torna-se uma “ad-reação”, o psicanalista escuta e o xamã fala. Mais
ainda, quando as transferências se organizam, o paciente faz falar o psicanalista,
atribuindo-lhe supostos sentimentos e intenções, ao passo que no
encantamento, ao contrário, o xamã fala por sua paciente. Interroga-a e coloca
na boca desta respostas que correspondem à interpretação de seu estado de
que
ela deve se convencer (p.214-215).
A semelhança torna-se ainda mais impressionante quando se compara o método
do xamã com certas terapêuticas surgidas recentemente que se valem da
psicanálise. Percebeu-se que o discurso, por mais simbólico que fosse,
esbarrava ainda na barreira do consciente, e que ela só podia atingir complexos
muito profundos com atos. O médico psicanalista dialoga com o paciente, não
por meio da palavra, mas por operações concretas, verdadeiros ritos, que
atravessam a barreira da consciência sem encontrar obstáculos, para levar sua
mensagem diretamente ao inconsciente (p.215-216).
Encontra-se aqui, portanto, a noção de manipulação, que nos parecera essencial
para compreender a cura xamânica. Ora se trata de manipulação de idéias, ora
de manipulação de órgãos, cuja condição compartilhada é fazer-se com o auxílio
de símbolos. Os gestos do psicanalista repercutem no espírito inconsciente de
seu paciente do mesmo modo que as representações evocadas pelo
xamã determinam uma modificação das funções orgânicas de sua paciente (p.
216)
É a eficácia simbólica que garante a harmonia do paralelismo entre mito e
operações. E mito e operações formam um par, no qual sempre se encontra a
dualidade de médico e paciente. Na cura pela psicanálise, o médico realiza as
operações, e o paciente produz seu mito. Na cura xamânica, o médico fornece
o mito, e o paciente realiza as operações (p.217).
A cura xamânica e a cura psicanalítica tornar-se-iam rigorosamente
semelhantes: tratar-se-ia, em ambos os casos, de induzir uma transformação
orgânica, que consiste essencialmente numa reorganização estrutural, levando
o paciente a
viver intensamente um mito, ora recebido, ora produzido, cuja estrutura
seria, no nível do psiquismo inconsciente, análoga àquela cuja formação se quer
determinar no nível do corpo. A eficácia simbólica consistiria precisamente nessa
“propriedade indutora” (p.217).
A comparação com a psicanálise nos permitiu esclarecer certos aspectos da cura
xamânica. Talvez o estudo do xamanismo, inversamente, seja um dia chamado
a elucidar pontos obscuros da teoria de Freud. Pensamos especialmente nas
noções de mito e de inconsciente (p.218).
A única diferença entre os dois métodos diz respeito à origem do mito, num caso
reencontrado [psicanálise], como um tesouro individual, e, no outro [xamanismo],
recebido da tradição coletiva (p.218).
O mito, quer seja recriado pelo sujeito ou tomado da tradição, só tira de suas
fontes, individual ou coletiva (entre as quais interpenetrações e trocas se
produzem constantemente), o material de imagens com que opera. A estrutura
permanece a mesma, e é por ela que a função simbólica se realiza (p.219).
Essa forma moderna da técnica xamânica que é a psicanálise retira suas
características específicas, portanto, do fato de na civilização mecânica não
haver mais lugar para o tempo mítico, a não ser no próprio homem. Dessa
constatação, a psicanálise pode retirar uma confirmação de sua validade e, ao
mesmo tempo, a esperança de aprofundar suas bases teóricas e alargar a
compreensão dos mecanismos de sua eficácia, por intermédio de um confronto
de seus métodos e objetivos com os de seus grandes predecessores, os xamãs
e os feiticeiros (p.220).

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