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Crónica: Fiado, o lado confiante dos bairros - PÚBLICO https://acervo.publico.pt/local/noticia/fiado--o-lado-confiante-dos-bairro...

CRÓNICA

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Crónica: Fiado, o lado confiante dos bairros - PÚBLICO https://acervo.publico.pt/local/noticia/fiado--o-lado-confiante-dos-bairro...

A confiança nas grandes cidades – e mesmo fora delas – está


mesmo ali à esquina. Literalmente. É naquele café que os
miúdos comem um bitoque quando a comida na escola “não
presta” (leia-se peixe). “A mãe paga amanhã, pode ser?” Claro
que pode. Também é lá que fica a chave de casa, a salvo de
crianças com grande tendência para tudo perderem, para que
ninguém fique à porta. A confiança é mútua. E circula, sólida,
por entre as ruas do bairro, em Lisboa, no Porto, pelo país
fora.

O fiado ainda existe?, há quem pergunte, na dúvida. Existe,


sim senhor. Talvez não seja o fiado do século passado,
inscrito em cadernos de capa preta, rasurado ao fim de um
mês, quando finalmente chegava o dinheiro. Agora é mais o
“posso pagar amanhã?”, um crédito sem data marcada, por
vezes até sem livrinho onde assentar as contas. Um crédito
alicerçado nos laços de vizinhança, num conhecimento de
anos, na certeza que o outro é de confiança.

Mas para que essa confiança se entranhe há ingredientes


essenciais. O mais importante é o comércio de proximidade,
os senhores Josés, Antónios, as donas Marias, que subsistem
nos bairros mais antigos e que com os vizinhos foram
estabelecendo laços a que chamam, sem hesitação,
“familiares”.

Esta “família” não medra em qualquer lado. Precisa de um


bairro que seja mais do que um mero aglomerado de ruas.
Tem de ser daqueles onde ainda há o bom dia, a boa tarde e a
boa noite; onde se pergunta pelos filhos, pela saúde, enfim,
pela vida; onde se conhecem as caras, há muito, a maioria das
vezes desde o tempo em que a pele da cara era uma tela
esticada que se foi vendo engelhar. “Nas zonas mais novas ou
mais turísticas da cidade, nos dormitórios, já não se pratica o
fiado”, assegura Carla Salsinha, presidente da União das
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Associações de Comércio e Serviços (UACS). “As pessoas não


se conhecem….”, explica.

Acabada de chegar ao bairro da Madragoa, vinda de outra


zona de Lisboa desertificada pelos serviços, a espontânea
familiaridade intimidava. Era a cliente, mas a desconfiança
morava mais do lado de cá do que do de lá. “Quanto é?”,
perguntava na mercearia do sr. António. “Ó menina, deixe lá,
paga depois.” Nunca o via apontar nada. “Na hora de fechar
as contas, este vai meter a mão, está-se mesmo a ver”,
pensava, taxativa nos julgamentos apressados do alto de uns
tenros 20 anos.

Talvez metesse, ninguém controlava. Mas para o sr. António


sobravam apenas as pequenas compras, esquecimentos de
quem se abastece a sério no supermercado. “Ó menina, eu só
quero que continue a vir aqui, não se esqueça de mim”, pedia
amiúde. Se cobrava, ou não, mais pacotes de açúcar do que
realmente vendeu, já ninguém levava a mal. Era um pequeno
contributo para o comércio local, uma desculpa para ver um
sorriso iluminar uma cara engelhada.

Do outro lado da rua, o talho fazia o mesmo.


Já não num caderno de capa preta, mas num
bloco comum, cada vizinho tinha direito à sua
folha. Nelas se reflectia a solidão de quem já
só consumia para si mesmo. As famílias
grandes migraram para os supermercados,
onde a carne é mais barata. “Mas não é tão
boa”, jurava o sr. Luís. Verdade comprovada.
Nos dias imprevidentes, com a despensa em
baixo, lá atravessavam os miúdos a rua para
comprar o jantar, pendurando a conta. A
prática instalou-se. O sr. Luís nunca conseguiu substituir o
supermercado, mas ganhou o seu espaço, deu a sua confiança

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e ganhou a nossa.

Mais acima, na farmácia, os idosos tentavam evitar aviar toda


a receita, perguntando, envergonhados, quais seriam os
medicamentos que não lhes eram vitais. Nem pensar,
ripostava “a doutora”, como todos lhes chamavam: “Paga
quando puder, era só o que faltava.”

Passeio abaixo, passeio acima, da drogaria ao alfaiate, só se


pagava quando tinha mesmo de ser ou se insistia muito. Esta
era uma maneira de manter os laços, a fidelidade. A
confiança.

Assim era o bairro da Madragoa na década de 90 do século


passado e na primeira deste século. Agora, o sr. António
fechou a mercearia, porque os anos entorpeceram-lhe as
pernas e o ânimo, o talho foi expulso pela lei das rendas e a
farmácia fechou pelo cansaço da doutora, face a um modelo
de negócio que já não compreendia nem aceitava.

E agora o século XXI destruiu este alicerce de confiança?


Nem pensar. Aos cafés, padarias, drogarias que sobreviveram
juntam-se agora os indianos. Sim, também eles confiam em
nós, porque querem que regressemos. O mundo muda, as
cidades evoluem, mas as pessoas são as mesmas, carentes de
laços.

Numa pequena mercearia na Rua de S. José, aberta desde


1900, o senhor José Santos acumula memórias e histórias. De
um tempo longínquo, recheado de pobreza e solidariedade. O
seu tio, o senhor Costa – que ainda dá o nome ao
estabelecimento –, era um homem “como já não há”. Ajudava
toda a gente, “dava muito bodo”. A todos fiava, a muitos
ajudava, lembra o sobrinho: “Antes do 25 de Abril, houve
uma noite que viu um casal com um filho a dormir nas
escadas de um prédio, acercou-se e eles assustaram-se,

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juraram que se iam embora. Respondeu que não era isso que
queria, só lhes queria dar uns cobertores.”

(https://imagens.publicocdn.com/imagens.aspx/1035289?tp=UH&db=IMAGENS)

Nessa altura, o fiado era a prática e “todos pagavam ao fim do


mês”. Mas também “comprava-se pouca coisa, era tudo mais
barato”, diz. Agora “o que mais há são cravas, pagam dois ou
três meses e desaparecem”, conta, triste.

Acumula calotes, alguns tão antigos que já nem liga, diz,


enquanto abre o caderno onde aponta os fiados. Então já não
fia a ninguém? Sim, ainda sim. “Há menos confiança, não
podemos facilitar, mas ainda dou”, admite.

Um pouco mais acima na rua, o senhor Ribeiro é mais


cauteloso: “Tenho de conhecer há muitos anos.” Quando
aparece um desconhecido a pedir, já tem a desculpa pronta:
“Sou o empregado, não sou o patrão, não posso fazer isso.”

Umas portas abaixo, Lúcio de Almeida conta a sua receita


para se defender dos que quebram o código da confiança:
estabelecer um limite – “Vinte a 30 euros e não há mais. Se
depois desaparecerem, já não dói tanto”, explica. A sua total
confiança é, nestes dias, apenas dada a empresas, mais certas
nas contas.

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Mas os calotes são de hoje? “É claro que não, sempre houve,


mas está pior”, afirmam todos. “Mas, sabe, isto não é só aqui.
A minha filha emigrou para França, onde abriu um
estabelecimento, e há tempos ligou-me muito espantada: ‘Ó
pai, não vais acreditar, aqui também pedem fiado’”, conta
José Santos.

Mas, ainda hoje, ninguém nega ajuda. A fruta é dada a


crianças e idosos. “O comércio tradicional continua a cumprir
um papel de apoio social, talvez o faça hoje com mais
cuidado, mas continua a ser prestado”, assegura Carla
Salsinha. E esse apoio não é só em géneros. “Tomamos conta
dos nossos idosos, vemos se continuam a passar para nos
cumprimentar, quando passa um tempo sem aparecer, vamos
procurar, damos o alerta”, relata.

“O fiado era um serviço prestado à


comunidade, sobretudo nos bairros operários
onde os comerciantes sabiam que, se não
fossem eles, as famílias não comiam”, explica
Daniel Alves, historiador da Universidade
Nova de Lisboa que estudou o comércio em
Lisboa de 1870 a 1910. “Também não
venderiam, se não dessem fiado”, acrescenta.

Estes comerciantes do início do século


passado constituíam também um sistema
bancário paralelo às instituições de crédito oficiais. “Aos
clientes que pagavam sempre era concedido crédito com
juros”, adianta o historiador. A ele recorriam aqueles que não
reuniam todas as condições para ir ao banco.

Havia pois o crédito em géneros e em dinheiro. A todos se


aplicavam juros: “Havia a ideia de que o lojista que dava
fiado vendia mais caro, os juros estavam implícitos.”

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Talvez hoje ainda seja assim, as lojas de bairro são


geralmente mais caras, pois não têm economias de escala
para praticar preços competitivos. Talvez, também por isso,
acrescentem um “juro” aos produtos que deixam os clientes
levar sem pagar no momento: a confiança.

Uma confiança que muitos juram não dar. Um pouco por


todo o lado, nas pequenas lojas e cafés, das prateleiras
espreita o Zé Povinho a fazer um manguito e a jurar que “aqui
não se fia”. Também pululam os azulejos com dizeres vários
para afastar os cravas. Mas não é verdade. A porta pode já
não estar escancarada, mas continua entreaberta – porque
queremos confiar.

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