Não gosto de viajar de avião! Não é por medo, embora ouça
frequentemente o contrário. Prefiro a terra firme, melhor se for de moto ou a pé; assim se conhece mais e melhor. O problema é quando temos que percorrer grandes distâncias. Quando esse é o caso não há outro jeito: asa dura é a saída mais viável. Mesmo assim não gosto. Embarcar em avião sempre me traz mau humor. A cara de quem viaja é imponente de mais para meu gosto. Pior é a subserviência indócil dos comissários de bordo. Fico abusado com o espaço entre as poltronas e, para ficar por aqui, pois a lista é enorme, detesto a comida, se bem que esta quase não há mais. A ponderação, como indicada, fica por conta dos longos percursos, único motivo que quebra meu mau humor de viajar de avião. Mas inclusive nesses casos, em que a viagem é longa, amplificam-se todos os problemas apontados no parágrafo anterior. Felizmente não estou aqui para falar de minha indisposição de pegar aviões. Essa introdução foi necessária para posicionar o fato que aconteceu a bordo de um desses trambolhos voadores. Acordei às três e meia da madrugada, saí de casa às pressas para pegar um voo até Curitiba de onde eu iria, imediatamente, embarcar para São Paulo. Neste último trecho o avião passou por uma enorme turbulência. Meninos choraram, velhos gritaram, mas o piloto acalmou a todos dizendo que os transtornos passariam em breve. Ainda bem que assim se sucedeu. Da cidade paulistana eu embarcaria novamente para Santiago do Chile. Para chegar a meu destino, portanto, passaria entre aviões e aeroportos quase treze horas. Cheguei a São Paulo, como era de se esperar, exausto. Para piorar a situação, uma boliviana que estava viajando também para Santiago relatou os enormes problemas de turbulências que costumeiramente ocorrem sobre as cordilheiras. Se até aqui havia dúvida sobre se eu tinha ou não medo de andar de avião, ela agora é pura certeza. Todavia, não havia mais jeito, eu não iria voltar com o rabo entre as pernas: tinha que cumprir o que havia planejado. Meu projeto inicial era chegar a Santiago um dia antes do evento onde iria apresentar um trabalho. A antecedência era para que eu pudesse dar umas voltas pela cidade, conhecer um pouco de Santiago, preparar melhor meu parco portuñhol etecetera. Claro está, desse modo, que motivação não faltava. Embarquei para o último trecho da viagem com aquela pontinha de indagação na garganta. Medo não, somente atenção. Eram quase seis horas da tarde quando sentei sozinho em um conjunto de três poltronas; jantei e comecei a tomar vinho tinto. Quanto mais eu bebia, mais o comissário me oferecia. A aeronave era tampa de panela, ou como dizem os entendidos: top de linha. Diante de mim, nas costas da poltrona posterior, havia uma tela sensível ao toque em que o viajante podia, entre outros trecos, ouvir música, ver filmes, monitorar o percurso do avião, jogar... Tentei ver o filme biográfico sobre Violeta Parra, disponível no menu do equipamento. Como eu estava cheio de tédio, cansado e meio bêbado, consegui acompanhar até um pouco mais da metade. Depois disso preferi pausar a película e entregar-me ao sono: adormeci. Acordei com o comissário pedindo para que eu perpendicularizasse a poltrona; foi quando ouvi o comandante falando em diversos idiomas, menos português, que tínhamos que afivelar o cinto, pois passaríamos por sobre as Cordilheiras. Minha nossa, nessa hora até ateu reza! Mas quem é do mar não mareia. Como havia ainda uma pequena botelha de vinho, não contei pipoca, servi-me, soltei a pausa do filme e aguardei o dilúvio chegar. Não sei se inebriado pelo vinho ou pelas sensações que senti, mas não percebi qualquer turbulência. Lembro plenamente que a vermelhidão do ocaso em contraste com a brancura da pouca neve repousada sobre os Andes resultou em uma fotografia que jamais esquecerei. Essa época do ano o sol se põe na região andina chilena por volta das nove horas da noite. Sintetizando melhor, foi um coquetel de sensações detectadas por alguns de meus sentidos. Se era aquilo que se apresentava aos olhos; ao paladar era a secura do vinho; aos ouvidos, por sua vez, toda a emoção da música Gavilán, espécie de último ato cantado por Violeta Parra no filme Violeta Foi Para o Céu. Pode ser, como escrevi acima, que por pura felicidade não falaria de minha polêmica particular contra aviões, creio que esse fim não atingi, pode até ser ainda que em vez de esconder tenha evidenciado meu receio de andar de asa dura. Mas, certamente, as sensações de sobrevoar o entardecer andino vão ficar marcadas para sempre em minha vida.