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MAIKON ANDREW BATISTA DE OLIVEIRA

A RITUALÍSTICA MÁGICA DO DIREITO

CURITIBA
2013
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
SETOR DE CIÊNCIAS JURÍDICAS
FACULDADE DE DIREITO

A RITUALISTICA MÁGICA DO DIREITO


Monografia apresentada pelo acadêmico Maikon
Andrew Batista de Oliveira ao Curso de
Graduação da Faculdade de Direito da
Universidade Federal do Paraná como requisito
parcial à obtenção do grau de Bacharel em
Direito.

Orientadora: Profª. Drª. Katya Isaguirre

CURITIBA
2013
“Do what thou wilt shall be the whole of the Law”.

(Aleister Crowley)
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.....................................................................................................................p. 1

CAPÍTULO 1 – O PROCESSO DE ESTABELECIMENTO DO PARADIGMA HEGEMÔNICO


DO DIREITO; CONSTRUÇÃO DE UMA RACIONALIDADE..............................................p. 4

1.1) A construção da modernidade e o desencantamento do mundo.............p. 4


1.2) A racionalização da ciência moderna: breves apontamentos..................p. 8
1.3) O estado moderno e a racionalização das leis.........................................p. 11

CAPÍTULO 2 – MAGIA: GÊNESE, ANÁLISE E FUNCIONAMENTO...............................p. 17

2.1) Magia e Ciência: gênese e convergência..................................................p. 17

CAPÍTULO 3 – MAGIA COMO REPRESENTAÇÃO SOCIAL E O PODER SIMBÓLICO


EXERCIDO PELO DIREITO: UMA APROXIMAÇÃO POSSÍVEL.....................................p. 25

3.1) Operadores do Direito e Operadores da Magia, Representação Mítica e o


Sagrado...............................................................................................................p. 25
3.2) Ritualística: substrato da eficácia mágica e jurídica...............................p. 30
3.3) A Eficácia Mágica do Direito: Mana e Magia.............................................p. 35

CONCLUSÃO.....................................................................................................................p. 40

BIBLIOGRAFIA..................................................................................................................p. 42
RESUMO

O paradigma hegemônico do Direito moderno, caracterizado por seu


aspecto legalista e burocrático, bem como por ser o único detentor legítimo do uso
da força, pretende-se puramente racional e lógico, como se deixando para trás
qualquer fundamentação que não a técnica racionalizada e a razão; única detentora
da verdade inserida na lógica científica. Através deste trabalho pretende-se
demonstrar como a lógica seguida pelo Direito, seus operadores e seu sistema de
pensamento, é aproximada das concepções de magia como descritas por MAUSS,
amparadas no poder simbólico tal qual explicado por BOURDIEU. Dessa forma, a
crença da racionalidade do Direito torna-se tal qual a crença em um Mito,
amparando as escolhas não racionais do Direito e legitimando suas ações a priori.
Assim os processos de eficácia jurídica que são naturalizados poderão ser expostos,
de tal modo que acreditamos que dessa análise possam surgir resultados
interessantes que busquem problematizar a crise paradigmática enfrentada pelo
Direito.

Palavras-chave: Ritualística, Magia, Poder Simbólico, Eficácia Legal, Crença


Jurídica.
A quem me ensinou o pleno significado do
amor; Alfredo, Gerusa, Matheus e
Tabitha, que me suportaram e suportam,
nos dois sentidos da expressão.

Obrigado por tudo.


AGRADECIMENTOS

É com muita alegria que chego a essa página de agradecimentos


sabendo que ela não se comporá de uma lista pequena, daqueles a quem eu devo
“uma obrigação moral de agradecer”. Pelo contrário, ela é composta de nomes e
pessoas em que tenho orgulho de dizer aqui: obrigado pela ajuda, obrigado por sua
existência junto à minha, obrigado pelo momento em que, podendo servir-se de tudo
o mais que o mundo te oferecia, vocês escolheram ficar ao meu lado.
Assim, devo agradecer primeiramente aos meus pais (Alfredo e Gerusa),
pelo carinho, exemplo e compreensão não apenas nestes dias de produção
monográfica, mas pela longa caminhada que acredito estar se encerrando com esta
produção. Agradeço também aos familiares, especialmente na figura das tias Rita (a
quem tenho carinho como uma mãe), Lidiane e Reginalda que me apoiaram em um
dos momentos mais delicados não só de minha jornada acadêmica, mas da minha
vida. Tal ajuda foi também fundamental da parte de minha irmã, Daniele e de seu
marido Daniel. Do mesmo jeito, obtive o apoio fundamental do meu sobrinho
Matheus; se em algum momento eu quis desistir por mim, não pude fazê-lo por
você.
Obrigado Tabitha, por sua dedicação e companhia, você foi, e é
fundamental na minha vida. Obrigado por conseguir a cada dia, renovar e aumentar
o amor em mim.
Quanto á família que se escolhe, tenho que agradecer aos meus
irmãos, Daniel e Patrick verdadeiros guias encarnados que a vida me presenteou, os
quais me ensinam diretamente não apenas com palavras de apoio, incentivo, mas,
sobretudo, através do exemplo e dignidade com que conduzem suas vidas. Ao meu
irmão Emidio, que mesmo quando afastado, é sempre presente.
Da mesma maneira, agradeço à Isabela, não apenas pelo incentivo
quanto ao ingresso no Curso de Direito, mas também pelo apoio nas horas mais
fundamentais, você é com certeza, a melhor amiga que uma pessoa como eu
poderia ter. (Não tenho certeza se isso foi um elogio)
Mas tenho certeza ao afirmar que seria impossível que eu chegasse ao
fim da graduação, sem a ajuda dos amigos que reconheci. Assim, agradeço à Ana
Flávia, amiga dedicada, cuja ajuda para a qualidade deste trabalho monográfico é de
importância indizível. Ao Pedro, ao Tomal, ao Lucas e ao Antonio. Vocês são amigos
que, ao longo do curso, mostraram-se prontos a ajudar e apoiar sempre que
necessário. A vocês, novamente, muito obrigado.
De fundamental importância também é o apoio e orientação da professora
Katya, a qual possui minha admiração e agradecimento não só pelo conhecimento
acadêmico que possui, mas também pelo modo com que soube conduzir essa
orientação. Obrigado pela dedicação, apoio e auxílio.
Um obrigado também à Rosecler, médica extraordinária que me ensinou
através do exemplo que a dedicação ao que se ama, traz resultados incríveis na
vida das pessoas que nos rodeiam.
Agradeço ainda à Corrente Guerreiros de Oxalá, pelo apoio na hora de
necessidade e por me propiciarem o entendimento que certamente mudou minha
vida para sempre. Agradeço a todos os elos desta corrente, na figura de meus
sacerdotes; Jaci e Gabriela, muito obrigado pela paciência, pelas orientações e pelo
amor que dedicam ao que acreditam.
Agradeço também a certo Andarilho, que no curto período de um ano, fez-
se, sem sombra de dúvidas, o melhor amigo, professor e guia que eu poderia ter.
Aonde você estiver, saiba que sou grato e aguardo seu retorno para que
continuemos nossa caminhada.
Por fim quero agradecer às demais pessoas que de alguma forma fizeram
parte dessa jornada nestes anos de curso. Agradeço ao Cesar que fez as horas de
estágio muito mais suportáveis com seus besouros intelectuais. Aos companheiros
de jornada em Azeroth (certamente os momentos de maior alegria durante todo o
curso), Daniela e Paulo. E a todos os demais que, de alguma forma, contribuíram
com esse momento.
Muito obrigado
1

INTRODUÇÃO

O paradigma hegemônico do Direito Contemporâneo é fruto da ascensão


da razão como valor fundante e basilar do Estado. Tal processo foi analisado por
WEBER, que concluiu que a troca da moral religiosa pela tecnicidade da ciência
1
levou-nos ao que ele classifica de “desencantamento do mundo” (Entzauberung
der Welt, que em outra tradução possível poderia ser transcrita como
desmagificação do mundo.).
Esse alegado paradigma hegemônico de pronto é associado como em
direta oposição aos mitos religiosos e a processos não embasados na racionalidade
racional, como se a assunção do paradigma moderno tivesse trazido para si a
responsabilidade de por fim às ações embasadas em sistemas tradicionais, ou
puramente “mágicos”, entendidos assim os que não identificassem de pronto a
supremacia da razão como causa finalística de seus atos. Nesse sentido, nas
palavras de Paolo GROSSI:

Parece quase o aproximar-se de dois opostos quando – como se faz com o


título dessa conferência- são colocadas uma ao lado da outra as
expressões “mitologia” e “modernidade”. Na consciência comum, de fato, o
apelo ao moderno evoca um tempo percorrido e dominado pelo vitorioso
desmantelamento de antigas mitificações sedimentadas e enraizadas no
costume graças a duas conquistas do progresso humano: a secularização e
a consequente posse de evidentes verdades científicas. Tendo sido
finalmente exilada em um cantinho apartado a velha produtora de fábulas, a
Igreja Romana, torna-se grande o orgulho de poder olhar o mundo com
olhos incorrompidos, capazes de ler as verdades imanentes, verdades não
reveladas (e, portanto não demonstradas), ou melhor, descobertas na sólida
2
e concretíssima natureza das coisas.

O objetivo primário deste trabalho é demonstrar, através do método


analítico, que os meios utilizados pelo Direito, mesmo no contexto legalista do
Estado Moderno, continuam atuando de forma não puramente racional,
considerando que a técnica de que se utiliza o Direito compõe-se como um de seus

1
Nesse sentido o autor prescreve: “O destino de nosso tempo, que se caracteriza pela
racionalização, pela intelectualização e, sobretudo, pelo desencantamento do mundo levou os
homens a banirem da vida pública os valores supremos e mais sublimes. Tais valores encontraram
refúgio na transcendência da vida mística ou na fraternidade das relações diretas e recíprocas entre
indivíduos isolados”. WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 2007. p. 51.
2
GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. Tradução de Arno Dal Ri Júnior. Florianópolis:
Fundação Boiteux, 2007.p. 12.
2

valores primários na constituição da eficácia e da legitimação do Direito. Tal


tecnicalização pode ser aproximada do que foi estudado em outras culturas e
classificado como Magia.
Assim, primeiramente, iremos tratar de que forma esse paradigma
Iluminista que busca pautar a razão como único valor legitimado para a verdade
institui-se no Ocidente e também de que forma podemos entender as legitimações
de pretensão de verdade quando inseridas neste contexto.
Para tal, nos utilizaremos do conceito de WEBER e da análise que faz
acerca das categorias metodológicas da ação, tal qual preconizadas pelo autor ao
longo de suas obras, e de que forma podem nortear as escolhas racionais ou
parcialmente racionais dos indivíduos.
Também se pretende analisar brevemente como o estabelecimento da
Ciência como valor fundante dos juízos detentores de verdade levou à ascensão do
Estado de Direito, que em última análise pode ser identificado como um Estado
legalista e burocrata que acredita na eficácia da lei e nos atributos que a mantem, tal
qual ocorre a crença em um mito. Para além disso, pretende-se analisar como o fato
de os atos jurídicos estarem intimamente ligados ao conceito de racionalização das
leis pode acabar por atribuir às questões jurídicas uma pretensão de verdade e
justiça, já que a lei gozaria de tais premissas.
Nesse viés, demonstrar-se-á como a metodologia de justificação legal,
pode funcionar de acordo com WEBER e os demais autores trabalhados, de forma
mágica, pois não necessariamente segue uma lógica racional e, pelo contrário,
pautada em uma análise que não advem unicamente dos critérios da razão, acaba
por atribuir legitimação e verdade baseado em juízos acríticos. Buscando-se, assim,
analisar a epistemologia da ciência jurídica na construção de seus mitos que, como
apontado, resultam, de acordo com os autores trabalhados, em uma forma de
atuação mágica por parte do Direito.
Desse modo, faz-se necessário a compreensão acerca do que é Magia,
para que possamos identificar até que ponto podemos tratar tais efeitos do Direito
como sendo mágicos. Nesse sentido trabalha-se com os autores clássicos da
Antropologia que se debruçaram sobre o tema, tendo-se por fim escolhido MAUSS
para estudo comparativo entre o método da Magia e o método do direito. Isso se dá
porque o autor aborda a Magia em um viés analítico de representação social.
Definir-se-á o que pode ser entendido como Magia, não apenas através
3

da opinião dos antropólogos que tomaram por base análise de culturas alheias tidas
como “primitivas”, mas também de que forma essa magia passou a incorporar-se na
cultura Ocidental sem que tenha por isso perdido seus pressupostos de eficácia.
A partir daí, passa-se a traçar um paralelo entre o método de ação e
justificativa dos Rituais Mágicos e dos métodos de atuação do Direito inseridos no
paradigma Racional, analisando não apenas de que modo ocorrem e se justificam
as ações escolhidas dentro do sistema jurídico e dentro do sistema mágico, mas
também de que forma elas podem ser aproximadas no seu método de atuação
simbólico.
Dessa análise pretende-se demonstrar que, no campo simbólico, Direito e
Magia enquanto representação social, podem por vezes assemelhar sua
procedimentalização, através da técnica e da ritualização de seus meios que assim
conferem uma eficácia a priori, atribuindo legitimidade à ação.
4

1. O PROCESSO DE ESTABELECIMENTO DO PARADIGMA HEGEMÔNICO DO


DIREITO; CONSTRUÇÃO DE UMA RACIONALIDADE

1.1) A Construção da Modernidade e o Desencantamento do Mundo

A Modernidade, cujo sistema de pensamento será alvo de estudo desse


trabalho, deve ser entendida como iniciada pela corrente de pensamento
caracterizada, sobretudo, pelo racionalismo. Como se demonstrará, o homem
moderno domina os fenômenos da natureza mediante métodos objetivos. Assim
escreve TOURAINE acerca da Modernidade:

Desencantamento, secularização, racionalização, autoridade racional legal,


ética da responsabilidade: os conceitos de Max Weber, tornados clássicos,
definem perfeitamente esta Modernidade à qual se deve acrescentar que é
conquistadora, que estabelece a dominação das elites racionalizadoras e
modernizadoras sobre o resto do mundo, pela organização do comércio e
3
das fábricas e pela colonização.

4
O paradigma hegemônico do Direito na Modernidade construiu-se
através dos processos de racionalização, tendo como pano de fundo as sombras
deixadas pelo Iluminismo e sua busca pelo incessante uso da razão. Essa razão
deve ser contextualizada como um instrumento a serviço do homem moderno.
Esclarece-nos SANTOS que:

No que respeita ao modelo de racionalidade, é sabido, desde Bacon e


Descartes, que a ciência moderna pretende conhecer o mundo, não para o
contemplar, mas para o dominar e transformar, e neste sentido a sua
5
racionalidade é instrumentalista.

3
TOURAINE, Alain. Crítica da Modernidade. Tradução de Elia Ferreira Edel. 4. ed. Petrópolis: Vozes,
1997. p. 38.
4
Neste sentido, pretende-se trabalhar com a noção de paradigma exposto por Thomas Khun que
assim o define: "são as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum
tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma
ciência” KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. 7 ed. São Paulo: Perspectiva,
2003. p. 13.
5
SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução a uma ciência pós-moderna. 6. ed. Porto:
Afrontamento, 2002.p. 37.
5

Na metodologia proposta por WEBER para investigar as origens do


pensamento do Estado Moderno e sua racionalização, mais do que apenas
denunciar oposição ao pensamento religioso - visto que, há a pretensão de dominar
o mundo através da técnica e da produção científica, colocando o indivíduo como
não mais subjugado a forças superiores - demonstra-se como a moral e demais
condições abstratas foram fundamentais nesse processo, afirmando que a
Modernidade é um resultado dos movimentos de racionalização e desmistificação do
domínio da natureza.
Nesse sentido, esclareceu o sociólogo de que forma o progresso da
civilização Ocidental regeu-se por uma redução à lógica da vida social, constatando
que a Modernidade vai além da diferenciação da economia capitalista e de inovada
forma organizacional do Estado, constituindo-se também de reordenação racional da
cultura e sociedade.
Paradoxalmente, ao tratar a temática moderna como “desencantamento
do mundo”, WEBER apresenta a tese de que a excessiva racionalização teórica e
prática do ocidente acabam por conduzir ao irracionalismo dos fins.
Esta condição não deve ser entendida como um valor em absoluto, mas
sempre em comparação a alguma outra lógica racional estranha aos valores
utilizados como parâmetro. Tal irracionalismo pode, dessa forma, ser pensado como
fruto da fragmentação do mundo em esferas diferentes, inseridas em contextos com
sentidos diferentes, que resulta em um “politeísmo de valores”:

Há, por exemplo, as racionalizações da contemplação mística, ou seja, num


contexto que, considerado sob outras perspectivas, é especificamente
irracional, da mesma forma que há racionalizações da Sociedade, da
técnica, do trabalho, científico, da educação, da guerra, do Direito e da
administração. Cada um desses campos pode, além disso, ser
“racionalizado” segundo fins e valores últimos muito diferentes, e o que de
um ponto de vista for racional, poderá ser irracional do outro.
Racionalizações têm existido em todas as culturas, nos mais diversos
setores e dos tipos mais diferentes. Para caracterizar sua diferença do
ponto de vista da história da cultura, deve-se ver primeiro em que esfera e
direção elas ocorreram. Por isso surge novamente o problema de
reconhecer a peculiaridade específica do racionalismo Ocidental, e, dentro
6
deste moderno racionalismo Ocidental, o de esclarecer sua origem.

Tal aspecto também é evidenciado por Weber quanto ao isolamento


espiritual do ser humano no tocante ao sentido de sua vida. Isso porque o

6
WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Tradução de Maria Irene de Q. F.
Szmrecsányi e Tamás J. M. K Szmrecsányi. 6. ed. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1989.p. 11.
6

posicionamento do homem moderno decorre da ruptura com o pensamento cristão,


considerando que se cessa o imperativo moral da cristandade e que, assim, os
sujeitos da ação passariam, obrigatoriamente, a conviver com a necessidade de
justificar seus atos de maneira reflexiva.
Ao homem moderno caberia o destino de assumir a responsabilidade
pelas escolhas que preencherão o vazio em sua vida:

O racionalismo grandioso, subjacente à orientação ética de nossa vida e


que brota de todas as profecias religiosas destronou o politeísmo, em
benefício do “Único de que temos necessidade”; mas, desde que se viu
diante da realidade da vida interior e exterior, foi compelido a consentir em
compromissos e acomodações de que nos deu notícia a história do
cristianismo. A religião tornou-se, em nossos tempos, “rotina quotidiana”. Os
deuses antigos abandonam suas tumbas e, sob a forma de poderes
impessoais, porque desencantados, esforçam-se por ganhar poder sobre
nossas vidas, reiniciando suas lutas eternas. Daí os tormentos do homem
moderno, tormentos que atingem de maneira particularmente penosa a
7
nova geração: como se mostrar a altura do quotidiano?

Para acertada análise sobre de que forma o desencantamento do mundo


relaciona-se com a tecnicalização da razão e sua aplicação no paradigma moderno,
faz-se mister explicar brevemente os conceitos metodológicos trabalhados por
Weber com relação aos valores e padrões utilizados como motivadores das ações 8
dos indivíduos na sociedade. O sociólogo trabalha com um conceito arquetípico 9,

7
WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. p. 42-43.
8
“Por ‘ação’ deve-se entender um comportamento humano, tanto faz que se trate de um comportar-
se externo ou interno ou de um permitir ou omitir, sempre quando o sujeito os sujeitos da ação ligam
a ela um sentido subjetivo”. WEBER, Max. Metodologia das ciências sociais. São Paulo: Editora da
Universidade Estadual de Campinas, 1995. p. 400.
9
Neste sentido, a ação arquetípica deve ser considerada como um recorte à realidade, e não uma
reprodução fidedigna desta: “A sociologia constrói – como já supomos evidente - tipos ideais e
procura descobrir regras gerais do acontecer. Em oposição à história, que se esforça em conseguir a
análise e imputação causal das personalidades, das estruturas e das ações individuais consideradas
culturalmente importantes. A construção conceitual da sociologia encontra o seu material
paradigmático, de maneira essencial, mas não de maneira exclusiva, nas realidades da ação
consideradas também importantes a partir do ponto de vista da história. Ela constrói também os seus
conceitos e busca para suas leis com o propósito, sobretudo, de poder prestar um serviço para a
imputação causal histórica dos fenômenos culturalmente importantes. Como acontece com toda
ciência generalizadora, uma condição da peculiaridade de suas abstrações no que se refere aos
conceitos, tende a dar-se de maneira que estes mesmos conceitos tendem a ser vazios em seus
conteúdos. O que ela pode oferecer em contrapartida é a univocidade elevada dos seus conceitos.
Esta elevada univocidade se alcança em virtude da possibilidade de um optimum da adequação de
sentido tal como acontece na conceituação sociológica. Por sua vez, esta adequação pode ser
alcançada na sua forma mais plena - e isto, sem dúvida, foi considerado até agora – através de
regras e conceitos racionais (racionais com relação a valores ou racionais com relação a fins)”.
LAZARTE, Rolando. Max Weber: ciência e valores. São Paulo: Cortez, 1996 p. 73.
7

para fins de estudo, conhecido como ação social 10 , que seria um método de
entender quais seriam os fatores e de que forma são sobrepesados para influenciar
o agente na tomada de sua decisão.
Assim, o autor define os critérios que podem desembocar nos tipos de
categorias da ação social:

A ação social, como toda ação, pode ser: 1) racional com relação a fins:
determinada por expectativas no comportamento tanto de objetos do mundo
exterior como de outros homens, e, utilizando essas expectativas como
“condições” ou “meios” para o alcance de fins próprios racionalmente
avaliados e perseguidos. 2) racional com relação a valores: determinada
pela crença consciente no valor – interpretável como estético, religioso, ou
de qualquer outra forma – próprio e absoluto de um determinado
comportamento, considerado como tal, sem levar em consideração as
possibilidade de êxito. 3) afetiva, especialmente emotiva, determinada por
afetos e estados sentimentais e atuais; e 4) tradicional: determinadas por
11
costumes arraigados.

Como veremos a seguir, tal categorização é importante para


compreendermos que, como racionalismo, a razão é dissociada da realidade, e
também do pensamento puro, ficando localizada no campo dos valores.
Da noção de ação social relatada em epígrafe é que se dará a maneira
como o sociólogo alemão irá tratar acerca das formas de legitimação de poder,
intrinsecamente ligadas ao papel do Direito12 e da lei no Estado Moderno.
Distingue-se no trabalho de WEBER a “Razão Formal” da “Razão
Instrumental”. Neste sentido, para THIRY-CHERQUES:

(...) a racionalidade formal é constituída pela calculabilidade e


predicabilidade dos sistemas jurídico e econômico. No campo das
organizações, a racionalidade formal está presente em aparelhos como o
contábil e o burocrático. Implica regras, hierarquias, especialização,
treinamento. A racionalidade substantiva é relativa ao conteúdo dos fins
operacionais dos sistemas legal, econômico e administrativo. Difere da

10
“A ‘ação social’, portanto, é uma ação na qual o sentido sugerido pelo sujeito ou sujeitos refere-se
ao comportamento de outros e se orienta nela no que diz respeito a seu desenvolvimento”. WEBER,
Max. Metodologia das ciências sociais. p. 400.
11
WEBER, Max. Metodologia das ciências sociais. p. 417.
12
Cabe-nos aqui ressaltar observação de Weber acerca do Direito: “Tomemos ainda o exemplo da
ciência do Direito. Essa disciplina estabelece o que é valido segundo as regras da doutrina jurídica,
ordenada em parte, por necessidade lógica e, em parte, por esquemas convencionais dados;
estabelece, por conseguinte, em que momento determinadas regras de Direito e determinados
métodos de interpretação são havidos como obrigatórios. Mas a ciência jurídica não dá resposta à
pergunta: deveria haver um Direito e dever-se-iam consagrar exatamente estas regras? Aquela
ciência só pode indicar que, se desejamos certo resultado, tal regra do Direito é, segundo as normas
da doutrina jurídica, o meio adequado para atingi-lo”. WEBER, Max. Ciência e Política, duas
vocações. p. 37.
8

formal por ter uma lógica estabelecida em função dos objetivos e não dos
processos. A segunda distinção, entre as racionalidades meio finalística e
valorativa, deriva do fato de existirem vários tipos de ações e cada tipo
corresponde a um grau de maior ou menor racionalidade. A ação que é
racional quanto aos fins que se propõe a alcançar, a ação que é racional
quanto aos meios empregados, a ação “afetiva”, que é racional quanto aos
sentimentos, a ação tradicional que está próxima da irracionalidade, já que
fundada unicamente no hábito. De modo que um comportamento racional
não precisa, necessariamente, obedecer a uma lógica finalística. Pode ser
“valor-racional”, sempre que seus fins ou seus meios sejam religiosos,
morais ou éticos e não diretamente ligados à lógica formal, à ciência ou à
13
eficiência econômica.

Assim, associado aos processos de instrumentalização da razão, é que


se verifica o conceito de validade, e pretensão de validade sem, para tanto, deixar
de passar pelos processos de irracionalismo. O processo de validação passa,
portanto, necessariamente pelo conceito explicado anteriormente, alcunhado de
“politeísmo de valores”, e que pode ser entendido como irracional, mas que atende
às demandas da razão instrumental.
Dessa forma, a supremacia da razão instrumental evidencia-se, na visão
14
de TENBRUCK, em três esferas sociais : a economia associada com a
consolidação do capitalismo, a política bem representada pelo Estado Moderno com
seu respaldo legal e burocrata, e a ciência. As duas últimas serão alvo de breve
análise.

1.2) A Racionalização da Ciência Moderna: breves apontamentos

Para o Mundo Moderno, a Ciência parece emergir como única detentora


legitimada dos resultados dos processos de busca pela verdade 15 . Na visão
Weberiana, a influência desta afirmação obrigava ao homem um pesar sobre suas
ações, o qual não poderia deixar de fazê-lo, conferindo-lhe uma posição consciente
face ao mundo, obrigando-o a conferir-lhe um sentido. O que implica na necessidade

13
THIRY-CHERQUES, Hermano Roberto. Max Weber: o processo de racionalização e o
desencantamento do trabalho nas organizações contemporâneas. Rev. Adm. Pública. vol. 43, n. 4.
Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0034-76122009000400007&script=sci_arttext>.
Acesso em: 10 nov. 2013.
14
TENBRUCK, Friedrich. The problem of thematic unity in the works of Max Weber. British Journal of
Sociology. London: vol. 31, n. 3, set. 1980. p. 322.
15
“A ciência criou esse cosmo da causalidade natural e pareceu incapaz de responder, com certeza,
à questão de suas pressuposições últimas. Não obstante, ela, em nome da ‘integridade intelectual’,
arrogou-se a representação da única forma possível de uma visão racional do mundo”. WEBER, Max.
Rejeições religiosas do mundo e suas direções. In: TRAGTENBERG, Maurício (Org.). Textos
Selecionados / Max Weber. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 265.
9

do indivíduo optar por uma “ação consciente”. Em seu livro Ciência e política, duas
vocações, temos um conceito mais claro:

A ciência hoje é uma vocação organizada em disciplinas especiais a serviço


do auto esclarecimento e conhecimento de fatos inter-relacionados. Não é o
dom da graça de videntes e profetas que cuidam de valores e revelações
sagradas, nem participa da contemplação dos sábios e filósofos sobre o
significado do universo. É essa, na verdade, a condição inevitável de nossa
situação histórica. Não podemos fugir a ela enquanto continuarmos fiéis a
16
nós mesmos.

JASPERS apresenta opinião semelhante ao discorrer sobre a Ciência


enquanto paradigma “cogente” aplicável a todo o Ocidente Moderno, chegando a
afirmar que, enquanto valor, o caráter científico reveste-se de evidência universal.
Dessa forma, ele esclarece:

Esta ciência é, em primeiro lugar, um conhecimento metódico guiado pelo


conhecimento deste método e de seus limites. Em segundo lugar, ela traz
consigo uma certeza coercitiva que se apoia em, e se dirige para o que
permanece incerto. Em terceiro lugar ela é válida para todos, não apenas de
17
Direito, mas de fato.

Seguindo sua lógica, o autor chega a afirmar que esse posicionamento


conduz o homem à superstição da ciência 18 , que é a condição que o leva a
desconhecer o real significado de ciência e acreditar que pode compreender a
verdade em sua totalidade, acreditando por fim que não há outra forma de se chegar
à realidade que não o conhecimento científico. Conclui dessa forma que o homem é
incapaz de conhecer tanto a verdade quanto a realidade.
Assim, o saber científico não apenas aparece como uma das formas
possíveis de verdade, mas como sendo o único detentor legitimado dos processos
de racionalização. Isso ocorre, a despeito da irracionalização de se atribuir à razão e
à ciência o poder de se firmar como únicas formas legitimadas de validar os
processos de racionalização.
O homem moderno exalta a verdade científica, que se opõe às demais
verdades precedentes, por não apenas conseguir desfazer-se de outros veículos

16
WEBER, Max. Ciência e política, duas vocações. p. 180.
17
JASPERS, Karl. Ciência e verdade. O que nos faz pensar. In: Cadernos do Departamento de
Filosofia da PUC-RJ. n. 1, jun. 1989. p. 104-117. p. 105.
18
JASPERS, Karl. Ciência e verdade. p. 108.
10

para alcançar a verdade (como o mito), mas também, porque nesta culmina a
possibilidade da verdade natural:

Parece quase o aproximar-se de dois opostos quando – como se faz com o


título dessa conferência- são colocadas uma ao lado da outra as
expressões “mitologia” e “Modernidade”. Na consciência comum, de fato, o
apelo ao moderno evoca um tempo percorrido e dominado pelo vitorioso
desmantelamento de antigas mitificações sedimentadas e enraizadas no
costume graças a duas conquistas do progresso humano: a secularização e
a consequente posse de evidentes verdades científicas. Tendo sido
finalmente exilada em um cantinho apartado a velha produtora de fábulas, a
Igreja Romana, torna-se grande o orgulho de poder olhar o mundo com
olhos incorrompidos, capazes de ler as verdades nesse imanentes,
verdades não reveladas (e, portanto não demonstradas), ou melhor,
19
descobertas na sólida e concretíssima natureza das coisas.

WEBER discorda desse posicionamento e vê que a própria escolha desse


caminho é problemática em sua essência, já que ao orientar a conduta prática do
homem a ciência fornece-nos apenas verdades provisórias que são constituídas
pelo experimento racional. As verdades científicas são, portanto, verdades
provisórias mutáveis e temporais20.
Concordarmos aqui com COHN, para quem WEBER, ao adotar esse
posicionamento, acaba por criticar a forma da instrumentalização da razão na cultura
Ocidental moderna:

Weber combate resolutamente a ideia de que a Ciência possa engendrar


“concepções de mundo” de validade universal, fundadas no sentido objetivo
do decurso histórico. Esse sentido objetivo não existe e por isso mesmo não
existe uma ciência social livre de pressupostos valorativos. O que existe é a
luta constante, que extravasa o domínio da Ciência, pela atribuição prática
de um sentido ao mundo e pela sua sustentação diante das alternativas
21
concretamente existentes.

Isso porque, na proposição propedêutica weberiana, os conceitos vistos


como irracionalidade continuam por influir nas ações dos indivíduos. Ao buscar as
causas das motivações de sua ação, mesmo as que seguem a lógica Ocidental
moderna, isto é, escolhem a ciência como pretensão de verdade, percebe-se que a

19
GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da Modernidade. p. 55.
20
“Com efeito não é de modo algum evidente que um fenômeno sujeito à lei do progresso albergue
sentido e razão. Por que motivo, então, nos entregamos a uma tarefa que jamais encontra fim e não
pode encontra-lo? Assim se age, responde-se, em função de propósitos puramente práticos ou, no
sentido amplo do termo, em função de objetivos técnicos.” WEBER, Max. Ciência e política, duas
vocações. p. 29.
21
COHN, Gabriel. Introdução. In: COHN, Gabriel (Org.). WEBER, Max. Sociologia – Coleção Grandes
Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 2004. p 21.
11

própria noção de verdade científica já valida objetivamente o conteúdo da afirmação,


de modo que não se faz necessário uma postura crítica frente à Ciência. Conclui,
portanto, que o campo da ação racional está ligado a movimentos cotidianos
desconexos e não refletidos.
No mesmo sentido, é a posição de SANTOS, ao discorrer sobre a
irracionalidade sob o ponto de vista da Modernidade:

O modelo de racionalidade que subjaz ao paradigma de ciência moderna


não hesita em lançar todos estes fenômenos na vala comum da
irracionalidade e de os contabilizar a débito de nossa fraqueza intelectual,
individual ou coletiva. Contudo, de muitos lados, da hermenêutica à
psicologia e à teoria da escolha racional, começa-se hoje a pensar que o
maniqueísmo em que opera esse modelo é demasiado simplista para ser,
ele próprio, “racional”. Uma análise mais detalhada dos nossos processos
mentais, da sua gênese e das suas consequências revela que a razão nos
prega muitas peças (e nós a ela) e que, por isso, a relação entre
racionalidade e irracionalidade é muito mais complexa do que a primeira
22
vista se pode pensar.

A evidenciação de que a racionalidade moderna compõe-se de outros


valores, considerados sob análise do próprio paradigma como irracionais, bem como,
de que tais valores encaixam-se em diferentes arquétipos metodológicos propostos
por Weber, poderá ser melhor vislumbrada quando estudarmos a aplicabilidade de
sua teoria na divisão e legitimação do Estado do Direito.

1.3) O Estado Moderno e a Racionalização das Leis

Podemos identificar no Ocidente um histórico que culmina nas


características que WEBER identifica no Estado Moderno. Para ele o Estado possui
um poder centralizado, em conjunto com um aparato burocrático administrativo que
permite o exercício da dominação. Assim, a estrutura do Estado Moderno
caracteriza-se principalmente pelo processo de legalização. Nas palavras de
GROSSI:

Se muitos altares eclesiásticos serão cuidadosamente desconsagrados,


outros tantos – profanos - serão erigidos e consagrados ao culto da lei,
juntamente com a teorização de uma verdadeira mitologia jurídica (mitologia
devido ao fato de ser muito frequentemente regida por um aceite

22
SANTOS. Boaventura de Souza. Introdução a uma ciência pós-moderna. p. 38.
12

substancialmente acrítico, ou, o que dá no mesmo, ideologicamente


23
motivado.

Este aceite coletivo por parte da sociedade, sem questionar o conteúdo


do que se está em jogo é o que torna o Estado o único detentor legítimo da violência
física. 24
Fruto direto disso, a “autonomia” da lei pode ser vista como um processo,
cujas características se pode identificar já na Grécia Antiga, em que “a autoridade ou
força moral das leis escritas suplantou, desde logo, a soberania do indivíduo ou de
um grupo ou classe social, soberania esta tida doravante como ofensiva ao
sentimento de liberdade do cidadão” 25. Essa tentativa de supremacia das leis, ainda
que fundada em diversos motivos, pode ser vista também em Hobbes e Maquiavel,
já no embrião do Estado de Direito.
Entretanto, foi apenas após a queda das monarquias absolutas e a
ascensão da burguesia ao poder que as leis passaram a exercer papel de maior
destaque na sociedade. E somente nesta configuração que as leis positivadas (não
apenas as divinas ou naturais) passaram a ser obrigatoriamente erga omnes,
incluindo aí os detentores do poder. Tem-se aí então o Estado de Direito, fundado
na legalidade e na limitação do poder estatal aos ditames legais.
Para além da intenção de denunciar o Estado como um meio de
dominação26, WEBER destaca que uma associação só tem legitimidade e existência
quando é fruto da concatenação de inúmeras ações individuais e do consenso da
coletividade. Dessa forma, o Estado necessita do reconhecimento do cidadão para
ser legitimado.
O autor separa a legitimidade de dominação estatal em arquétipos: a
tradição, o carisma, a legalidade, o medo e a esperança:
23
GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da Modernidade. p. 46.
24
“Em nossa época, entretanto, devemos conceber o Estado contemporâneo como uma comunidade
humana que, dentro dos limites de determinado território – a noção de território corresponde a um
dos elementos essenciais do Estado – reivindica o monopólio do uso legítimo da violência física. É,
com efeito, próprio de nossa época o não reconhecer, em relação a qualquer outro grupo ou aos
indivíduos, o Direito de fazer uso da violência, a não ser nos casos em que o Estado o tolere: o
Estado se transforma, portanto, na única fonte do “Direito” à violência”. WEBER, Max. Ciência e
política, duas vocações. p. 56.
25
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 4. ed. São Paulo:
Saraiva, 2005.. p. 13.
26
“Tal como todos os agrupamentos políticos que historicamente o precederam, o Estado consiste
em uma relação de dominação do homem sobre o homem, fundada no instrumento de violência
legítima (isto é, da violência considerada como legítima). O Estado só pode existir, portanto, sob a
condição de que os homens dominados se submetam à autoridade continuamente reivindicada pelos
dominadores”. WEBER, Max. Ciência e política, duas vocações. p. 57.
13

Existem em princípio – e começaremos por aqui - três razões internas que


justificam a dominação existindo, consequentemente três fundamentos da
legitimidade. Antes de tudo, a autoridade do “passado eterno”, isto é, dos
costumes santificados pela validez imemorial e pelo hábito, enraizado nos
homens, de respeitá-los. Tal é o “poder tradicional” que o patriarca ou o
senhor de terras outrora exercia. Existe, em segundo lugar, a autoridade
que se funda em dons pessoais e extraordinários de um indivíduo (carisma)
– devoção e confiança estritamente pessoais depositadas em alguém que
se singulariza por qualidades prodigiosas, por heroísmo ou por outras
qualidades exemplares que dele fazem o chefe. Tal é o poder “carismático”
exercido pelo profeta ou – no domínio político - pelo dirigente guerreiro
eleito, pelo soberano escolhido através de plebiscito, pelo grande
demagogo ou pelo dirigente de um partido político. Existe, por fim, a
autoridade que se impõe em razão da “legalidade”, em razão da crença na
validez de um estatuto legal e de uma competência positiva, fundada em
regras racionalmente estabelecidas, ou, em outros termos, a autoridade
fundada na obediência, que reconhece obrigações conformes ao estatuto
27
estabelecido.

O Estado Moderno ao utilizar-se da dominação legal não é entendido


como sujeito à dominação carismática ou dominação tradicional já que os cidadãos
não são motivados a obedecer aos detentores do poder pela crença em suas
instituições ou no sagrado das tradições, mas, por concederem o poder de crença à
legalidade.
Dessa forma, WEBER aproxima Direito e Estado, pois o poder deste
último é legítimo na exata medida de sua legalidade, ou seja, quando o poder é
exercido cumprindo uma série de exigências formais previamente constituídas. 28
Estas exigências podem ser entendidas como manifestação do domínio racional
legal, que se expressa através da burocracia. Isto é, a burocracia não apenas é
consequência do governo da razão, como também é a forma pelo qual age o Estado
Racional Moderno, devendo ser entendida como produto histórico da racionalidade
formal. Nos esclarece ARGÜELLO:

(...) o objetivo da burocracia é o de gerir o poder. Esta gestão, por sua vez,
pode ser mais racional, quando mediada pelo tipo de administração
burocrática pura, (administração burocrático-monocrático), que ressalta os
aspectos da precisão, disciplina, continuidade, calculabilidade,

27
WEBER, Max. Ciência e política, duas vocações. p. 57-58.
28
Assim esclarece BOBBIO: "Weber e Kelsen interpretam no fundo o mesmo fenômeno da
convergência do Estado e do Direito, embora olhando-o de dois pontos de vista diferentes. Weber, a
partir de um ponto de vista da juridificação do Estado, ou seja do poder estatal, que se racionaliza
através de uma complexa estrutura normativa articulada e hierárquica; Kelsen, a partir da estatização
do Direito, ou seja do sistema normativo que se realiza através do exercício do máximo poder
(...)".BOBBIO, Norberto; MATEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política.
Tradução de Carmen C. Varrialle, Gaetano Loiai Mônaco, João Ferreira, Luis Guerreiro Pinto Caçais
e Renzo Dini. Brasília: UnB, 2004. p. 351.
14

aperfeiçoamento técnico, enfim, de eficácia. Em termos históricos concretos,


essa instrumentalidade do agir racional com relação aos fins diz respeito à
29
função da força política do Estado moderno desenvolvido no Ocidente.

O poder sustentador do Estado Racional é o da fé na legitimidade do


Direito e da política, bem como na impessoalidade do aparelho burocrático do
Estado. Isso porque o que se pretende obedecer não é a uma pessoa detentora do
poder, mas o próprio conteúdo das normas jurídicas advindos do Estado. Assim o
Direito enquanto ordem jurídica está garantido externamente pela probabilidade de
coação, seja ela física ou psíquica. Dessa forma tem-se que a legalidade é também
legitimada pela coerção.
Essa obediência ou dominação possui, de acordo com WEBER, um
caráter racional, de modo que as normas jurídicas representavam tal racionalidade:
gerais, abstratas, impessoais e cogentes, de maneira que isso revela também a
crença generalizada na capacidade racional do ser humano.
Tal capacidade de crença intimamente ligada ao sistema de legitimação
da racionalização e aplicação do Direito também é evidenciada por Paolo GROSSI:

O autor se deu conta, nas suas já longas e contínuas pesquisas histórico-


jurídicas, de que um grande emaranhado nó de certezas axiomáticas
lentamente se sedimentou no intelecto e no coração do jurista moderno, um
nó que foi aceito de modo submisso, que ninguém sonhou discutir por ter
sido fundamentado em um lúcido projeto originário de mitificação,
mitificação como processo de absolutização de noções e princípios relativos
e discutíveis, mitificação como passagem de um mecanismo de
30
conhecimento a um mecanismo de crença.

Figurando como crença, nada impede que normas distintas e


contraditórias sejam válidas. Dessa forma, a norma é dotada de poder 31 à medida
que pode coagir o indivíduo a cumpri-la, já que é dotado de legitimidade. Assim, o
poder está unificado ao Direito na medida em que este figura como forma coercitiva
despida de conteúdo, mas, continua dotado de poder, isto é, coerção. Dessa forma,
a legitimidade jurídica aqui é puramente formal, remetendo ao procedimento de
criação e a crença de que tal procedimento é legítimo.

29
ARGÜELLO, Katie Silene Cáceres. O Ícaro da modernidade: direito e política em Max Weber. São
Paulo: Acadêmica, 1997.. p. 82-83.
30
GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da Modernidade. p. 12.
31
"Poder significa a probabilidade de impor a própria vontade, dentro de uma relação social, mesmo
contra toda a resistência e qualquer que seja o fundamento desta probabilidade". Weber, Max.
Economia y Sociedad – esbozo de sociologia compreensiva. México D.C. e Buenos Aires: Ed. Fondo
de Cultura Econômica, 1964. p. 43.
15

Acerca da revelação legal, WEBER afirma:

Mas o formalismo jurídico origina-se, sobretudo, do processo no Direito


probatório vinculado a determinadas formas. Este Direito não regulamenta,
de modo algum, a 'prova' processual no sentido atual. Não se apresentam
meios de prova para demonstrar que um 'fato' é 'falso' ou 'verdadeiro'. Ao
contrário, trata-se de saber qual das partes pode ou deve dirigir aos
poderes mágicos a pergunta de se está em seu Direito, e em que formas
esta deve ser feita. Ao lado do caráter formal do próprio procedimento,
32
temos, portanto, o caráter totalmente irracional dos meios de decisão.
(grifo nosso)

Assim, ao jurista cabe o papel de elaborar normas que dominem a


realidade, isto é, que determinem eficazmente o comportamento humano, sem se
preocupar se essas normas são justas/boas ou injustas/más, pois o que importa é a
efetividade da norma. No mesmo sentido, temos a opinião de GROSSI ao discorrer
sobre a diferenciação entre lex e loy:

Mas um outro elemento discriminante salienta-se entre a lex dos medievais


e a loy dos modernos: quanto à primeira, era marcada por conteúdos e
finalidades bem estabelecidos – a razoabilidade , o bem comum -, tanto já a
segunda propõe-se como realidade que não encontra em um conteúdo ou
33
em um objetivo nem o seu significado nem a legitimação social.

Nesse sentido poderíamos afirmar que as leis encontram apenas nelas


mesmas suas justificações à medidas que são descoladas dos problemas de caráter
social, que em tese justificariam sua incidência. GROSSI prossegue, citando
MONTAIGNE:

“(...) as leis possuem crédito não porque são justas mas porque são leis. É o
fundamento místico da autoridade delas, não tem outro fundamento, e é
bastante. Frequentemente são feitas por imbecis”. A dose vem recarregada
algumas linhas depois: “quem as obedece por serem justas, não dá a
34
obediência devida a elas”. (grifo nosso)

O Direito, reafirmamos, aparece como dotado de um poder mágico,


advindo da crença daqueles que o legitimam afastando-se, assim, do senso comum
que costuma associar a legitimação do Direito ao senso de justiça e ordem.
Dessa forma, o Direito figura como a forma por excelência do poder
simbólico, já que é através de sua significação que se confere realidade e poder de

32
WEBER, Max. Economia y sociedad: esbozo de sociología comprensiva. p. 74.
33
GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da Modernidade. p. 41
34
GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da Modernidade. p. 42.
16

realização às coisas. Seu discurso é capaz de produzir efeitos mediante uma


eficácia que pode ser entendida como mágica, pautada unicamente na crença de
sua legitimidade:

A crença que é tacitamente concedida à ordem jurídica deve ser


reproduzida sem interrupção e uma das funções do trabalho propriamente
jurídico de codificação das representações e das práticas éticas é a de
35
fundamentar a adesão de profanos aos próprios fundamentos.

Pois bem, até aqui se falou de que forma foi construído o paradigma
racional Ocidental da Modernidade, trabalhando com conceitos weberianos de
racionalização para um agir racional. Demonstrando de que forma esse conceito de
racionalização espalhou-se por diversos campos de conhecimento da sociedade
moderna, consolidando-se na Ciência como detentora única da verdade e dessa
forma, de como o Direito e os demais campos estatais precisaram ter seus valores
atestados por ela para que se tornassem neutros e legítimos.
Evidenciou-se, assim, que na visão “politeísta de valores” que virá a
fundamentar as escolhas racionais do Direito, os autores abordados optam por
afirmar uma eficácia mágica do Direito pautado na crença deste como legitimador de
seus atos, distanciando-se assim da ideia de que o Direito tem uma racionalização
uni-valorativa pautada na razão.
Dentre os motivos que justificam essa validação, encontram-se o contexto
pretensamente racional que transmuta um valor de crença, para ser entendido como
racional de forma a prioristicamente sem que se tenha necessidade de que se
analise a situação como de acordo com os valores racionais.
Antes de demonstrarmos através de metodologia analítica de que forma
os valores ritualísticos advindos do sistema de racionalidade mágica podem interferir
na racionalidade utilizada pelo Direito, bem como na constituição de valor simbólico,
crença e na constituição de seu habitus (inserido dentro da teoria de BOURDIEU),
faz-se necessário delimitarmos o que é, e para fins didáticos, o que se entende por
magia.

35
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz.10. ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. p. 189.
17

2. MAGIA: GÊNESE, ANÁLISE E FUNCIONAMENTO

2.1) Magia e Ciência: gênese e convergência

A noção que temos atualmente do que seria magia foi construída pelo
Iluminismo, que delimitou campos de atuação diferentes para magia, religião e
ciência. Em que pese, tenhamos identificado esses sistemas de pensamento em
todas as civilizações36, somente recentemente no Ocidente é que se pode distanciar
seus métodos e formas de interação social.
Assim, para fins metodológicos, trabalharemos com os conceitos trazidos
por MAUSS e HUBERT, confrontando-os com as teorias de seus pares como
37
DURKHEIM, MALINOWSKI e FRAZER . Tais autores caracterizam-se por
abordarem aspectos diferentes bem como posicionarem-se de forma heterogênea
acerca dos constitutivos da magia e de suas características.
Pinçaremos pontos específicos em comum que podem ser encontrados
nas teorias trabalhadas por tais antropólogos, priorizando a visão apontada por
MAUSS, já que, assim, será mais fácil aproximá-la quando do tratamento do poder
simbólico exercido pelo Direito, abordado por BOURDIEU.
Estes estudiosos, ao debruçarem-se sobre o tema, trouxeram novas
ideias e formas de se ver os entrelaçamentos desses três sistemas, na opinião de
MALINOWSKI:

Uma conquista da antropologia moderna não poderemos questionar: o


reconhecimento de que a magia e a religião não são meramente uma
doutrina ou uma filosofia, não apenas o cerne da opinião intelectual, mas
um modo especial de comportamento, uma atitude pragmática impregnada
de razão, sentimento e vontade em partes iguais. É um modo de ação,
assim como um sistema de crença, um fenômeno sociológico, bem como
38
uma experiência pessoal.

36
“Assim como não existem, diga-se de passagem, quaisquer raças selvagens que não possuam
atitude científica ou ciência, embora esta falha lhes seja frequentemente imputada. Em todas as
sociedades primitivas, estudadas por observadores competentes e de confiança, foram detectados
dois domínios perfeitamente distintos, o Sagrado e o Profano; por outras palavras, o domínio da
Magia e da Religião e o da Ciência”. MALINOWSKI, Bronislaw. Magia, ciência e religião. Tradução de
Maria Georgina Segurado. Rio de Janeiro: Edições 70, 1948. p. 1.
37
Os autores supracitados apresentam como característica comum a definição de magia sempre
como oposição ao que se entende por magia. Ainda que concordemos que tal posicionamento deve
ser alvo de estudo, este viés não será apresentado neste trabalho, por acreditarmos que não é
conveniente ao que esta obra se propõe.
38
MALINOWSKI, Bronislaw. Magia, ciência e religião. p. 6.
18

É mister evidenciarmos que não há consenso entre os teóricos


supracitados sobre quais os limites entre religião e magia. Devemos notar, contudo,
que a magia será sempre contextualizada como algo “estranho” à cultura na qual se
está inserido. Como evidencia SILVA:

No entanto, até aos dias de hoje, nunca se chegou a uma demarcação


intelectualmente satisfatória entre religião e magia, a maior parte destas
demarcações, derivando de preconceito pela parte daqueles que se viam
como bastiões da religião versus aquilo que viam como “superstição” ou
“pactos demoníacos”, numa fase inicial e no período colonial pela parte dos
poderes coloniais, face às práticas religiosas que lhes pareciam “irracionais”
ou simplesmente erradas nos povos colonizados. Parece, então, que a
distinção entre magia e religião é uma questão mais ligada à perspectiva de
quem atribui estas etiquetas a diferentes práticas relacionadas com o
mundo metafísico ou sobrenatural do que a qualquer factor intrínseco das
práticas em si. Por exemplo, na perspectiva cristã, desenhar um círculo no
chão e queimar incenso, de forma a contactar com anjos ou deus é uma
prática mágica, enquanto ajoelhar, juntar as mãos e rezar para o mesmo fim
é uma prática religiosa. No mesmo princípio, a transmutação do chumbo em
ouro é magia, enquanto que a transmutação de pão e vinho em carne e
sangue é religião. Este último exemplo levou, de facto, durante a reforma
protestante, a acusações pela parte de alguns protestantes de práticas
mágicas pela Igreja Católica. Como mencionado em cima, é uma questão
39
de perspectiva.

Esse caráter etnocêntrico na definição do termo pode ser evidenciado


considerando a origem do vocábulo “magia”, advinda de magi ou magoi, como eram
chamados os Persas, tidos como sábios e detentores do saber esotérico, quando
estes conceitos foram absorvidos na civilização grega40.
Dessa forma, é evidente que a noção de magia enquanto dado cultural
alheio pode ser entendida também como a crença daquele que é diferente de mim.
Assim, “rebaixam” ao patamar de magia toda crença aliada à técnica daquilo que
desconhecem ou ignoram.

39
SILVA, F. P. C. S. Magia: A Religião do “outro”. In: Veredas da História. São Paulo: 2010. p. 2-3.
40
“A palavra ‘magia’ deriva do grego antigo, e mais especificamente do termo ‘mageia’, o qual era
usado para descrever as práticas e crenças dos andarilhos ‘magi’ ou ‘magoi’, os quais se acredita
serem de origem persa. Estes ‘magi’ estrangeiros eram admirados pela sua sabedoria esotérica e seu
conhecimento de feitiçaria, que foi rapidamente absorvido e reinterpretado dentro do contexto grego,
apesar de que em alguma medida ainda fosse visto como uma intromissão estrangeira na cultura
local. A relação de certa forma ambivalente dos gregos com a magia ficou cimentada na cultura
Ocidental, e persiste até os dias de hoje, embora de um modo diferente”. Tradução livre do original:
“The word magic derives from ancient Greece, and more specifically from the term mageia, which was
used to describe the practices and beliefs of the wandering magi or magoi, believed to be of Persian
origin. These Foreign magi were admired for their esoteric wisdom and knowledge of sorcery, which
was quickly absorbed and re interpreted into the Greek context, although on some level it was still
viewed as a foreign intrusion in to local culture. The somewhat ambivalent relationship of the Greeks
with magic became cemented into Western culture, and persists to this day, albeit in different guise”.
BOGDAN, Henrik. Introduction: modern western magic. In: Aries. vol. 12, n. 1, jan. 2012.p. 3.
19

Ao mesmo tempo em que a magia e suas diversas vertentes foram


desvencilhando-se do que veio a dar origem à ciência do período iluminista,
seguindo-se a mesma dicotomia de pensamento que atribuía à magia, critérios
valorativos inferiores na busca pela verdade, diversas ciências foram surgindo. O
paradigma do Iluminismo e posteriormente o da Modernidade fez questão de limitar
campos separados na sociedade para cada um destes sistemas.
Aos poucos, a razão foi responsável por distinguir entre sistemas de
crenças e sistemas eficazes, ou ao menos, assim se pensou. É fato notório que
ciências tais como a Química, estão ligadas à Alquimia, bem como a Astronomia à
Astrologia e toda a Medicina provém de conhecimentos e rituais mágicos que
passaram pelo “filtro da razão”:

O ato médico não apenas permaneceu, quase até nossos dias, cercado de
prescrições religiosas e mágicas, preces, encantamentos precauções
astrológicas, mas também as drogas as dietas do médico, os passes do
cirurgião, são um verdadeiro tecido de simbolismos, de simpatias de
homeopatias, de antipatias e, de fato, são concebidos como mágicos. A
eficácia dos ritos e a da arte não são distinguidas, mas claramente
41
pensadas em conjunto.

Nesse sentido, sabe-se também que NEWTON dedicou estudos à


Alquimia da mesma maneira que Giordano BRUNO ao Hermetismo. Visto dessa
forma, concordamos com MAUSS quando afirma que “todos os médicos, todos os
pastores, todos os ferreiros são, ao menos virtualmente, mágicos” 42.
Deste modo, afirmamos que, ao contrário do que se costuma acreditar,
não houve, por parte dos pensadores modernos, “uma marcha triunfal do saber
científico atravessando as trevas e as superstições da magia” 43.
Pelo contrário, podemos perceber que houve no pensamento mágico um
caminho traçado que pode ser interpretado como simultâneo ao paradigma da
racionalidade, considerando que tal corrente também influenciou o modo como o
Ocidente trabalha com a magia e incorpora seus elementos à sua racionalidade.
Assim, na fase pós-iluminista, surgem no Ocidente sujeitos e grupos organizados
que passam a se definir como praticantes de magia.

41
HUBERT, Henri; MAUSS, Marcel. Esboço de uma Teoria Geral da magia. In: MAUSS, Marcel.
Ensaios de sociologia. São Paulo: Perspectiva, 2005.p. 56.
42
MAUSS, Marcel; HUBERT, Henri. Esboço de uma teoria geral da magia. p. 66.
43
ROSSI, Paolo. O nascimento da ciência moderna na Europa. Bauru: EDUSC, 2001.p. 59.
20

Um dos mais famosos é sem dúvida Eliphas LEVI, que tem seu sistema
de magia baseado no Hermetismo e atrela o conceito de magia à força de vontade
do homem utilizada para alterar o mundo. Baseado em seus escritos acerca da
Cabala, do Hermetismo e da Alquimia, consolida-se na Inglaterra vitoriana,
rapidamente vindo a espalhar-se por todo o Ocidente, a Ordem conhecida como
Golden Dawn, que tem como um de seus membros Aleister CROWLEY.
Polêmico escritor e filósofo ocultista, CROWLEY criou seu sistema magico
e filosófico conhecido como Thelema. Tal autor definia a magia como ciência e arte
de se alterar a realidade de acordo com sua vontade44. Além da vontade, em seus
escritos podemos encontrar diversas manipulações técnicas que, mediante a crença,
poderão levar o mago a transformação da realidade, de acordo com sua vontade.
O termo vontade também aparece nos estudos antropológicos, quando
MAUSS diferencia o poder criador da vontade mágica: “sua vontade faz com que
efetue movimentos dos quais os outros são incapazes” 45.
Ao mesmo tempo em que CROWLEY delimitava a magia, dando-lhe
assim uma aparência de racionalidade formal, postulando teorias e teoremas em
suas obras, também estendeu o âmbito da magia, já que considerava todo ato
intencional um ato mágico. Podemos perceber, portanto, que a magia não é deixada
de lado com o avanço da racionalidade, senão readaptada à sua nova realidade.
Esta adaptação da magia a nosso paradigma, pretendendo-se forma de
ciência, não foi alvo de estudos dos antropólogos clássicos já que, para a grande
maioria, ainda persiste a ideia de que a magia seria uma fase pré-científica presente
em povos tidos como primitivos.
Tal pensamento é respaldado pelas análises de FRAZER, para quem a
magia estaria mais próxima da ciência do que da religião, sendo considerada “sua
46
irmã bastarda” . Ele observa através de seu paradigma evolucionista, as
necessidades de se passar por um estágio mágico imediatamente anterior ao
paradigma científico.
Considerando que as mesmas causas produzirão sempre os mesmos
efeitos, o mago convencer-se-ia de que por isso deve respeitar um método, o que na
opinião de FRAZER abre caminho à valorização do talento e dá autoridade às

44
CROWLEY, Aleister. Magick without tears (Eletronic Version). Disponível em:
<http://hermetic.com/crowley/magick-without-tears/> Acesso em: 10 out. 2013.. p. 52.
45
MAUSS, Marcel; HUBERT, Henri. Esboço de uma teoria geral da magia. p. 70.
46
MONTERO, Paula. Magia e pensamento mágico. São Paulo: Atica, 1986. p. 53.
21

habilidades humanas. Esse estudioso opta, assim, por importar padrões de


pensamento ocidentais a fim de classificar os atos e leis mágicas que encontra em
categorias, retomando noções como “contiguidade”, “similitude” e “causalidade”:

O mago que pratica estas leis crê implicitamente que elas regem o
funcionamento da natureza inanimada. Em outras palavras, tacitamente
admite que as leis de semelhança e de contato são de aplicação universal e
não se limitam às ações humanas. Em síntese, a magia é um sistema
espúrio de leis naturais, uma errônea guia de conduta, uma falsa ciência e
uma arte abortada. Considerada como sistema de leis naturais, é dizer, um
estatuto de regras que determina a sequência dos acontecimentos em todo
o mundo, podemos caracterizá-la como magia teórica. Se a consideramos,
entretanto, como uma série de preceitos que os seres humanos observam
para conseguir os objetivos, poderia chamar-se de magia prática. Mas, ao
mesmo tempo devemos ter presente que o mago primitivo só conhece a
magia em seu aspecto prático, porque nunca analisa os processos mentais
em que se baseia e nem reflete sobre os princípios abstratos que regem
suas ações. Para ele, como para a maioria dos homens, a lógica é implícita,
não explicita; ele entende como digere seus alimentos, ignorando por
completo os processos mentais e fisiológicos essenciais em uma e outra
operação. Em suma, para ele a magia sempre é uma arte, nunca uma
ciência. O verdadeiro conceito de ciência não existe em sua mente
rudimentar. Fica para o estudo da filosofia descobrir o curso do pensamento
pelo qual se embasa a prática do mago; desenrolar os poucos fios da
emaranhada madeixa, separar os princípios abstratos de suas aplicações
47
concretas. Em síntese, discernir a ciência espúria do ato bastardo.

Como podermos aduzir da leitura do trecho acima, o trabalho de análise


de FRAZER é marcado por um profundo marco teórico evolucionista. Optamos por
evidenciar o posicionamento demonstrado por MONTERO ao afirmar, referente ao
pensamento de FRAZER, que:

47
Tradução livre do original: “El mago que practica estas leyes cree implícitamente que ellas rigen el
funcionamiento de la naturaleza inanimada. En otras palabras, tácitamente admite que las leyes de
semejanza y de contacto son de aplicación universal y no se limitan a las acciones humanas. En
síntesis, la magia es un sistema espúrio de leyes naturales, una errónea guía de conducta, una falsa
ciencia y un arte abortado. Considerada como sistema de leyes naturales, es decir como un estatuto
de reglas que determinan la secuencia de los acontecimientos en todo el mundo, podemos
caracterizarla como magia teórica. Si la consideramos en cambio como una serie de preceptos que
los seres humanos observan para conseguir sus objetivos, podría llamarse magia práctica. Pero al
mismo tiempo debemos tener presente que el mago primitivo sólo conoce la magia en su aspecto
práctico, porque nunca razona los procesos mentales en los que se basa ni reflexiona sobre los
principios abstractos que rigen sus acciones. Para él, como para la mayoría de los hombres, la lógica
es implícita, no explícita; él razona como digiere sus alimentos, ignorando por completo los procesos
mentales y fisiológicos esenciales en una u otra operación. Em suma, para él la magia siempre es un
arte, nunca una ciencia. El verdadero concepto de ciência no existe en su mente rudimentaria. Queda
para el estudio de la filosofía descubrir el curso del pensamiento en el cual se basa la práctica del
mago; desenredar los pocos hilos de la embrollada madeja, separar los principios abstractos de sus
aplicaciones concretas. Em síntesis, discernir la ciencia espuria del acto bastardo”. FRAZER, James
George. La Rama Dorada – Magia y Religión. Ciudad de México, Fondo de Cultura Económica, 1996.
p. 3.
22

Entretanto, essa análise intelectualista, que retira da magia todo elemento


místico e afetivo, só poderia levá-lo a constatar os erros e incoerências
desse pensamento. Esforçando-se em descobrir na magia as origens da
ciência, encontra nas sociedades os mesmos elementos que, a priori, lhes
48
havia atribuído.

Dessa forma, ainda que em nossa civilização a magia possa ter


inicialmente se confundido e certamente contribuído para a gênese do pensamento
científico, nem todos partilham da ideia de que ela é, necessariamente, uma pré-
revolução de toda ciência. MALINOWSKI, quando deparado com essa questão,
sintetiza:

Podemos encarar o conhecimento mágico que, como vimos, é


simultaneamente empírico e racional, como uma fase rudimentar da ciência,
ou não tem nada a ver com ela? Se por ciência se entender um conjunto de
regras e conceitos, baseados na experiência e dela derivados através da
inferência lógica, personificados nas realizações materiais e numa forma
fixa de tradição e executados por uma espécie de organização social –
então, sem dúvida que mesmo as comunidades selvagens mais inferiores
49
detêm os princípios da ciência, conquanto rudimentares.

Na opinião de MALINOWSKI, o que ocorre é que o homem primitivo vê-se


obrigado a procurar a magia toda vez que seus conhecimentos e técnicas racionais
falham 50 . Poderíamos assim dizer que, tal qual o cidadão que apenas busca o
acesso ao poder jurisdicional estatal, quando tem algo que considera ser
legitimamente justo e que por motivos alheios deve ser resolvido apenas pelo Direito,
de forma semelhante, o homem primitivo recorre a forças mágicas suas ou de um
sacerdote através de técnicas em que busca alterar a realidade em seu favor.
Dessa forma, trata-se de uma forma de explorar a natureza buscando
seus benefícios ao mesmo tempo em que se pode “burlar o destino”. Restaria à
magia, assim, o controle acerca da imprevisibilidade, porém de forma que se crê
racional. Ao comparar, entretanto, o pensamento mágico diante do pensamento
científico, MALINOWSKI encontra semelhanças e reserva à magia o papel de
pseudociência.

48
MONTERO, Paula. Magia e pensamento mágico. p. 54.
49
MALINOWSKI, Bronislaw. Magia, ciência e religião. p. 10.
50
“A ciência nasce da experiência, a magia é construída através da tradição. A ciência é norteada
pela razão e corrigida pela observação; a magia, imune a ambas, vive numa atmosfera de misticismo.
A ciência está aberta a todos, é um benefício para toda comunidade, a magia é oculta, ensinada
através de misteriosas iniciações, transmitida hereditariamente ou pelo menos com grande
seletividade. Enquanto a ciência assenta na concepção de forças naturais, a magia desponta a ideia
de um determinado poder místico e impessoal, em que a maior parte dos povos crê”. MALINOWSKI,
Bronislaw. Magia, ciência e religião. p. 4.
23

Nesse sentido, ainda que concordando com FRAZER, MALINOWSKI não


relega à magia o papel de pré-ciência. Ao contrário, identifica que ambas
desenvolvem aspectos técnicos especiais voltados essencialmente à prática. Assim,
“a magia é semelhante à ciência pelo fato de ser sempre intimamente associada aos
instintos, carências e objetivos humanos, uma finalidade definida” 51.
Por fim, tal autor afirma que, quando comparada à ciência, a magia acaba
por apresentar um caráter falso:

A ciência, mesmo como representação do conhecimento primitivo do


homem selvagem, baseia-se na experiência normal e universal do dia-a-dia,
experiência conquistada pela luta do homem com a natureza para sua
subsistência e segurança, assente na observação, determinada pela razão.
A magia baseia-se na experiência específica de estados emocionais em que
o homem se observa a si próprio e não a natureza, em que a verdade é
revelada não através da razão, mas da ação das emoções sobre o
organismo humano. A ciência fundamenta-se na convicção de que a
experiência, o esforço e a razão são válidos; a magia, na crença de que a
esperança não pode falhar nem o desejo iludir. As teorias do conhecimento
são ditadas pela lógica, as da magia pela associação de ideias sob os
auspícios do desejo. Como fato empiricamente comprovado, os moldes do
conhecimento racional e os moldes do saber mágico estão por si
incorporados numa tradição diferente, num esquema social diferente e num
tipo de atividade diferente, e todas estas diferenças são perfeitamente
reconhecidas pelos selvagens. Uma constitui o domínio do profano; a outra,
rodeada de formalidades, mistérios e tabus, constitui metade do domínio do
52
sagrado.

Quanto a STRAUSS, este trabalha com o conceito de mito atuando como


bricolagem na dicotomia entre ciência e magia, e discorda da redução do conceito
de magia como um esboço de ciência, afirmando que se tratam de dois sistemas
articulados e independentes que acabam por proceder a operações mentais
distintas53.
A análise feita por DURKHEIM e MAUSS preocupa-se muito mais com o
papel que a magia exerce junto à sociedade do que com o conteúdo do pensamento
mágico. Deste modo, eles identificam em nossa sociedade estruturas sociais
representativas que funcionam de forma semelhante à magia. Concebendo que
enquanto elementos constitutivos da sociedade podem ser aproximadas de outras
formas de interação social que se caracterizam como representações simbólicas, de
forma assemelhada ao que ocorre no Direito.

51
MALINOWSKI, Bronislaw. Magia, ciência e religião. p. 31.
52
MALINOWSKI, Bronislaw. Magia, ciência e religião. p. 31.
53
MONTERO, Paula. Magia e pensamento mágico. p. 56
24

Também no Direito, ocorre a análise de que certos fenômenos jurídicos


podem ser interpretados como tendo uma natureza mágica, obviamente em se
tratando magia como fenômeno social, conforme nos demonstra ALLEN:

De acordo com os realistas, os resultados legais foram efetivamente


determinados pelas preferências individuais dos juízes e ideologia - e, na
verdade, deve ser determinada pela análise empírica e avaliativa simples.
Hierarquias de precedente, fórmulas doutrinais e regras processuais eram
todas uma espécie de "palavras mágicas de resolução," "palavras rituais," e
"mito legal", que obscureceram as verdadeiras razões para as decisões
judiciais. Embora os mais importantes escritos realistas foram produzidos há
muito tempo, eles exercem um poderoso contínuas influencia. Reclamações
sobre o raciocínio "talismã" e "palavras mágicas" continuaram a crescer..
Sem dúvida, a maioria das comparações entre lei e magia, hoje são
puramente retórica; mas no auge da comparação feita pelos realistas suas
práticas jurídicas e mágicas foram objeto de investigação séria e,
recentemente, alguns estudiosos têm novamente começado a considerar as
54
conexões entre direito, magia e ritual.

Nesse sentido é que nos propomos a analisar quais elementos


identificados como pertencentes à magia dentro da análise proposta de MAUSS
podem ser identificados no Direito. Bem como de que forma tal sistema mágico
interage com a sociedade, objetivando ao final evidenciar as aproximações
existentes entre a simbologia do Direito e a simbologia da magia como forma de
alteração do mundo de acordo com a vontade, mediante técnica legitimada
socialmente.

54
Tradução livre do original: “According to the Realists, legal outcomes were actually determined by
judges’ individual preferences and ideology - and actually should be determined by straightforward
empirical and evaluative analysis. Precedential hierarchies, doctrinal formulas, and procedural rules
were all a kind of “magic solving words," “word ritual,” and “legal myth” that obscured the real reasons
for court decisions. Although the most important Realist writings were produced a long time ago, they
exert a powerful continuing influence. Complaints about "talismanic" reasoning and "magic words"
continue to crop up. Doubtless most comparisons of law and magic today are purely rhetorical;9 but
during the Realist heyday similarities between legal and magical practices were the object of serious
investigation, and recently a few scholars have again begun to consider the connections among law,
magic and ritual”. ALLEN, Jessie. A theory of adjudication: law as magic. In: Public Law & Legal
Research Paper Series. Working Paper 07-10, jul. 2007. New York: New York University School
of Law, 2007. p. 2.
25

3. MAGIA COMO REPRESENTAÇÃO SOCIAL E O PODER SIMBÓLICO


EXERCIDO PELO DIREITO: UMA APROXIMAÇÃO POSSÍVEL

3.1) Operadores do Direito e Operadores da Magia, Representação Mítica e o


Sagrado

MAUSS compreende a magia de uma forma complexa 55, atribuindo ao


seu funcionamento, agentes, atos e representações simbólicas que, quando
manifestadas dentro de um contexto social, tornam-se mágicas. São chamadas
assim de ritos mágicos e são tidas como advindas primeiramente da tradição, tendo
em vista que se consolidam primeiramente por repetição.
Para além dessa característica, tem-se a ideia de que a magia funciona e
tem sua eficácia respaldada em uma noção de causa e efeito totalmente mecânica,
de forma que ela “resulta diretamente da coordenação dos gestos, dos instrumentos
e dos agentes físicos” 56. Assim devemos perceber que a ritualística mágica é um
dos componentes mais importantes na racionalização valorativa de sua eficácia, de
forma que respalda seu funcionamento e reproduz sua tradição. Verificamos que a
ritualística do Direito, munida de seu equiparato simbólico, também exerce
semelhante função na validação de sua eficácia.
Essa noção de sagrado ritualístico, quando trazida ao campo jurídico tem
a função de legitimar os atos do Direito. Podemos ainda observar que BOURDIEU
trata dessas repetições tradicionais quando analisa o habitus do direito, em que
identifica uma dupla função, já que por um lado sacraliza as relações jurídicas
colocando tudo que está fora dela como profano, isto é, de frente ao templo, e por
outro lado, fecha o sistema como uma justificação em si mesma.
Assim o operador jurídico, dotado de um poder simbólico que é
respaldado pela sociedade através dos rituais de passagem, é o único que pode
manifestar-se, legitimamente, acerca do tema:

55
Novamente salientamos que argumentação seguida por MAUSS é a da definição da magia em
contraposição ao sistema religioso o qual não adotaremos por motivos metodológicos, dessa forma,
separações entre rito publico x rito secreto.
56
MAUSS, Marcel; HUBERT, Henri. Esboço de uma teoria geral da magia. p. 57.
26

A lógica paradoxal de uma divisão do trabalho que se determina, fora de


qualquer concertação consciente, na concorrência regulada entre os
agentes e as instituições envolvidas no campo, constitui o verdadeiro
princípio, de um sistema de normas e de práticas que aparece como
fundamento a priori na equidade dos seus princípios, na coerência de suas
formulações e no rigor de suas aplicações, quer dizer, como participando ao
mesmo tempo da lógica positiva da ciência e da lógica normativa da moral,
portanto como podendo impor-se universalmente ao reconhecimento por
uma necessidade simultaneamente lógica e ética.
De modo diferente da hermenêutica literária ou filosófica, a prática teórica
da interpretação de textos jurídicos não tem nela própria a sua finalidade;
diretamente orientada para fins práticos, ela mantém a sua eficácia à custa
de uma restrição e sua autonomia. Assim as divergências entre os
<<intérpretes autorizados>> são necessariamente limitadas e a coexistência
de uma pluralidade de normas jurídicas cogentes está excluída por
definição da ordem jurídica. Como no texto religioso filosófico ou literário, no
texto jurídico estão em jogo lutas, pois a leitura é uma apropriação da força
simbólica que nele se encontra um potencial.
Mas por mais que os juristas possam opor-se a respeito de textos cujo
sentido nunca se impõe de maneira absolutamente imperativa, eles
permanecem inseridos num campo fortemente integrado de instâncias
hierarquizadas que estão à altura de resolver conflitos entre os interpretes e
as interpretações. E a concorrência entre os interpretes está limitada pelo
fato das decisões judiciais só poderem distinguir-se de simples atos de força
políticos na medida em que se apresentem como resultados necessários de
uma interpretação regulada de textos unanimemente reconhecidos: como a
Igreja e a Escola, a justiça se organiza segundo uma estrita hierarquia não
só as instancias judiciais e os seus poderes, portanto, as suas decisões em
que elas se apoiam, mas também a normas e as fontes que conferem a sua
57
autoridade essas decisões.

Tem-se aqui um exemplo do que se constitui simbolicamente o discurso


do agente operador do Direito inserido dentro da ideia de habitus jurídico, assumindo
a ideia de ser estruturante e estruturado. Dessa forma será determinante na visão
que virá a ser construída quando da evocação do ethos de tais agentes frente a
outros setores da sociedade. Isto é, o agente jurídico dialoga com outros grupos
sociais sempre de dentro de sua ritualística própria e ainda assim visto como uma
classe a parte.
Essa visão também é comum em relação a representatividade social
ocupada pelos mágicos: “não somente a opinião pública que trata os mágicos como
formando uma classe especial; eles próprios consideram-se como tais. Embora
sejam, como dissemos, indivíduos isolados, eles puderam, de fato, formar
verdadeiras sociedades mágicas” 58.
Tornam-se aptos socialmente a manipular o Direito e adentrar esse
habitus apenas os que gozam de legitimação social para fazê-lo. O Direito constrói

57
BOURDIEU, Pierre. Poder simbólico. p. 213.
58
MAUSS, Marcel; HUBERT, Henri. Esboço de uma teoria geral da magia. p. 80.
27

dessa forma uma simbologia própria separando os “aptos” dos que não estariam
prontos a utilizar-se de suas técnicas, limitando assim não só a atuação dos agentes
externos a ele, mas, também a interpretação dos juristas.
É de conhecimento comum, por exemplo, que os juristas se utilizam de
termos rebuscados, que são entendidos com plena significação apenas entre os
sujeitos já acostumados a seu meio, dando vazão ao uso desnecessário e excessivo
de jargões jurídicos, acompanhados de termos técnicos bem como denotando floreio
excessivo da língua e subterfúgios linguísticos desnecessários, de forma a excluir-se
assim a sociedade civil deste entendimento. Convencionou-se assim a chamar tal
“dialeto” de juridiquês59, o que também entendemos como elemento constitutivo do
habitus jurídico.
Assim, se por um lado limita-se a manipulação do Direito apenas aos que
já possuem conhecimento prévio acerca do “arcano jurídico”, de outro, atesta-se o
poder constitutivo, estruturado e estruturante, do habitus e de que forma sua eficácia
tem legitimidade na ritualística. 60
Deve-se tomar como regra geral que as práticas são sempre efetuadas
por especialistas mágicos que gozam de tal posicionamento porque dotados de
crença pública no meio em que se vive. Dessa forma, a eficácia do ato mágico utiliza
como respaldo a tradição não apenas de sua gesticulação, mas também dos
poderes simbólicos concedidos aos membros da sociedade em que participa, sendo

59
“Diagnosticada a mazela, põe-se a querela a avocar o poliglotismo. A solvência, a nosso sentir,
divorcia-se de qualquer iniciativa legiferante. Viceja na dialética meditabunda, ao inverso da almejada
simplicidade teleológica, semiótica e sintática, a rabulegência tautológica, transfigurada em
plurilingüismo ululante indecifrável. Na esteira trilhada, somam-se aberrantes neologismos
insculpidos por arremedos do insigne Guimarães Rosa, espalmados com o latinismo vituperante.
Afigura-se até mesmo ignominioso o emprego da liturgia instrumental, especialmente por ocasião
de solenidades presenciais, hipótese em que a incompreensão reina. A oitiva dos litigantes e das
vestigiais por eles arroladas acarreta intransponível óbice à efetiva saga da obtenção da verdade real.
Ad argumentandum tantum, os pleitos inaugurados pela Justiça pública, preceituando a estocástica
que as imputações e defesas se escudem de forma ininteligível, gestando obstáculo à
hermenêutica. Portanto, o hercúleo despendimento de esforços para o desaforamento do
“juridiquês” deve contemplar igualmente a magistratura, o ínclito Parquet, os doutos patronos das
partes, os corpos discentes e docentes do magistério das ciências jurídicas. Entendeu? É desafiadora
a iniciativa da AMB de alterar a cultura lingüística dominante na área do Direito e acabar com
textos em intrincado juridiquês, como o publicado acima. A Justiça deve ser compreendida em
sua atuação por todos e especialmente por seus destinatários. Compreendida, torna-se ainda
mais imprescindível à consolidação do Estado Democrático de Direito”. ASSOCIAÇÃO DOS
MAGISTRADOS BRASILEIROS. O judiciário ao alcance de todos: noções básicas de juridiquês.
2005. p. 4.
60
Neste sentido podemos perceber que os termos técnicos, indicativos da prevalência daaposta da
modernidade no mito da ciência, também serve como barreira que impede o acesso da sociedade
civil, de maneira geral, ao Direito. Fato este que motivou o lançamento da “Campanha pela
Simplificação do Juridiquês” promovida pela OAB no ano de 2005.
28

que: “o que lhes confere virtudes mágicas não é tanto seu físico individual quanto a
atitude tomada pela sociedade em relação a todo seu gênero” 61.
Podemos identificar, portanto, que há aproximação da legitimidade do
Direito na teoria weberiana com o que BOURDIEU identifica como Poder Simbólico,
porque ambos exercem sua eficácia mágica mediante crença e desta forma
legitimam o operador do Direito da mesma forma que ocorre a legitimação do agente
mágico:

O poder simbólico é um poder que aquele o qual está sujeito dá aquele que
o exerce, um credito que ele credita, uma fides uma auctoritas, que ele lhe
confia pondo nele sua confiança. É um poder que existe porque aquele que
está sujeito crê que ele existe. CREDERE, diz Benveniste, é literalmente
colocar o KRED, quer dizer, a potência mágica, num ser que se espera
62
proteção, por conseguinte, crer nele. (grifo nosso)

Assim a crença, que aqui pode ser entendida também como justificada
num mito, da mesma forma gera uma potencia mágica, que se sustenta enquanto
representação social da eficácia do Direito. Novamente BORDIEU afirma a questão
dessa eficácia mágica enquanto produto da fé social:

O homem político retira sua força política da confiança que um grupo põe
nele. Ele retira o seu poder propriamente mágico sobre o grupo da fé na
representação do próprio grupo que ele dá ao grupo que é uma
63
representação do próprio grupo e sua relação com outros grupos. (grifo
nosso)

Exceção à regra é que, quando reproduzida de forma idêntica à prescrita,


tal rito pode dispensar a especialidade de seu agente central, o mágico, desde que
esse mantenha uma relação de propriedade direta com a fórmula que está
efetuando. Isto é, desde que sua condição perante o rito o torne “parte legítima” da
ação mágica pretendida.
O agente mágico, para que seja imbuído desse poder diante da
sociedade – que aliada à tradição confere eficácia de seus atos- geralmente deve
passar por uma iniciação que envolverá os três modos de qualificação: revelação,
quando o mágico crê achar-se no contato de inteligências autônomas não
convencionais como anjos, daemons ou espíritos; por consagração quando há o

61
MAUSS, Marcel; HUBERT, Henri. Esboço de uma teoria geral da magia. p. 65.
62
BOURDIEU, Pierre. Poder simbólico. p. 188.
63
BOURDIEU, Pierre. Poder simbólico. p. 188.
29

desdobramento do mágico no contato com estes seres e assim estes o tem como
escolhido; e a mais comum: a um ritual dotado de características iniciáticas.
Trata-se nesse caso de uma representação, geralmente mítica, em que o
indivíduo é iniciado e considerado renovado. Dessa forma, geralmente exploram-se
temas como morte e ressurreição, ou concepções fantásticas como se “as entranhas
do mágico foram renovadas pelos espíritos”. Isso quer dizer que para a sociedade
cria-se um novo indivíduo que tem seus poderes confirmados pelo rito iniciático.
O mito dessa forma compreende-se intrinsecamente ligado a prática da
virtude mágica. Nas palavras de MALINOWSKI:

O mito é consequência natural da fé humana, porque cada poder deve dar


indícios da sua eficácia, deve atuar e saber–se que atua, se se pretende
que as pessoas acreditem na sua virtude. Cada crença gera a sua mitologia,
pois não existe fé sem milagres, e o principal mito relata simplesmente o
64
primeiro milagre da magia.

A questão mítica embasa o rito para MALINOWSKI, que enfatiza a


importância dos atributos ritualísticos como a fórmula para sua execução, ou mesmo
o cenário emocional.
Assim a iniciação mágica de certa forma pode ser equivalida a qualquer
outra iniciação de caráter social, pois determina uma mudança de nome e
personalidade de forma mítica. Nesse sentido, ela nos seria muito próxima do
bacharel em Direito que apenas após ser submetido a um “exame de Ordem” é que
se encontra apto a manipular as técnicas jurídicas em favor ou desfavor de seu
cliente, atestando o poder desse individuo de estabelecer contato com a técnica e
seus aliados sobrenaturais, de forma que pode ser aproximada de uma possessão
virtual. Esclarece-nos MAUSS:

A iniciação ao simplificar-se, acaba por aproximar-se da tradição pura e


simples. Mas a tradição mágica nunca foi uma coisa perfeitamente simples
e banal. Na verdade, na transmissão de uma fórmula, o professor, o noviço
os acompanhantes, se os houver, assumem uma atitude extraordinária. O
adepto é e acredita-se um eleito. O ato é geralmente solene e seu caráter
misterioso de modo nenhum prejudica sua solenidade. É acompanhado de
formas rituais, abluções, precauções diversas; condições de tempo e de
lugar são observadas; noutros casos, o que há de grave no ensinamento
mágico exprime-se pelo fato de a transmissão da receita ser precedida de
uma espécie de revelação cosmológica da qual ela parece depender. É
frequente os segredos mágicos não serem transmitidos incondicionalmente.
Mesmo o adquirente de um sortilégio não pode dispor livremente dele fora

64
MALINOWSKI, Bronislaw. Magia, ciência e religião. p. 87.
30

das cláusulas do contrato; os sortilégios indevidamente fornecidos deixam


de funcionar ou voltam-se contra quem os emprega; o folclore de todos os
países possui uma infinidade de exemplos disso. Vemos nessas crenças os
sinais de um estado de espírito que se atualiza sempre que se transmitem
conhecimentos mágicos, mesmo os mais populares. Essas condições de
transmissão, essa espécie de contrato, mostram que, embora transferido de
pessoa a pessoa, o ensinamento não deixa de implicar a entrada a uma
verdadeira sociedade fechada. A revelação, a iniciação e a tradição sob
esse ponto de vista, são equivalentes; elas marcam formalmente, cada uma
65
a seu modo, que um novo membro agrega-se à corporação dos mágicos.

3.2) Ritualística: Substrato da Eficácia Mágica e Jurídica

Definidos os praticantes, tratemos de definir as características do rito, que


é o ato mágico por excelência. Tais atos ainda que representados no folclore como
atos simples e banais mostram-se em realidade como complexos e imbuídos de
solenidade. Com efeito, considerando-se que existe uma operação central,
verificaremos o surgimento de certo número de observâncias acessórias, tais como
a condição de horário específico, conjunção astrológica ou determinado clima. Da
mesma forma, haverá predeterminação para o lugar em que o rito irá se suceder,
sendo que, geralmente supõe-se que o lugar tenha uma correlação suficiente com o
rito a ser praticado.
Assim para MALINOWSKI apresentam-se três elementos principais que
devem estar presentes para a eficácia mágica, quais sejam, efeitos e imitações de
forma simbólica conectada ao que se deseja, o uso de palavras - o que será melhor
explicado adiante com os ritos orais na teoria de MAUSS - e as alusões mitológicas,
que para MALINOWSKI traduzem a própria noção mágica.
Quanto à natureza dos ritos, MAUSS os divide em manuais e orais, sendo
os manuais executáveis porque se apresentam limitados e prescritos e não por
serem logicamente realizáveis. Assim, “essas práticas nos aparecem, não como
gestos mecanicamente eficazes, mas como atos solenes e verdadeiros ritos”. 66
Quanto aos orais, estes podem ser aproximados de encantações, que se
assemelham aos apresentados na religião tais como juramentos, votos, aspirações
preces, etc.
Através da técnica e de seu rito o Direito não apenas se utiliza de
palavras para descrever a realidade, mas é através de suas palavras que o Direito

65
MAUSS, Marcel; HUBERT, Henri. Esboço de uma teoria geral da magia. p. 79.
66
MAUSS, Marcel; HUBERT, Henri. Esboço de uma teoria geral da magia. p. 88.
31

altera a realidade, de fato prescrevendo-a, ditando-a e modelando-a através das


palavras ditas em seus rituais. Dessa forma, as metáforas e usos das palavras
quando utilizadas no contexto do ritual jurídico são realizados para produzir uma
ação e não para descrever uma. Isso é entendido como a crença de que certas
palavras quando ditas em certos momentos podem causar efeitos diversos. Na tese
de CARNEIRO PRINCE, ele expõe:

É o que John Austin, chama de performative utterances (expressões


realizativas). Segundo Karl Olivecrona, o Direito é cheio dessas expressões
realizativas. As construções verbais utilizadas em uma cerimônia de posse
de um funcionário público, ou em um testamento, ou ainda em um contrato
verbal, não são meramente comunicativas. O status jurídico da pessoa a
que se refere a expressão realizativa é alterado no momento em que ela é
pronunciada. Direitos e deveres são criados, relações jurídicas são
estabelecidas e dissolvidas. A expressão realizativa vai além da
comunicação, ela é uma ação propriamente. Mas a força realizativa dessas
expressões não está apenas nas palavras. Caso as palavras de um
casamento não sejam ditas na frente da autoridade competente e das
testemunhas necessárias, a transformação não ocorre. Uma série de
condições e contextos são necessários para a eficácia realizativa das
palavras mágicas. Se esses requisitos são cumpridos, ninguém poderá
contestar a transformação ocorrida, e essa mágica será válida até que
67
alguém, cumprindo os mesmos requisitos, pronuncie uma contra mágica.

Podemos encontrar aspecto semelhante na obra de BOURDIEU quando


ele aborda o que chama de “poder de nomeação” do Direito, já que ao Estado
compete, como único detentor da força reconhecido, distribuir legitimidade através
de suas nomeações. Isto é, a sentença produzida pelo juiz figura-se como última
visão Estatal, dotada de verdade absoluta, transcendendo as visões dos particulares,
consagrando a ordem estabelecida:

O Direito é, sem dúvida, a forma por excelência do poder simbólico de


nomeação que cria as coisas nomeadas e, em particular, os grupos; ele
confere a estas realidades surgidas das suas operações de classificação
toda a permanência, a das coisas, que uma instituição histórica é capaz de
conferir a instituições históricas. O Direito é a forma por excelência do
discurso actuante, capaz, por sua própria força, de produzir efeitos. não
demais dizer que ele faz o mundo social, mas com a condição de não
esquecer de que é feito por este. Convém, com efeito, que nos
interroguemos acerca das condições sociais - e dos limites- desta eficácia
quase mágica, sob pena de cairmos no nominalismo radical (que certas
análises de Michel Foucault sugerem) e de estabelecermos que produzimos
as categorias segundo as quais construímos o mundo social e que estas
68
categorias produzem este mundo.

67
CARNEIRO, Rafael Prince. Sacralidade e Direito. São Paulo, 2008, 44 f. Monografia – Faculdade
de Direito – Universidade de São Paulo. p. 15.
68
BOURDIEU, Pierre. Poder simbólico. p. 227.
32

Essa separação dos mundos ritualísticos com caráter formal também é


abordada por MAUSS ao tratar da encantação:

O fato de toda encantação ser uma fórmula e de todo rito manual possuir
virtualmente uma fórmula já demonstra o caráter formalista de toda magia.
Em relação às encantações, ninguém jamais pôs em dúvida que elas
fossem ritos, sendo tradicionais, formais e revestidas de uma eficácia sui
generis; jamais se concebeu que palavras produzissem fisicamente os
efeitos desejados. Em relação aos ritos manuais, o fato é menos evidente:
pois há uma correspondência mais íntima, às vezes lógica, às vezes mesmo
experimental, entre o rito e o efeito desejado; é certo que os banhos de
vapor, as fricções mágicas aliviaram realmente os enfermos. Mas, na
realidade, as duas espécies de ritos possuem claramente os mesmos
caracteres e prestam-se às mesmas observações. Ambas se passam num
69
mundo anormal.

Acerca do significado do sentido dos ritos mágicos, podemos analisá-los


quanto à sua representação, já que todo rito é uma espécie de linguagem. Eles são
diferenciados de acordo com as circunstâncias que determinam o que se pretende
mudar ou atrair. Dessa forma, MAUSS as divide em representações impessoais
abstratas, nas quais incluímos as leis de contiguidade 70 - que implica em uma
continuidade mágica71 - e a lei da similaridade72.
A representação dessa forma é reduzida a poucos símbolos já
tradicionais no meio ambiente do mágico. Isso porque o mágico “acha-se em
presença de ritos, de ideias tradicionais que ele não é tentado a renovar, porque
acredita somente na tradição e porque, fora da tradição não há nem crença nem
rito.” 73
Da mesma forma, esses elementos também são encontrados nas
análises que BOURDIEU realiza acerca das formas em que é exercido o poder
simbólico do Direito:

69
MAUSS, Marcel; HUBERT, Henri. Esboço de uma teoria geral da magia. p. 94.
70
“A forma mais simples dessa noção de contiguidade simpática nos é dada na identificação da parte
ao todo. A parte vale pela coisa inteira”. MAUSS, Marcel; HUBERT, Henri. Esboço de uma teoria
geral da magia. p. 100.
71
A ideia de continuidade mágica, que esta se realize por relação prévia do todo com a parte ou por
contato acidental, implica a ideia de contágio.
72
“Dessa lei de similaridade se conhecem duas fórmulas principais, que importa distinguir: o
semelhante evoca o semelhante, similia similibus evocantur; o semelhante age sobre o semelhante e,
especialmente, cura o semelhante, similia similibus curantur”. MAUSS, Marcel; HUBERT, Henri.
Esboço de uma teoria geral da magia. p. 50.
73
MAUSS, Marcel; HUBERT, Henri. Esboço de uma teoria geral da magia. p. 106.
33

A legitimidade, que se acha praticamente conferida ao Direito e aos agentes


jurídicos pela rotina dos usos que dela se fazem, não pode ser
compreendida nem como efeito do reconhecimento universalmente condido
pelos <justiciáveis> a uma jurisdição que, como quer a ideologia profissional
do corpo dos juristas, seria o enunciado de valores universais e eternos,
portanto, transcendentes aos interesses particulares, nem, pelo contrário,
como efeito da adesão inevitavelmente obtida por aquilo que não passaria
de um registro do estado dos costumes, das relações de força, ou, mais
74
precisamente, dos interesses dos dominantes.

Determinado o tempo, lugar e demais condições do rito é hora do mágico


escolher os materiais e instrumentos que serão utilizados para obtenção de seu
resultado. Interessante notar que tais materiais, ainda que ressignificados visando a
entrada no mundo ritualístico, já possuem valor simbólico social que em geral terá a
ver com o intuito do rito mágico. Dessa forma o valor do signo não é totalmente
desconsiderado ao entrar para o mundo do magico, pelo contrário, é alvo de uma
extra-significação.
Trabalhando com os conceitos advindos das leituras de ALLEN75 acerca
da interpretação dos componentes da Escola Realista 76 quanto ao tema Direito e
magia, podemos identificar cinco técnicas mágico-legais: performance normatizada,
formalidade elevada, a performatividade, manipulação temporal e analogia
transformadora.
Na performance normatizada observamos que muito acerca do Direito
depende das palavras escritas, elevadas ao caráter de documentos, o que podemos
identificar como um “fetiche legal” já que, a questão documental torna-se central
para o julgamento.
ALLEN exemplifica citando os atos de pessoas criminosas que não
podem simplesmente confessar seus crimes sem que se tenha uma “cerimônia
especial” para fazê-lo, envolvendo audiências públicas, pessoas habilitadas e
legitimadas e demais constitutivos processuais. Nesse sentido, interessante notar

74
BOURDIEU, Pierre. Poder simbólico. p. 240.
75
“Aided by the Realist critiques and analyses of magic and ritual in other cultural contexts, I have
identified five techniques of legal magic: (1) enacting performance, (2) heightened formality, (3)
performativity, (4) temporal play, and (5) transformative analogy”. ALLEN, Jessie. A theory of
adjudication: law as magic. p. 11.
76
Assim são definidos os Realistas por CARNEIRO: “um movimento que despontou,
concomitantemente, na alvorada do século passado, nos Estados Unidos da América e na
Escandinávia. Ambas as vertentes questionavam os aspectos mágicos do direito, usados para
mascarar o arbítrio, o poder em estado puro” (CARNEIRO, Rafael Prince. Sacralidade e Direito. São
Paulo, 2008, 44 f. Monografia – Faculdade de Direito – Universidade de São Paulo. p. 21). ALLEN
esclarece ao tratar sobre a corrente de pensamentos: “Legal realism has fundamentally altered our
conceptions of legal reasoning and of the relationship between law and society. (…) All major current
schools of thought are, in significant ways, products of legal realism”.
34

que não pode haver condenação do réu á revelia, já que ele estaria ausente de todo
esse processo.
Em relação à formalidade elevada, ALLEN esclarece:

Rituais legais e magia são ambos extraordinariamente sensíveis ao tempo e


lugar. No processo judicial importa enormemente quando e onde um
argumento é feito ou um fato revelado. Na maioria das outras decisões
importantes tomadas no âmbito privado, além da necessidade básica de se
obter informações acerca das pessoas que decidem e da necessidade
prática que escolheram, não importa muito se uma ideia é expressa em
junho em vez de janeiro, ou em um café ao invés de um oficial do governo.
No julgamento , no entanto, como na magia ,as distinções contextuais
fazem a diferença entre o sucesso ou fracasso. Existem estritas regras
processuais sobre a renúncia, exaustão, e preservação significa que, a não
ser que os advogados apresentem seus argumentos e fatos, exatamente no
tempo e local determinado pelo juiz de acordo com as normas legais , eles
serão totalmente ineficaz, independentemente do conteúdo dos assuntos
77
discutidos.

Com relação à performatividade, percebemos que esta pode ser


entendida como o tom “teatral” presente em certas falas jurídicas, sendo sensível a
fatores externos e ao habitus envolvido no sistema jurídico. Este é entendido como
estritamente contextualizado dentro do sistema do Direito, em que o tom teatral
torna-se normalizado, porque o jurista vive a defesa de sua tese.
Já a parte acerca da manipulação temporal refere-se no Direito à questão
da busca por traçar uma linhagem de poder, buscando uma fonte temporal em
comum, assim fazendo com que a questão das súmulas, por exemplo, quando
aplicadas, tornassem os juízes verdadeiros “viajantes intertemporais”. Isso também
ocorre em rituais shamânicos ou mesmo de magia brasileira, como a Umbanda,
onde se busca um respaldo “mágico” dos seres que deixaram seu legado.
Por fim, a analogia transformadora é explicada a partir da noção de que “a
diversidade da fonte de objetos contribui para a força da eventual associação. É

77
Tradução livre do original: “Legal and magic rituals are both extraordinarily sensitive to time and
place. In the judicial process it matters enormously when and where an argument is made or a fact
revealed. In most other important government or, for that matter, private decision making, beyond the
basic need to get the information to the decision makers and the practical need for a decision at some
point, it does not much matter whether an idea is expressed in June rather than January, or in a coffee
shop rather than an official government building. In adjudication, however, as in magic, such
contextual distinctions make the difference between success or failure. Strict procedural rules about
waiver, exhaustion, and preservation mean that unless lawyers present their arguments and facts at
exactly the time and place determined by the judge according to the legal rules, they will be utterly
ineffective, regardless of the substance of the matters discussed.” ALLEN, Jessie. A theory of
adjudication: law as magic. p.13.
35

como se quanto maior for a distância entre os objetos comparados entre si, mais
força adesiva sua eventual associação realiza” 78.

3.3) A Eficácia do Mágica do Direito: Mana e Magia

Sustenta-se, ainda, que a magia é objeto de crença que, aliás, não opera
de forma muito diferente da crença na verdade científica, já que a crença tanto na
magia quanto na ciência e nos paradigmas do Direito é sempre atribuída de forma a
priori. Quer dizer, a fé na magia precede a experiência.
A eficácia observada na magia deve ser atrelada ao conceito de mana
que pode ser configurado a priori como medida de uma potencialidade mágica ou
uma força mágica que, à medida que atua, tem a possibilidade de alterar a realidade,
pois nela se resume também a força do rito como um todo. É ainda uma força infinita,
mas com poder de atuação dentro dos limites de seu ritual, isto é, trazendo para
uma realidade mais convencional à nossa linguagem jurídica, poderíamos dizer que
se a mana tem potencialidade de transformação do mundo circundado ao ambiente
mágico, pode ser comparada com o poder de atuação dos operadores do Direito que,
ainda que possam causar mudanças no mundo real, ficam restritos a fazê-las a
partir do mundo do ordenamento jurídico.
Este mundo constituído pelo Direito não apenas implica, como já tratamos,
a divisão entre os iniciados e os não iniciados, mas também que no uso de
linguagem própria, vestimenta, para que se construa essa noção jurídica com a
funcionalidade de justificar aprioristicamente as decisões judiciais, assim ocorre um
verdadeiro desvio de poder, dos “judiciáveis” aos seres “comuns” enquanto
encontram-se em uma situação jurídica:

A situação judicial funciona como lugar neutro, que opera uma verdadeira
neutralização das coisas em jogo por meio da <desrealização> e da
distanciação implicadas na transformação da defrontação directa dos
interessados em diálogos entre mediadores. Os agentes especializados,
enquanto terceiros - indiferentes ao que está diretamente em jogo (o que
não quer dizer desinteressados) e preparados para apreenderem as
realidades escaldantes do presente atendo-se a textos antigos e

78
Tradução livre do original: “In both legal and magical analogies, the diversity of the source objects
contributes to the power of the eventual association. It is as though the greater the distance between
the objects likened to one another, the more adhesive force their eventual association carries.”
ALLEN, Jessie. A theory of adjudication: law as magic. p.22.
36

precedentes confirmados - introduzem, mesmo sem querer nem saber, uma


distância neutralizante a qual, no caso os magistrados pelo menos, é uma
espécie de imperativo da função que está inscrita no âmago dos habitus: as
atitudes ao mesmo tempo ascéticas e aristocráticas que são a realização
incorporada do dever de reserva são constantemente lembradas e
reforçadas pelos grupos dos pares, sempre pronto a condenar e a censurar
os que se comprometeriam de modo demasiado aberto com questões de
79
dinheiro ou de política.

Esse conceito de “lugar neutro” pode ser aproximado do que é tido como
“mana” na análise feita por STRAUSS dos escritos encontrados no Esboço de uma
teoria geral sobre a magia, na medida em que entende tal conceito como um
fundamento dos juízos a priori, atuando como força misteriosa ou potência secreta
dotada de um significado flutuante. Ainda, entende a mana como uma função
semântica “cujo papel é permitir ao pensamento simbólico exercer-se apesar da
contradição que lhe é própria” 80. Assim nos resume STRAUSS:

(...) força e ação; qualidade e estado; substantivo, adjetivo e verbo ao


mesmo tempo; abstrata e concreta; onipresente e localizada. E, de fato, o
mana é tudo isso ao mesmo tempo; mas não é assim, precisamente, porque
ele não é nada disso? Porque ele é simples forma ou, mais exatamente,
símbolo em estado puro, portanto suscetível de assumir qualquer conteúdo
simbólico? Nesse sistema de símbolos que toda cosmologia constitui, ele
seria um valor simbólico zero, isto é, um signo que marca a necessidade de
um conteúdo simbólico suplementar àquele que pesa já sobre o significado,
mas que pode ser um valor qualquer, com a condição de fazer parte ainda
da reserva disponível e de já não ser, como dizem os fonólogos, um termo
81
do grupo.

Já para MAUSS a mana não existe por si só e mescla os vários


elementos da magia em sua definição, já que “ela realiza aquela confusão do agente,
do rito e das coisas que nos pareceu fundamental em magia” 82. Ele conclui assim
em sua análise que a mana está intimamente ligada com a noção de sagrado que
também se constitui socialmente, só existindo na consciência das pessoas de forma
análoga a ideias de justiça e valor:

Diremos mais exatamente que, para empregar a linguagem abstrusa da


teologia moderna, que a magia, como a religião, é um jogo de “juízos de
valor , isto é, de aforismos sentimentais , que atribuem qualidades diversas
aos diversos objetos que entram em seu sistema . Mas esses juízos de
valor não são obra de espíritos individuais; são a expressão de sentimentos
sociais que se formaram, ora fatal e universalmente, ora fortuitamente, em

79
MAUSS, Marcel; HUBERT, Henri. Esboço de uma teoria geral da magia. p. 39.
80
MAUSS, Marcel; HUBERT, Henri. Esboço de uma teoria geral da magia. p. 43.
81
MAUSS, Marcel; HUBERT, Henri. Esboço de uma teoria geral da magia. p. 39.
82
MAUSS, Marcel; HUBERT, Henri. Esboço de uma teoria geral da magia. p. 143.
37

relação a certas coisas, escolhidas em sua maior parte de forma arbitrária ,


plantas animais, profissões e sexos, astros, meteoros, elementos,
fenômenos físicos, acidentes do solo, matérias etc. A noção de mana, como
a noção do sagrado, não é senão, em última análise, a espécie de categoria
do pensamento coletivo que funda seus juízos, que impõe uma classificação
das coisas, separando umas, unindo outras, estabelecendo linhas de
83
influência ou limites de isolamento.

Podemos perceber dessa forma o caráter social da magia enquanto


representação simbólica, advinda dos processos construídos em diálogos com o
social. Assim MAUSS afirma que toda espécie de representação mágica pode tomar
a forma de um juízo.
Dessa forma, tal qual explicitamos as constituintes valorativas da ação
racional em WEBER, identificamos que estas se fazem presentes também no juízo
mágico, já que estes são anteriores às experiências mágicas, sendo considerados
cânones de ritos e cadeias de representações de tal forma blindadas que as
experiências, ainda que frustradas, não têm o condão de invalidá-las.
Isso torna a eficácia mágica fraca em sua essência analítica podendo ser
considerada como um “sistema de induções a priori operadas sob a pressão da
necessidade por grupos de indivíduos” 84.
A eficácia do Direito foi atribuída na visão de BOURDIEU como
intrinsecamente simbólica, associada também a uma potência de alterar a realidade
de acordo com a vontade dos operadores do direito, mas já previamente
condicionada por sua gênese.
Os símbolos que se apresentam, por forma de mitos e elementos dos
rituais no Direito, são identificados por BOURDIEU como constitutivos do habitus
jurídico. Estes elementos também compõe sua técnica e são essenciais para validar
a crença de que este é legítimo. Isto é, identificamos a crença em um conjunto de
símbolos como fatores indissociáveis de sua eficácia de modo que a probabilidade
de um ato jurídico vir a funcionar está diretamente ligada à crença em sua eficácia.
Podemos desta forma, aproximar os conceitos de eficácia simbólica
conforme prescritos por BORDIEU, do conceito que é construído ao longo da
explanação acerca do que os antropólogos chamam de mana .Vejamos:

Com efeito, o conteúdo prático da lei que se revela no verecidto é o


resultado de uma leitura simbólica entre profissionais dotados de

83
MAUSS, Marcel; HUBERT, Henri. Esboço de uma teoria geral da magia. p. 155.
84
MAUSS, Marcel; HUBERT, Henri. Esboço de uma teoria geral da magia. p. 159.
38

competências técnicas e sociais desiguais, portanto, capazes de mobilizar,


embora de modo desigual, os meios ou recursos jurídicos disponíveis pela
exploração das <regras possíveis>, e de os utilizar eficazmente, quer dizer,
como armas simbólicas, para fazerem triunfar a sua causa; o feito jurídico
da regra, quer dizer, a sua significação real, determinar-se na relação de
força específica entre os profissionais, podendo-se pensar que essa relação
tende a corresponder (tudo o mais sendo igual do ponto de vista do valor da
equidade pura das causas em questão) à relação de força entre os sujeitos
à jurisdição respectiva. O trabalho de racionalização, ao fazer aceder ao
estatuto de veredicto a uma decisão judicial que deve, sem dúvida, mais a
atitudes éticas dos agentes do que às normas puras do direito, confere-lhe
eficácia simbólica exercida por toda a ação quando, ignorada no que tem de
arbitrário, é reconhecida como legítima. O princípio desta eficácia reside,
pelo menos em parte, que, salvo vigilância especial, a impressão de
necessidade sugerida pela forma tende a contaminar o conteúdo. O
formalismo racional ou racionalizante do Direito racional, que se tende a
opor, com Weber, ao formalismo mágico dos rituais e procedimentos
arcaicos de julgamento (como o juramento individual ou coletivo). participa
85
na eficácia simbólica do Direito mais racional.

O que se demonstra, portanto, é que, ainda que as justificativas para o


ato mágico possam ser encontradas quase todas como a priori, após incidir sobre
elas a noção de mana, justificam-se também a posteriori, de modo que não só o
ritual torna-se racional mas também o ato perante a sociedade racionaliza-se.
Concluímos dizendo que a mana impregna a magia de racionalismo,
sendo que só pode assim ser justificada através da representação coletiva que
demonstra. MAUSS conclui seu trabalho afirmando que:

Por mais distantes que pensemos estar da magia, ainda continuamos


presos a ela. Por exemplo, as ideias de sorte e azar, de quintessência, que
nos são ainda familiares, são muito próximas da ideia da própria magia.
Nem as técnicas, nem as ciências nem mesmo os princípios diretores de
nossa razão estão lavados de sua mancha original. Não é temerário supor
que, em boa parte, tudo o que as noções de força de causa, de fim, de
substância ainda possuem de não positivo de místico e de poético, deve-se
aos velhos hábitos mentais de que nasceu a magia, e dos quais o espírito
humano é lento em desfazer-se. Assim, pensamos encontrar na origem da
magia a forma primeira de representações coletivas que se tornaram depois
o entendimento individual. Com isso, nosso trabalho não é apenas, como
dizíamos no início, um capítulo de sociologia religiosa, mas também é uma
contribuição ao estudo das representações coletivas. A sociologia poderá
mesmo, como esperamos, encontrar aqui algum proveito, pois pensamos
ter mostrado, a propósito da magia, de que maneira um fenômeno coletivo
86
pode assumir formas individuais.

Pudemos assim, ao longo dessa breve explanação, mostrar que o Direito


enquanto compreendido como conjunto de elementos de representação coletiva,

85
BOURDIEU, Pierre. Poder simbólico. p. 225.
86
MAUSS, Marcel; HUBERT, Henri. Esboço de uma teoria geral da magia. p. 177
39

pode ter sua forma de atuação muito próxima do que se entende por magia. A
linguagem trabalhada por ambos, fortemente marcada pela questão técnica é fonte
de justificação que ocorre de forma acrítica, pois, goza de um poder simbólico que a
imbui de eficácia mágica perante a sociedade.
A causa desse poder, como pudemos analisar, é a crença, seja ela nas
instituições e no poder de previsibilidade propiciado pela burocracia administrativa
descrito por WEBER, ou a crença exercida através do poder simbólico analisado por
BORDIEU. Essa crença intimamente ligada a questões míticas também se faz
presente na explicação da atuação dos mágicos analisados por MAUSS, justificando
assim, a analise aproximativa que nos propusemos a fazer entre Direito e Magia.
40

CONCLUSÃO:

Estudou-se nessa pesquisa monográfica de que modo a ritualística do


Direito, pode ser entendida como um dos principais componentes que validam sua
eficácia e legitimidade. Essa eficácia incide de tal forma, que os autores aqui
trazidos afirmam sobe um caráter mágico na justificação do direito. A partir dessa
afirmação, ambicionou-se delimitar em termos gerais o que é entendido como magia
pelo Ocidente e de que forma esses conceitos se relacionam com a Ciência jurídica
inserida dentro do contexto do Estado Moderno.
Comparando os trabalhos elaborados por MAUSS e BORDIEU sob a ótica
da ação racional como compreendida em WEBER, pudemos traçar uma
aproximação dialógico-comparativa entre as teorias elaboradas pelos teóricos
referenciados, buscando assim demonstrar de que forma a incidência da ritualística
do Direito pode ser compreendida em um de seus efeitos, que é o da legitimidade
bem como o da eficácia. A decisão de analisar comparativamente as análises
teóricas foi ancorada pelo fato de não encontramos material específico sobre o
enfretamento do tema Direito e Magia, que não fossem as teorias realistas cujas
obras encontram-se sem tradução para o português. Este ponto, aliás, constituiu-se
como o de maior dificuldade no enfrentamento deste tema.
De início, acompanhamos a incidência do processo racionalizador em
relação a construção e ascensão da ciência no paradigma moderno, fato que a
consolidou na posição de única detentora dos processos atributivos de verdade,
tendo reflexo no mundo jurídico através da ideia de racionalização das leis.
Analisamos dessa forma, que a racionalidade legal herdada pelo Direito
Ocidental, é fruto direto de sua relação com o paradigma do Iluminismo que
consolidou-se na ideia do Estado de Direito e seus aparatos burocráticos.
Na continuidade desse processo tratamos acerca da construção da
Modernidade, explicando as escolhas racionais do indivíduo através das propostas
metodológicas de WEBER, quando se propõe a analisar e classificar os diferentes
tipos de ação.
Assim pode-se evidenciar que a validação de uma ação é advindo também
de um processo de sobrepesamento de diversos valores que influem de forma
decisiva sobre seu produto final. Nesse sentido é que observamos que, a ação
tomada pelo indivíduo antes de ser decidida através utilizando-se de elementos
41

puramente racionais, é advinda de uma série de processos que se utiliza de outras


fontes nas tratativas que levam às tomadas de suas decisões, colocando assim a
razão antes como um valor do que como um processo analítico.
Dessa forma, o aparato burocrático administrativo esvazia o Estado de seu
aspecto humano e dá a ela a certeza da verdade científica, o que dentro outros
fatores, o permitem ser o único detentor legítimo da violência física sem que haja
oposição, já que estaria apenas cumprindo as leis, as quais gozam de uma
legitimidade a priori respaldada no pensamento científico vigente. Assim para
WEBER o Estado inaugura um período de dominação legal que substitui os demais
tipos de dominação como carismática e tradicional. Esse poder legal, no entanto,
pode ser entendido como crença tanto na legitimidade do como em seu poder de
legitimação.
Tal crença imbui as decisões jurídicas de um poder de legitimidade que a
prioristicamente é interpretada como um poder mágico, pois quando esmiuçado não
age pautado inteiramente na razão, ou, de outra forma, não precisa agir de forma
pautada na razão desde que sua ritualística, proceda de forma tradicional
confirmando a ideia que o agente deposita sua crença.
É nesse sentido que se observou a proximidade entre o agente manipulador
da magia conforme descrito por MAUSS e o agente jurídico dentro da estrutura
jurídica proposta por BORDIEU, de forma que ambos apresentam a manipulação de
uma técnica que, aceita pela sociedade como forma de representação, gera efeitos
em sua realidade mediante atos de vontade.
Por fim, podemos perceber que havendo interesse pelo tema, muitas outras
leituras poderiam ser feitas quanto à ritualística do Direito funcionando de forma
análoga à magia, referente à sua eficácia. Acreditamos que essa questão ainda
deve ser melhor exposta em trabalhos futuros.
42

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