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O BATUQUE DE UMBIGADA PAULISTA NOS ESTUDOS LITERÁRIOS:

POSSIBILIDADES DE ANÁLISE SOB O ENFOQUE DOS ESTUDOS


INTERARTES E PÓS-COLONIAIS1

Lorena Faria2

Resumo: O trabalho busca delinear quais tendências críticas dos estudos literários podem
abarcar a manifestação cultural de linha bantu conhecida como Batuque de Umbigada,
presente em municípios do oeste paulista. Pelo caráter intersemiótico do Batuque, misto
simbólico de canção e dança ritualística a revelar elementos multissensoriais e palavra
cantada em performance, propomos que os Estudos Interartes contemplam uma das
possibilidades de análise da manifestação em tela. Por outro lado, ao considerar que o
Batuque é produzido e praticado sobretudo por sujeitos em condição histórica de
subalternidade, também é possível compreender essa vivência cultural a partir dos
Estudos Pós-Coloniais.

Batuque de Umbigada: poética de transgressão, resistência e (re)existência

A tradição academicista nos estudos da literatura, por meio de diferentes métodos


eurocêntricos, insiste em categorizar e definir o que vem ou não a ser considerado
literário, bem como arregimentar a formação do cânone, relegando as poéticas produzidas
pelo Outro à condição de subalternidade. Diversas manifestações artísticas que envolvam
a palavra, vindas das chamadas ‘margens’ (como as periferias, os negros e os indígenas,
por exemplo), costumam receber um olhar enviesado de quem defende uma visão
marcada pelo colonialismo e conservadorismo no tocante à literatura. No entanto,
movimentos de ruptura e resistência deslocam tais margens, reconfigurando os padrões
estabelecidos para o fazer literário e construindo cenários de transgressão e (re)existência,
mesmo com as tentativas de apagamento por parte de grupos representantes de uma
suposta ‘elite cultural’: um desses movimentos é o Batuque de Umbigada de Capivari, no
interior de São Paulo.

1
Trabalho apresentado à docente Marisa Martins Gama-Khalil como requisito parcial de avaliação da
disciplina Estudos Literários: tendências críticas, no curso de Doutorado em Estudos Literários da
Universidade Federal de Uberlândia.
2
Doutoranda do Curso de Pós-Graduação em Estudos Literários da Universidade Federal de Uberlândia –
PGLET/UFU. Docente efetiva no Instituto Federal de São Paulo – Campus Capivari. E-mail:
lorenafaria3@gmail.com.
Compreendido inicialmente como uma dança, o Batuque traz à cena outros
elementos que merecem destaque: a elaboração das canções, ou mais propriamente
‘modas’, a técnica de afinação dos instrumentos tradicionais e o próprio significado da
umbigada entre os corpos dançantes são matizes culturais simbólicas que remontam à
ancestralidade, à identidade africana, ao culto às tradições e ainda à luta contra o
preconceito racial. Dado seu caráter mais voltado às ciências sociais, uma vivência como
o Batuque pode ser interpretada como ‘objeto indócil’ ao ser inserida no campo dos
estudos literários. No entanto, se considerarmos a palavra cantada em performance
durante as apresentações do Batuque, veremos que os estudos literários têm condições de
abarcar essa manifestação: as modas compostas pela mestra popular Anecide de Toledo
– mulher negra periférica, voz feminina do Batuque – revelam crônicas do cotidiano,
crítica social, aspectos históricos e diversos temas que podem ser analisados sob enfoques
distintos na área da literatura, entre eles, os Estudos Interartes e os Estudos Pós-coloniais.

Nesse sentido, pretendo analisar no presente trabalho como as tendências críticas


mencionadas podem contemplar a poética de transgressão, resistência e (re)existência
trazida pelo Batuque de Umbigada paulista, num cenário em que tal manifestação sequer
seria considerada como literária por alguns defensores de outras tendências da área dos
estudos literários.

Estudos Interartes como possibilidade de compreensão do Batuque de Umbigada

Antes de compreendermos como a manifestação do Batuque de Umbigada pode


ser analisada sob o enfoque dos Estudos Interartes, é preciso delinear qual o escopo de
trabalho desses estudos. Tentarei fazê-lo, sem a intenção de traçar um panorama denso
ou uma análise exaustiva. Para tanto, vale retomarmos a obra Ars Poetica, de Horácio,
em que uma comparação quase incidental entre a pintura e a literatura, revelada pela
célebre expressão Ut pictura poiesis, aproxima esses dois sistemas sígnicos. Mesmo que
a Renascença tenha subvertido a expressão horaciana e assumido a poesia como termo
referencial, apontando ser a pintura imitativa desta, é certo que tal aproximação entre as
artes plásticas e a literatura fraturou uma ideia de hierarquização trazida anteriormente
por Aristóteles, bem como favoreceu uma libertação das artes plásticas do menosprezo
que sofriam na concepção platônica, segundo a qual a mimesis na arte, esteticamente,
teria como função apenas reproduzir um pastiche, cópia imperfeita do que se apresentava
no mundo das formas.
Até o Laocoon, de Lessing (1776), a crítica que estabelece semelhanças entre a
pintura e a poesia tem destaque. Solange Oliveira (1993) discute esses movimentos de
aproximação entre as artes plásticas e a literatura, apontando a crença de que os olhos
seriam os “óculos da natureza”: nessa noção, os prazeres primários da imaginação
derivam da visão, enquanto os demais prazeres têm outra origem. Devido a tal crença,
diversos autores endossaram a ideia de interação entre a poesia, a pintura e o mundo
natural como inspiração primeira – “a poesia, afirma-se, enriquece a mente com visões
que o pintor poderá representar, e o conhecimento da obra poética ajudará o homem
comum a apreciar as belezas da natureza” (OLIVEIRA, 1993, p. 15).
A autora ressalta, contudo, que todo o prestígio da tradição horaciana do Ut
pictura poiesis foi colocado em risco, haja vista o fato dessas aproximações entre pintura
e literatura começarem a se dar de maneira simplista e até mesmo aberrante, com
comparações atinentes a detalhes pífios. Dessa forma, Oliveira nos apresenta uma
proposta diferente para problematizar essas relações artísticas, calcadas sobretudo nas
ideias dos filósofos Denis Diderot, na França, e Gotthold Lessing, na Alemanha, ambos
do século XVIII. Diderot aponta a ideia da subjetividade no julgamento da arte, e
reconfigura a noção do sujeito que dialoga com o objeto artístico – a pintura, nesse caso.
Ele introduz elementos de temporalidade e dramatização na análise da obra, criando
enredos interpretativos para os quadros, o que gera um olhar dialético e peculiar à
percepção do objeto analisado. Não se trata de uma mera descrição do que se vê, mas um
convite a um “passeio” por detalhes presentes na pintura, que são pensados a partir de
vários ângulos de visão, numa verdadeira teatralização do espaço ali representado. Trata-
se de uma forma de “comunicar a emoção única do momento de percepção: o crítico cria
uma história, um enredo, a partir de um diálogo com as figuras representadas na tela”
(OLIVEIRA, 1993, p. 17).
O francês inova em sua proposta pois, ao inserir um elemento temporal à leitura
da pintura, acaba por estabelecer relações com a semiótica moderna, cuja leitura ocorre
por meio de variadas, possíveis e imprevisíveis interpretações. Lessing também caminha
nessa direção ao repensar a tradição, analisando referências mútuas entre as diferentes
artes envolvidas e se apoiar não nas suas semelhanças temáticas, mas nas diferenças
percebidas. Entender a importância de se considerar o código utilizado em cada arte, bem
como as diferentes formas de conceber e expressar o objeto artístico torna-se critério
básico no que viria a ser posteriormente o trabalho de distinção e avaliação da literatura
comparada a outras artes.
Mesmo que importantes críticos como René Wellek, já no século XX, tenham
expressado ser tarefa extrínseca ao crítico da literatura o estudo das relações entre essa e
outras artes, fato é que o processo histórico desde a Ut pictura poiesis, ao revelar
aproximações entre sistemas sígnicos distintos, nos auxilia na conceituação dos atuais
Estudos Interartes. Claus Clüver (2006), um dos principais fundadores desses estudos,
aponta que são matérias de interesse interartes as formas de relacionamentos e os tipos de
textos envolvidos num processo de diálogo, bem como possibilidades de comunicação e
representação de diferentes sistemas sígnicos, seus códigos e convenções. Considerando
as características próprias de cada sistema envolvido para estabelecer uma análise – assim
como Lessing propunha séculos antes – os Estudos Interartes contrariam qualquer ideia
de hierarquização entre as artes, bem como envolvem os contextos culturais em que a
produção e a recepção dos textos em análise se desenvolvem. É importante perceber como
a perspectiva semiótica está presente nesses estudos: o texto é compreendido como uma
estrutura complexa passível de ser lida, percepção válida para qualquer obra artística,
verbal ou não-verbal – música, filme, pintura, escultura, soneto, por exemplo. É Clüver
que nos apresenta a abrangência das possibilidades de atuação dessa tendência crítica:

O leque dos Estudos Interartes parte dos estudos de fontes, passa por
questões de periodicidade, problemas de gênero e transformações
temáticas, até alcançar todas as formas possíveis de imitação que
ocorrem através das fronteiras entre mídias (em formas e técnicas
estruturais, tendências estilísticas, e outras mais). Os Estudos Interartes
abrangem, além disso, aspectos transmidiáticos como possibilidades e
modalidades de representação, expressividade, narratividade, questões
de tempo e espaço em representação e recepção, bem como o papel da
performance e da recitação. Incluem também conceitos cunhados pela
Teoria da Literatura, como os de autor e leitor implícitos, cuja
existência também se pode comprovar, por exemplo, na Música. Um
fenômeno como o do talento múltiplo pertence aos objetos de pesquisa
específicos dos Estudos Interartes. Por outro lado, estes partilham com
outras atividades transdisciplinares o interesse, hoje em dia tão intenso,
por toda a sorte de contextos, práticas e instituições em que se deparam
diversas artes e mídias (CLÜVER, 2006, p. 16-17).

É por essa amplitude de possibilidades de relacionar textos distintos, além de se


pensar nos contextos de sua produção e recepção, que os Estudos Interartes conseguem
abarcar manifestações como o Batuque de Umbigada. Essa prática cultural de linha bantu,
trazida ao Brasil por populações negras escravizadas vindas sobretudo de Angola, sul da
África, ainda resiste em cerca de seis municípios do oeste paulista: Capivari, Piracicaba,
Tietê, Rio Claro, Barueri e São Paulo (BUENO; TRONCARELLI; DIAS, 2015). Mesmo
sendo uma manifestação afro pouco valorizada e por vezes silenciada ao longo do tempo,
as vozes dos batuqueiros ainda ecoam e as apresentações do Batuque de Umbigada são
momentos de enunciação em que os discursos produzidos reconstroem continuamente
nuances históricas, artísticas e simbólicas, numa interação de signos diversos
materializados em letras, música e dança – palavra cantada em performance.
A questão performática é bastante cara para estabelecer de forma adequada a
pertinência da relação entre o Batuque e os Estudos Interartes: durante as apresentações
dessa prática cultural, há o diálogo entre diferentes códigos numa perspectiva que Clüver
denomina de intersemiótica ou intermídia, por haver a interação de “dois ou mais
sistemas de signos e/ou mídias de uma forma tal que os aspectos visuais e/ou musicais,
verbais, cinéticos e performativos dos seus signos se tornam inseparáveis e
indissociáveis” (CLÜVER, 2006, p. 20). A audição de um CD com as modas do Batuque
pode trazer alguma noção dos sistemas sígnicos ali envolvidos, afinal, trata-se de canções.
Podemos, ainda, analisar as composições a partir do conteúdo de resistência ou da crônica
do cotidiano que elas promovem, no entanto, tais ações são incapazes de substituir o todo
performativo da vivência enunciativa do Batuque de Umbigada. Clüver ressalta a esse
respeito:
É inevitável que, falando da canção, também pensemos em formas do
discours mixte em que o cantar é combinado com a apresentação
dramática e cênica – o drame lyrique, formas operísticas (do trágico até
o cômico), o musical, o cabaré, e as muitas formas do teatro musical
encontradas em outras culturas distantes no tempo e/ou espaço da nossa.
Em todos estes tipos de apresentação cênica – como também no cinema,
no teatro não-musical, no balé e em todas as performances de dança que
se combinam com música ou usam cenografia e figurino e em muitas
formas de rituais – os vários elementos baseados em sistemas sígnicos
diferentes são fundidos, como as letras e a melodia na canção. Podemos
comprar gravações de óperas e trilhas sonoras de filmes, estudar peças
teatrais nas aulas de drama, visitar exposições de figurinos e cenografia
e assistir a ensaios de balé onde não há música – precisamos insistir
mais uma vez que todos esses textos são entidades diferentes enquanto
não fundidos na performance (CLÜVER, 1997, p. 49-50. Grifos do
autor).

O Batuque de Umbigada é justamente esse tipo de texto com caráter performativo


extremamente marcado, cujos elementos auditivos, gestuais, verbais, visuais e cinéticos
são contrários a uma percepção estática de interpretação. Tendo em vista a
impossibilidade de demonstrar a completude da riqueza performática do Batuque nesse
texto acadêmico, buscarei exemplificar de maneira bastante sucinta ao menos um dos
diálogos intermídia presentes na manifestação em tela – entre a música e a letra. O
amálgama dessa relação foi alcunhado por Steven Paul Scher de Melopoética, junção do
grego melos (canto) mais poética, sendo que Clüver (1997) faz as seguintes considerações
a respeito da copresença desses dois sistemas sígnicos: “o que vale lembrar é que o poema
na canção é um texto diferente do poema fora dela; e ainda que a partitura musical possa
ser executada sem a letra, ela também será diferente sem as palavras” (CLÜVER, 1997,
p. 49). Nessa linha, Solange Oliveira (2006) defende que sem a interação dos constituintes
desses dois sistemas não haveria música propriamente dita, mas fragmentos de discursos.
A tentativa, então, é a de eliminar as fronteiras entre a fala e o canto, fazendo interagir a
linguagem verbal e a retórica musical. Por isso, apresento a moda Desaforo, de Anecide
Toledo, seguida de sua partitura, a fim de oferecer uma noção de como essa canção se
configura.

Desaforo
Toda festa que eu vô
Eu num aguento desaforo (2x)
Ai, se for pra brigar, eu brigo
Eu mato o boi e tiro o côro (2x)

Figura 1. Partitura da moda Desaforo (BONIFÁCIO, 2016)

No Batuque de Umbigada, as modas (canções) são entoadas em ritmo constante e


característico da maioria dos sambas, acompanhadas pelo som de tambores ancestrais
imbuídos de uma série de simbologias, e apresentam letras com grande diversidade
temática: no caso em tela

- estilo do repente
- desafio – Anecide sempre ganhava – simplicidade da letra condiz com a
referência musical?

- Ceará / repente / festas populares / povos africanos envolvidos– reinvenção da


tradição – introduz parte das práticas de self e pós-colonialidade

a relevância do Batuque no passado e em dias atuais, a questão da espiritualidade,


a escravização das populações negras, o cotidiano das parcelas mais simples da sociedade
e a forma como tem se dado a educação das crianças são exemplos. Em modas como
Escravidão, comemora-se a assinatura da Lei Áurea por Princesa Isabel e a mudança da
condição da figura do negro como subalterno; há a denúncia do racismo atual em Luís
Gama e São João que me perdoe; em Nega Maluca vem à tona a temática dos
relacionamentos amorosos e em Que país é este discutem-se as ‘ilusões’ na forma como
as crianças vêm sendo educadas atualmente.

No caso dos instrumentos utilizados, destaca-se a utilização do tambu (ou


caiumba), tambor maior feito diretamente da tora de alguma madeira densa, normalmente
Angico, por meio da queima lenta e escavação manual de seu interior. A cobertura desse
tambor é feita com couro natural, e seu processo de produção configura quase um ritual
sagrado. Além disso, o tambor carrega um significado simbólico extremamente relevante
para os batuqueiros – em rituais ancestrais, o toque dos tambores promove uma
comunicação direta com deuses ancestrais.

Considerando, portanto, tal entendimento, tentaremos abordar a seguir as


interfaces artísticas e simbólicas do Batuque de Umbigada considerando que a separação
de suas facetas intersemióticas se dará apenas por razões meramente “didáticas”. Cada
elemento a ser abordado – letras, música, dança e figurino – constitui um diferente sistema
sígnico, que se combinam uns aos outros e se fundem na performance, e os Estudos
Interartes nos parecem os mais adequados para refletir acerca dessas fusões.

A tradição do Batuque de Umbigada em perspectiva pós-colonial

Ao abordar essa manifestação de matriz africana, .......................................


cabe estabelecer alguns aspectos para sua compreensão: para tanto, dialogo com
Achille Mbembe (2001), que em seu artigo As formas africanas de autoinscrição,
promove uma discussão bastante pertinente sobre processos de representação de África e
sua diversidade de signos, bem como as formas históricas utilizadas por diferentes
tendências intelectuais para conferir autoridade simbólica a elementos do imaginário
coletivo africano. Segundo o autor, duas correntes – uma nativista e outra instrumentalista
– se colocaram a falar “em nome” da África e atuaram na formulação de frágeis noções,
porém amplamente aceitas, sobre uma possível identidade africana, pautadas nas ideias
de autoconstrução ou na moderna filosofia do sujeito.

Mbembe discorre que essas correntes reduziram as percepções sobre África: de


um lado, linhas de pensamento marxistas construíram um imaginário de cultura e política
africanas a partir da retórica da autonomia, resistência e emancipação como legitimadoras
de um discurso africano autêntico, reforçando uma ideia de subalternidade dos sujeitos
africanos pautada pelo nativismo e uma dualidade ingênua da luta de classes. Além disso,
essa linha marxista acabou por reforçar o pensamento de que os africanos não fizeram
escolhas livres e autônomas, mas sim, sempre relacionadas às ações do Outro. Por outro
lado, a ênfase na “condição nativa” institui um tipo de identidade única para os africanos,
cujo pertencimento à raça negra seria por si só suficiente para sua construção. Ambas as
correntes, de acordo com Mbembe, têm em seu cerne a relação com três eventos históricos
– a escravidão, o colonialismo e o apartheid, sob os quais “o eu africano se torna alienado
de si mesmo” (MBEMBE, 2001, p. 174). Para o autor, o conjunto de significados
canônicos atribuído a tais eventos resultou na elaboração de uma forma inanimada de
identidade africana: nesse contexto, o self africano teria sido construído a partir da
objetificação do eu, que não é reconhecido pelo Outro e consequentemente não se
reconhece. Além disso, a expropriação material, a falsificação da história de África
contada pelo Outro e a ideia do não-ser formaram uma espécie de morte social e de
negação da dignidade africana. Assim, Mbembe afirma:

Em todos os três casos, supõe-se que os elementos fundamentais da


escravidão, da colonização e do apartheid são fatores que servem para
unificar o desejo africano de se conhecer a si mesmo, de reconquistar
seu destino (soberania) e de pertencer a si mesmo no mundo
(autonomia) (MBEMBE, 2001, p. 174).

Ora, para o autor, é a partir da quebra dessa visão reducionista, trazida pelas
correntes nativista e instrumentalista, que se dá a percepção de que os discursos
dominantes “inventaram” a África a partir da ficção do Outro. Aqui, Mbembe faz uma
associação com o pensamento do filósofo congolês V. Y. Mudimbe, quando este revela
serem muitas das descrições tidas como “afrocêntricas” reveladoras de uma ordem
epistemológica ocidental. Mudimbe aponta que “o Africano tornou-se não só o Outro que
é toda a gente menos eu, mas também a chave que, com as suas diferenças anormais,
define a identidade do Mesmo” (MUDIMBE, 2013, p. 28). Entendo essa invenção de
África, de caráter fetichista, como um processo de estetização que permeia as
representações sobre o continente e revela uma ordem epistemológica e discursiva
vigente, pautada numa analogia feita a partir do homem branco. Como defende a
perspectiva mbembiana, essa ordem perversa está a demonstrar uma África unificada
racialmente, sempre defensora do caráter específico de seus costumes e tradições, a fim
de justificar e afirmar a humanidade de seu povo, negada pela colonização; uma África
que apela por narrar sua própria história, como se ela fosse única, numa declaração de
alteridade, cuja identificação cultural especificamente e genuinamente africana
encontraria no espaço geográfico seu esteio mais firme. Mbembe chama de mitologia
pan-africanista essa ideia de uma “identidade territorializada e uma geografia
racializada”, a estabelecer o privilégio de uma autoctonia exclusivamente negra para o
povo africano, na qual uma africanidade não-negra seria impensável: “mais
fundamentalmente, por trás do sonho da emancipação política e da retórica da autonomia,
uma perversa operação foi estabelecida, cujo resultado apenas fortaleceu o ressentimento
africano e sua neurose de vitimização” (MBEMBE, 2001, p. 186).
Toda a discussão em voga aponta a necessidade de fraturar essa suposta identidade
una africana, sempre associada aos eventos históricos da escravização, da colonização e
do apartheid, visto que, no contexto da diáspora, as múltiplas ancestralidades africanas
pulverizaram-se pelos mais diversos territórios e se mesclaram a outras perspectivas
culturais: não existe somente uma identidade cultural africana e ela não precisa ser
necessariamente negra, pois as práticas sociais dessas múltiplas identidades mostram
realidades diversas sendo estabelecidas, num universo de significantes abertos
(MBEMBE, 2001). É assim que Mbembe propõe possibilidades de revisão metodológica
para se pensar tais significantes na compreensão filosófica, antropológica e sociológica
de África, revelando o mito da unidade racial africana e a necessidade de se pensar numa
territorialidade esfacelada, dentro de uma cartografia não-linear das representações das
práticas africanas, para além de uma ideia essencialista ou de processo sacrificial. À guisa
de uma conclusão, o autor expõe:
A identidade africana não existe como substância. Ela é constituída, de
variantes formas, através de uma série de práticas, notavelmente as
práticas do self. Tampouco as formas desta identidade e seus idiomas
são sempre idênticos. E tais formas e idiomas são móveis, reversíveis,
e instáveis. Isto poso, elas não podem ser reduzidas a uma ordem
puramente biológica baseada no sangue, na raça ou na geografia. Nem
podem se reduzir à tradição, na medida em que o significado desta
última está constantemente mudando. [...] Não é mais suficiente afirmar
que apenas um eu africano dotado de uma capacidade narrativa de
síntese, ou seja, capaz de gerar tantas histórias quantas forem possíveis,
pode afirmar a discrepância e multiplicidade de normas e regras
interligadas características de nossa época. Talvez um passo além deste
círculo seja reconceitualizar a própria noção de tempo em relação com
a memória e a subjetividade. Já que o tempo em que vivemos é
fundamentalmente fraturado, o próprio projeto de um resgate
essencialista ou sacrificial do eu está, por definição, fadado ao fracasso.
Apenas as diversas (e muitas vezes interconectadas) práticas através das
quais os africanos estilizam sua conduta podem dar conta da densidade
da qual o presente africano é feito (MBEMBE, 2001, p. 199).

Outro pensador pós-colonial que aponta uma desestabilização da temporalidade


social imposta pela lógica colonialista é Homi Bhabha (2013). Assim como Mbembe, ao
propor a ideia de “reconceitualizar a própria noção de tempo”, Bhabha sugere repensar
conteúdos e símbolos culturais fora da moldura temporal da representação, levando-nos
à consciência de que a cultura é (re)construída na prática enunciativa e a tradição é uma
invenção. Fazendo uma crítica à institucionalização de discursos atribuídos às minorias
de maneira globalizante e essencialista, a construírem equivocamente uma representação
histórica e de discriminação comum entre negros, mulheres, homossexuais e migrantes,
o crítico indo-britânico demonstra como os signos mobilizados por esses grupos diferem
e mobilizam distintas subjetividades sociais quando pensamos em suas práticas, propondo
o deslizamento do sujeito da cultura de uma função epistemológica a uma prática
enunciativa, enquanto processo dialógico que abre novas possibilidades de inserção e
significação cultural por permitir outros “tempos” e espaços narrativos (BHABHA,
2013). Para Bhabha, essa revisão da temporalidade social promove a reinscrição histórica
dos grupos subalternizados: “minha intenção ao especificar o presente enunciativo na
articulação da cultura é estabelecer um processo pelo qual outros objetificados possam
ser transformados em sujeitos de sua história e sua experiência” (BHABHA, 2013, p.
285). Como Djamila Ribeiro abordou ao discutir a questão do lugar de fala, temos no
presente ou na possibilidade enunciativa uma abertura à diversificação da construção de
saberes, dando voz a novos sujeitos: brota, assim, a noção de diversidade, numa revisão
histórica que vai além da simples inserção do Outro em seu curso. Nesse sentido:

Os termos do embate cultural, seja através de antagonismo ou afiliação,


são produzidos performativamente. A representação da diferença não
deve ser lida apressadamente como o reflexo de traços culturais ou
étnicos pré-estabelecidos, inscritos na lápide fixa da tradição. A
articulação social da diferença, da perspectiva da minoria, é uma
negociação complexa, em andamento, que procura conferir autoridade
aos hibridismos que emergem em momentos de transformação
histórica. O “direito” de se expressar a partir da periferia do poder e do
privilégio autorizados não depende da persistência da tradição; ele é
alimentado pelo poder da tradição de se reinscrever através das
condições de contingência e contraditoriedade que presidem sobre as
vidas dos que estão “na minoria”. O reconhecimento que a tradição
outorga é uma forma parcial de identificação. Ao reencenar o passado,
este introduz outras temporalidades culturais incomensuráveis na
invenção da tradição. Esse processo afasta qualquer acesso imediato a
uma identidade original ou a uma tradição “recebida” (BHABHA,
2013, p. 21).

E aqui posso delinear a segunda proposta interpretativa para a compreensão do


Batuque de Umbigada, dentro da tendência crítica pós-colonial, como um exemplo
pungente das práticas de self a que a teoria mbembiana se refere, ou como a representação
desse lugar fronteiriço apontado por Bhabha, cujo devir ou os agenciamentos se dão no
momento enunciativo, para além de uma ideia de temporalidade e epistemologia
coloniais: no universo performativo e intersemiótico do Batuque diversos elementos
sígnicos dialogam, diferentes memórias africanas estão em atuação e se reinscrevem no
curso da história, remodelando a tradição. Apesar de se tratar de uma manifestação de
caráter típico, a evocar ancestralidades africanas, o Batuque se coloca a realizar uma
crônica do cotidiano que, por sua vez, está sempre aberto a brechas e se configura como
importante fonte de agenciamento. Assim, se pensarmos na contextualidade discursiva
em que se insere o Batuque de Umbigada, estaremos diante de um lugar enunciatório
dinâmico, cujo sentido dos signos se desloca em nuances simbólicas, não limitadas a
retomar os eventos históricos da escravidão, do colonialismo e do apartheid, mas capaz
de reinscrever a memória dos batuqueiros e batuqueiras e projetá-las a um futuro.

Considerações finais
No espaço performativo de significantes abertos, é interessante observar como
essa noção de um tempo fraturado e as diferentes configurações do espaço geográfico e
da sociedade reconfiguram também nuances da tradição, constantemente reinventada.
Uma possibilidade de se discutir o que Bhabha denomina de “outras temporalidades
culturais incomensuráveis na invenção da tradição” (BHABHA, 2013, p. 21),
introduzidas pela reencenação do passado, é relacionar a prática do Batuque de Umbigada
às questões de gênero. Para tanto, vale conhecer alguns aspectos simbólicos dessa prática
e como eles se ligam a tais questões.

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