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Artigo O Batuque de Umbigada Nos Estudos Literários
Artigo O Batuque de Umbigada Nos Estudos Literários
Lorena Faria2
Resumo: O trabalho busca delinear quais tendências críticas dos estudos literários podem
abarcar a manifestação cultural de linha bantu conhecida como Batuque de Umbigada,
presente em municípios do oeste paulista. Pelo caráter intersemiótico do Batuque, misto
simbólico de canção e dança ritualística a revelar elementos multissensoriais e palavra
cantada em performance, propomos que os Estudos Interartes contemplam uma das
possibilidades de análise da manifestação em tela. Por outro lado, ao considerar que o
Batuque é produzido e praticado sobretudo por sujeitos em condição histórica de
subalternidade, também é possível compreender essa vivência cultural a partir dos
Estudos Pós-Coloniais.
1
Trabalho apresentado à docente Marisa Martins Gama-Khalil como requisito parcial de avaliação da
disciplina Estudos Literários: tendências críticas, no curso de Doutorado em Estudos Literários da
Universidade Federal de Uberlândia.
2
Doutoranda do Curso de Pós-Graduação em Estudos Literários da Universidade Federal de Uberlândia –
PGLET/UFU. Docente efetiva no Instituto Federal de São Paulo – Campus Capivari. E-mail:
lorenafaria3@gmail.com.
Compreendido inicialmente como uma dança, o Batuque traz à cena outros
elementos que merecem destaque: a elaboração das canções, ou mais propriamente
‘modas’, a técnica de afinação dos instrumentos tradicionais e o próprio significado da
umbigada entre os corpos dançantes são matizes culturais simbólicas que remontam à
ancestralidade, à identidade africana, ao culto às tradições e ainda à luta contra o
preconceito racial. Dado seu caráter mais voltado às ciências sociais, uma vivência como
o Batuque pode ser interpretada como ‘objeto indócil’ ao ser inserida no campo dos
estudos literários. No entanto, se considerarmos a palavra cantada em performance
durante as apresentações do Batuque, veremos que os estudos literários têm condições de
abarcar essa manifestação: as modas compostas pela mestra popular Anecide de Toledo
– mulher negra periférica, voz feminina do Batuque – revelam crônicas do cotidiano,
crítica social, aspectos históricos e diversos temas que podem ser analisados sob enfoques
distintos na área da literatura, entre eles, os Estudos Interartes e os Estudos Pós-coloniais.
O leque dos Estudos Interartes parte dos estudos de fontes, passa por
questões de periodicidade, problemas de gênero e transformações
temáticas, até alcançar todas as formas possíveis de imitação que
ocorrem através das fronteiras entre mídias (em formas e técnicas
estruturais, tendências estilísticas, e outras mais). Os Estudos Interartes
abrangem, além disso, aspectos transmidiáticos como possibilidades e
modalidades de representação, expressividade, narratividade, questões
de tempo e espaço em representação e recepção, bem como o papel da
performance e da recitação. Incluem também conceitos cunhados pela
Teoria da Literatura, como os de autor e leitor implícitos, cuja
existência também se pode comprovar, por exemplo, na Música. Um
fenômeno como o do talento múltiplo pertence aos objetos de pesquisa
específicos dos Estudos Interartes. Por outro lado, estes partilham com
outras atividades transdisciplinares o interesse, hoje em dia tão intenso,
por toda a sorte de contextos, práticas e instituições em que se deparam
diversas artes e mídias (CLÜVER, 2006, p. 16-17).
Desaforo
Toda festa que eu vô
Eu num aguento desaforo (2x)
Ai, se for pra brigar, eu brigo
Eu mato o boi e tiro o côro (2x)
- estilo do repente
- desafio – Anecide sempre ganhava – simplicidade da letra condiz com a
referência musical?
Ora, para o autor, é a partir da quebra dessa visão reducionista, trazida pelas
correntes nativista e instrumentalista, que se dá a percepção de que os discursos
dominantes “inventaram” a África a partir da ficção do Outro. Aqui, Mbembe faz uma
associação com o pensamento do filósofo congolês V. Y. Mudimbe, quando este revela
serem muitas das descrições tidas como “afrocêntricas” reveladoras de uma ordem
epistemológica ocidental. Mudimbe aponta que “o Africano tornou-se não só o Outro que
é toda a gente menos eu, mas também a chave que, com as suas diferenças anormais,
define a identidade do Mesmo” (MUDIMBE, 2013, p. 28). Entendo essa invenção de
África, de caráter fetichista, como um processo de estetização que permeia as
representações sobre o continente e revela uma ordem epistemológica e discursiva
vigente, pautada numa analogia feita a partir do homem branco. Como defende a
perspectiva mbembiana, essa ordem perversa está a demonstrar uma África unificada
racialmente, sempre defensora do caráter específico de seus costumes e tradições, a fim
de justificar e afirmar a humanidade de seu povo, negada pela colonização; uma África
que apela por narrar sua própria história, como se ela fosse única, numa declaração de
alteridade, cuja identificação cultural especificamente e genuinamente africana
encontraria no espaço geográfico seu esteio mais firme. Mbembe chama de mitologia
pan-africanista essa ideia de uma “identidade territorializada e uma geografia
racializada”, a estabelecer o privilégio de uma autoctonia exclusivamente negra para o
povo africano, na qual uma africanidade não-negra seria impensável: “mais
fundamentalmente, por trás do sonho da emancipação política e da retórica da autonomia,
uma perversa operação foi estabelecida, cujo resultado apenas fortaleceu o ressentimento
africano e sua neurose de vitimização” (MBEMBE, 2001, p. 186).
Toda a discussão em voga aponta a necessidade de fraturar essa suposta identidade
una africana, sempre associada aos eventos históricos da escravização, da colonização e
do apartheid, visto que, no contexto da diáspora, as múltiplas ancestralidades africanas
pulverizaram-se pelos mais diversos territórios e se mesclaram a outras perspectivas
culturais: não existe somente uma identidade cultural africana e ela não precisa ser
necessariamente negra, pois as práticas sociais dessas múltiplas identidades mostram
realidades diversas sendo estabelecidas, num universo de significantes abertos
(MBEMBE, 2001). É assim que Mbembe propõe possibilidades de revisão metodológica
para se pensar tais significantes na compreensão filosófica, antropológica e sociológica
de África, revelando o mito da unidade racial africana e a necessidade de se pensar numa
territorialidade esfacelada, dentro de uma cartografia não-linear das representações das
práticas africanas, para além de uma ideia essencialista ou de processo sacrificial. À guisa
de uma conclusão, o autor expõe:
A identidade africana não existe como substância. Ela é constituída, de
variantes formas, através de uma série de práticas, notavelmente as
práticas do self. Tampouco as formas desta identidade e seus idiomas
são sempre idênticos. E tais formas e idiomas são móveis, reversíveis,
e instáveis. Isto poso, elas não podem ser reduzidas a uma ordem
puramente biológica baseada no sangue, na raça ou na geografia. Nem
podem se reduzir à tradição, na medida em que o significado desta
última está constantemente mudando. [...] Não é mais suficiente afirmar
que apenas um eu africano dotado de uma capacidade narrativa de
síntese, ou seja, capaz de gerar tantas histórias quantas forem possíveis,
pode afirmar a discrepância e multiplicidade de normas e regras
interligadas características de nossa época. Talvez um passo além deste
círculo seja reconceitualizar a própria noção de tempo em relação com
a memória e a subjetividade. Já que o tempo em que vivemos é
fundamentalmente fraturado, o próprio projeto de um resgate
essencialista ou sacrificial do eu está, por definição, fadado ao fracasso.
Apenas as diversas (e muitas vezes interconectadas) práticas através das
quais os africanos estilizam sua conduta podem dar conta da densidade
da qual o presente africano é feito (MBEMBE, 2001, p. 199).
Considerações finais
No espaço performativo de significantes abertos, é interessante observar como
essa noção de um tempo fraturado e as diferentes configurações do espaço geográfico e
da sociedade reconfiguram também nuances da tradição, constantemente reinventada.
Uma possibilidade de se discutir o que Bhabha denomina de “outras temporalidades
culturais incomensuráveis na invenção da tradição” (BHABHA, 2013, p. 21),
introduzidas pela reencenação do passado, é relacionar a prática do Batuque de Umbigada
às questões de gênero. Para tanto, vale conhecer alguns aspectos simbólicos dessa prática
e como eles se ligam a tais questões.