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10/ 08 / 2019

COMPLEMENTO
ESPÍRITUAL
COMPLEMENTO PARA O ESTUDO DE HERMENÊUTICA

Necessidade da hermenêutica

Necessidade da
hermenêutica
JOSE M MARTÍNEZ

Na base de nossa relação com o mundo e,


espacialmente, com nossos semelhantes, há
sempre uma ação mais ou menos consciente de
interpretação. O uso que fazemos das palavras
para expressar nossa observação do que nos
rodeia, nossos sentimentos ou nossas
experiências já é um modo de interpretar essas Estudo adequado do texto bíblico
realidades. E a atividade mental por parte de
quem nos escuta – ou lê -, encaminhada a
determinar o significado do que dizemos, é
também um processo interpretativo.
Frequentemente o que se expressa mediante a
Hermenêutica e nossa
linguagem é tão simples, frequente ou conhecido
que a interpretação se leva a cabo sem
dificuldade e sem apenas nos darmos conta da
necessidade do exercício dela
mesma. Isto é assim especialmente quando a
pessoa que fala e a que ouve vivem em situações
análogas, quando seu mundo cultural, social e 1984 PELO AUTOR Há quem opine que a direção do Espírito Santo
linguístico é o mesmo. Uma dissertação sobre JOSÉ M. M. ARTÍNEZ é suficiente para, mas esta opinião pesa a sua
anatomia será bem seguida e compreendida por aparente profundidade espiritual, carece
um médico, e uma conferência sobre questões O trabalho hermenêutico é indispensável no estudo de igualmente de base sólida. É verdade que, como
ontológicas será captada sem dificuldade por um muitos textos. Os especialistas em literatura antiga hão ensinou Lutero, a Escritura possua uma clareza
filósofo. Mas a medida em que aumentam as escrito volumes que podiam encher uma grande subjetiva produzida pelo Espírito Santo e que,
distâncias entre o que fala e o que ouve, se torna biblioteca de glossários, comentários e notas em frases de Karl Barth, “a palavra da Escritura
explicativas das obras chegadas ao mundo pelos dada pelo Espírito, só pode ser reconhecida
mais patente a necessidade de esclarecer
clássicos gregos e romanos. Também é abundante a
conceitos e termos, de explicar, de ilustrar, em como palavra de Deus pela obra do Espírito” e
produção exegética relativa aos livros sagrados
uma palavra: de interpretar. Pensemos, por chineses, egípcios e persas. E em todos os casos o que “não podemos entender a Palavra de
exemplo, nas dificuldades de um camponês para trabalho dos eruditos têm encontrado grandes Deus...senão como ato de Deus”, todo o qual
entender um discurso sobre arte barroca, ou de dificuldades para decifrar, traduzir ou interpretar os está em consonância com o que Paulo ensina em
um mineiro (pessoa que trabalha numa mina) que textos que tinhas diante deles. São muitos os 1Co. 2:6-16 e 2Co. 3:14-18. Mas devemos nos
não tenha noções de música para tirar proveito obstáculos que se apresentam quando se quer perguntar se o Espírito Santo atua normalmente
de uma explicação relativa à estrutura de uma interpretar acertadamente o que foi escrito há milhares com completa independência dos processos
sinfonia. Dificuldades semelhantes surgem de anos no seio de um povo com ideias, costumes, e ordinários do entendimento humano, em uma
quando se lê um livro cujo autor pertence a um línguas muito diferentes das nossas. Em alguns operação de Deus ex machina, quase mágica ou
país, a uma cultura, a um tipo de sociedade e a aspectos importantes, o mundo e os tempos antigos se leva a cabo sua ação incorporando a ela as
diferiam notavelmente do nosso mundo e do nosso faculdades mentais do homem. Paulo, que tão
um momento histórico distante, ou quando as
tempo. E, como aponta Anton Vogtle, “a conclusão
formas de linguagem literária não coincidem profundamente dependia do Espírito de Deus,
salta à vista. Quanto mais tenhamos perdido o que
com a linguagem cotidiana. havia de comum nos horizontes, de representação, de não renunciou jamais o uso de sua enorme
linguagem com esse distante e complexo mundo, no capacidade teológica. Pelo contrário, esta
qual se chocam e mesclam as concepções mais aparece em seu ministério, sobretudo em suas
distintas, tanto maior se torna a tensão hermenêutica cartas, como um dos meios mais valiosos
entre os polos, entre os textos que hão de ser usados pelo Espírito Santo para realizar sua
interpretados, por uma parte, e eu mesmo, o intérprete obra iluminadora na igreja. Por outra parte, a

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que pregunta e entende por outra parte”. No caso da história da igreja e a experiência diária
bíblia, as dificuldades se multiplicam por causa de sua testificam que uma pretendida dependência do
complexidade. Não é a obra de um homem em um Espírito divorciada do estudo sério e diligente
momento histórico determinado, senão um conjunto na interpretação da Escritura é frequentemente
de livros escritos ao longo de mais de um milênio. causa de extravagancias religiosas ou de
Coalhado de grandes mudanças culturais, políticas,
heresias. A obra do Espírito Santo é
sociais e religiosas. Se a isto se adiciona a diversidade
de seus autores, estilos, e gêneros literários, se indispensável para a compreensão da Palavra de
compreenderá o imperioso de um trabalho esmerado Deus; mas não é, em gral, uma obra que nos
quando se trata de interpretar as Escrituras hebreu- dispense da saudável tarefa da hermenêutica. É
cristãs. As vezes a hermenêutica bíblica é olhada com guia, não atalho, para levar-nos ao
Dependência do Espírito Santo em nosso estudo
diário. receio e até com menosprezo. Deturpando o princípio conhecimento da verdade de Deus. Tal razão,
da perspicácia da Escritura defendido pelos contar com o Espírito seriamente não exclui a
A interpretação como risco reformadores do século XVI, particularmente por necessidade do estudo encaminhado a
Evidentemente, o exposto sobre a necessidade da Lutero, acredita-se que o essencial da bíblia é desentranhar o mais exaustiva e fielmente
hermenêutica nos situa diante de um problema. Por suficientemente claro e não precisa de minuciosos possível o significado dos textos sagrados. E se
um lado, é óbvio que não podemos prescindir dela. estudos exegéticos. Mas tal crença é insustentável. É alguém insistisse em suas objeções contra a
Por outro, existem possibilidades de que a certo que algumas passagens da Escritura são muito
hermenêutica apoiando-se em mensagens como
interpretação seja incorreta e até mesmo nociva, que claras. Espacialmente aquelas que se referem ao plano
de Deus para a salvação do homem e para sua as de 1Jo. 2:20, 27 “Vós tende a unção do Santo
ao invés de esclarecer, gere confusão. A tarefa
interpretativa se nos apresenta como espada de dois orientação moral. Mas ainda nestes casos, os textos só e conheceis todas as coisas... A unção que
gumes. A brecha existente entre judeus e cristãos foi são compreendidos na plenitude de seu significado recebestes dele permanece em vós e não tens
aberta pelo diferente modo de interpretar o Antigo quando analisados conscientemente. Não há em toda a necessidade de que ninguém vos ensine”,
Testamento. As diferenças confessionais dentro do bíblia um versículo mais fácil de entender que João evidenciaria sua ignorância ou esquecimento de
próprio cristianismo são basicamente diferenças de 3:16. Resulta compreensível ainda para a mente mais outras passagens nas quais se põe manifesto
interpretação. O que separa a protestantes de simples. Entretanto, o incomparável de sua riqueza que a clara compreensão de um ensinamento
católicos é, em síntese, uma disparidade exegética em espiritual só se aprecia efetivamente quando se bíblico nem sempre se obtém e maneira direta e
torno do texto de Mateus 16:18 (e tu és Pedro, e sobre aprofunda nos conceitos bíblicos expressados pelos imediata, mas que frequentemente se faz
esta pedra edificarei a minha igreja... e a ti te darei as termos “amor”, “Filho unigênito”, “crer”, “perdição”, necessária a mediação do intérprete.
chaves do reino dos céus»). No seio do e “vida eterna”. Se até os textos claros devem ser
Lembremos do exemplo já mencionado da lei
protestantismo, as diferentes «denominações» — objeto de cuidadosa análise exegética, que diremos
lida ao povo e explicada por Esdras. Algumas
elementos históricos a parte — apoiam as dos escuros, dos que apesentam expressões ambíguas,
características que as distinguem o que cada uma equívocas ou em aparente contradição com outras das parábolas referidas por Jesus não foram
considera ser o ensinamento da Escritura. Existe uma passagens da Escritura? Que significado atribuiremos suficientemente claras para os discípulos e o
resposta válida para questão do risco da a linguagem figurada, aos tipos e alegorias, aos salmos Senhor mesmo teve que interpretá-las. O
interpretação? A igreja católica resolveu imprecatórios, aos enigmas proféticos, as descrições Eunuco etíope lia uma porção do profeta Isaías,
tradicionalmente o problema mediante a autoridade apocalípticas? mas só compreendeu seu sentido depois da
de seu magistério, pelo qual se decide a interpretação explicação de Felipe. O apóstolo Pedro
verdadeira, infalível, da Escritura. Nas últimas referindo-se a alguns escritos de Paulo, afirma
décadas, especialmente a partir de 11 Concílio que são “difíceis de entender’ e que os indoutos
Vaticano, esta postura tem sido matizada. Uma maior e inconstantes os torcem, assim como às demais
liberdade para a investigação bíblica permite aos Escrituras, para sua própria perdição” (2Pe.
escritores católicos saírem dos rígidos moldes
3:15-16).
dogmáticos de sua igreja e chegar a interpretações
idênticas ou similares em alguns poucos pontos, às de
exegetas protestantes. Porém, oficialmente, a posição
do catolicismo não mudou. Somente o magistério da
igreja tem a palavra final na determinação do
significado de qualquer texto bíblico. Contra essa
pretensão, os reformadores do século XVI
levantaram suas vozes. Na interpretação da Escritura,
a autoridade final — asseveravam — não é a igreja,
mas a própria Escritura. Scriptura sacra Sui ipsius
interpres (a Escritura sagrada é intérprete de si
mesma). Assim, se dava a entender que nenhuma
passagem bíblica deve estar submetida à servidão da
tradição, ou ser interpretada isoladamente de modo
que contradiga o ensinado pelo conjunto da Escritura.

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INTERPRETAÇÃO O INTÉRPRETE

Interpretação na comunidade da Os requisitos do


intérprete
fé. Os livros da bíblia têm muito em comum com outros
textos literários, mas também possuem características
próprias que os distinguem como especiais. Especial é,
sobretudo, o feito que examinaremos mais amplamente
no capítulo seguinte de que seus autores aparecem como
instrumentos da revelação de Deus. Através deles e de
seus escritos, Deus fala aos homens. Por tal motivo, a
A responsabilidade individual da interpretação interpretação de tais escritos, exigem revelação, que
da Escritura não significa repúdio das pratica requisitos peculiares indispensáveis.
conclusões exegéticas e das formulações Assim, por um lado, consideraremos os
doutrinárias elaboradas na Igreja cristã no requisitos que poderíamos chamar gerais, e por
decorrer do tempo. Algumas delas têm sido outro lado, os especiais, os próprios de um
mantidas quase unanimemente como expressão estudo que levam o intérprete a escutar a voz
das verdades bíblicas fundamentais e como de Deus.
salvaguarda contra a heresia. Outras tem
surgido como correção de erros que se haviam
introduzido na igreja ou como resultado de Requisitos gerais
a) Objetividade. É óbvio que no trabalho do
situações novas que tem aberto novas A tarefa do Intérprete exegeta influem uma multidão de fatores.
perspectivas hermenêuticas. As vezes as
Consciente ou inconscientemente, o
diversas tradições têm se chocado entre si; mas
intérprete atua sob a ação de
ainda nestes casos, o enfrentamento tem sido
condicionantes filosóficos, históricos,
saudável, pois tem motivado um
psicológicos e inclusive religiosos, os
aprofundamento na Escritura, em cujos textos
quais, inevitavelmente, colorem a
se hão achado significados mais precisos e
interpretação. Isto acontece não só na
mais corretos. Reconhecer que a Bíblia estará
interpretação de um texto, mas também na
sempre acima de toda intepretação humana não
de feitos históricos ou de formas de
nos obriga a desprezar a ajuda que para sua
pensamento. Como indica Bemard Ramm,
compreensão podemos encontrar nos escritos
“a disposição subjetiva de um erudito pesa
dos pais da Igreja, dos reformadores e dos
esmagadoramente sobre ele em sua
incontáveis teólogos e expositores que, em
exegese. Os comunistas não sentem
contextos históricos diferentes e desde muito
nenhuma simpatia pelo existencialismo,
variados ângulos, fizeram da Bíblia objeto de
pois o interpretam como a agonia de um
estudo sério. A análise de suas obras, assim
capitalismo decadente. A preocupação de
como das circunstâncias especiais em que as
Marxpor, o economista que fez reformular
escreveram, terá um valor incalculável para
Dimensões da Interpretação a filosofia de Hegel convertendo-a em uma
contrastar as diversas interpretações. Ela nos
perversão de Hegel. Os positivistas lógicos
permitirá ver o que temos devemos reter, o que Dimensões da intepretação bíblica. Como da velha escola mostravam só desdenho
devemos rejeitar e o que convém modificar. De já fizemos notar, não é finalidade única da com relação a metafísica, a poesia, e a
fato, com exceção dos fundadores de seitas,
hermenêutica bíblica orientar-nos para religião. Não existe o intelectual
poucos expositores cristãos tem tentando ser
captar o significado original de um texto. completamente livre de prejuízos e
totalmente originais ignorando o acervo
exegético formado ao longo dos séculos. Nos Isto pode ser suficiente quando liberado de toda disposição emocional ou
interpretamos outras produções literárias. culturalmente arraigada que possa
parece objetiva a asseveração Paul Althaus:
Mas se aceitamos a Bíblia como veículo de influenciar essencialmente em suas
“Não pode haver nenhum contato tão direto
verdades transcendentais, a missão do interpretações”. A partir de Bultmann, a
com a Escritura que possa prescindir e passar
exegeta não se leva a cabo plenamente questão de uma exegese livre de
direto ante a história da apropriação do
pressuposições tem adquirido grande
Evangelho pela igreja”. Por outro lado, não enquanto não se chaga à compreensão
dessas verdades. Tomemos como exemplo relevância. Não só se afirma que tal tipo de
podemos perder de vista que a Palavra de deus
exegese é impossível, senão que suas
tem sido dada ao povo de Deus. A ela este povo a narração do êxodo israelita. Um estudo
próprias pressuposições são vistas como
deve a sua origem, sua sobrevivência e sua do relato histórico em seu contexto
uma necessidade primordial, o que dá
missão. Assim foi com Israel. Na comunidade geográfico, cultural, de costumes, etc., lugar a perigosos equívocos. Certamente
da fé o povo redimido tem escutado a Palavra, pode nos fornecer a informação suficiente não se espera que o exegeta aceda ao texto
tem sido nutrido por ela, se tem deixado guiar, para obter um quadro objetivo e claro dos em atitude de absoluta neutralidade ou
julgar, corrigir, ao mesmo tempo em que tem acontecimentos. Mas detrás dos fatos, e despreocupação. Até certo ponto, as
sido encorajado. Essas experiências não podem por cima deles, veremos - de acordo com pressuposições, a “pré-compreensão” ou
ser desestimadas na hora de interpretar a as indicações do próprio texto bíblico - a compreensão prévia preconizada por
Escritura. Nunca deverão ser elevadas a um
soberania de Deus, o valor do pacto com Bultmann, podem ser convenientes para
plano superior ao que lhes corresponde, pois
Israel, o desenvolvimento da história da processar de modo frutífero determinados
toda experiência, em geral, vai acompanhada
salvação. Assim passamos da mera fenômenos. A história, por exemplo, pode
de defeitos ou inclusive, até de erro; mas
intelecção do texto histórico à ser compreendida unicamente quando se
tampouco deve-se fechar os ouvidos ao que, em
compreensão de seu significado em pressupõem umas perspectivas
diferentes momentos históricos, por meio da
profundidade. específicas. Mas é um grave erro assegurar
Palavra escrita, o Espírito tem dito às igrejas. Convém, não obstante, ter em mente que não que o intérprete moderno só pode entender
As obras dos autores cristãos, em grande podemos chegar à compreensão profunda e ao a bíblia sobre a base de suas próprias ideias
medida, não são outra coisa que não a mesmo tempo correta de um texto sem análise prévias. Como o seria renunciar a um
expressão dessas vivencias espirituais da cuidadosa que nos permita chegar a descobrir o exame crítico dos fatores subjetivos que
comunidade crente. O Conselho Internacional que o escritor pensava e queria comunicar. Fazer podem influenciar na tarefa hermenêutica
ampliado da União Bíblica, em suas conclusões pouco caso deste objetivo primário pode com efeitos distorcionadores sobre o
sobre “Interpretação da Bíblia Hoje”, fez em
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1979 a seguinte declaração: “A interpretação converter a hermenêutica em mera especulação. autêntico significado do texto.
responsável das Escrituras não se dá em Quando isto acontece, o resultado geralmente é
isolamento, mas dentro da comunidade uma distorção do texto, pois o que o intérprete
redimida dos que se hão submetido a tira dele está muito longe do pensamento do
autoridade da Palavra de Deus”. É uma escritor ou inclusive em aberta contradição com b) Espírito científico. Se tem adotado
observação acertada que todo exegeta deveria o mesmo. Em tal caso, a interpretação há frequentemente dois diferentes modos de
levar em consideração. degenerado em adulteração. Dito isto, temos de aproximar-se da Bíblia: o que poderíamos
sublinhar o caráter especial da Escritura. Suas chamar devocional ou pietista e o
páginas são portadoras de uma mensagem racionalista. O primeiro nos leva ao texto
dirigida aos homens com alcance universal. E a em busca de lições espirituais que possam
mensagem bíblica não é a exposição de uma ser aplicadas direta e imediatamente e está
verdade abstrata, isolada da situação em que vive presidido não pela ansiedade de conhecer
o homem, ao contrário. É eminentemente o pensamento do escrito bíblico, senão
concreto e prático. Afeta a todo humano, tanto na pelo desejo de derivar aplicações
ordem transcendental como na temporal, no edificantes.
individual como no social. Sejam os textos c) Humildade. Esta qualidade é inerente ao
históricos, sejam os jurídicos ou os proféticos, os espírito científico. Quanto mais se amplia
sapienciais, os poéticos, os didáticos, os o círculo do conhecimento, maior parece o
hartatórios ou os apocalípticos, todos tem uma daquele que ainda está por se descobrir. E
aplicação ao estado ou circunstância específicos ainda o que se dá por certo, deve manter-
das pessoas às quais se destinam. Este fato tem se na mente com reservas, admitindo a
suas implicações para os leitores da Bíblia de possibilidade de que novas descobertas ou
épocas posteriores àquelas em que seus livros investigações mais exaustivas obriguem a
foram escritos. O que em seu dia foi declarado retificações. No campo científico nunca se
por profetas ou apóstolos com fins práticos muito pode pronunciar a última palavra. Isto é
sérios, não pode hoje ser reduzido a um simples aplicável à interpretação, pelo que todo
conglomerado literário que se submete friamente exegeta deve renunciar ainda a mais breve
à análise no gabinete de um erudito. A pretensão de infalibilidade. Na prática, não
interpretação da Escritura deve ser muito mais é só a igreja católica a que defende a
que um mero exercício intelectual; deve tornar inerrância de seu magistério. Também nas
possível a assimilação da força vital de sua igrejas evangélicas há aqueles que se
mensagem. Por isso não basta perguntar-se: “O aferram a suas ideias sobre o significado
que o escritor bíblico quis dizer aos leitores em do texto bíblico com tal segurança que nem
seus dias?”, é necessária uma segunda pregunta: por um momento admitem a possibilidade
“O que nos diz esse mesmo texto nos dias de de que outras interpretações sejam mais
hoje?”, “Como incide em nossa situação aqui e corretas. As vezes essa fixação vai
agora?”. Em outras palavras, a interpretação é acompanhada de uma forte dose de
seguida da aplicação. De uma para a outra, como emotividade e não pouca intolerância,
sugeria Karl Barth, só há um passo. características pouco recomendáveis em
quem pratica a exegese bíblica. Quem se
blinda em uma tradição exegética, sem se
submeter a constante revisão suas
interpretações, põe aos descobertos uma
grande ignorância, tanto no concernente as
dimensões da Escritura como com relação
as limitações do exegeta. A plena
compreensão da totalidade da Bíblia e a
segurança absoluta da sabedoria de nossas
interpretações sempre estará mais além de
nossas possibilidades. Claro, a prudência
nas conclusões não significa que o
processo hermenêutico, ao chegar a sua
fase final, não permitirá sentimentos de
certeza. Depois de um estudo sério,
imparcial, o mais objetivo possível, a
interpretação resultante deve manter-se
com o firme convencimento de que é
correta, a menos que dificuldades
insuperadas do texto aconselhem posturas
de reserva provisoriedade. Em qualquer
caso, deve-se evitar o dogmatismo,
admitindo sempre a possibilidade de que
um posterior estudo com novos elementos
de investigação imponha a modificação de
interpretações anteriores.

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O mais provável é que se produza o extravio


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A inspiração
Se nos atermos ao testemunho da própria
Escritura, a ele voltaremos no capítulo
seguinte, - nela palpita um espírito, o Espírito
de Deus que a inspirou, e só há uma
interpretação autêntica - como veremos mais
adiante desde outra perspectiva, quando se
estabelece um nexo de comunhão entre o
Espírito de Deus e o espírito do intérprete e
quando a palavra de Deus que fala segue a
resposta de quem a escuta. Isto nos leva à
contextualização, é dizer, à determinação de
relações existentes entre o texto da Escritura e
o contexto existencial (Sitz im Leben ou
situação vital) referido tanto ao escritor como
ao intérprete, seja qual for o lugar, a época e as
circunstâncias históricas em que este viva. É
necessária uma comunicação entre o autor
bíblico (e seu mundo) e o intérprete (e seu
mundo), a qual se leva a cabo mediante o
“diálogo” já mencionado ao nos referirmos a
Ao exposto deve-se adicionar uma observação sobre os textos aos que se podem atribuir “Nova Hermenêutica”. Neste diálogo, o
mais de um significado válido. Não nos referimos às inumeráveis interpretações alegóricas intérprete inicia sua tarefa com compreensão
que poderiam fazer-se de muitas passagens, mas a pluralidade de sentidos de alguns deles. prévia do texto, a qual é confirmada ou
modificada pela luz que o texto jorra sobre ela.
Além do houve na própria mente do autor, existe outro sentido distinto, mais profundo,
Este “círculo hermenêutico” é indispensável
que estava na mente de Deus e que, sem contradizer o primeiro, o transcende, como se
para a elaboração de uma teologia séria, com
faz manifesto ao examinar textos antigos à luz posterior de uma revelação progressiva. É o todas suas implicações éticas e sociais, e deve
que se há denominado Sensus Plenior da Escritura. Por exemplo, o texto de Isaias 7:14, observar-se com todo o dinamismo que o
relativo a Emanuel, se referia evidentemente a um acontecimento próximo à profecia, mas distingue. Ele conduzirá a descobrir ou
o alcance de seu pleno significado o vemos na perspectiva messiânica que o Novo enfatizar em um dado momento, aspectos da
Testamento nos oferece (Mt. 1:23). mensagem bíblica que antes haviam
permanecido ocultos ou esquecidos.

Esta característica de algumas passagens bíblicas pode ser um esporão saudável para aprofundar na análise hermenêutica de qualquer texto.
Mas ao mesmo tempos um abuso do sen susplenior gera erros. Abusivamente o aplica a teologia católico-romana quando trata de justificar
dogmas baseados na tradição com alegação de que esta constitui o desenvolvimento de doutrinas que se achavam em estado latente da
Escritura. O mesmo erro cometem quantos extraem textos bíblicos segundo significados que não concordam com os ensinamentos globais
da bíblia, senão que surgem de correntes de pensamentos mais ou menos vigorosas em seu momento histórico determinado ou de seus
próprios interesses dogmáticos. Na prática, muitas vezes este segundo significado invalida o primeiro, o correspondente a interpretação de
um texto transmitido a seu próprio modo. O significado real de um texto, quando este fala ao intérprete, não depende das contingencias do
autor ou daqueles para os quais se escreveu originalmente. Um autor não necessita conhecer o significado real do que escreveu, porque o
intérprete pode e deve: geralmente conhecer mais que ele. E isto é de fundamental importância. Não só ocasionalmente, senão, sempre, o
significado de um texto vai mais além de que, em palavras de Gerhard Ebeling, "a exegese literal histórica é fundamento da exposição da
Escritura efetuada pela igreja", e o é porque aparte dela, qualquer interpretação é uma desnaturalização da hermenêutica. Assim, pois, todo
avanço pela via até um sensus plenior, todo significado de um texto diferente de seu sentido original, deve ser controlado e autorizado pela
própria escritura de outro modo, o mais provável é que produza o extravio histórico-gramatical, que é verdadeiro. Isto é o que acontece,
por exemplo, com a interpretação bíblica praticada pelas seitas.

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