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22/11/2019 A economia colaborativa vai nos matar :: Reader View

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A economia colaborativa vai nos matar


Michel Alcoforado 29/10/2019 11h40

5-6 minutes

Um dos textos de maior sucesso deste blog foi quando tratei sobre os dilemas enfrentados pelos
trabalhadores da Gig Economy — a chamada economia do bico. Desde então, venho recebendo
centenas de mensagens de motoristas de Uber, heavy users dos aplicativos e, até mesmo, para minha
surpresa, dos romeiros do Vale do Silício — esse novo tipo de gente que volta da Califórnia com a
certeza de que as inovações criadas por lá fazem milagres.

Sigo pesquisando e refletindo sobre o impacto dos aplicativos de compartilhamento sobre as relações
cotidianas e as transformações que a economia colaborativa vem sofrendo nos últimos anos. Aquilo
que foi criado para resolver nossos dilemas contemporâneos vem, pouco a pouco, criando problemas
sem soluções. Afinal, se acreditamos que a colaboração ia nos salvar, posso afirmar que ela está perto
de nos matar.

Veja também:

Depois do boom, a economia da colaboração ainda tenta equilibrar lucro e idealismo


Uber é bom, mas é uma merda
Uber terá que registrar seus motoristas, decidem os senadores da Califórnia

A economia colaborativa surgiu como uma nova maneira de produzir riqueza após a crise econômica
que assolou o mundo em 2008. De lá pra cá, um grupo de empreendedores criou um novo modelo de
negócio, no qual era possível produzir riqueza através do compartilhamento dos bens, produtos e
serviços já produzidos.

Empresas como Uber, Rappi, Loggi, Glovo, Airnbnb, WeWork, entre tantas outras, nasceram na sala de
microapartamentos de jovens bem nascidos e já dominam mercados mundo afora. O crescimento é
vertiginoso. Em 2014, a economia do compartilhamento movimentou US$ 15 bi nos Estados Unidos.
Espera-se que até 2025 faturem mais de US$ 670 bi.

Economia Colaborativa

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Colaborar

Co: junto

Laborar: trabalhar, sentir dor, cansar-se

A pergunta que fica é: trabalhar junto com quem? Sentir Dor junto com quem? Cansar-se junto de
quem?

Até agora, a conta não parece justa.

É certo que o crescimento do mercado é fruto do uso eficaz das plataformas digitais no
desenvolvimento do negócio. Porém, não podemos esquecer que esses são mercados ainda livres de
regulamentações estatais, o que faz com que suas atividades e as relações de trabalho sejam muito
parecidas com as da Revolução Industrial no século 18. São máquinas de moer gente.

Todas as vezes que se tenta impor um conjunto de boas práticas entre as empresas do
compartilhamento, seus líderes lembram que suas organizações nada mais são do que meras
empresas de tecnologia, da nova economia e do mundo do futuro. E, por consequência, não podem
obedecer às regras vigentes que lhes parecem ultrapassadas.

Foi assim semanas atrás. Diante dos 366 acidentes fatais com motociclistas na cidade de São Paulo
em 2018, um aumento de 18% em relação ao ano anterior, a Prefeitura da cidade convocou as
empresas de aplicativo para fazerem um pacto pela segurança dos parceiros. O acordo propunha o fim
das bonificações por tempo e quantidade de entregas. Os especialistas acreditam que a política
estimula o comportamento tresloucado dos motoboys que resulta em graves acidentes. Uber e Rappi
se negaram a assinar o compromisso.

Outra rota de fuga bastante utilizada pelas empresas de compartilhamento para se livrarem de qualquer
regulamentação está em negação de qualquer vínculo com seus parceiros. Enquanto o Estado se
esforça para provar que há vínculos de trabalho, eles afirmam que motoboys, motoristas edonos de
apartamento são apenas consumidores dos serviços de suas plataformas. Afirmo aqui que se não são
uma coisa, não podem ser outra também.

As empresas defendem que os motoristas não são seus empregados porque podem usar o aplicativo
na hora que bem entendem. Dessa forma, não se configura um contrato de trabalho. Ok.

Lembram que são empreendedores. Mentira. Empresários e empreendedores definem o preço do


serviço vendido, traçam as estratégias de entrada no mercado ou as singularidades do trabalho. Os
agentes econômicos só arcam com o custo do investimento inicial e aceitam as ofertas ( caso contrário,
serão penalizados com a suspensão da plataforma) que os algoritmos lhe mandam.

Por fim, afirmam que não podemos classificá-los como meros consumidores de um serviço.
Consumidores escolhem o que querem para suprir seus desejos. O motorista do Uber vai aonde tiver
que ir, aceita a corrida com o preço do momento e obedece às ordens do aplicativo.

Dessa forma, implodindo as possibilidades de fiscalização e qualquer classificação dos seus parceiros,
as empresas da economia compartilhada fazem o que querem, inventam as próprias regras, jogam
séculos de lutas dos trabalhadores, dos cidadãos no lixo. Agem, crescem e se reproduzem sob a
liberdade de um território sem lei.

É preciso que não esqueçamos que, por trás da pizza que chega ainda quente em casa, tem gente.

Que, na miséria paga por uma corrida de Uber de longa distância, tem gente.

E que no Airbnb jeitosinho que você aluga, há aluguéis altos.

Aplicativo é bom, mas precisa de gente.

Não nos esqueçamos.

Caso contrário, a colaboração vai nos matar.

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