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SURREALISMO: POESIA E POÉTICA

Claudio Willer

Reapresento no Academia.edu um texto já antigo, escrito em 2004,


publicado em 2008. É um de meus capítulos para O surrealismo, uma
extensa coletânea pela editora Perspectiva, coleção Signos, organizada por
Jacó Guinsburg e Sheila Leirner. Recomendo, é claro, a coletânea toda,
inclusive pela diversidade de enfoques e por conter artigos valiosos. Embora
tenha produzido mais a respeito – por exemplo, os artigos sobre surrealismo
e filosofia, também neste Academia.edu, além do que apresentei em cursos
mais recentes, acho que este continua valendo, pela abordagem da questão
central, a imagem poética, e pelo exame da passagem de Baudelaire a
Breton.

Utilizado em conexão com o surrealismo, o termo “poética” deveria vir entre aspas,
para não dar margem à idéia de que esse movimento se fundamenta em um sistema
fechado, uma teoria literária ou algo semelhante. Seus propósitos são mais amplos. Daí
Octavio Paz, em O Arco e a Lira,1 ao reconhecer que o surrealismo não é uma poesia, mas
uma poética, observar que é mais ainda, e, sobretudo, uma visão de mundo.
Essa visão do mundo abrange o modo como o surrealismo pensou a história da
literatura; sua poética das correspondências, analogias e imagens; a visão do processo de
criação, passando pela afirmação e discussão da escrita automática; a complexa relação
entre poesia e vida, entre o simbólico e o real, incluindo a questão do acaso objetivo.
Por sua complexidade e especificidade, escrita automática e acaso objetivo são
tratados em capítulos à parte. Os demais tópicos vêm a seguir, nesta seção.

1. Antecessores e linhagens; ruptura e continuidades

Foi dito inúmeras vezes que movimentos literários e artísticos, especialmente as


vanguardas do início do século XX, reescreveram a história da literatura e das artes ao
escreverem sua própria história, criando genealogias e identificando precursores. Contudo,
isso não vale para todos os movimentos. No futurismo e em dadá observa-se, muito mais, a
intenção de romper com o passado, negando-o, quer fosse, no futurismo, em nome da

1
, Octavio Paz, O Arco e a Lira, tradução de Olga Savary, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1982.
Nesta e nas notas seguintes, é citada a edição consultada, com preferência, se disponíveis, para
traduções em português.
modernidade, ou, em dadá, pelo niilismo, para não deixar pedra sobre pedra, não poupar
nenhuma referência, nenhum valor.
O surrealismo costuma ser catalogado como vanguarda. No entanto, resiste a essa
classificação. Sob a ótica surrealista, as demais vanguardas teriam apresentado e discutido
questões formais, do campo da estética, ligadas apenas à expressão artística e literária. Já o
surrealismo estaria voltado para a vida, o homem em sua totalidade e a transformação do
mundo. A produção artística e literária foi o modo de expressar e realizar esse ímpeto
transformador.
Além disso, o surrealismo ultrapassou o período tipicamente vanguardista que
antecedeu ou sucedeu imediatamente a Primeira Guerra Mundial. Formado em 1919
(adotando como marco inicial a criação da revista Littérature, coincidindo com a
descoberta e primeiras experiências de escrita automática), 2 continuou a existir como
movimento organizado, ao qual podem ser associadas manifestações importantes e obras de
qualidade, até a década de 1960. E, em certa medida, até hoje, por haver, em diversas partes
do mundo, no Brasil inclusive, autores, manifestações, grupos e publicações que se
apresentam como surrealistas. Desempenhou um papel importante na década de 1930,
período de internacionalização e crescimento da sua atuação, e de participação ativa nos
debates e manifestações que antecederam a Segunda Guerra Mundial. No pós-guerra, nas
décadas de 1940 e 50, questionou e buscou ultrapassar a dicotomia imposta pela Guerra
Fria, a opção entre estalinismo e macarthismo, regime soviético ou sociedade capitalista.
Não deixa de ser um estimulante paradoxo haver sido, naquele panorama de
movimentos, grupos e manifestações, ao mesmo tempo o que mais recusou o confinamento
ao campo das artes e literatura, e o mais produtivo nesses campos.
No Brasil, onde o surrealismo recebeu menos atenção, é preciso insistir nessa
produtividade, lembrando, em primeiro lugar, que listas dos poetas franceses de maior
prestígio e importância no século XX sempre incluirão, além de André Breton e Benjamin
Péret, surrealistas da primeira à última hora, os nomes de Paul Éluard e Louis Aragon,
sendo pacífico, sob a ótica contemporânea, que o melhor da lírica de ambos está no período
de participação surrealista, antes de se tornarem porta-vozes de uma postura mais militante
2
Essa datação é sustentada por Sarane Alexandrian em André Breton, par lui même, coleção
Écrivains de toujours, Éditions du Seuil, Paris, 1971. Iniciando o surrealismo em 1924, ano de
publicação do primeiro Manifesto, teríamos que considerar pré-surrealistas obras de Breton (Clair
de Terre e Les pas perdus), Aragon (Feu de joie), Éluard (Poésies), etc.
e tradicionalista. E, ainda, de Robert Desnos, objeto de reavaliação na última década. 3 Há
os poetas que, tendo participado do grupo propriamente surrealista em algum momento,
prosseguiram sua imagética, como René Char, Jacques Prévert ou Yves Bonnefoy, além do
capítulo das relações mais complexas, às vezes sincrônicas, outras antagônicas, em Antonin
Artaud, René Daumal, Michel Leiris, Raimond Queneau, Francis Ponge, entre outros.
Desde sua origem, surrealismo não foi um movimento especificamente francês. Mas
foi parisiense em seu cosmopolitismo, que pode ser associado á condição de pólo ou capital
cultural dessa metrópole, atraindo o romeno Tristan Tzara, os alemães e suíços egressos de
dadá, e os espanhóis e catalães, Miró, Dali, Buñuel, entre tantos outros. A partir de meados
do século XX, observa-se maior presença de autores que, não sendo da França, pertencem à
literatura de língua francesa, a exemplo dos antilhanos Aimé Césaire, Magloire de
Saint’Aude e René Depestre, de Malcolm de Chazal, das Ilhas Maurício, e da egípcia Joyce
Mansour. E daqueles de outras línguas e literaturas, nem sempre registrados na bibliografia
disponível. Há um viés, não apenas eurocêntrico, porém galocêntrico ou francófono, que
transparece em coletâneas preparadas por autores diretamente ligados ao grupo e às
atividades encabeçadas por André Breton. Em Arcanos da Poesia Surrealista, publicado no
Brasil,4 surrealismo parece ser um fenômeno exclusivo da literatura francesa (com o
agravante de um dos seus organizadores, Jean Schuster, haver sido legatário de Breton, algo
como seu continuador oficial). No extenso Autobiographie du Surréalisme, de Marcel
Jean,5 há informação sobre o que se passou na Inglaterra e Tchecoslováquia, entre outros
lugares; mas é como se fosse desenhado um mapa-múndi sem os continentes americanos e
a península ibérica. Nas séries de periódicos surrealistas franceses, inclusive La Brèche –
Action Surréaliste, dos anos 60, é mínima a presença de escritores não-francófonos. Nessas
publicações, surrealismo em Portugal não recebeu registros compatíveis com sua
importância. Mapeamentos mais amplos, dando conta de Portugal, da América Latina, etc,
são algo recente, da década de 1980 para cá. Uma etapa importante é o extenso
Dictionnaire général du Surréalisme et de ses environs de 1982.6 Mas a prospecção

3
Com a publicação de Oeuvres, Gallimard, Paris, 1999, e de ensaios recentes sobre sua poesia.
4
Arcanos da Poesia Surrealista, organizada por Jean Schuster e José Pierre, tradução de Antonio
Houaiss, Editora Brasiliense, São Paulo, 1985.
5
Autobiographie du Surréalisme de Marcel Jean, Éditions du Seuil, Paris, 1978.
6
Dictionnaire général du Surréalisme et de ses environs, sob direção de Adam Biro e René
Passeron, Office du Livre, Friburgo, 1982.
continua em andamento. Das publicações recentes, a de maior fôlego parece ser a
antologia-ensaio Il y aura une fois, de Jacqueline Chénieux-Gendron,7 com um capítulo
sobre autores de língua espanhola, além da inserção de autores de outras línguas e
nacionalidades, mas deixando de lado as literaturas de língua portuguesa.
Daí a atenção, neste ensaio, para antologias como as preparadas por Angel Pariente,
de 1985, sobre o mundo da língua espanhola; de Perfecto E. Cuadrado, de 1998, sobre
surrealismo em Portugal; e de Floriano Martins, de 2001 e 2004, sobre poesia surrealista na
América Latina. De diferentes modos, seguindo metodologias distintas, correspondem à
ampliação e enriquecimento da discussão. A registrar também, no Brasil, as publicações
coordenadas por Robert Ponge, promovendo encontros de autores franceses e latino-
americanos, brasileiros inclusive.8
Dos poetas não-francófonos associados ao surrealismo, o nome de maior projeção é
o de Octavio Paz. Mas sua presença já vinha sendo marcante no mundo hispânico, com
influência sobre a geração espanhola de 1927 (de García Lorca, Rafael Alberti, Vicente
Aleixandre, Jorge Guillém, Luis Cernuda, Gerardo Diego e Juan Larrea), e na ibero-
américa, com os argentinos Aldo Pellegrini e Enrique Molina, o chileno Enrique Gómez-
Correa, o peruano César Moro, e muitos outros. 9 Nos Estados Unidos, além do beat-surreal
Philip Lamantia, dialogaram com o surrealismo poetas modernizadores como Lawrence
Ferlinghetti, Frank O’Hara e John Ashberry. Em Portugal, a partir da década de 1940,
temos a geração de Mário Cesariny, António Maria Lisboa, Mário Henrique Leiria,
Cruzeiro Seixas, Alexandre O’Neill e outros, além da presença evidente em uma lírica
contemporânea de Herberto Helder ou Luísa Neto Jorge, e em autores mais recentes. No
Brasil, sua repercussão e presença não foram da mesma ordem, mas é inegável a influência
sobre poetas da estatura de Murilo Mendes e Jorge de Lima, bem como em autores mais
recentes e até contemporâneos.
Surrealismo representou ruptura, e também continuidade. Não surgiu do nada. Por
isso, especialmente através de André Breton, indicou antecessores e apresentou
7
Gallimard, 2002, col. Folio.
8
Inicialmente, Organon 22, Revista do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, Volume 8, número 22, 1994, dedicada a Aspectos do surrealismo; em seguida, a coletânea
Surrealismo e novo mundo, de 2001, também pela Editora da UFRGS.
9
Mais a respeito no ensaio de Floriano Martins incluído nesta edição, bem como em suas coletâneas
O Começo da Busca, Escrituras, São Paulo, 2001, e Un Nuevo Continente – Antologia Del
Surrealismo en la poesía de nuestra América, Ediciones Andrómeda, San José, Costa Rica, 2004.
genealogias. Um exemplo desse duplo movimento, da ruptura e continuidade, é a lista de
traços ou atributos de surrealismo já no primeiro Manifesto do Surrealismo10 de Breton, de
1924, associados a Victor Hugo, Baudelaire, Gérard de Nerval, Mallarmé, Rimbaud, Jarry,
Lautréamont – este, sempre apontado como o autor mais integralmente surrealista. Tem o
mesmo sentido, naquele manifesto, o elogio às narrativas de horror gótico, ramo literário
paralelo ou vinculado ao romantismo; em especial O Monge de Lewis, livro, diz Breton, ao
qual o sopro do maravilhoso o anima por inteiro. E também de outras obras e passagens
dolorosamente impregnadas desta inquietação, inclusive os patíbulos de Villon, as gregas
de Racine, os divãs de Baudelaire.
No Segundo Manifesto do Surrealismo, de 1930, Breton propôs de modo mais claro
uma revisão da história da literatura. Depois de referir-se a um pequeno número de obras,
de Baudelaire, Rimbaud, Huysmans e Lautréamont, nas quais o ar é particularmente
insalubre, afirmou que o centenário do romantismo é sua juventude, que isso, que se chama
erradamente de sua época heróica não pode mais, honestamente, passar senão pelo vagido
de um ser que mal começa a dar conhecimento de seu desejo através de nós, e que,
admitindo-se que aquilo que foi pensado antes dele - “classicamente” - era o bem, quer,
incontestavelmente, todo o mal.11 Já não se trata mais de valorizar este ou aquele autor na
perspectiva surrealista, mas de alterar periodizações e classificações. O romantismo deixa
de ser visto como período da história da literatura, datado do final do século XVIII até
meados do XIX, mas como algo contínuo, uma rebelião que se renova ao prosseguir, e da
qual o surrealismo se declara porta-voz, e mais, avatar, modo de realização.
O melhor de Breton, em matéria de revisão da história da literatura, está na
Antologia do Humor Negro.12 Apresenta um painel, de Jonathan Swift até seus
contemporâneos, no qual reaparecem Baudelaire, Lautréamont, Rimbaud, Huysmans. São

10
Manifestos do Surrealismo, tradução de Jorge Forbes, prefácio de Claudio Willer, Brasiliense, São
Paulo, 1985; ou Manifestos do Surrealismo, tradução de Sérgio Pachá, Nau Editora, Rio de Janeiro,
2001. Esta última edição é mais completa e inclui textos importantes como Peixe Solúvel. Mas tem
um problema editorial sério: as notas de rodapé escritas pelo próprio Breton, algumas extensas,
nunca poderiam ter sido transformadas em notas de fim. Isso interfere na leitura e desobedece à
intenção do autor. Tanto é que na Oeuvre Complète de Breton pela coleção Pléiade da Galllimard,
que vale como edição crítica, as notas de Breton vêm no rodapé, e as da organizadora, Marguerite
Bonnet, ao final de cada volume.
11
Em itálico no original. Nesta e nas citações seguintes, quando, no texto transcrito, o autor destaca
algum termo usando itálico, faço a inversão para o tipo redondo.
12
Anthologie de l’humour noir, Jean-Jacques Pauvert, Paris, 1966.
penetrantes análises de autores relegados, alguns, ao departamento das anomalias e
excentricidades, resgatando a real dimensão de sua contribuição, e outros, integrantes de
listas canônicas, apresentados sob uma visão nova e original.
Entre os antecessores escolhidos pelo surrealismo figuram românticos alemães
como Novalis e Achim vom Arnim. A ausência, por outro lado, de um visionário como
William Blake (acusado de teísmo por Breton, em Les vases communicants) denota
distanciamento entre o mundo literário francês e inglês. É interessante como a aproximação
de Blake e surrealismo acabaria sendo feita mais tarde por Octavio Paz, no plano da
experiência propriamente poética: em seu ensaio sobre Breton e o surrealismo, La
búsqueda del comienzo,13 conta como foi decisiva para a descoberta de sua identidade
poética a leitura, ao mesmo tempo, de O Casamento do Céu e do Inferno de Blake, e do
capítulo quinto de O Amor Louco de Breton: Em minha adolescência, em um período de
isolamento e exaltação, li por acaso umas páginas que, depois o soube, formam o capítulo
V de L’amour fou. Nelas [Breton] relata sua ascensão ao pico de Teide, em Tenerife. Esse
texto, lido quase ao mesmo tempo que The marriage of heaven and hell [de William Blake],
me abriu as portas para a poesia moderna
Nietzsche também é pouco citado no âmbito do surrealismo, e não costuma figurar
entre os precursores, mas pelo motivo oposto ao da pouca atenção a Blake: o filósofo
alemão exercia tamanho fascínio sobre a intelectualidade francesa do começo do século XX
que poucos, de um modo ou de outro, não eram nietzscheanos.
No Segundo Manifesto do Surrealismo, Breton procura distinguir onde autores
foram ou não afins ao surrealismo, tanto no que escreveram quanto em sua postura, sua
conduta pessoal, ao referir-se aos esforços conjugados desses homens a quem damos a
primazia porque eles realmente quiseram dizer algo – Borel, o Nerval de Aurélia,
Baudelaire, Lautréamont, o Rimbaud de 1874-1875, o Huysmans da primeira fase, o
Apollinaire dos “poemas-conversas” e das Quelconqueries. Os precursores não são apenas
literários, ou do campo exclusivo da criação artística. Ao referir-se a um século de filosofia
e poesia verdadeiramente dilacerantes, Breton põe na mesma seqüência Hegel, Feuerbach,
Marx, Lautréamont, Rimbaud, Jarry, Freud, Chaplin, Trotski. Mais tarde, em Prolegômenos
13
Octavio Paz, La búsqueda del comienzo, Editorial Fundamentos/ Espiral, Madri, 1974, e André
Breton ou a busca do início, em Signos em Rotação, tradução de Sebastião Uchoa Leite, Editora
Perspectiva, São Paulo, 1972. O Amor Louco de Breton é examinado em outro texto desta
coletânea, sobre acaso objetivo.
a um terceiro manifesto do surrealismo ou não, de 1942, contrapondo-se ao alinhamento
dos partidos políticos, diria com quem se alinha: Mas, se a minha própria linha, bastante
sinuosa, admito, mas quando menos minha, passa por Heráclito, Abelardo, Eckhardt, Retz,
Rousseau, Swift, Sade, Lewis, Arnim, Lautréamont, Engels, Jarry e alguns outros?
Assim, equipara místicos, transgressores, pensadores e poetas. No ensaio-manifesto
Flagrant délit, de 1949,14 identifica-se a uma tradição ao mesmo tempo poética e esotérica:
Sabe-se, com efeito, que os gnósticos estão na origem da tradição esotérica que consta
como tendo sido transmitida até nós, não sem se reduzir e degradar parcialmente ao correr
dos séculos. (...) ...todos os críticos verdadeiramente qualificados de nosso tempo foram
levados a estabelecer que os poetas cuja influência se mostra hoje a mais vivaz, cuja ação
sobre a sensibilidade moderna mais se faz sentir (Hugo, Nerval, Baudelaire, Rimbaud,
Lautréamont, Mallarmé, Jarry), foram mais ou menos marcados por essa tradição.
Vincula-se, portanto, nem tanto à literatura, mas a uma sensibilidade e um pensamento
subterrâneos, alternativos com relação a nossa civilização. Fala da heresia, e da poesia
como sua expressão.
As séries de autores propostas por Breton, em seu exame do romantismo e
simbolismo no Segundo Manifesto do Surrealismo e em outros lugares, equivalem ao que
Octavio Paz, prosseguindo e ampliando a mesma revisão da história da literatura, chamaria,
em Os Filhos do Barro,15 de tradição da ruptura. Naquela, em suas palavras, história não-
cronológica da literatura, o poeta e pensador mexicano entende o romantismo, não como
movimento delimitado por datas do final do século XVIII e meados do XIX, mas como
processo, vertente marcada pela rebelião. Refere-se a uma revolução romântica,
manifestação da tradição da ruptura, marcada pela crítica, contraposta ao classicismo. E
distingue o romantismo oficial, dos manuais e histórias da literatura, do que chama de
verdadeiro romantismo francês. Um deles, o oficial, é composto de uma série de obras
eloqüentes, sentimentais e discursivas, que ilustram os nomes de Musset e Lamartine. O
outro, verdadeiro, é composto por um número muito reduzido de obras e de autores:
Nerval, Nodier, o Hugo do período final e os chamados “pequenos românticos”. Na
verdade, os verdadeiros herdeiros do romantismo alemão e inglês são os poetas posteriores
aos românticos oficiais, de Baudelaire aos simbolistas.
14
Publicado na coletânea La clé des champs, Le Livre de Poche, Paris, 1979.
15
Octavio Paz, Os Filhos do Barro, tradução de Olga Savary, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1984
Por isso, prossegue Octavio Paz, A poesia francesa da segunda metade do século
passado - chamá-la de simbolista seria mutilá-la - é indissociável do romantismo alemão e
inglês: é seu prolongamento, mas também é sua metáfora. Nessa linha de raciocínio, faz
afirmações ousadas: Houve na França uma literatura romântica – um estilo, uma
ideologia, uns gestos românticos –, mas não houve realmente um espírito romântico, senão
até a segunda metade do século XIX.
Surrealistas prosseguiram, portanto, o romantismo radicalizado, encarnado no
simbolismo do fim de século XIX francês. É uma herança reconhecida por Breton, levando-
o a afirmar que ...a crítica atual é injusta com o simbolismo. Você diz que o surrealismo
não procurou valorizá-lo: historicamente resultava inevitável que se opusesse a ele, porém
a crítica não tinha porque fazer-lhe restrições. Era quem devia encontrar de novo, e pôr
em seu lugar a correia de transmissão.16
De fato, simbolismo literário e esotérico, bem como decadentismo (indissociável do
simbolismo) do fim de século francês e da belle-époque, correspondem a um período de
renovação intensa.17 Deixaram uma crônica de excentricidades, provocações e transgressões
por autores que praticaram a experimentação no plano da escrita e da vida. Fazem parte
dessa crônica o desregramento e as aventuras de Rimbaud; a vida estranha de Germain
Nouveau, recolhendo-se ao silêncio depois de longas peregrinações místicas a pé; as crises
existenciais e metafísicas de Mallarmé; a diversidade de seitas, crenças e rituais, até
mesmo, ao que consta, missas negras, que teriam sido freqüentadas por Huysmans e
simbolistas; o anarquismo niilista que dividia sua simpatia com um conservadorismo
integrista; a boemia desenfreada. São seus protagonistas, também, os autores que efetuaram
a passagem do simbolismo às vanguardas, como Jarry, que encenou e encarnou sua criação
nos palcos e na vida, através de uma série de escândalos, e Apollinaire, com sua biografia
marcada por episódios rocambolescos.
Essas críticas e revisões das periodizações correntes não são exclusivas de Breton e
de Octavio Paz. O alcance e conseqüente influência do simbolismo também foram
esclarecidos por outros estudiosos do assunto, como Edmund Wilson, que qualificou o
16
Em El Surrealismo – Puntos de Vista y Manifestaciones, Barral Editores, Barcelona, 1977, edição
espanhola de Entrétiens, as entrevistas radiofônicas de Breton.
17
Tomo simbolismo na formação mais ampla, e não na periodização escolar, a partir do manifesto
de Moréas, de 1883. Em caso contrário, nem Rimbaud poderia ser incluído: quando estabeleceu
contato com os poetas de Paris em 1871, eram todos parnasianos.
simbolismo como segundo romantismo em O Castelo de Axel.18 No capítulo final desse
importante ensaio, intitulado Axel e Rimbaud, Wilson examinou o afastamento dos poetas
fin de siècle da vida geral de seu tempo, interpretando-o como recusa ou negação: na
sociedade utilitária que fora produzida pela revolução industrial e pela ascensão da classe
média, parecia não haver lugar para o poeta. Daí voltarem-se para o mundo simbólico,
artificial.
O espírito antiburguês dos autores daquela geração e desse movimento foi
reconhecido por inúmeros outros ensaístas. Para José Paulo Paes, no prefácio da sua
tradução de Às avessas de Huysmans,19 a defesa e ilustração da decadência foi um modo
de contestar o mito do progresso cultivado pela burguesia. Mais recentemente, o tradutor e
prefaciador brasileiro de Tristan Corbière, Marco Antonio Siscar, observou: A negação
seria um traço capaz de aproximar poetas como Corbière, Rimbaud, Verlaine,
Lautréamont, Mallarmé, para além das diferenças de superfície.20
Isso valer para a belle époque, que corresponde ao período denominado pelo
ensaísta norte-americano Roger Shattuck de o grande banquete,21 entre 1885 e 1918. O que,
em décadas anteriores, foi comportamento de exceção dos Baudelaire e Nerval, passou a
caracterizar um ambiente artístico e literário. Obras, argumenta Shattuck, passaram a
interessar, não mais como reprodução de uma norma, mas como desvio das normas,
iniciando o primado vanguardista da experimentação. Se o romantismo já havia
questionado a imitatio dos clássicos, contrapondo-lhe a originalidade, tomada como valor,
os simbolistas, por sua vez, negaram a mimese dos realistas, naturalistas e parnasianos. O
artista deixou de ser quem eterniza a seu modo o cânone, o ideal estético à maneira do
classicismo, ou quem retrata realidades: passou a ser aquele que rompe com esse ideal,
afirmando-se como individualidade e diferença. Daí as proclamações, identificando o novo
ao valor, desde é preciso ser absolutamente moderno de Rimbaud até o make it new! de
Pound.

18
Edmund Wilson, O Castelo de Axel, tradução de José Paulo Paes, reedição pela Companhia das
Letras, São Paulo, 2004.
19
J.-K. Huysmans, Às avessas, tradução e estudo crítico de José Paulo Paes, Companhia das Letras,
São Paulo, 1987.
20
Tristan Corbière, Os Amores Amarelos, introdução, tradução e notas de Marco Antônio Siscar,
Iluminuras, São Paulo, 1996
21
Em The Banket Years, The Origins of the avant-garde in France; na edição francesa, Les Primitifs
de L’Avant-garde, Flammarion, Paris, 1974.
Valem como antecipação e síntese dessa atitude os versos finais de um poema de
Baudelaire, A Viagem, que encerra As Flores do Mal: Queremos, tanto o cérebro nos arde
em fogo,/ Ir ao fundo do abismo, Inferno ou Céu, que importa?/ Para encontrar no Ignoto
o que ele tem de novo!22
Huysmans, autor da predileção de Breton, proclamou essa influência baudelairiana.
Dedicou dois capítulos de Às Avessas à preferência do seu protagonista, o aristocrático Des
Esseintes, pelos autores dos períodos da decadência (assim contribuindo para cunhar o
termo “decadentismo”), com suas obras doentias, consumidas e irritadas pela febre, mais
caros a ele pelo desprezo em que os tinha um público incapaz de compreendê-los. A lista de
preferidos continha Verlaine, Mallarmé, Corbière e Villiers de L’Isle Adam. Em páginas
repletas de superlativos, apontou Baudelaire como mestre, seu e desses autores, pois fora
quem havia ido mais longe ao experimentar os tétanos místicos, a ardente febre da luxúria,
os tifos e vômitos do crime, os amores híbridos, incubados sob a morna redoma do tédio, e
as chagas mais incuráveis (...) nas almas em ruínas a quem o presente tortura, o passado
repugna, e o porvir atemoriza e desespera.
Para Huysmans, a decadência não era apenas histórica (acreditava viver em um
período de decadência), porém ontológica, associada à Queda, à perda do estado de graça
originário. Não achava que obras dos períodos de decadência fossem, por sua vez,
decadentes; tanto é que falou de linguagem musculosa e carnuda em Baudelaire, associada
a uma estranha saúde de expressão, que lhe dava o poder de fixar os estados mórbidos
mais fugazes, mais tremidos, dos espíritos esgotados e das almas tristes.23
Surrealistas são os sucessores do ambiente literário marcado, desde 1865, quando os
futuros expoentes do simbolismo, Verlaine e Mallarmé, se declararam seus discípulos, pela
presença de Baudelaire. Continuador do satanismo e da atração ambivalente pelo mal já
evidente em Byron, Shelley e românticos alemães, o autor de As Flores do Mal lhes deu
nova dimensão. Procurou, mais que falar sobre a Queda luciferiana e humana, torná-la
presente através de imagens e metáforas. Daí a subversão dos parâmetros do gosto, do
permitido em literatura, que pode ser bem ilustrada por um poema como A Tampa. Nele, o
Céu é o cenário ébrio de luz para uma ópera bufa/ de cujo palco ensangüentado o histrião
22
Esta e as citações seguintes são de Charles Baudelaire, Poesia e Prosa, Editora Nova Aguilar,
1995, organizada por Ivo Barroso, que apresenta a vantagem, entre outras, da boa seleção e
organização, com notas e comentários; tradução de As Flores do Mal por Ivan Junqueira.
23
, No já citado Às avessas, de J.-K. Huysmans.
se serve, para concluir assim: O Céu! tampa sombria da imensa marmita/ Onde indivisa a
vasta Humanidade ferve.24
Uma coisa dessas, comparar o céu a uma tampa de marmita, escancara o campo do
possível, do que pode caber no poema. Rompe com a idéia de que a poesia pertence ao
reino do sublime. Antecipa as metáforas extravagantes de Os Cantos de Maldoror de
Lautréamont, as ousadias de Rimbaud, Laforgue, Corbière, Jarry, e muito mais da literatura
que o sucedeu. Exemplifica os preceitos estéticos do próprio Baudelaire, ao sugerir que o
belo sempre é extravagante,25 associando essa extravagância à diversidade, e contrapondo-a
à banalidade.
Por isso, conforme observei em outro lugar, 26 quem vê o surrealismo
exclusivamente como apologia do delírio, criticando-o pelo irracionalismo, comete um
equívoco. Deixa de compará-lo ao caráter frenético do período que o precedeu, entre a
vigência do simbolismo e o despontar das vanguardas, e que, mais apropriadamente, pode
ser visto como exacerbação do romantismo e da influência baudelairiana, em sua
negatividade extrema e radicalidade na experimentação. A loucura havia campeado nas
décadas precedentes. Surrealistas lhe deram, é certo, continuidade; mas tentaram atualizá-la
filosoficamente, e com os acréscimos da contribuição psicanalítica, do pensamento
marxista, e, certamente, de avanços científicos que alteraram a própria imagem de mundo.
Procuraram conferir-lhe uma positividade, uma dimensão filosófica e política consistente.
Seu resumo é a proposta bretoniana de tornar um só o transformar a sociedade de Marx e o
mudar a vida de Rimbaud.27 Sua sistematização está, entre outros lugares, nas revisões da
história da literatura, a exemplo daquela exposta no Segundo Manifesto do Surrealismo.
Daí as comparações que virão a seguir, tomando Baudelaire como autor referencial,
e procurando ver surrealismo como etapa da rebelião romântica. Se entendermos crítica e
ruptura como fundamento ou essência do romantismo, então o surrealismo o continua, não
apenas ao afirmá-lo, mas quando o critica, buscando superá-lo.

24
No já citado Charles Baudelaire, Poesia e Prosa.
25
Em Exposição Universal (1855), também em Charles Baudelaire, Poesia e Prosa.
26
Em Lautréamont – Obra Completa, tradução, prefácio e notas de Claudio Willer, Iluminuras, São
Paulo, 1997.
27
Em Posição Política do Surrealismo, conjunto de textos agregado às edições dos Manifestos do
Surrealismo.
2. Imagens poéticas, analogias, correspondências

Quer seja para a compreensão de Lautréamont, de Mallarmé, Rimbaud e demais


simbolistas, dos decadentistas a eles associados, dos vanguardistas que os sucederam, e
especialmente do surrealismo, é preciso examinar mais em Baudelaire que a adesão ao mal
das Litanias a Satã, um dos aspectos do inconformismo que o levou a apresentar-se como
crítico das belezas pútridas de um século plebeu, e a mergulhar no horror em poemas como
A carniça. Um aspecto fundamental da sua obra é a contribuição como poeta das
correspondências. Logo no início de As Flores do Mal, no soneto intitulado
Correspondências, é apresentada, não apenas uma poética, mas uma interpretação do
mundo. A natureza é um templo, um bosque de segredos com seus insólitos enredos, que
são ecos longos da vertiginosa e lúgubre unidade. Nela, os sons, as cores e os perfumes se
harmonizam; e Há aromas frescos como a carne dos infantes,/ Doces como o oboé, verdes
como a campina,/ E outros, já dissolutos, ricos e triunfantes,/ (...) Como o almíscar, o
incenso e as resinas do Oriente,/ Que a glória exaltam dos sentidos e da mente.
Aí estão, no modo como cheiro, sabor, som e cor vêm relacionados na mesma
seqüência, as sinestesias baudelairianas. No entanto, conforme observam comentaristas e
estudiosos, não se trata apenas de associações subjetivas, que habitam o pensamento e a
sensibilidade exacerbada do poeta. Correspondências, para Baudelaire, eram o modo oculto
de organização da realidade, com o valor de princípios gerais, chaves para o entendimento
do bosque de segredos, da floresta de símbolos, enigmas a serem decifrados e traduzidos
pelo poeta. Sem dúvida, adotava um pensamento místico, influenciado por visionários que
enxergaram o mundo como sistema regido pela analogia, a exemplo de Böhme,
Swedenborg e os “iluminados” das seitas do século XVIII, e por autores que traduziram
literariamente essas idéias, como Hoffman e Balzac. Influenciou-o, ainda, o diálogo com
Éliphas Lévi, o mago e teórico que erigiu um sistema baseado no pensamento analógico,
partindo de princípios gerais expostos no decálogo atribuído a Hermes Trimegisto.28
28
Sobre o diálogo de Baudelaire e Éliphas Levi, Anotações de uma Bibliógrafa: Baudelaire e o
Esoterismo, de Maria Lúcia dal Farra, em Remate de Males, Unicamp, Instituto de Estudos da
Linguagem, Campinas, 1984. Trata-se de contribuição importante, pelo modo como foram
comparados Baudelaire e o autor de Dogma e Ritual de Alta Magia. O restante, quanto a influências
do misticismo e esoterismo, já foi examinado em uma bibliografia extensa, que inclui La mystique
de Baudelaire de Jean Pommier, Les Belles Lettres, Paris, 1932, e a detalhada biografia por Claude
Pichois e Jean Ziegler, Charles Baudelaire, Fayard, Paris, 1996.
Bem representativo das correspondências em Baudelaire é seu poema A Bela Nau,
de As Flores do Mal. Nele, identifica a mulher que admira a um navio, e em seguida a um
armário: Teu colo que arfa sob o traje fluido e vário,/ Teu colo vitorioso é como um belo
armário,/ Cujos claros gomos convexos/ Como os broqueis capturam rútilos reflexos;//
Provocantes broqueis de agudas pontas rosas!/ Armários cheios de iguarias tão preciosas/
Vinhos, perfumes e licores/ que o coração e a mente inundam de torpores!
A Bela Nau nega os princípios da identidade e não-contradição, de que algo, sendo o
que é, não pode ser outro. Cada coisa se converte em outra nessa viagem: o poeta e seu
leitor vão dos seios da mulher à nau, ao armário e seus estofos, daí aos broqueis, vinhos,
perfumes, licores... Para Breton,29 nesse poema Baudelaire inicia um novo modo da
sensibilidade. Expressa uma vontade de emancipação total do homem, que retira sua força
da linguagem, mas que será mais cedo ou mais tarde reversível à vida. E não só em A Bela
Nau. Entre outros, em O Perfume o cheiro do incenso ou do almíscar é um sutil e estranho
encanto que transfigura/ em nosso agora a imagem do passado, e por isso remete ao corpo,
a outros cheiros, a cabeleiras, alcovas, vestes da amada.
Esse procedimento reaparece na prosa de Baudelaire. Em um dos trechos de O
Spleen de Paris, Pequenos Poemas em Prosa, intitulado O Convite à Viagem,30 depois de
falar das belezas do utópico país da Cocanha, dirige-se à amada, perguntando-lhe: Não
ficarias, lá, emoldurada em tua analogia, e não poderias espelhar-te, para falar a
linguagem dos místicos, em tua própria correspondência? E conclui: Esses tesouros, esses
móveis, esses luxos, essa ordem, esses perfumes, essas flores miraculosas, tudo isso és tu.
És tu, ainda, aqueles grandes rios e aqueles canais sossegados. Os enormes navios que
eles carregam, atulhados de riquezas, e donde sobem os monótonos cantos de manobra,
são os meus pensamentos que dormem ou que rolam sobre o teu seio. Docemente os
conduzes para o mar que é o Infinito, a refletir as profundezas do céu na limpidez de tua
bela alma; e quando fatigados do marulhar das ondas e repletos dos produtos do Oriente,

29
Em Le merveilleux contre le mystère, no já citado La clé des champs.
30
Da mesma edição, Charles Baudelaire, Poesia e Prosa, tradução de Aurélio Buarque de Holanda
Ferreira. Baudelaire recebeu bom tratamento de tradutores brasileiros também em O Spleen de
Paris - Pequenos poemas em prosa, apresentação e tradução de Leda Tenório da Motta, Imago,
1995, e, ainda, Pequenos poemas em prosa, edição bilíngüe, tradução de Dorothée de Bruchard,
Editora da UFSC, Florianópolis, 1996.
eles reentram no porto natal, são ainda os meus pensamentos enriquecidos que do Infinito
volvem para ti.
Nessas e em tantas outras passagens, Baudelaire inovou, acrescentou algo em
matéria de correspondências e analogias, se comparado aos místicos e “iluminados” que o
precederam. Relações entre termos e coisas diferentes não seguem apenas um eixo vertical,
entre o alto e o baixo, o sublime e o mundano, o céu e a terra, o visível e o invisível. Não é
mais a representação swedenborguiana do universo, da esfera celestial análoga a um corpo
humano; ou da astrologia, em que planetas e casas do zodíaco regem e representam
propriedades do que está no mundo. Há um eixo horizontal; e uma combinatória, pois essas
relações se multiplicam. Fazem parte da vida, e impregnam a relação erótica, a atração
entre os seres, conferindo dimensão mágica ao amor e à sensualidade. Em O Convite à
Viagem, A Bela Nau, O Perfume, O Convite à Viagem, o encontro amoroso é comunhão
com o mundo. Baudelaire procede à antropomorfização e à animização, ao confundir
propositadamente as duas esferas, das qualidades humanas e das coisas. Assim, no trecho
citado, pensamentos são navios, e os rios, canais sossegados, perfumes, são a mulher
amada.
É esse modo poético reaparece, de forma radical, extrema, na lírica surrealista. Por
exemplo, em Union Libre31 de Breton, que termina assim: ...Minha mulher com sexo de
alga e de bombons antigos/ Minha mulher com sexo de espelhos/ Minha mulher com olhos
cheios de lágrimas/ Com olhos de panóplia violeta e de agulha imantada/ Minha mulher
com olhos de savana/ Minha mulher com olhos de água para beber na prisão/ Minha
mulher com olhos de lenha sempre sob o machado/ Com olhos de nível de água de nível de
ar de terra e de fogo.
Um poema longo como Union Libre equivale na verdade à condensação, como se
fosse estabelecida uma ligação direta entre os termos relacionados através da analogia. No
Segundo Manifesto do Surrealismo, Breton referiu-se ao curto-circuito entre uma idéia
dada e a manifestação que lhe corresponde, enfatizando que Na poesia, na pintura, o
surrealismo fez o impossível para multiplicar esses curtos-circuitos.32 E, no primeiro
Manifesto, já falava em centelhas e relâmpagos atravessando a atmosfera surrealista,

Publicado em Clair de terre, Poésies/ Gallimard, Paris, 1966.


31

Esta e as citações seguintes dos Manifestos do Surrealismo são da edição já citada, da Editora
32

Nau, tradução de Sérgio Pachá.


provocando uma luz particular, a luz da imagem. Os passos percorridos, entre outros
lugares, em A Bela Nau, dos seios ao armário e às iguarias e perfumes nele contidos, foram
suprimidos. O sexo da mulher de Breton não é parecido com alga, não é como se fosse alga;
ele é alga; uma coisa é a outra, assim como no jogo do um no outro que os surrealistas
criaram em 1953.33 A mulher amada é o mundo, em uma fusão do humano e do natural,
bem como do sujeito e dos objetos.
O mesmo vale, entre inumeráveis exemplos, para passagens como esta de Je
sublime de Benjamin Péret, com seu paroxismo da analogia: Rosa de jasmim na noite da
lavagem dos linhos/ Rosa de casa assombrada/ Rosa de floresta negra inundada de selos
azuis e verdes/ Rosa de papagaio-de-papel sobre um terreno baldio onde brigam crianças/
Rosa de fumaça de charuto/ Rosa de espuma de mar feita cristal/ Rosa.34 É uma Rosa
onipresente, pois a barreira entre ela e o mundo foi ultrapassada. Ou então, no Paul Éluard
de Capitale de la douleur: Tua boca de lábios de ouro não está em mim para rir/ E tuas
palavras de auréola têm um sentido tão perfeito/ Que em minhas noites de anos, de
juventude e de morte/ Ouço tua voz vibrar em todos os ruídos do mundo.35
Em poemas como esses predomina a imagem, tal como definida por Pierre Reverdy
em uma passagem freqüentemente citada, desde o primeiro Manifesto do Surrealismo de
Breton até o prefácio de sua última coletânea de poemas, Signe ascendant: A imagem é
uma criação pura do espírito. Ela não pode nascer de uma comparação, mas da
aproximação de duas realidades mais ou menos afastadas. Quanto mais as relações das
duas realidades aproximadas forem distantes e justas, tanto mais a imagem será forte,
mais força emotiva e realidade poética ela terá. Breton ilustrou essa definição com
metáforas, valendo-se do eletromagnetismo: O valor da imagem depende da beleza da
centelha obtida; ela é, por conseguinte, função da diferença de potencial dos dois
condutores.
A poesia do próprio Reverdy mostra o que vêm a ser imagens: O abajur do poente
atenua meu delírio. (...) Quando o ouro do sonho desperta o adormecido. 36 E,

33
Sobre o jogo do um no outro, que consiste na descoberta de um termo oculto a partir de outro
declarado, ver o texto de Maria Lúcia dal Farra, nesta edição.
34
Da edição brasileira de Benjamin Péret, Amor Sublime - Ensaio e poesia, 1985, organização de
Jean Puyade, tradução de Sérgio Lima e Pierre Clemens, Brasiliense, São Paulo.
35
Paul Éluard, Capitale de la douleur, Poésie/Gallimard, Paris, 1966.
36
De Sources du vent, transcritas em Pierre Reverdy -Poètes d’aujourd’hui, Seghers, Paris, 1951.
transcrevendo passagens citadas por Breton no primeiro Manifesto do Surrealismo: Há no
regato uma canção que flui. (...) O dia se abriu como uma toalha branca. (...) O mundo
entra num saco.
Reverdy é um poeta admirável, pela coerência e consistência. Contudo, sua adoção
por Breton tem que ser esclarecida. O primeiro Manifesto do Surrealismo é um texto
sedutor, persuasivo, nisso diferindo do Segundo Manifesto, texto de combate,
idiossincrático. Em 1924, Breton procurava mostrar a universalidade ou, ao menos, a
abrangência do surrealismo; em 1930, quis defender sua especificidade, exigindo sua
ocultação, demarcando limites através da exclusão, atacando, entre outros, a Desnos e
Artaud, polemizando com Bataille, e questionando Baudelaire e Rimbaud.
Talvez por isso, ao adotar Reverdy em 1924, não se preocupasse em indicar onde
divergiam, em que aspectos o surrealismo não é um prolongamento da sua poética da
imagem. Ao declará-la criação pura do espírito, Reverdy diz que o poema é uma
construção intelectual, resultado de uma espécie de contemplação. Já em Breton, assim
como em Eluard, Péret ou Aragon, a poesia é um acontecimento orgânico, visceral,
conforme a expressão especialmente feliz de René Char ao falar em poetas carnívoros. Daí
a associação, em Breton, da poesia à realização do desejo, e os paralelos de criação poética
e sexo em As palavras fazem o amor e A poesia se faz na cama, como o amor, bem como
sua politização em Liberdade cor de homem e tantas outras passagens.
É como se, no surrealismo, tivéssemos uma poesia freqüentemente próxima àquela
de Reverdy, porém com base em uma poética selvagem, negativa em sua combatividade, à
semelhança da que foi sugerida por Rimbaud, com seu elogio da alucinação e do
desregramento, ou daquela que pode ser inferida em Lautréamont.
Se a imagem poética tem um marco inicial em Baudelaire, também tem uma
história, um percurso, que vale a pena procurar reconstituir, do romantismo aos
contemporâneos. Assim, avança-se também no capítulo dedicado aos antecedentes e
precursores do surrealismo.
As mesmas idéias presentes em Baudelaire, de um mundo regido por analogias e
correspondências, apresentando-se como linguagem cifrada que o poeta desvenda ou
traduz, já estavam em Gérard de Nerval, que lhes acrescentou o animismo. Seus Versos
Dourados trazem como epígrafe um fragmento atribuído a Pitágoras, Céus! tudo é sensível.
Falam de um mundo animado, onde a vida cintila em cada ente, e À própria matéria
encontra-se um verbo unido, pois Um espírito puro medra sob a crosta das pedras.37 Sua
derradeira narrativa, Aurélia, regida pelo pensamento analógico, pode ser lida como
sucessão de imagens.
Mas em Nerval ainda não se encontra um projeto, uma “estética” das
correspondências como em Baudelaire, a quem essa concepção orientou, não só na criação
poética, mas em sua contribuição como crítico de artes e de música, e, em termos mais
gerais, como pensador. Tanto é que seu soneto das Correspondências reaparece, citado ou
parafraseado, em Paraísos Artificiais, em sua crítica de arte, de Salão de 1846 em diante, e
mais tarde, já em 1861, em seu entusiástico registro da descoberta de Wagner.
A história da imagem poética não pode ser escrita sem os capítulos dedicados a
Rimbaud, Lautréamont e Jarry, mostrando como assimilaram e transformaram a
contribuição baudelairiana. Mesmo deixando de lado simbolistas rotulados como
“menores”, porém autores de uma poesia elevada, como Charles Cros e Saint-Pol-Roux, é
possível reconstituir esse percurso que não apenas chega até a imagética surreal, porém já a
configura. Seu exame corrobora o que foi dito acima, sobre o quanto de surrealismo que já
havia em autores do período que vai de Baudelaire às vanguardas, incluindo simbolistas e
decadentistas.
Rimbaud é importante, não só na gênese do surrealismo, mas de uma parcela
significativa do que o sucederia em literatura e artes, geração beat inclusive. Exerceu
especial influência através da fase final de sua obra, inovadora e transgressora. Sua poesia
em prosa, junto com documentos como a Carta do Vidente, justificaram ver-se como o
novo Prometeu: O poeta é realmente o ladrão do fogo. Uma Temporada no Inferno e
Iluminações,38 ao lado de Os Cantos de Maldoror de Lautréamont e Um lance de dados de
Mallarmé, são escrita moderna, poesia do século XX no final do século XIX, exercícios da
liberdade de criação ao abandonarem as formas fixas. Iluminações poderia passar por obra
escrita entre 1920 e 1930, em companhia de Corps et biens de Robert Desnos ou Le

37
Utilizei a tradução de Luís Augusto Contador Borges, em Aurélia de Gerard Nerval, Iluminuras,
São Paulo, 1991.
38
Estada no Inferno ou Temporada no Inferno como traduções de Une saison on enfer? Iluminuras
ou Iluminações, para Illuminations? Fico com Temporada, título da tradução de Lêdo Ivo, lida por
minha geração E com Iluminações, título que retrata a obra, mesmo aceitando que Illuminations
seja a palavra em inglês que corresponde a iluminuras ou gravuras.
libertinage de Aragon. Por isso, tornou-se leitura de cabeceira dos horríveis trabalhadores
do futuro, que transitariam pelos horizontes onde se perdeu o poeta-vidente.
Por mais extensa que tenha sido sua influência, pode-se falar em afinidade
específica de Rimbaud com o surrealismo, não só no plano da literatura, mas na atitude
perante a sociedade e a vida. Em Entrétiens, Breton relata o momento em que me iniciei
verdadeiramente em Rimbaud, comecei a estudá-lo profundamente e me apaixonei por ele.
Foi em 1916, servindo no exército em Nantes: era como se estivesse enfeitiçado. Suas
leituras incluíam os inéditos que acabavam de vir à luz, mostrando, diz ele, uma virada
transcendental em sua evolução, a despedida definitiva da poesia e a passagem a uma
forma distinta de atividade. Logo em seguida, Breton conheceria Aragon e Soupault,
formando o núcleo inicial do surrealismo. Unia-os a fascinação por Rimbaud, combinando
a influência propriamente literária e a empatia pelo adolescente aventureiro, em uma dupla
descoberta: aquela da obra publicada, do que havia chegado ou estava vindo a público, e
outra, que consistiu em divulgarem textos ainda desconhecidos, associando-se a um resgate,
à recuperação de sua integridade. Já em 1919, publicariam em Littérature o poema
militante, escrito no calor da Comuna de Paris, As Mãos de Jeanne-Marie, e depois, entre
outros inéditos, o anticlerical Un Coeur sous une soutane.
Em Rimbaud, as correspondências baudelairianas se convertem em alquimia do
verbo. Seu uso da expressão alquimia não foi arbitrário ou apenas metafórico. Assim como
Baudelaire, cuja influência reconheceu, declarando-o, na Carta do Vidente, o primeiro
vidente, rei dos poetas, um verdadeiro Deus, havia lido, e bastante, obras tratando dessa e
de outras disciplinas herméticas. Tais fontes contribuíram para sua adesão ao princípio da
analogia e das correspondências, como foi comprovado por biógrafos e pesquisadores.
Através do exame de fichas na biblioteca de Charleville, esclareceram dúvidas quanto à
propriedade das decodificações alquímicas, dando sentido a poemas opacos, cifrados, como
Os Corvos e O Riacho de Cassis.39
É central em sua obra o trecho intitulado Delírios II - Alquimia do Verbo, de Uma
temporada no Inferno. Nele, há uma reafirmação das correspondências através da
transcrição, no texto em prosa, do início do soneto As Vogais: Inventei a cor das vogais! -

39
Sigo, entre outros, David Guerdon em Rimbaud, La clef alchimique, Éditions Robert Laffont,
Paris, 1980. A decodificação alquímica é sugerida com propriedade em Rimbaud por ele mesmo, de
Alberto Marsicano e Daniel Fresnot, Martin Claret, São Paulo, 1996.
A negro, E branco, I rubro, O azul, U verde. - Regulei a forma e o movimento de cada
consoante, e, com ritmos instintivos, me vangloriava de inventar um verbo poético
acessível, mais dia menos dia, a todos os sentidos.40 Breton, já em 1921, observava que ...É
atribuindo uma cor às vogais que pela primeira vez, de modo consciente e aceitando
suportar suas conseqüências, desviou-se a palavra do seu dever de significar.41
Mas a realização alquímica deixa de ser resultado da disciplina. É fruto do
desregramento, de uma disciplina às avessas. Na Carta do Vidente, após insistir que é
preciso ser vidente, tornar-se vidente, mostra como chegar lá: O poeta torna-se vidente
através de um longo, imenso e estudado desregramento de todos os sentidos. Ele busca em
si mesmo todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; prova todos os venenos,
para guardar apenas a quintessência. (...) Ele chega ao desconhecido, e ainda que,
enlouquecido, acabe perdendo a inteligência em suas visões, ele as viu! Que expluda na
sua indignação pelas coisas insólitas e inomináveis: virão outros horríveis trabalhadores,
que começarão pelos horizontes em que ele se perdeu!42
Vidência passa a equivaler à alteração da consciência: Habituei-me às alucinações
simples: via honestamente uma mesquita em lugar de uma fábrica, uma escola de tambores
formada só por anjos, diligências a rodar nas estradas do céu, um salão no fundo de um
lago; os monstros, os mistérios; os letreiros de um teatro de revista despertavam assombros
em mim. Em seguida explicava meus sofismas mágicos pela alucinação das palavras!
Portanto, correspondências em Rimbaud não são apenas acontecimentos textuais, da
esfera simbólica, porém antes sensações e percepções equivalentes a uma revelação, e à
conseqüente decifração do mundo. Ao equiparar alucinações e delírios à vidência, formulou
uma poética da desordem: Acabei achando sagrada a desordem do meu espírito. Através
dela, realizava a alquimia: Escrevia silêncios, noites, anotava o inexprimível. Fixava
vertigens. Passagens de Alquimia do Verbo e da Carta do Vidente são manifestos
antecipados do surrealismo. Vão além da crônica da alucinação. Exibem o trânsito
vertiginoso do desregramento até o sublime. Ao citar, em Alquimia do Verbo, versos do seu
40
Esta e as citações seguintes são de Poesia Completa e Prosa Poética, organização e tradução de
Ivo Barroso, Topbooks, Rio de Janeiro, 1994 e 1998, Mas não sem registrar as boas traduções de
Rimbaud no Brasil, como, para Uma Temporada no Inferno e Iluminações, as de Ledo Ivo e de
Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça. Em Rimbaud no Brasil, de Carlos Lima,
UERJ-Comunicarte, 1993, são cotejadas traduções.
41
Em Les mots sans rides, por sua vez em Les pas perdus, Idées/Gallimard, Paris, 1974.
42
Na tradução de Carlos Lima em Rimbaud no Brasil.
poema sobre a Eternidade, deixa claro que o processo culmina na síntese dos contrários:
Achada, é verdade?!/ Quem? A Eternidade./ É o mar que o sol/ Invade.43
Baudelaire fez que a poesia pusesse os pés no chão, deslocando-a da esfera do
sublime e do transcendental ao escrever sobre a carniça, trapeiros, prostitutas, mendigos e
assassinos. Ao mesmo tempo, mostrou que o maravilhoso emergia na imanência, na vida
urbana e na agitação da modernidade. Rimbaud deu outro passo na direção do que viria a
ser uma estética das vanguardas, também adotada pelo surrealismo, ao ampliar o campo do
poético, incorporando o excluído pelo bom-gosto canônico. Daí seu elogio do
aparentemente banal em Alquimia do Verbo: Eu amava as pinturas medíocres, bandeiras
de portas, cenários, telões de saltimbancos, letreiros, iluminuras populares; a literatura
ultrapassada, latim de igreja, livros eróticos mal escritos, romances dos tempos de avó,
contos de fadas, almanaques infantis, velhas óperas, refrões simplórios, ritmos singelos.
O surrealismo não adotaria tudo isso; certamente, jamais o latim de igreja e ritmos
singelos – tanto é que Breton cita essa passagem em Gradiva,44 mas só até as iluminuras
populares. É lícita, contudo, a aproximação dessa passagem de Rimbaud à defesa
bretoniana, no primeiro Manifesto do Surrealismo, do maravilhoso presente em uma
extensão de objetos e lugares, das ruínas românticas ao manequim moderno; e à previsão,
no mesmo manifesto, de que o mundo acabaria, não por um belo livro (como dissera
Mallarmé), mas por uma bela propaganda do inferno e do céu. E, ainda, à quantidade de
objetos não-artísticos descontextualizados e introduzidos na cena artística, já por Marcel
Duchamp em 1914, bem como às peças de teatro e filmes popularescos que fascinavam
pelo insólito, conforme relatado em Nadja, ou às iluminações profanas do Aragon de O
Camponês de Paris em cafés e lojas da Galeria da Ópera.
Mas a descoberta de Rimbaud por Aragon, Breton e Soupault ainda seria a
preparação para o impacto provocado, logo a seguir, pela leitura de Isidore Ducasse, o auto-
intitulado Conde de Lautréamont, autor de Os Cantos de Maldoror e Poesias,45 mito
literário por excelência pela violência e riqueza de imaginação exibida em sua obra, e pelo
quase total desconhecimento de dados sobre sua breve existência de 24 anos, até 1870. Dos

43
Aqui, preferi a solução de Augusto de Campos em Rimbaud Livre, também reproduzido no já
citado Rimbaud no Brasil.
44
Publicado no já citado La Clé des champs.
45
Em Lautréamont - Obra Completa, já citado.
três, o primeiro a descobri-lo foi Aragon, ao achar em 1917 o Canto I na revista Vers et
Prose, dirigida pelo vanguardista Paul Fort.
Baudelaire e Rimbaud exerceram influência, em alguma medida, sobre todas as
inovações literárias que os sucederam. Já Lautréamont foi o autor que os surrealistas
reivindicaram para si, proclamando-se aqueles que o entenderam, e designando-o como seu
maior e mais íntegro precursor.
Sabemos que havia, sim, uma circulação de Os Cantos de Maldoror, meio
subterrânea, desde o final do século XIX. Através de Rubén Darío, chegou aos
modernismos e vanguardismos ibero-americanos e, em seguida, à geração espanhola de
1927. Contudo, surrealistas foram os primeiros a localizar a obra seguinte de Lautréamont,
Poesias, cujo exemplar único na Biblioteca Nacional, copiado por Breton, foi publicado na
revista Littérature em 1919. E, mais importante, os que enfrentaram o enigma relacionado a
Poesias, a resposta à questão de como, imediatamente após uma obra tão iconoclasta, tão
comprometida com o mal quanto Os Cantos de Maldoror, Lautréamont pôde escrever um
texto aparentemente moralista, de conversão ao bem. Propuseram uma interpretação
dialética, entendendo Poesias, não como afirmação do bem, mas como negação da própria
negação. Em 1919, Breton observava: há muito tempo, já, Baudelaire reivindicou o direito
de contradizer-se: admito que as Poesias de Isidore Ducasse sigam e refutem Os Cantos de
Maldoror. Acentuou que a revolta de Maldoror nunca seria a Revolta se devesse poupar
indefinidamente uma forma de pensamento às custas de uma outra; é, pois, necessário que,
com Poesias, ela se precipite em seu próprio jogo dialético.46
Além da contribuição à bibliografia lautreamontiana por Breton, Aragon, Soupault e
Éluard, há uma iconografia, uma galeria de obras criadas pelos grandes nomes da pintura
surrealista, Max Ernst, Dali, Matta, Miró, entre outros, ilustrando cenas de Os Cantos de
Maldoror, ou criando retratos imaginários. Tais obras não são meramente ilustrativas:
incorporam aspectos fundamentais de seu modo de criação e expressão; principalmente a
colagem, a justaposição aparentemente arbitrária de objetos e conceitos, cujo modelo é a
série dos belo como, um correlato do conteúdo explícito de Os Cantos de Maldoror, das
histórias não apenas cruéis, mas burlescas e absurdas, narradas em suas estrofes. Nelas se
encontram símiles paradoxais, contrastantes, já no Canto Primeiro: pois tens uma

46
Na revista Littérature e, em seguida, em Les pas perdus.
aparência sobre-humana; triste como o universo, belo como o suicídio. (...) É mais triste
que os sentimentos inspirados pela visão de uma criança em seu berço. Seguem-se
metáforas cada vez mais extravagantes: Há horas na vida em que o homem de cabeleira
piolhenta lança, o olhar fixo, miradas ferozes para as membranas verdes do espaço. (...) É
tempo de pôr um freio a minha inspiração, e parar, por um instante, no caminho, como
quando se olha a vagina de uma mulher. Culminam, em uma progressão caracterizada pela
expansão vocabular e imagética que acompanha o crescente desvairio das histórias, na
exploração das possibilidades do contraste através das séries de belo como dos dois cantos
finais. Em um duplo absurdo, pois se refere a um homem com cabeça de pelicano e outro
metamorfoseado em escaravelho por uma bruxa, os qualifica assim: ...belo como os dois
longos filamentos tentaculiformes de um inseto (...) como uma inumação precipitada (...)
como a lei da reconstituição dos órgãos mutilados (...) como o tremor das mãos no
alcoolismo (...) como um líquido eminentemente putrescível! Na descrição de Mervyn, o
adolescente que irá seqüestrar no Canto Sexto, enfrentando uma viga-traidora, um arcanjo-
caranguejo e o Deus-rinoceronte, começa com o belo como a retratibilidade das garras nas
aves de rapina e chega à sua imagem mais famosa, o belo como ...o encontro fortuito de
uma máquina de costura e um guarda-chuva sobre uma mesa de dissecção. E, logo a
seguir, vai do ...belo como o vício de conformação congênito dos órgãos sexuais do
homem, que consiste na brevidade relativa do canal da uretra e na divisão ou ausência da
parede inferior, de modo que o canal se abra a uma distância variável da glande e por
baixo do pênis, até um belo como uma corveta encouraçada com torreões.
Mais que influência, há intertexto e diálogo ambivalente de Lautréamont com
Baudelaire. Correspondências e analogias são adotadas, e também parodiadas e satirizadas,
criando sua variedade mais subversiva e perversa. Uma coisa é dizer que uma mulher é um
navio, e que os seios são o estofo de um armário, como em A bela nau. São relações de
contigüidade e afinidade entre coisas diferentes, porém unidas através de atributos como
beleza ou elegância. Outra é o modo como Lautréamont ataca o princípio da identidade
como se não quisesse deixar pedra sobre pedra, produzindo uma seqüência de absurdos e
paradoxos. Os belo como e demais metáforas extravagantes são a expressão de um ímpeto
transformador, signo, como apontado por Bachelard, pelo próprio Breton e outros
estudiosos, da metamorfose de tudo, do mundo e do próprio autor, conforme corrobora o
próprio Lautréamont: É um homem ou uma pedra ou uma árvore quem vai começar o
quarto canto. (...) a metamorfose nunca apareceu a meus olhos senão como elevada e
magnânima ressonância de uma felicidade perfeita.
Se, até o surrealismo, Lautréamont permaneceu pouco mais que um sinônimo de
excentricidade, a exceção entre leitores perplexos foi um jovem recém-chegado em 1891 a
Paris e à confraria simbolista, Alfred Jarry, o autor de Ubu Rei e do conseqüente escândalo
em 1896, e o primeiro a efetivamente entender o alcance de Os Cantos de Maldoror. Daí a
afinidade em imagens, temas, vocabulário, na lógica da metamorfose que rege sua obra, nas
paráfrases e citações em seu primeiro livro de poesias, Les minutes de sable mémorial, e em
sua primeira narrativa em prosa, Haldernablou. Neles, adotou os belo como: ...seu sexo,
belo como uma coruja dependurada por suas garras.47
Assim como em Lautréamont, em Jarry as correspondências baudelairianas
serviram à paródia. Um bom exemplo, utilizado por Breton para ilustrar o que seria um
humor objetivo puro em sua conferência sobre a Situação surrealista do objeto,48 é o poema
Fábula,49 a história de uma lata de corned beef que se apaixona por uma lagosta, por causa
da afinidade, pois esta se parecia com ele como se fosse uma irmã: via-a como semelhante,
vivente caixinha automotriz de conservas, pois ambas, a lata de carne em conserva e a
lagosta, tinham uma dura carapaça, envoltório que protegia um recheio de carne macia. É,
portanto, Baudelaire transposto para o modo burlesco, com crustáceos e latas de conserva
no lugar dos seios da amada e dos armários estofados, recheados de perfumes e licores, de
A Bela Nau.
Mas este é um fragmento da enorme contribuição de Jarry, através de uma obra
colossal, que inclui Le sûrmale e Gestes et opinions du docteur Faustroll, pataphysicien.
Nesta, apresenta os fundamentos da Patafísica, a ciência das soluções imaginárias,
dedicada ao estudo do particular e dos epifenômenos. Fascinado pela ciência, assim como
por hermetismo e ocultismo,50 chegou a transpor noções de física atômica e

47
Alfred Jarry, Les Minutes de sable memorial – César-Antechrist, prefácio de Philippe Audoin,
Poésie/Gallimard, Paris, 1977.
48
Publicado na edição brasileira, da Nau, dos Manifestos do Surrealismo, já citada.
49
O poema Fable é de Gestes et opinions du docteur Faustroll, pataphsicien; entre outros lugares,
está em Jarry por Jacques-Henry Levesque, Poètes d’aujourd’hui, Seghers, Paris, 1987.
50
Mais sobre a amplidão de Jarry em Henri Béhar, Les Cultures de Jarry, PUF, Paris, 1988, e no
extenso estudo biográfico de Noël Arnaud, Alfred Jarry - d’Ubu roi au Docteur Faustroll, Editions
de la Table Ronde, Paris, 1974.
eletromagnetismo para a linguagem: postulou que palavras eram coisas, objetos com
propriedades eletromagnéticas, atraídas ou repelidas em função delas. Assim antecipou a
noção futurista de palavras em liberdade (não por acaso, Marinetti o traduziria para o
italiano, já em 1909), bem como a concepção surrealista expressa no título da primeira obra
de escrita automática, Les champs magnètiques, os campos magnéticos, de 1919.
Entre os freqüentadores e interlocutores de Jarry estava, por sua vez, Guillaume
Apollinaire, o grande vulto do ciclo vanguardista, não só pela estatura como poeta, mas por
haver sido o pensador e ideólogo da modernidade e das vanguardas em seus textos sobre
Picasso e os cubistas, e sobre o L’Esprit nouveau et les poètes. Criador da expressão
“surrealismo”, companheiro da geração cubista e de Reverdy, a imagem feita de
aproximações de realidades diferentes não podia deixar de estar presente em sua lírica,
como no famoso final de Zona, o Adeus adeus/ Sol pescoço cortado.51 Ou em...É a lua a
cozinhar como um ovo no fogo de As Bodas, o poema dedicado a Picasso; e em As Janelas,
com Aranhas cujas mãos tecem a luz, filtrada através da janela que ...se abre como uma
laranja/ O belo fruto da luz, através da qual As torres são ruas (...) Poços são praças,
permitindo que o poeta veja Bigorna lampréia sóis múltiplos ouriços do poente.
Versos como esses exerceram influência direta sobre o surrealismo, e também
exemplificam o simultaneísmo, tal como proposto e literariamente realizado por
Apollinaire, por Blaise Cendrars, e pelo futurismo de Marinetti. Este apresenta, em seu
“Manifesto Técnico” da Literatura Futurista, de 1912, no qual defende as palavras em
liberdade e o estilo analógico, um conceito de imagem poética semelhante ao de Pierre
Reverdy, precedendo-o cronologicamente: A analogia nada mais é que o amor profundo
que liga as coisas distantes, aparentemente diferentes e hostis. (...) As imagens não são
flores para escolher e colher com parcimônia, como dizia Voltaire. Elas constituem o
próprio sangue da poesia. (...) Quanto mais as imagens contiverem relações vastas, tanto
mais elas conservam sua força de estupefação.52
Poéticas vanguardistas como, entre outras, o desvairismo de Mário de Andrade ou o
sensacionismo de Pessoa e Sá Carneiro são suas variantes, ao buscarem o registro de níveis
de realidade diferentes, suprimindo ou alterando coordenadas do tempo e espaço. Criaram

51
Para esta e as citações seguintes, a tradução de Paulo Hecker Filho em Escritos de Apollinaire,
L&PM, Porto Alegre, 1984.
52
Em O Futurismo Italiano, organizado por Aurora Fornoni Bernardini, Editora Perspectiva, 1980.
poemas que são correlatos da velocidade e do caráter mutante do mundo moderno, já
observado por Baudelaire em O Pintor da Vida Moderna. Portanto, outras tantas projeções
ou desdobramentos da estética e cosmovisão matricial das sinestesias e correspondências de
Baudelaire, das quais o surrealismo foi o desdobramento mais conseqüente, de maior fôlego
e amplidão.
Imagens feitas de aproximações de termos ou realidades distintas, não apenas
presentes, porém uma constante nos autores identificáveis ao surrealismo, não são um
território homogêneo.
Entre esses autores, merece especial destaque Malcolm de Chazal com seus poemas
em prosa de uma só frase, apresentando analogias por afinidade ou contigüidade: O olho
tem todos os gestos do peixe. (...) Os vales são o soutien do vento. (...) O olhar humano é
um farol que navega. (...) A volúpia está no centro do ciclone dos sentidos.53 Contrariando
um chavão corrente, de que poesia surrealista é “barroca”, extensa e hiperbólica, já
encontramos tais epigramas e aforismos, poemas de uma frase, em Éluard: Chora, as
lágrimas são as pétalas do coração, ou Entrega-te, que tuas mãos se abram como olhos.54
Uma lírica surrealista feita de imagens também é exibida, entre tantos outros, por
Joyce Mansour: Amor coruja amiga/ Safira límpida e cega, para terminar com Eu nada sou
senão uma mulher nua/ Na ponta/ Dos raios verdes que jorram dos teus olhos/ Uma
mulher nua pintada pela mão de um desconhecido.55 Esse lirismo parece dialogar com
aquele de Éluard, Péret ou Breton, mostrando que não tem cabimento atribuir uma
especificidade masculina à exaltação romântico-surreal do amor.
Exemplos da condensação através de imagens podem multiplicar-se. Incluem a
visão da dimensão trágica ou dramática da realidade, como neste trecho do argentino
Enrique Molina, que confina com o expressionismo: A prostituta estirada na rua/ na
pompa do crime recém-cometido,/ é imensa como o silêncio de Deus.56
Também predomina na poesia de Octavio Paz, freqüentemente como séries de pares
de termos opostos, a exemplo do extenso poema Blanco, que termina em metalinguagem,
53
Em Sens-plastique, Gallimard, Paris, 1989. A frase final da série foi escolhida por Roberto Piva
como epígrafe de Ciclones, de 1997.
54
Em Poésies 1913-1926, Poésie/ Gallimard, Paris, 1979.
55
Parte da série ...Lui, dans les ténèbres, publicada em La Bréche – Action Surréaliste nº 3, Paris,
setembro de 1962.
56
Do poema Bagagem, incluído no já citado O Começo da Busca – O Surrealismo na poesia da
América Latina de Floriano Martins.
falando da relação entre imagem e mundo: O mundo/ Feixe de tuas imagens/ Anuladas na
música/ Teu corpo/ Derramado em meu corpo/ Visto/ Desvanecido/ Dá realidade ao olhar.
Ou então, em: Acima a água/ Embaixo o bosque/ O vento pelos caminhos// Quietude do
poço/ O cubo é negro A água firme// A água desce até as árvores/ O céu sobe até os
lábios.57
Assim como é possível observar um pólo da elipse, síntese e condensação, há outro
pólo da expansão ou hipérbole, do qual um exemplo expressivo é este trecho de uma
homenagem a Lautréamont, por sua vez mestre de hipérboles e perífrases, pelo português
António Maria Lisboa: Aqui ama-se sem leis, sem regras, no leito, em quartos abruptos e
selvagens, ama-se na angústia, em seios de mãe, nos ângulos invisíveis de olhos enormes e
belos, escuros e magníficos distendidos pelo universo, ama-se através do silêncio com
monstros desmedidos que habitam os abismos, ama-se num ponto indeterminado do
horizontabismado sacudido por um vento vermelho que os vampiros trazem para dar de
comer aos amorosos que habitam todo o universo ignorado. Ama-se matando, recordando
todos os assassinatos da história do mundo, todos os jogos maléficos.58
A imagem surrealista acabaria sendo adotada como expressão da negritude por três
importantes poetas das Antilhas e Caribe, o martiniquenho Aimé Césaire e os haitianos
Magloire – Saint-Aude e René Depestre. Na obra de Césaire, um dos grandes poetas do
século XX, é torrencial em Batouque, onde transparece o intertexto com o Breton de Union
libre: ...batuque do rio engrossado por lágrimas de crocodilos e de chicotes à deriva/
batuque da árvore com serpentes de dançarinos da campina de rosas da Pensilvânia
encarando os olhos o nariz as orelhas/ as janelas da cabeça serrada/ do supliciado/
batuque da mulher de braços de mar de cabelos de fonte submarina/ sua rigidez
cadavérica transforma os corpos em lágrimas de aço/ todos os fasmas folhudos fazem um
mar de agaves azuis e de jangadas.59
A permanência da imagem, sua presença até hoje na poesia surrealista e naquela que
lhe é afim, pode ser ilustrada por citações de dois contemporâneos. Um deles, o colombiano
57
Os dois trechos são de Ladera Este, Joaquín Mortiz, México, 1975. Blanco foi traduzido por
Haroldo de Campos como Transblanco.
58
Este poema está na antologia A única real tradição viva, organizada por Perfecto E. Cuadrado,
Assírio & Alvim, Lisboa, 1998, e na edição de Poesias de António Maria Lisboa, também pela
Assírio & Alvim, Liboa, 1995.
59
Entre outros lugares, na antologia Poètes d’expression française, 1900-1945, organizada por L. G.
Damas, Éditions du Seuil, Paris, 1947.
Raúl Henao: Um céu como vinho escuro/ Goteja na mesa do viajante.// Fantasma do amor/
Chamas para sua porta/ Batente para todos os ventos. Outro, o brasileiro Roberto Piva:
Tuas mãos azuis são um contrapeso, um solo longínquo inanimado de um saxofone num
deserto de beijos. Nossas bocas só agora meio despertas fazem passar pássaros em
revoada sob a pele. Ou, levando a imagem até a distância máxima dos seus termos, de um
modo que lembra Péret e tem origem em Lautréamont: Os eixos da imensa vibração
exaltam a tinta da folhagem seca na esfera dos trombones marinhos um pouco à minha
disposição em brilhos de Tômbola. Espinheiro de carga elétrica nos túneis de ovos fritos.60
Portugal, nas últimas décadas, tornou-se uma fábrica de imagens. Seu grau máximo
de adensamento está em Herberto Helder, desde Dai-me uma jovem mulher com sua harpa
de sombra/ e seu arbusto de sangue. Com ela/ encantarei a noite, de O amor em visita, até
algo como: E um terrível amor – pontapé estupendo,/ tempestade de areia./ Então o cabelo
respirava como uma tábua/ irada. Longe, perto – as silveiras/ vergavam ao som de
mulheres/ cantando vírgulas, peixes e aspas./ Enquanto a visão de um copo de pé e da letra
k./ E a minha alegria, fábrica de/ cabelo quente, telha molhada. (...) Sinistro na mão um
peixe levantado/ louco, alguém/ gritando, ia gritando pela fábrica fora./ Rosas enoveladas
vergavam no sono,/ enquanto letras com os cabelos/ escorrendo num muro./
Extraordinário, pendurado no sono/ sinistro, um negro peixe/ morria durante a neve
inteira.61 Até que ponto um poeta como Helder deve ser qualificado como surrealista será
examinado a seguir, no tópico sobre leitura de poesia a partir do surrealismo. Interessa
mostrar como ele cria meta-imagens, imagens ao quadrado, através da sua combinação ou
permuta.
Em um livro dedicado à imagem na poesia e nas artes visuais, J. H. Matthews a
examina à luz da retórica e da estilística. 62 Comenta os símiles, ou melhor, pseudo-símiles,
apresentando comparações que rompem expectativas, como A terra é azul como uma
laranja de Paul Éluard.63 E o desdobramento desses símiles da dissemelhança, as metáforas

60
Extraí as duas citações, de Henao e Piva, de O Começo da Busca – O Surrealismo na poesia da
América Latina de Floriano Martins. Os trechos de Piva são de Piazzas, seu livro de 1964, reeditado
em 1979.
61
Do poema Joelho, salsa, lábios, mapa, em O corpo o luxo a obra, Iluminuras, São Paulo, 2000,
ou Herberto Helder, Poesia toda, Assírio & Alvim, Lisboa, 1990.
62
J. H. Matthews, The imagery of Surrealism, Syracuse University Press, 1977.
63
Em L’Amour la poésie, que faz parte do já citado Capitale de la douleur.
impossíveis, a exemplo de As palavras passavam: era um vôo triangular e furtivo, em Les
champs magnétiques de Breton e Soupault.
Tomando imagens como metáforas, observamos, não apenas a aproximação
improvável, mas a inversão do geral e do particular, do lugar que caberia à coisa e ao
atributo. Isso, como uma das possibilidades da quebra dos nexos lógicos da linguagem
instrumental, do prosaico, fazendo que os poemas onde estão presentes correspondam a
outra lógica, aquela do sonho com seus deslocamentos e condensações, e da alucinação. É
o mesmo pensar que se manifesta através do pensamento mágico e mito-poético dos povos
“primitivos”, das sociedades tribais. Nesse sentido, pode-se falar em mimese no
surrealismo, porém não de uma realidade imediata, empírica, mas sim de um mundo oculto,
subterrâneo: aquele de estratos mais profundos da vida psíquica, equivalente, também, a um
pensamento “selvagem”.
Há uma relação de continuidade entre a poesia de imagens e os resultados de jogos
surrealistas. Deles, o mais famoso e mais praticado é o cadavre exquis (cadáver delicado ou
refinado), o jogo de papéis dobrados em que se escreve (ou desenha) prosseguindo o que
outro havia feito, mas com o texto precedente escondido. Resulta em frases como Se todos
os cavalos levassem ímãs em lugar de ferraduras, o coração dos amantes deixaria de
latejar. E, em sua variante das perguntas e respostas: - O que é a razão? É uma nuvem
comida pela lua; - O que é a arte? É uma concha branca em uma bacia cheia de água;64 ou
então: - O que é o crocodilo? O grande responsável. – O que é o elefante? O grande
irresponsável. – O que pode nascer deles dois? A flor.65 Um desses jogos é o um no outro,
que pratica deliberadamente a aproximação de realidades ou termos distintos.66
Tais procedimentos são um passo para a arte combinatória ou permutacional, através
de aproximações de termos e frases, inclusive valendo-se do meio digital, seguindo um
algoritmo, uma programação prévia, como praticadas, entre outros lugares, no âmbito do
OuLiPo, o prestigioso movimento iniciado por Pérec, Queneau e outros autores por sua vez
vinculados ao Colégio de Patafísica. No entanto, criações de OuLiPo e iniciativas afins são

64
Os exemplos, sucessivamente de Breton e Desnos, Breton e Eluard e Breton e Giacometti, são de
Le surréalisme, de Durozoi e Lecherbonnier, ed. Larousse.
65
Alexandre O’Neill e Mário Cesariny, na antologia já citada A única real tradição viva, de Perfecto
E. Cuadrado.
66
Mais sobre o um no outro no texto de Maria Lúcia dal Farra publicado nesta coletânea.
frias. Falta-lhes a dimensão do orgânico ou visceral, pois a contradição entre subjetividade
e mundo é suprimida em um universo abstrato, rarefeito, exclusivamente de signos.
3. Diversidade e alcance da poesia surrealista

Os trechos de poemas citados acima já sugerem ser um equívoco falar em “estilo”


surrealista, assim como em técnica ou método. Surrealismo, atitude e visão de mundo, não
tem por finalidade escrever deste ou daquele modo. Ver unidade de estilo no surrealismo é
resultado do desconhecimento.
Das figuras de frente do surrealismo, Breton tinha uma escrita tortuosa,
caracterizado pelo recurso às tournures, ao fraseado complexo, com o acréscimo da
extensão vocabular. Justificou que o chamassem de “barroco”, e as observações de Anna
Balakian sobre uma prosa de século XVII construída de um modo um tanto gótico
(referindo-se a sua ensaística); 67 bem como as de Carlos M. Luis: Cada vez que repasso
aquele que, na minha opinião, é o mais belo livro de Breton, Arcane 17, não posso deixar
de ouvir, nos bastidores, a voz de Bossuet;68 isto, para diferenciá-lo da simplicidade e do
caráter primitivo que atribui à escrita de Péret. Em Éluard, por sua vez, encontramos uma
escrita límpida, direta, mais “fácil” e legível. Aragon tinha uma prosa exuberante, e adotava
freqüentemente um estilo coloquial, como se conversasse com o leitor. E por aí afora: cada
um desses autores, uma vez estabelecida familiaridade com sua obra, é identificável por seu
estilo próprio, pessoal.
Além disso, muitos foram os campos explorados por esses poetas, dentro do
universo da criação literária. Promoveram a superação das fronteiras entre os gêneros,
produzindo obras inqualificáveis como poesia, narrativa em prosa, ensaio ou crônica.
Também suprimiram distinções entre o literário e não-literário, como no trânsito de Michel
Leiris, o autor de O Espelho da Tauromaquia,69 da poesia para a etnografia, na
contribuição, também etnográfica, de Pierre Mabille em Le miroir du merveilleux,ou na

67
Na introdução a André Breton today, editado por Anna Balakian e Rudolf E. Kuenzli, Willis,
Locker & Owens, Nova Iorque, 1989.
68
Carlos M. Luis, Benjamin Péret o el mundo al revés, revista Atalaia – Intermundos, Centro
Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa, nº 10/11, 2002,
originariamente publicado na revista eletrônica Agulha, www.revista.agulha.nom.br e também
disponível em www.triplov.com .
69
Recentemente publicado no Brasil pela Cosak e Naifi.
compilação de mitos e lendas indígenas por Benjamin Péret, examinando sua dimensão
poética.70
Além disso, sendo a imagem central, conforme já visto, isso não significa que
poemas surrealistas sejam sempre constituídos por aproximações de realidades ou termos
diferentes. Seu corpus abarca o que houve de inovador ao longo do século XX. Liberar o
“discurso do pensamento”, o fluxo da linguagem, foi levado a extremos por Robert Desnos,
em poemas feitos de significantes aproximados pelo valor prosódico, compondo séries de
homofonias, aliterações, parônimos: Les chats hauts sur les châteaux/ d’espoir/ Croquent
des poires d’angoisse/ la nuit/ l’ennui/ l’âme nuit.71 (há correspondências sonoras
intraduzíveis; ao pé da letra: Os altos gatos sobre os castelos/ de esperança/ Abocanham as
pêras da angústia/ a noite/ o tédio/ a alma amola.)
Exemplos como esse, ou então L’appeau/ La peau, peau-pierre (onde a pálpebra é
pele de pedra por homofonia), e L’or est hors de nos mains/ qui demain/ palpéront les cinq
seins/ d’une femme plus belle que/ la qui bêle (O ouro está fora de nossas mãos/ que
amanhã/ apalparão os cinco seios/ de uma mulher mais bela que a alma que bale), também
compõem o capítulo da analogia. São cabala fonética, que exibe e disfarça palavras através
de outras cujo som é assemelhado, ocultando sentidos e gerando-os. Mas, ao contrário da
criptografia, que é exata, tais enunciados produzem polissemia, multiplicando sentidos.
Preenchem boa parte da poesia de Desnos no período em que esteve diretamente ligado ao
surrealismo, reunida na coletânea Corps et biens. Incluem a série Rrose Sélavy – que havia
sido iniciada por Marcel Duchamp –, com anagramas como Le temps est un aigle agile
dans un temple (O tempo é uma águia ágil em um templo). Através deles, Desnos indica o
criador dos ready-made: Rrose Sélavy connaît bien le marchand du sel, onde marchand du
sel é Marcel Duchamp com sílabas trocadas (o próprio Duchamp adotava esse
pseudônimo).
Michel Leiris, por sua vez, continuaria esse procedimento, chegando, em Glossaire
j’y serre mes gloses de 1939,72 dedicado a Robert Desnos, a criar um dicionário de
parônimos, homofonias e aliterações com cerca de oitocentas entradas, desde ABÎME – vie
secrète des amibes e ABRUPT – âpre et brut, passando por ÉROTIQUE, erratique? e
70
Benjamin Péret, Anthologie des mythes, légendes et contes populaires d’Amérique, Éditions Albin
Michel, Paris, 1960.
71
Em Corps et biens, Poésie/Gallimard, Paris, 1999, assim como os trechos seguintes de Desnos.
72
Republicado em sua coletânea Mots sans mémoire, Gallimard, Paris, 1969.
ESCALIER – l’obstacle est son esclave lié, até ZENITH – qu’il m’attise! Et je n’hésite.... e
ZÉRO – oh! l’érosion de l’essor rosé... Exemplos equivalentes de anarquia verbal e
desorganização dos fonemas também se encontram em Roger Vitrac.
Tais procedimentos são o oposto da escrita de conteúdo, pois vão desmontando o
sentido, a relação que o signo teria com uma referência externa. Cabe lembrar que o
surrealismo, para Breton, tem início, não na lírica das correspondências, mas em Jacques
Vaché; portanto, em provocações, operações de anarquia textual do sentido e cultivo do
nonsense e humor negro.73 E um dos autores referencias para o surrealismo foi Raymond
Roussel, com suas metodologias delirantes, voltadas para a desmontagem do sentido.
Mas a poesia temática, com assunto definido, falando de algo – a exemplo da Ode a
Charles Fourier de Breton – também está presente desde o início do surrealismo,
especialmente em Aragon. Uma obra como O Camponês de Paris é descrição e reflexão.
Suas narrativas foram temáticas, assim como a poesia, como observou Alain Jouffroy no
prefácio para Le mouvement perpétuel,74 comentando, porém, que cada poema cria seu
próprio tema, e assim produz significado. Nesse volume, Chambre garnie (quarto
mobiliado) é sobre um hotel que chamou a atenção de Aragon e Breton durante uma
caminhada; outros são sobre quadros de Chirico, Picasso, etc. O preferido de Breton, Pierre
fendre, é sobre o enterro de Jacques Vaché: Dias de inverno Lascas/ Meu amigo os olhos
vermelhos/ Segue o enterro Gelo/ Tenho ciúmes do morto// As pessoas caem como moscas/
Dizem-me bem baixo que estou enganado/ Sol azul Lábios gretados Medo/ Percorro as
ruas sem pensar no mal/ com a imagem do poeta e a sombra do caçador/ (...) Nada mais
me resta senão morrer de frio/ em público.
Ainda a propósito de temas, conteúdos, sentidos e referências exteriores ao texto, é
interessante como um poema explicitamente “surrealista” de Octavio Paz (é claro que
objeto à diferenciação, em um poeta complexo como Paz, entre uma fase próxima ao
surrealismo e outra afim a um formalismo), Noite em claro,75 é temático e chega a ser
narrativo. Relata um encontro de Paz na Paris do pós-guerra com Péret e Breton, aos quais

73
Sobre Jacques Vaché, Cravan/ Rigaut/ Vaché, Edições Antígona, Lisboa, 1980, e o capítulo sobre
ele do já citado Arcanos da Poesia Surrealista de Schuster e Pierre.
74
Aragon, Le mouvement perpétuel, Poésie/Gallimard, Paris, 1996.
75
Em Salamandra, ed. Joaquín Mortiz, México, 1962. Minha tradução deste poema foi publicada na
coletânea Folhetim – Poemas traduzidos, organizado por Nelson Ascher e Matinas Suzuki Jr, ed.
Folha de São Paulo, 1987.
o poema é dedicado, e a iluminação ao encontrar um jovem casal de namorados,
terminando com a exaltação da visão mágico-surreal da cidade: A cidade se desdobra/ seu
rosto é o rosto do meu amor/ (...) A outra face do ser/ A outra face do tempo/ O avesso da
vida/ Aqui cessa todo discurso/ Aqui a beleza não é legível/ Aqui a presença se torna
terrível/ Dobrada em si mesma a Presença é vazio/ O visível é invisível/ Aqui se torna
visível o invisível/ Aqui a estrela é negra/ A luz é sombra luz é sombra/ Aqui o tempo pára/
Os quatro pontos cardeais se tocam/ É o lugar solitário o lugar do encontro// Cidade
Mulher Presença/ Aqui começa o tempo.
A já citada antologia O Começo da Busca, mesmo restrita ao âmbito latino-
americano, oferece um painel dessa diversidade. É possível mostrar que os poemas nela
incluídos se movem ao longo das dimensões do concreto e do abstrato, e, correlatamente,
da maior ou menor proximidade à escrita temática. Vão desde as paisagens de sonho do
chileno Ludwig Zeller até a ironia do venezuelano Juan Calzadilla ao relatar um assalto: A
bolsa ou a vida/ Isso é o que não cansam de nos pedir/ como se a alternativa fosse
ineludível/ e o transe de decidir mais importante que/ o resultado da ação./ (...) O que nos
desgosta é o cortante da fórmula/ ou talvez o fato de que para responder/ não possamos
dispor nem da vida nem da bolsa.
Sátira e paródia satírica76 são modos da escrita temática. Têm um referente, um alvo
definido. Não estão apenas nos manifestos e panfletos do surrealismo, e nas manifestações
iconoclastas, com intenção ridicularizadora. Benjamin Péret, em cuja obra o humor é uma
constante, criou um livro todo de poesia satírica, anticlerical e antimilitarista, Je ne mange
pas de ce pain-la (Não como desse pão), com seu hino dos antigos combatentes patriotas,
no qual um grotesco veterano de guerra descreve o quanto se acha belo, e 6 février, data de
uma sublevação direitista: Viva o 6 de fevereiro (...) Como foi bonito/ Os ônibus em chamas
como os hereges de outrora.77 Poesia satírica e paródica também é encontrada em Robert
Desnos, usando formas tradicionais como a quadra.
E, em L’Immaculée Conception,78 obra escrita em parceria por Breton e Éluard,
simulando vários quadros clínicos, inclusive estados de demência, o capítulo sobre
debilidade mental mimetiza o discurso de um reacionário xenófobo: Não entendo
76
Distingo entre sátira, com um referente externo, uma intenção ridicularizadora, e paródia,
operação textual, recontextualização ou reaproveitamento de outro texto.
77
No já citado Benjamin Péret da Poètes d’aujourd’hui.
78
André Breton e Paul Éluard, L’Immaculée Conception, Seghers, Paris, 1987.
absolutamente por quê entregam a cruz da Legião de Honra a personalidades estrangeiras
de passagem por Paris, etc.
Também em L’Immaculée Conception, obra de interesse pelos resultados obtidos
através da “possessão”, limítrofe do automatismo psíquico, a imagem poética levada ao
extremo, através do máximo distanciamento de seus termos, resulta em absurdo e humor. A
sugestiva série de 32 posições arroladas por Breton e Éluard também pode ser lida como
sátira e paródia do Kama Sutra: 1. Quando a mulher está de costas e o homem está deitado
sobre ela, é a cedilha. 2. Quanto o homem está de costas e sua amante está deitada sobre
ele, é o c. 3. Quando o homem e sua amante estão deitados de lado, e se observam, é o
pára-brisa. 4. Quando o homem e a mulher estão deitados de lado, só as costas da mulher
deixando-se observar, é a água-viva. (...) 11. Quando a mulher está sentada de costas, os
joelhos dobrados, sobre o homem deitado, é o trampolim. 12. Quando a mulher,
repousando de costas, ergue as coxas verticalmente, é o pássaro-lira. 13. Quando a mulher,
vista de frente, coloca suas pernas sobre os ombros do homem, é o lince. (etc)
Adotada a distinção proposta por Octavio Paz, em Os Filhos do Barro, entre
analogia e ironia, tomadas como pólos opostos, porém complementares, observa-se assim a
presença da ironia no surrealismo. Ambas, ironia e analogia, são expressões da crítica.
Atacam a relação de significação, a idéia de que a cada termo ou enunciado corresponde
um referente externo. O pensamento analógico sugere que uma coisa sempre é outra. A
ironia, por sua vez, mostra o sem-sentido do que aparenta ter sentido: Octavio Paz
esclarece: A ironia é a ferida pela qual sangra a analogia; é a exceção, o acidente fatal, no
duplo sentido do termo: o necessário e o infausto. (...) O universo, diz a ironia, não é uma
escrita; se fosse, seus signos seriam incompreensíveis para o homem porque nela não
figura a palavra morte, e o homem é mortal.
O surrealismo português, mesmo apresentando uma expressiva lírica de imagens,
acrescentou algo ao corpus da poesia surreal, ao pender fortemente para o pólo da ironia.
Através de textos paródicos e satíricos, atacou o chavão, o lugar comum e a frase feita, os
modos de manifestar-se do autoritarismo e conservadorismo. Tais procedimentos foram
associados a uma tradição que remonta às cantigas de escárnio e mal-dizer, entre outros
autores, por Natália Corrêa, e por Perfecto Cuadrado, no prefácio de sua antologia: 79 Ao
No já citado A única real tradição viva - Antologia da poesia surrealista portuguesa, de Perfecto
79

Cuadrado.
Surrealismo português se deve um trabalho de recuperação de formas e sentidos –
perdidos ou maginalizados – típicos da poesia popular e de algumas correntes específicas
da poesia culta tradicional. Por isso, diz ele, a subversão desde o texto acabaria, assim,
numa subversão do próprio texto.80
Um dos muitos exemplos possíveis é esta amostra de imitação degradante, como
diz Cuadrado, intitulada Rural, de Cesariny, visando a escrita neo-realista: Como chove,
Cacilda!/ Como vem aí o inverno, Cacilda!/ Como tu estás, Cacilda!// Da janela da tua
choça o verde é um prato/ que deve ser lavado, Cacilda!/ e o boi, Cacilda!/ E o ancinho,
Cacilda!/ E o arroz a batata o agrião, Cacilda!// Eu logo passo outra vez./ Em prosa,
provavelmente./ Arrozinho, Cacilda!/ Os melhores anos da nossa vida, Ilda!/ - Ausente!
Observa-se, nesse exemplo, o pastiche, com o rebaixamento proposital de outro
texto. O mesmo procedimento, agora voltada contra a alta literatura, está em Louvor e
Simplificação de Álvaro de Campos, um dos textos que iniciam o surrealismo português,
escrito em 1946 e publicado em 1953. Nele, Cesariny se dispôs a “Simplificar” Fernando
Pessoa tomando de empréstimo algo de sua linguagem, e reduzi-lo ao voto de um barco
para o Barreiro.81 Visava aos ...festejos com uma bela ligação de girândolas, das quais
virão a sair grandes fichas obnóxias com o seguintes dizeres: Poetas Pataratas: Fernando
Pessoa, Rainer Maria Rilke, etc., etc., e etc. – Poetas Muito Bons e de Muito Juizinho: este,
aquele, aqueloutro. Incluiria um poema intitulado Pastelaria, sátira e paródia de Tabacaria
de Pessoa.
É um projeto que teria prosseguimento ao longo de toda a obra de Cesariny. Sua
verve satírica e paródica, que não pouparia Shakespeare e Goethe em Titânia, voltaria a
tratar de Pessoa no virulento O Virgem Negra de 1989,82 sobre o centenário do autor de
Mensagem e a conseqüente exumação. Há passagens edificantes, como O Álvaro gosta
muito de levar no cu/ O Alberto nem por isso/ O Ricardo dá-lhe mais para ir/ O Fernando
emociona-se e não consegue acabar. Isso haver passado em brancas nuvens, sem uma
comoção mais forte, mostra o quanto Portugal mudou, de 1974 para cá. Por muito menos,
80
Mais a respeito em Teoria da Paródia Surrealista de , J. Cândido Martins; eds. da APPACDM
Distrital de Braga, 1995.
81
Mário Cesariny, Nobilíssima Visão, seguida de Nicolau Cansado Escritor, de Louvor e
Simplificação de Álvaro de Campos, e de Um Auto para Jerusalém, Guimarães & Cia. Editores,
Lisboa.
82
O Virgem Negra – Fernando Pessoa explicado às Criancinhas Naturais e Estrangeiras por M. C.
V, por Mário Cesariny, segunda edição, revista e aumentada, Assírio & Alvim, Lisboa, 1996.
obras de Cesariny e outros surrealistas portugueses haviam sido proibidas durante o regime
salazarista. Entre outras, o próprio Louvor e simplificação de Álvaro de Campos de
Cesariny, com sua primeira versão mutilada pela censura.
Um dos manifestos do surrealismo português, A Afixação Proibida,83 pode ser
entendido, em seu nonsense, como sátira aos próprios manifestos surrealistas e como
retomada do ímpeto iconoclasta de dadá, pelas genealogias absurdas, enumerações caóticas
e declarações como esta: É a expressão de tais Mistérios que faz com que apareçam no
peixe Grandes Manchas Vermelhas e na Múmia a capacidade de nos dar um gosto
demoníaco da negação da negação – processo de crítica e autocrítica que irrompe
espontaneamente.
Todos esses procedimentos, da ordem da sátira e da paródia, pertencem a uma
tradição milenar. Mas têm raízes baudelairianas. Em Baudelaire, o jogo entre analogia e
ironia é uma constante. Assim, precedendo o soneto das correspondências, na famosa
abertura de As Flores do Mal, faz escrita auto-reflexiva, metalinguagem, ao escrever sobre
o sentido de sua poesia, e chamar seu leitor de hipócrita. E sua lírica é marcada pela
ambivalência: nela, a mulher é desejada, objeto de sedução, portal de iniciação e viagem
pelo mundo, e também monstro, assombração a persegui-lo.
Esse jogo se reproduz entre os simbolistas, especialmente na ironia de Tristan
Corbière e Jules Laforgue, que tanta influência exerceram sobre Pound e Eliot. E, sem
dúvida, em Lautréamont e Rimbaud. Os Cantos de Maldoror de Lautréamont são escrita
irônica, pelo modo como ridicularizam Deus, o bem, o ser humano, os valores, e também
por estarem recheados de paródia e alusões a um sem-número de autores, dos clássicos aos
românticos – por exemplo, nas paráfrases de Byron e de Baudelaire na estrofe do mar, do
Canto I – além das “correções” em Poesias, as adulterações de Pascal e Vauvernargues, e
na simulação de adesão ao bem. Quanto a Rimbaud, não faltou sátira em sua obra, visando
preferencialmente a monarquistas e tradicionalistas, a exemplo de fragmentos como
Lamento do Velho Monarquista e Lamento dos Merceeiros,84 ou da Lettre du Baron de
Petdechèvre,85 e ao catolicismo, no corrosivo As Primeiras Comunhões.

83
Assinado por Pedro Oom, António Maria Lisboa, Henrique Risques Pereira e Mário Cesariny,
publicado, entre outros lugares, na coletânea A intervenção surrealista, organizada por Cesariny, e
na antologia de Perfecto Cuadrado, A única real tradição viva.
84
Ambos no já citado Arthur Rimbaud – Poesia Completa.
Qual, diante disso, é o campo da poesia surrealista, e quais as suas fronteiras? A
pergunta se justifica pela constatação de que, em poetas ligados ao surrealismo, pode-se
encontrar também, por vezes acessoriamente, procedimentos tidos como característicos de
um construtivismo. Algo do que Desnos e seus pares fizeram poderia passar por poesia
concreta. E, mais nitidamente, nas criações ao mesmo tempo textuais e visuais de Michel
Leiris, em seu já citado glossário de Mots sans mémoire. Nele, palavras se entrelaçam sobre
a página, criando novos sentidos (jogando, por exemplo, com mourir, miroir e amour),
distinguindo-se dos caligramas de Apollinaire, nos quais a disposição gráfica procurava
ilustrar sentidos (por exemplo, nas linhas diagonais do poema sobre a chuva), em um modo
que corresponde, sem tirar nem pôr, ao que concretos viriam a propor quase duas décadas
depois.
A resposta é extra-literária. Ou, ao menos, não é dada pela apreciação exterior,
formal, do poema. Conforme já observado, o surrealismo é atitude e visão de mundo. É
preciso levar em conta esse contexto para qualificar o poema como surrealista.

4. Poesia surrealista e visão de mundo

Filosofia e doutrinas exteriores ao campo da literatura sempre interagiram, de algum


modo, com movimentos literários. O romantismo alemão foi um encontro de poetas e
filósofos. O surrealismo procedeu a uma revitalização e atualização da relação entre poesia
e outros campos do conhecimento através da releitura de Hegel, do acréscimo de Marx e
Engels, da adoção pioneira, naquele contexto, da psicanálise freudiana, e, ao mesmo tempo,
da recuperação e reinterpretação das “ciências proibidas”, do hermetismo e ocultismo. Daí
ser apropriado examiná-lo como visão de mundo, que, sem constituir-se em sistema
fechado, inclui as linhas gerais de uma poética.
Nas imagens que foram examinadas, em um percurso de Baudelaire até o
surrealismo, predomina o pensamento analógico. Conforme já observado, seu fundamento é
a crítica dos princípios lógicos da identidade e da não-contradição. Trata-se, portanto, de
outro pensar, um modo alternativo com relação à razão discursiva, como observa Octavio
Paz em Os Filhos do Barro: Apesar dessa vertiginosa diversidade de sistemas poéticos –
85
Outra de suas obras descobertas bem mais tarde, está em Oeuvres Complètes, Bibliothèque de la
Pléiade, Gallimard, Paris, 1954.
isto é: no centro mesmo dessa diversidade – é visível uma crença comum. Essa crença é a
verdadeira religião da poesia moderna, do romantismo ao surrealismo, e aparece em todos
os poemas, às vezes de uma maneira implícita e outras, em número maior, de maneira
explícita. Denominei-a analogia.
É o que já havia sido exposto por Breton, no prefácio de Signe ascendant86, entre
outros lugares: O método analógico, homenageado na antiguidade e idade média, desde
então grosseiramente suplantado pelo método “lógico” que nos conduziu ao impasse que
se sabe, o primeiro dever dos poetas, dos artistas, é restabelecê-lo em todas as suas
prerrogativas, às custas de arrancá-lo a seus subentendidos espiritualistas que, tendo
sempre se comportado com relação a ele como parasitas, viciam ou paralisam seu
funcionamento.
Para Breton, a analogia começa onde a dedução pára (assim contrariando o
positivismo, que considera o pensamento racional, lógico-dedutivo, como etapa seguinte,
na escala da evolução, ao pensamento mítico): A analogia poética tem em comum com a
analogia mística o fato de transgredir as leis da dedução para fazer que o espírito
apreenda a interdependência de dois objetos do pensamento situados sobre planos
diferentes, entre os quais o funcionamento lógico do espírito não é apto a lançar nenhuma
ponte e se opõe a priori a que qualquer espécie de ponte seja lançada. Adverte, contudo,
reafirmando o materialismo e anti-dualismo surrealista: A analogia poética difere
profundamente da analogia mística por não pressupor, de modo algum, através da trama
do mundo visível, um universo invisível que tenda a manifestar-se. Ela é toda empírica em
seu avanço, pois com efeito só o empirismo pode assegurar-lhe a total liberdade de
movimento necessária ao salto que ela deve dar.
Mas, mística ou não, transcendental ou empírica, dialetizada ou não, a analogia
expressa o pensamento mágico. Poetas, ao adotá-la, aproximaram-se do hermetismo e
ocultismo, conforme observou Octavio Paz, também em Os Filhos do Barro: Em sua
disputa com o racionalismo moderno, os poetas redescobrem uma tradição tão antiga
como o próprio homem, a qual, transmitida pelo neoplatonismo renascentista, além das
seitas e correntes herméticas e ocultistas dos séculos XVI e XVII, atravessa o século XVIII

86
André Breton, Signe ascendant, Poésie/ Gallimard, Paris, 1975.
e chega a nossos dias. Refiro-me à analogia, à visão do universo como um sistema de
correspondências e à visão da linguagem como o duplo do universo.
Em suma, antes de ser um modo da escrita, fenômeno textual, analogia é uma
interpretação do mundo. Oposta à lógica dedutiva, opera através da intuição e da
imaginação. Baudelaire sabia disso, conforme se vê ao examiná-lo, não apenas como o
poeta de As Flores do Mal, mas como pensador, em sua produção como crítico. Para ele, a
imaginação é a rainha das faculdades, e mais, rainha do verdadeiro: Que misteriosa
faculdade é essa rainha das faculdades! (...) A imaginação é a rainha do verdadeiro, e o
possível é uma das esferas do verdadeiro. Positivamente, ela é aparentada com o infinito.
(...) Todo o universo visível é apenas um lugar de imagens e de signos aos quais a
imaginação deverá atribuir um lugar e um valor relativos; é uma espécie de alimento que
a imaginação deve digerir e transformar. 87
O primeiro Manifesto do Surrealismo também começa pelo elogio à imaginação,
identificada à maior liberdade de espírito. Teria cabido crédito ou referência a Baudelaire
em trechos como este: Imaginação querida, o que amo em ti é não perdoares. (...) Só a
imaginação me dá contas do que pode ser, e é bastante para suspender por um instante a
interdição terrível; é bastante também que eu me entregue a ela, sem receio de me enganar
(como se fosse possível enganar-se mais ainda).
A fonte remota dessa concepção está em Platão. A imediata, no misticismo e
ocultismo dos séculos XVII a XIX, conforme se vê através da comparação com Éliphas
Lévi: Mas a inteligência e a vontade têm por auxiliar e por instrumento uma faculdade
muito pouco conhecida e cuja onipotência pertence exclusivamente ao domínio da magia:
quero falar da imaginação, que os cabalistas chamam o diáfano ou o translúcido.
Efetivamente, a imaginação é como que o olho da alma, e é nela que as formas se
desenham e se conservam, é por ela que vemos os reflexos do mundo invisível, ela é o
espelho das visões e o aparelho da vida mágica: é por ela que curamos as doenças, que
influímos sobre as estações, que afastamos a morte dos vivos e que ressuscitamos os
mortos, porque é ela que exalta a vontade e que lhe dá domínio sobre o agente universal.

87
Em Salão de 1859, incluído no já citado Charles Baudelaire, Poesia e Prosa.
(...) A imaginação é o instrumento da adaptação do verbo. A imaginação aplicada à razão
é o gênio.88
Associado ao culto à imaginação, tanto em Baudelaire quanto em Breton há um
vigoroso anti-realismo e anti-naturalismo. Baudelaire chegava a desprezar a escultura por
achá-la, entre as demais artes, demasiado “natural”: Acho inútil e fastidioso representar
aquilo que é, porque nada daquilo que existe me satisfaz. A natureza é feita, e prefiro os
monstros da minha fantasia à trivialidade concreta. Reservava ironias ao realismo ingênuo:
Onde só é preciso ver o belo, nosso público busca o verdadeiro. Quando é preciso ser
pintor, o francês se faz homem de letras. Um dia, vi no salão da exposição anual dois
soldados que contemplavam perplexos um interior de cozinha: “Mas afinal, onde está
Napoleão?”, dizia um (o catálogo trazia um erro de número, e a cozinha estava assinalada
com o algarismo legitimamente pertencente a uma batalha famosa). “Imbecil!”, disse o
outro, “não vê que estão preparando a sopa para quando ele voltar?” E lá se foram os
dois, contentes com o pintor e contentes consigo mesmos.
Este é, igualmente, o ponto de partida do surrealismo: a rejeição da submissão da
arte, declarada nas páginas iniciais do primeiro Manifesto do Surrealismo, em uma
veemente crítica ao realismo, ao naturalismo, à literatura psicológica, aspectos da visão
cientificista e mecanicista do mundo: ...a atitude realista, inspirada no positivismo, de São
Tomás a Anatole France, parece-me hostil a todo impulso de liberação intelectual e moral.
Tenho-lhe horror, por ser feita de mediocridade, ódio e insípida presunção.
A mesma crítica já estava no cerne da poética do simbolismo e decadentismo. Às
Avessas, de Huysmans, narrando a história do aristocrata Des Esseintes, que cria um
universo particular em sua mansão, voltando as costas ao mundo, é sua metáfora, assim
como o Axel de Villiers de L’Isle Adam, com seu famoso Viver? Deixemos isso para os
criados, conforme mostrou Edmund Wilson em O Castelo de Axel. Outra narrativa de
Huysmans, Lá-bas, sobre bruxaria e missas negras, abre com parágrafos de impropérios
contra o realismo: Não recrimino o naturalismo nem por seus termos de barcaça, nem por
seu vocabulário de latrinas e de hospícios... (...) Querer confinar-se aos lavadouros da

88
.Éliphas Lévi, Dogma e Ritual da Alta Magia, tradução de Rosabis Camaisar, Editora
Pensamento, São Paulo, 2002.
carne, rejeitar o supra-sensível, negar o sonho, nem mesmo compreender que a
curiosidade da arte começa lá onde os sentidos deixam de servir!89
Fazem parte do mesmo extenso capítulo, das críticas ao realismo, idéias como as de
Antonin Artaud, contrapondo, em O Teatro e seu duplo, ao teatro ocidental, psicológico,
que busca expressar sentimentos e paixões, um teatro oriental, metafísico, no qual a palavra
adquiriria a materialidade como gesto projetado no plano universal. Por isso, para Artaud,
o Teatro da Crueldade deve romper com a atualidade, pois seu objetivo não é a resolução
dos conflitos psicológicos e sociais (...), mas sim exprimir, objetivamente, verdades
secretas.90
A visão de mundo fundada no princípio das correspondências supõe uma
epistemologia, cujo fundamento, por sua vez, é a crítica ao mundo fenomênico, ou, ao
menos, a desconfiança com relação a seu estatuto de realidade. Baudelaire, simbolistas e
surrealistas tomaram partido na grande polêmica que marcou a segunda metade do século
XIX e que perdura até hoje. Suas raízes podem estar na Antigüidade, em Platão e
Aristóteles. Um dos seus capítulos foi o colossal enfrentamento entre simbolistas e
decadentistas, de um lado, e realistas ou naturalistas (e, de quebra, parnasianos, também
realistas a seu modo), de outro, no final do século XIX. Estava e continua em jogo a
questão crucial da relação entre arte e realidade: se a arte é uma mimese, reprodução do
real, como se diz que pretendia Aristóteles (observando que a realidade de Aristóteles,
povoada de deuses, não era a res extensa de Descartes e do cientificismo), ou se é
autônoma, produto da imaginação ativa.
Surrealistas não devem ser tomados por idealistas platônicos, a acreditar em um
mundo de arquétipos, idéias puras, do qual o real empírico seria o pálido reflexo. Mesmo a
argumentação de Baudelaire, em que pese seu neoplatonismo, já é, de certo modo, dialética:
o exercício da imaginação ativa nega a realidade imediata, mas pode projetar-se nela,
transformando-a. Cabe, a propósito, lembrar que Baudelaire lia Hegel, e não apenas
Swedenborg.91 Por isso, ao declarar-se sobrenaturalista92 proclamou que o belo se expressa

89
, J. K Huysmans, Lá-bas, Plon, Paris, 1961
90
Escritos de Antonin Artaud, tradução, seleção e notas de Claudio Willer, L&PM, Porto Alegre,
1983.
91
Minhas afirmações sobre Baudelaire têm suporte na bibliografia. A influência de Hegel e filosofia
romântica é observada na biografia por Pichois e Ziegler.
92
Em Salão de 1846, do mesmo Charles Baudelaire, Poesia e Prosa.
através do sentimento, a paixão e o devaneio de cada um, afirmando que dos gregos e dos
romanos pode-se fazer românticos, quando se é romântico. Assim, o passado e a história
podem ser refeitos pela imaginação ativa do sujeito.
Ver Baudelaire através do surrealismo e o surrealismo a partir de Baudelaire permite
chegar às diferenças, às posições irreconciliáveis. Há as diferenças óbvias no plano da
expressão literária: Baudelaire, formalmente, foi um tradicionalista. Procurou expressar
conteúdos transgressivos, por isso inovadores, através de formas e estilos beletrísticos,
propositadamente arcaicos, recuperando um classicismo francês.
Essa diferença formal, exterior, nem seria tão decisiva. Contudo, o tradicionalismo
baudelairiano é reflexo de idéias, expostas em sua produção como crítico literário.
Seguindo Poe, a quem tomou por modelo, defendia a criação a frio, o controle da emoção
pela razão. Chegou a comparar a escrita a uma luta, à esgrima, à lapidação do diamante, ao
trabalho árduo, em uma posição oposta à identificação surrealista da criação ao livre ditado
do pensamento (a definição de surrealismo no primeiro Manifesto). Em um ensaio sobre
Théophile Gautier, Baudelaire criticou a invasão do sentimento no domínio da razão.
Louvou o autor da doutrina da “arte pela arte” por seu gosto inato pela forma e pela
perfeição na forma.93
Nesse ensaio sobre Gautier, ainda defendeu os belos raios de sol da estética contra
a doutrina da indissolubilidade entre o Belo, o Verdadeiro e o Bem que, para ele, não
passava de uma invenção do filosofismo moderno. Entenda-se, do pensamento iluminista e
enciclopedista, da ideologia do Esclarecimento, da Idade da Razão, com a qual, por
considerá-la (acertadamente) constitutiva da sociedade burguesa, promoveu um permanente
acerto de contas: O que me entedia na França é que todo mundo se parece com Voltaire.94
Em seus textos de crítica literária, Baudelaire sustentou que haveria separação ou
independência de três esferas. Uma delas, a da estética e da arte (o Belo, em seus termos);
outra, da ética e por conseguinte da política (o Bem); e a terceira, a do conhecimento,
inclusive e principalmente o científico (o Verdadeiro). Em sua crítica a Os Miseráveis, de
Victor Hugo, a argumentação é a mesma. Naquela denúncia da opressão e da miséria, a
literatura teria sido posta a serviço dos bons sentimentos, do politicamente correto (para
usar o termo contemporâneo), ignorando a irremediável e definitiva separação das esferas.
93
Idem, em Charles Baudelaire, Poesia e Prosa.
94
Em Escritos íntimos, no já citado Charles Baudelaire, Poesia e Prosa.
O esteticismo de Baudelaire pode ser entendido como defesa da autonomia da arte.
Equivale à recusa da instrumentalização, da submissão à “mensagem” que culminou na
degradação promovida, no século XX, pelo “realismo socialista” e populismos afins. No
texto citado sobre Gautier, investiu contra a correção política: Com efeito, de alguns anos
para cá, um grande furor de honestidade apoderou-se do teatro, da poesia, do romance e
da crítica. Deixo de lado a questão de saber que benefícios pode a hipocrisia encontrar
nessa confusão e funções, que consolos pode tirar disso a impotência literária.
É uma crítica que não perdeu atualidade. Foi mantida, entre outros lugares, em Le
deshonneur des poètes, a manifestação de Péret contra a “arte engajada” na década de 1940,
denunciando seu oportunismo: Os inimigos da poesia sempre tiveram a obsessão de
submetê-la a seus fins imediatos, de esmagá-la sob seu deus ou, agora, de encadeá-la à
convocação da nova divindade marrom ou “vermelha” – marrom-vermelha de sangue seco
– mais sangrenta ainda que a antiga. (...) Para eles, a poesia não passa de luxo do rico,
aristocrata ou banqueiro, e se ela se quer tornar “útil” à massa, deve resignar-se ao
destino das artes “aplicadas”, “decorativas”, “práticas”, etc. Militante ativo, insuspeito
de reacionarismo, Péret sustentou a autonomia da poesia, pois ...a qualidade de poeta faz
dele um revolucionário que deve combater sobre todos os terrenos: aquele da poesia pelos
meios próprios a ela, e sobre o terreno da ação social, sem nunca confundir os dois
campos de ação, sob pena de restabelecer a confusão que é necessário dissipar e, por
conseguinte, deixar de ser poeta, isto é, revolucionário.95
Mas, por conferir dimensão ontológica ao mal, vendo-o como força que rege o
mundo, Baudelaire achava inútil tentar solucionar os abismos prodigiosos da miséria
social, conforme diz na crítica a Os Miseráveis. Dava como irremediáveis as contradições
entre sujeito e objeto, imaginação e realidade, símbolos e coisas, por mais que tentasse
projetar um sobre o outro, tomando o partido do sujeito, da imaginação, do simbólico, mas
esperando que viessem a configurar o objeto, as coisas, o real.
Assim, chegamos ao cerne da diferença entre Baudelaire e surrealismo. Não reside
nem mesmo no esteticismo, ou em seu reacionarismo, na quantidade de opiniões e
julgamentos os mais indefensáveis, conseqüência do pessimismo registrado nos Escritos
Íntimos. O surrealismo não foi um movimento otimista, nem um materialismo do tipo
95
Em Benjamin Péret, coleção Poètes d’aujourd’hui, prefácio de Jean-Louis Bédouin, Pierre
Seghers Éditeur, Paris, 1961.
cientificista. Combateu, conforme observado, o realismo ingênuo, e indicou suas diferenças
com relação ao racionalismo de fundo iluminista. Nada mais antagônico, porém, ao espírito
surrealista do que a doutrina baudelairiana da separação dos campos ou esferas. A busca da
unidade é seu fundamento, declarado no Segundo Manifesto do Surrealismo. Nele, Breton,
depois de denunciar as velhas antinomias destinadas hipocritamente a prevenir toda
agitação insólita por parte do homem, faz a afirmação que se tornou famosa: Tudo indica a
existência de um certo ponto do espírito, onde vida e morte, real e imaginário, passado e
futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo, cessem de ser percebidos como
contraditórios. À frente, nos textos associados à ruptura com o comunismo soviético e
adesão à dissidência trotskista, de 1935, há outra frase freqüentemente citada, das muitas
que não deixam dúvida sobre a dimensão política da crítica ao dualismo: “Transformar o
mundo”, disse Marx; “mudar a vida”, disse Rimbaud: estas duas palavras de ordem, para
nós, são uma só.96
São corretas, por isso, as observações de Octavio Paz, no já citado La búsqueda del
comienzo, sobre a proximidade não-declarada de Breton de doutrinas orientais, budismo e
taoísmo, que supõem a unidade do Universo (mais do taoísmo, um organicismo e
materialismo, que do budismo, um idealismo exacerbado), em contraposição ao dualismo:
para Breton, pecar e nascer não foram sinônimos. Por isso, por sua vida e sua obra, não
foi tanto um herdeiro de Sade e Freud como de Rousseau e Eckhart. (...) A crença no
pecado era incompatível com sua noção de homem. Assim como distinguiu Breton de Sade
e Freud, Octavio Paz podia tê-lo diferenciado, com os mesmos argumentos, de Baudelaire,
para quem o mundo em que vivemos era aquele resultante da Queda, regido pelo anjo
caído: daí prestar-lhe homenagem nas Litanias a Satã e outras passagens de sua obra.
Sob este aspecto, entre outros, Rimbaud está mais próximo do surrealismo, e não
apenas formalmente, porém filosoficamente. Interpretar as intuições de Rimbaud,
manifestas em suas cartas e em Uma Temporada no Inferno, sempre acarreta algum grau de
especulação e inferência, preenchendo entrelinhas, completando o que sugeriu. Mas,
reconhecendo a grandeza de Baudelaire, o autor de Vogais foi, contudo, inequívoco:
rejeitou o dualismo e a conseqüente ambigüidade e ambivalência do seu antecessor. Jamais
cultuou a Deus, ao diabo, a quem fosse. Tentativas de recuperá-lo e enquadrá-lo, alegando
96
Em Discurso no Congresso dos Escritores (1935), que compõe Posição Política do Surrealismo,
publicado nas edições citadas dos Manifestos pela Brasiliense e pela Nau.
uma conversão no fim da vida ou enxergando traços de cristianismo em sua obra, não
resistem à crítica, assim como as leituras formalistas, mais atentas ao beletrismo, à
qualidade dos seus versos.
Um passo adiante na rejeição do dualismo e na adoção do monismo materialista é a
crítica surrealista ao antropocentrismo, à idéia do homem como centro do universo,
passando a pensá-lo como parte de um todo. De fato, uma vez admitida a unidade, a idéia
de que tudo é uma coisa só, não se sustenta a atribuição do estatuto ontológico à separação
entre o homem, ou o espírito humano, ou a alma, e o mundo, como na metafísica cristã e
em sistemas como o de Descartes. Na mesma medida, podem passar a valer os panteísmos,
os vitalismos, as idéias místicas da alma universal. Conforme examinado em outra seção
(no ensaio sobre acaso objetivo), há esse movimento no surrealismo, rumo a um panteísmo
ou animismo. Ocorre de forma declarada nos dois últimos manifestos bretonianos, onde é
proposto um novo mito e são sugeridos os “Grandes Transparentes”.
Comparando os textos mais militantes, como o Segundo Manifesto do Surrealismo,
e a produção bretoniana a partir da década de 1940, incluindo seus dois últimos manifestos,
vê-se que a visão de mundo surrealista teve mudanças significativas, nem sempre
explicitadas de modo pleno. É o que ocorre em sua relação com o pensamento marxista: o
marco do seu discreto abandono pode ter sido a saída de Péret da Internacional trotskista
em 1946, para desde então relacionar-se apenas com anarquismo. Na discussão da escrita
automática também se observam mudanças e ambigüidades. E, nos quesitos amor, erotismo
e sexo, o pensamento surrealista mudou da década de 1920 até a de 1960 (assim como o
mundo mudou nesse entretempo). Há qualquer coisa de forçado nas tentativas feitas por
Breton de dialetizar a relação entre sua admiração pelo Marquês de Sade (como negro pano
de fundo para fazer brilhar mais ainda a chama do amor único, em Entrétiens) e a
conseqüente devassidão, e seu elogio ao amor único. Sob esse aspecto, a postura de
Georges Bataille seria mais consistente, acarretando, porém, o abandono do lirismo
romântico, de algo essencial na própria poesia.
Há mais a ser discutido nos capítulos sobre visão de mundo e poética surrealista.
Questões em aberto não faltam. Entre outras, esta: qual é mesmo o referente da poesia
surrealista? Do que ela fala? Que afirmações podem ser feitas, a partir da poesia e de sua
poética, sobre a relação entre os signos e entidades que lhe são exteriores?
Em vários lugares, especialmente no Segundo Manifesto do Surrealismo, Breton deu
uma resposta dialética e materialista: o surrealismo atua no plano simbólico, na
superestrutura. É uma operação sobre a linguagem, que provoca uma crise da consciência.
Mas, argumentou, a superestrutura se projeta na infra-estrutura, na vida, na base da
sociedade. Portanto, surrealismo é uma crítica da ideologia; inclusive, daquilo que o
realismo tem de ideológico, ao sancionar uma ordem estabelecida, um sistema de juízos
sobre o “real”, e uma produção da nova ideologia, revolucionária. Contudo, esse modo de
pensar ainda guarda algo do determinismo. Há mais dentro do tópico poesia – realidade no
surrealismo. Breton, desde o início, entendia que a palavra produz realidade, por exemplo,
ao afirmar, em Discours sur le peu de realité, que enunciados medíocres tornam medíocre a
realidade. E, certamente, em nenhum lugar, no âmbito do pensamento marxista, poderia
caber a admissão de que o simbólico se projeta sobre o real de modo mágico, a exemplo de
toda a gama de acontecimentos que correspondem ao acaso objetivo (conforme será
examinado e discutido, em maior detalhe, no capítulo que trata especificamente de acaso
objetivo).
O referente, o mundo designado pela poesia surrealista é, conforme observado, o do
inconsciente e aquele revelado pelo pensamento mítico das sociedades tribais e dos povos
primitivos. Mas há uma observação de Octavio Paz, em seu estudo sobre Lévi-Strauss, 97 a
ser levada em conta como advertência: o mito opera com a linguagem como se esta fosse
um sistema pré-significativo: o que diz o mito não é o que dizem as palavras do mito.
Portanto, há duas coisas diferentes: uma, falar sobre o mito, tarefa do antropólogo ou do
filósofo. Outra, falar a partir do mito, utilizar efetivamente um pensamento analógico,
possível missão do poeta pós-romântico.
Adotado o pensamento mítico, pode não sobrar pedra sobre pedra do construto
fundamentado nas noções de infra e superestrutura. Os Hopi, Taraumara, Bororo, a
civilização Maia, xamans siberianos, etc, não eram hegelianos e marxistas, assim como sua
organização da sociedade nunca foi um “comunismo primitivo”. Pensamento mágico,
romantismo radical e neo-paganismo, de um lado, e tradição filosófica ocidental, de outro,
não se conciliam facilmente. E o que Walter Benjamin escreveu sobre surrealismo, com
tamanha lucidez e de modo tão pioneiro (em 1929) seria uma leitura marxista ou, ao
97
Claude Lévi-Strauss ou o Novo Festim de Esopo, tradução de Sebastião Uchoa Leite, Coleção
Elos, Editora Perspectiva, São Paulo, 1977.
contrário, um exemplo de onde Benjamin mais se afasta do marxismo e se aproxima do
misticismo? E a argumentação de Breton, ao falar nos “grandes transparentes” e afirmar
que o ser humano faz parte de um todo animado: em filosfia, a que isso corresponderia?
Decididamente não ao pensamento marxista, a não ser que se pretenda argumentar que o
taoísmo é um protomarxismo.
Em favor do surrealismo em geral, e especialmente de Breton, cabe observar que
não há separação, um corte entre criação poética, expressão da analogia, e argumentação
utilizando o pensamento dedutivo. É injusta a crítica que aponta um cartesianismo
disfarçado em Breton. Um ensaio como Flagrant délit, de 1949, sobre falsificações de
Rimbaud, é pensamento analógico: são blocos de argumentação, sobre civilização Maia,
gnosticismo, dossiês de erros na leitura de Rimbaud, a relação entre vida e obra do poeta-
vidente, etc. Seu sentido reside muito mais no que está entre esses blocos. No Segundo
Manifesto do Surrealismo, desvia-se de sua argumentação para sustentar que os exemplos
bebem; em outras palavras, que seu enunciado é dialógico.
Adiante, no capítulo sobre acaso objetivo, voltarão a ser examinadas questões
suscitadas pela projeção de um pensamento mágico sobre a realidade no âmbito do
surrealismo. Por ora, pode-se ficar com observações como a de Anna Balakian, de que ...há
de fato variações dinâmicas na poética de Breton, que seus principais poemas traem
muitas de suas premissas teóricas, comentando ainda autores que apontaram
inconsistências no uso por Breton das palavras “surrealismo”, “realidade” e “razão”
pelos padrões da lógica normal.98 Tais oscilações, inconsistências e variações (e aqui
também acompanho o pensamento de Balakian) não devem servir à argumentação para
desqualificar o surrealismo. Ao contrário; são qualidades. O surrealismo pode parecer
inconsistente por ter sido dinâmico e aberto, do modo como também o sugerem Béhar e
Carassou: o surrealismo defende uma estética do irresoluto, do espontâneo, do
inacabado,99 e o próprio Breton, através de metáforas como a da linha sinuosa à qual se
vincula (conforme citado no início deste ensaio).
Ao tratar da poética e visão de mundo surrealista, não se pode traí-lo, instaurando o
surrealismo de cada um. Mas também não se pode fechá-lo, adotando uma visão canônica,
desconhecendo tratar-se de um sistema aberto e dinâmico. Por isso, seu exame e discussão,
98
Na já citada introdução a André Breton today.
99
Em Henri Béhar e Michel Carassou, Le surréalisme, Le Livre de Poche, Paris, 1992..
e mais, a tentativa de dar-lhe prosseguimento, constituem-se em fascinantes desafios
intelectuais. Enfrentá-los contribui para preencher o aparente vazio pós-utópico, e para
superar dicotomias como as de transcendência e imanência, ou de poesia e política. De que
modo o surrealismo se projetaria hoje em política é um tema que serviria como matéria
para outro ensaio. Mas, aceitas as categorias de revolução e revolta, tal como apresentadas
por Octavio Paz em Signos em Rotação,100 semelhante projeção pende para o pólo da
revolta. Nem tanto para a talvez impossível conciliação de Marx e Rimbaud; porém mais
para a recuperação plena e atualização da recusa representada por Baudelaire, Rimbaud e
Lautréamont.

5. Poesia e vida: instâncias contraditórias?

Conforme já observado, o referente externo da poesia surrealista é a própria vida.


Não o cotidiano imediato, a não ser pelo maravilhoso que emerge de suas brechas, mas os
estratos mais profundos da vida psíquica. E a verdadeira existência, que, conforme diz
Breton ao encerrar o primeiro Manifesto, está ailleurs, em outro lugar, assim parafraseando
o A verdadeira vida não está aqui, de Rimbaud.
Relações entre poesia e vida no âmbito do surrealismo são complexas e têm mão
dupla. Para entendê-las melhor, pode-se, novamente, tomar Baudelaire como ponto de
partida. Desta vez, o Baudelaire provocador, que encarnava suas criações e suas idéias, e
por isso deixou uma biografia fascinante. Um dos seus poemas em prosa, O Mau
Vidraceiro,101 é repleto de elogios a uma esplêndida coragem para executar os atos mais
absurdos e, não raro, até os mais arriscados. Essa coragem é ilustrada pela história do
inofensivo sonhador que ateou fogo a uma floresta; de outro que acendeu um charuto perto
de um barril de pólvora; e de um tímido que saltará de relance ao pescoço de um velho que
caminha a seu lado. Culmina com o relato, na primeira pessoa, de como obrigou um
vidraceiro a subir as escadas até seu sexto andar e, por ele não ter vidros róseos, vermelhos,
azuis, vidros mágicos, vidros paradisíacos, o empurrou escada abaixo; e, assim que o
vidraceiro reapareceu na calçada, jogou-lhe um vaso de flores, estilhaçando seu estoque de
vidros, aos gritos de: O lado belo da vida! O lado belo da vida!
100
Octavio Paz, Signos em Rotação, já citado.
101
Da mesma edição, Charles Baudelaire, Poesia e Prosa.
O personagem na primeira pessoa de O Mau Vidraceiro, de outros Pequenos
poemas em prosa, como aquele em que espanca um mendigo para transformá-lo em seu
igual, é o próprio Baudelaire; o mesmo que protagonizou vexames, provocações e situações
constrangedoras, assim integrando vida e obra. Ao fazer provocações, encenava seus textos
e, obviamente, suas idéias. Daí o mau comportamento em público, marca registrada a
justificar o comentário de Walter Benjamin: O que assim Baudelaire expõe poder-se-ia
chamar de metafísica do provocador.
A integridade baudelairiana entre o que escrevia e fazia foi examinada por Breton na
Anthologie de l’Humour Noir, obra em que perfis dos autores selecionados são inseparáveis
dos comentários dos textos. Observando seu dandismo, o exibicionismo das luvas rosa-
pálido de sua juventude faustosa, da peruca verde exibida no Café Riche, até o chale de
seda aveludada escarlate, vestimenta suprema de seus maus dias, menciona as
provocações, como aquela a um burguês que se gabava das qualidades de suas duas filhas:
e qual dessas duas jovens pessoas o senhor destina à prostituição? E chega a seus últimos
dias, quando, mudo e afásico, corroído pela sífilis cerebral, ao passar diante de um espelho
sem reconhecer-se na imagem, cumprimentava-a; e como, vencido pela afasia, depois de
um silêncio de meses, pronunciou suas últimas palavras: à mesa, pediu, com total
naturalidade, que lhe passassem a mostarda. Por isso, conclui Breton, o humor negro, em
Baudelaire, assim revela sua pertinência ao fundo orgânico do ser. É nada compreender de
seu gênio fazer de conta que não se toma conhecimento dessa disposição eletiva, ou passar
por ela com indulgência. Ela corrobora toda a concepção estética sobre a qual repousa
sua obra, e em ligação estreita com ela é que se desenvolve, no plano poético, a série de
preceitos que irá transtornar toda a sensibilidade posterior.
Elogia, portanto, o personagem histórico Baudelaire, o homem. Em uma aparente
inversão, o que teria de mais dissipado e desregrado torna-se valor, argumento a seu favor.
E, quando fala da sua poesia, como em Le merveilleux contre le mystère, Breton também
nos leva ao sujeito, como neste trecho, exemplo de crítica surrealista que integra autor e
obra: Baudelaire só nos subjuga a esse ponto porque, dentre os poetas franceses, é o
último, cronologicamente, a traduzir em uma linguagem sensivelmente direta, em uma
linguagem que as molda, sem se deixar quebrar por elas, as emoções todo-poderosas que o
possuem. Com ele, a coisa exprimida ainda não se distingue, quase nada, daquele que a
exprime: ela preexiste, isto é o que importa observar, ao modo de sua expressão.
Se a coisa exprimida não se distingue de quem a exprime, e preexiste ao modo de
sua expressão, então a criação pertence à ordem ou dimensão do sujeito, antes de constituir-
se em obra, exterioridade autônoma. Há, portanto, um antagonismo com relação à defesa
formalista da autonomia da linguagem; por exemplo, na idéia de T. S. Eliot de uma poesia
impessoal, da supressão do “eu”, do sujeito. No surrealismo, é o contrário: por sustentar a
unidade de vida e arte, sujeito e objeto, não há separação entre o texto e quem o escreveu,
obra e criador. Por conseqüência, não há separação entre juízos sobre literatura e sobre seus
autores. Esta é a raiz dos escândalos, provocações, questionamentos: os panfletos com
insultos a Anatole France e Paul Claudel, ou, entre tantos outros episódios, o modo
hilariante como acabaram com um banquete em homenagem ao poeta Saint-Pol Roux em
1925, conforme narrado em Entrétiens, com um dos surrealistas pendurando-se nas cortinas
do salão para despencar sobre a mesa, seguindo-se uma pancadaria e a intervenção da
polícia encerrando a festa. E, igualmente, da riquíssima crônica de experimentações não só
no plano simbólico, mas da própria vida, como o alucinado período do sono hipnótico
através de transes induzidos. E ainda, em uma aparente contradição, da exigência de uma
ética, uma conduta coerente, que resultou em exclusões como a de Salvador Dali e tantas
outras.
Se Baudelaire parece ter levado às últimas conseqüências a busca da coerência, até
mesmo em sua defesa do direito de contradizer-se, certamente não foi o único representante
da família dos autores-personagens. Nela se destaca Gérard de Nerval, que promoveu a
mesma confusão entre literatura e vida. Encarnou o que, no âmbito do surrealismo, nisso
fiel à herança romântica, se escreveu (e viveu) sobre amor louco, sublime, absoluto. Foi um
dos loucos do amor, dos que levaram a idealização da amada ao limite, a ponto da
exacerbada paixão pela atriz Jenny Colon e sua loucura se confundirem, e ser impossível
determinar onde termina uma e começa a outra. Em sua obra, a relação entre os dois planos
tornou-se especular, ora com Nerval projetando sua biografia na ficção, ora ficcionalizando
a biografia, como em Les Illuminés.
Também Rimbaud, notoriamente, deixou uma biografia que o tornaria patrono dos
beats. Não apenas a obra, mas o próprio autor compõe o modelo da rebelião. O poeta
adolescente e aventureiro provocou desconforto entre aqueles que se haviam disposto a
receber em Paris o prodígio, o garoto que já escrevia daquele jeito. Intratável, passava dias
e dias a dormir na rua, perfeito lumpen. Fez o gesto mais radical, da recusa completa,
deixando um enigma e um sem-número de interpretações do que o levou interromper a
criação e desviar sua rota daquele modo. Diante da contradição entre literatura e vida, teria
escolhido a vida?
Hoje, comportamentos como esses, de Nerval e Baudelaire a Artaud, passando por
Rimbaud, fariam com que fossem classificados como performáticos, portanto modernos.
Talvez sua expressão máxima tenha sido Alfred Jarry. Estudos biográficos e obras sobre
boemia parisiense retratam-no como excêntrico delirante, levando a extremos o dandismo
convertido em farsa. Se Baudelaire chamou a atenção por pintar o cabelo de verde, Jarry o
parafraseou, ao pintar as mãos e o rosto. Ficou famosa sua paixão por armas, e a ausência
de hesitação em utilizar-se delas. Chegava a percorrer Paris de bicicleta, outro de seus
fetiches, equipado com dois revólveres e uma carabina. Expressava-se em um tom de voz
especial, escandindo em linguajar pseudo-aristocrático a fala do próprio Ubu.
Para Roger Shattuck,102 aquilo que distingue Jarry de toda uma tradição de
visionários, de Plotino a Rimbaud, é, antes de tudo, haver tentado, chegando quase ao
suicídio, atingir um grau novo de existência, através do mimetismo literário, de confusão
entre vida e arte. Acreditou na correspondência entre signo literário e vida; apresentou suas
idéias e símbolos nos dois planos, do texto e da vida. A exteriorização exacerbada não foi,
portanto, mera curiosidade, matéria de petite histoire. Pôs em ação o pensamento mágico ao
identificar linguagem e realidade, querendo que o símbolo fosse ativo no plano do real. De
modo anárquico, é um empreendimento assemelhado àquele do mago. O sentido desse
trajeto, destrutivo e criativo ao mesmo tempo, foi bem sintetizado por Shattuck: Uma tal
transformação (do autor em personagem de si mesmo) pressupõe, como princípio absoluto,
uma inteira liberdade do homem.
Os comentários de Breton sobre o revólver e demais escândalos de Jarry, na
Antologia do Humor Negro, coincidem com aqueles que seriam feitos mais tarde por
Shattuck, em seu importante trabalho sobre o ambiente cultural da belle époque. Para
Breton, ...essa aliança inseparável de Jarry e do revólver (…) pode ser tomada como a

102
No já citado The Banket Years, The Origins of the avant-garde in France.
chave final de seu pensamento. O revólver é aqui o traço de união paradoxal entre o
mundo exterior e o mundo interior. Por isso, ...dizemos que a partir de Jarry, muito mais
que de Wilde, a diferenciação entre vida e arte, tida por muito tempo como necessária, vai
se encontrar contestada, para acabar sendo aniquilada em seu princípio.
Marguerite Bonnet, em André Breton - Naissance de l’aventure surréaliste,103 vê,
com razão, os surrealistas como herdeiros do dandismo baudelairiano em sua, conforme
havia dito Baudelaire, necessidade ardente de alcançar uma originalidade dentro dos
limites exteriores da conveniência,104 assim tornando-o um símbolo da superioridade
artística de seu espírito. Pertencem à família dos que participam do mesmo caráter de
oposição e de revolta, expressando, não apenas através de textos, mas de atitudes e estilo de
vida, a contradição entre arte e sociedade, e a condição de ser diferenciado, à parte e à
margem, do poeta.
Nem é necessário referir-se, a propósito, ao extremado exibicionismo de um
Salvador Dali. Basta examinar fotografias dos surrealistas no período da formação do
movimento, de 1919 a 1923. Em um Breton de monóculo e na pose de seus companheiros
são evidentes a permanência do dandismo, inspirado, segundo Bonnet e outros estud.iosos,
em Jacques Vaché, morto em 1919, iniciador do surrealismo para Breton, não só por suas
cartas desvairadas, mas por seu modo de sobrepor a vida à arte, como ao fantasiar-se de
oficial inglês e intervir no tumulto que marcou a estréia de Les mamelles de Tirésias de
Apollinaire, em 1918.
Um bom exemplo de como se dava a fusão ou aproximação de literatura e vida no
período da formação do surrealismo está em Lautréamont et nous de Aragon.105 Como se
sabe, Aragon se desligou do surrealismo e rompeu com Breton em 1932, ao aderir ao
comunismo soviético, tornar-se corifeu do PC francês e de uma volta às formas tradicionais
na poesia. Lautréamont et nous, de 1967, corresponde a uma revisão, assim como o artigo
escrito quando Breton faleceu em 1966, reconhecendo-o como seu maior amigo. Daí o tom
nostálgico com que remonta, nesse livro, à época de trincheiras e serviço em hospitais na
guerra de 1914-18. Mas não se trata apenas de uma crônica da época. Aragon questiona
uma apropriação acadêmica, que acabou por colocar Lautréamont a serviço de modelos e

103
Librairie José Corti, Paris, 1988.
104
Em O Pintor da Vida Moderna, também em Charles Baudelaire, Poesia e Prosa.
105
Publicado em livro pela editora Sables, Paris, 1992.
paradigmas, buscando justificá-los. Mostra que, sem precisarem recorrer à mediação de
teorias então inexistentes, imediatamente viram as características da “escritura” que
tornaram Lautréamont algo além de um adepto do mal na trilha de Baudelaire, ou um
profeta da perversão como Sade. Referindo-se à crescente bibliografia de estudos sobre
Lautréamont, Aragon observa que faltariam a essas novas leituras críticas o caráter vital,
visceral, pois permanecemos aqueles que, em primeiro lugar, foram os seus defensores
líricos. (...) Quando nem os Cantos, nem Poésies ainda podiam ser focalizados como uma
linguagem. Porém, muito mais, como um grito das entranhas.
Para mostrar como se dava semelhante relação íntima e lírica com Lautréamont,
relata como o liam em 1917. Ambos, Breton e Aragon, revezavam-se a vocalizar o
exemplar único de Os Cantos de Maldoror que tinham nas mãos, em um cenário
inverossimilmente maldororiano: à noite, no quarto andar do hospital militar de Val-de-
Grâce em Paris, onde serviam como estagiários na ala dos loucos, daqueles sob tratamento
psiquiátrico. Enquanto recitavam blasfêmias – Eu fiz um pacto com a prostituição a fim de
semear a desordem entre as famílias – ou alguma passagem mais lírica – Toda noite,
mergulhando a envergadura das minhas asas em minha memória agonizante, eu evocava a
lembrança de Falmer... toda noite –, os internados entravam em surto: Às vezes, conta
Aragon, por detrás das portas trancadas a cadeado, os loucos urravam, nos insultavam,
batendo na parede com seus punhos. Isso dava ao texto um comentário obsceno e
surpreendente. Houve noites que não se pode imaginar. (...) Os bruscos buracos de silêncio
eram mais impressionantes ainda que o alarido demencial. Gritos e silêncios decorrentes
do pavor partilhado por loucos, seus médicos e enfermeiros, provocado pelos alarmes de
bombardeios sobre Paris. Esses encontros do texto com uma realidade transformada em
extensão de Os Cantos de Maldoror marcaram o momento em que Ducasse e seus escritos
passaram do domínio da lenda àquele da História. Por isso, aquele período, por mais que
fosse um tempo de acontecimentos consideráveis, parece-me principalmente tomada por
essa sombra crescente que Maldoror estendia sobre nós.
A crônica das sobreposições de criação artística e vida, e de relações viscerais entre
os dois planos, poderia ir mais longe. Dentre os possíveis exemplos, cito um trecho de
Cesariny,106 lembrando as atividades fortes e jovens no Café Herminius (as primeiras, de
Na cronologia do surrealismo preparada por Cesariny em A intervenção surrealista, Assírio &
106

Alvim, Lisboa, 1997, também citado na antologia de Perfecto E. Cuadrado, A única real tradição
1943/44): afixação a cuspo, do que resulta o lento escorregar da matéria afixada, de
imagens de generais e almirantes franceses. Saltos mortais para cima das mesas. Uivos
graduados por José Leonel Martins Rodrigues. (...) Pedro Oom assoma velhas às esquinas.
Uma cai. Grande corrida noturna atrás de Jorge Pelaio, afligido de espíritos, até os
montes do Areeiro. Mário Cesariny traz para o café a máquina de escrever e um robe que
pertenceu a Conchita Grandella. Os “ursinhos”. Entrada de caçadores. Prisões de
esperantistas. Ações e situações como essas, se inventadas em vez de acontecidas,
poderiam figurar em algum texto de escrita automática, dentre tantos que os participantes
daquelas reuniões produziram.
As confusões propositais de poesia e vida nessa genealogia de autores, do
romantismo até hoje, passando pelo surrealismo, enriquecem a discussão do biográfico em
literatura. Por trás de cada obra há um autor, que faz parte dela como dado contextual e
signo do texto, tornando instigante o exame do sentido que o vivido dá ao escrito. Ao
contrário do que pretendem defensores do recorte estrito do texto, literatura também é vida,
busca de solução da contradição entre a esfera do simbólico ou imaginário, e o mundo das
coisas. Biografia é um dado contextual; por isso, está dentro da obra. É lida através dela.
Rimbaud abandonou tudo e foi para a Abissínia, Poe foi um inventor, e também o patrono
dos que se desagregaram, Lautréamont escondeu sua própria biografia, Huysmans foi um
burocrata perfeito e ao mesmo tempo envolveu-se com bruxarias e missas negras, Artaud
escreveu algumas de suas páginas mais dramáticas internado em hospícios, García Lorca
escreveu poemas que parecem antevisões de seu fuzilamento. A aura particular de cada um
desses episódios, de Abissínias míticas até gabinetes de trabalho, ilumina o que foi escrito
por esses autores e integra o sentido de suas obras.
Levar em conta a relação entre biografia e obra também equivale a respeitar
intenções e propósitos do autor. Em Lautréamont – Obra Completa, comento que tanto o
autor escandalosamente presente, os Baudelaire, Jarry e demais continuadores do
dandismo, e o misteriosamente ausente, como Lautréamont, ou recluso, como Tristan
Corbière, traduzem, a seu modo, a idéia do poeta como outro, ser de exceção, criatura à
parte. Alteridade que pode se expressar tanto como provocação pública quanto como fuga e

viva, e comentado por mim em A propósito de uma antologia do surrealismo português, revista
Atalaia-Intermundos, Universidade de Lisboa, novembro de 2002 e, on line, em
www.revista.agulha.nom.br e www.triplov.com .
isolamento. Vendo a literatura como expressão do sujeito, do "eu" lírico em confronto com
a sociedade, apresentaram um comportamento comprometido com essa concepção. Deixar
de considerar essa coerência entre vida e obra em alguns autores, patente no modo como
exteriorizaram suas idéias, equivale a amputar-lhe a dimensão da rebelião, despolitizando-a
ao confinar a leitura à crítica exclusivamente textual.
Há mais a dizer sobre a produtividade dessas sobreposições ou confusões das duas
esferas. Bons exemplos de crítica biográfica, integrando autor e obra, são dados por Breton,
em sua defesa da coerência de Rimbaud. Iniciada em 1920 através da revista Littérature,
prosseguiria até 1949 com o desmascaramento de um apócrifo atribuído a Rimbaud, o falso
La chasse spirituelle, em uma fraude de grande repercussão, envolvendo críticos de
prestígio que a haviam endossado.
Ao que parece, Rimbaud havia escrito um texto com esse título, La chasse
spirituelle, destruído em 1873 pela mulher de Verlaine junto com outros originais perdidos
para sempre. Talvez fosse a primeira versão de Uma Temporada no Inferno. A denúncia da
falsificação de La Chasse spirituelle (comprovada ao aparecerem os autores do texto
apócrifo) e o dossiê das intervenções anteriores em favor de Rimbaud estão no ensaio-
manifesto de Breton intitulado Flagrant Délit.107 Nele também está registrada a intervenção
em outra polêmica, relativa à seqüência em que foi escrita a obra de Rimbaud: em especial,
se Iluminações precedeu ou sucedeu a Uma Temporada no Inferno. Para Roland de
Réneville, organizador da Oeuvre Complète de Rimbaud pela coleção Pléiade da Gallimard
(que valeria como edição crítica, definitiva), entre outras fontes importantes, Iluminações
teria sido anterior a Uma Temporada no Inferno, seu testamento ou carta-despedida,
declaração de abandono da literatura em busca de outros horizontes.
Invertendo a seqüência, datando Iluminações como última de suas obras, realização
final da poética visionária enunciada nas cartas e em Uma Temporada no Inferno, temos o
que Breton chama, em Flagrant Délit, de índice orgânico sobre a evolução de Rimbaud,
associado ao abandono das formas poéticas fixas em favor do poema em prosa. E, ainda, à
evolução na interlocução literária, pois o período de criação de Iluminações passa a
coincidir com estada de Rimbaud em Londres em 1874, em companhia de Germain
Nouveau, depois de haver rompido de vez com Verlaine. Deixa de haver um parêntese

107
Publicado no já citado La clé des champs
vazio em sua vida, como observa Breton, e a criação da série de poemas em prosa passa a
ter um sentido adicional, do diálogo com outro poeta visionário, integrante notável da
marginalia do simbolismo, cuja poesia feita de palavras desvinculadas do significado,
reduzidas a seqüências de sons, é extraordinariamente precursora.
Assim, nessa cronologia recuperada e corretamente reconstituída, é como se, nos
sete anos durante os quais escreveu, Rimbaud houvesse percorrido cinco ou seis décadas de
história da literatura, do parnasianismo então dominante, modelo de seus primeiros poemas
e do grupo literário que o acolheu em Paris, até o surrealismo. E a transformação da sua
escrita passa a permitir analogias com a ascese mística e os processos iniciáticos. Neles há
uma experiência da morte ou descida aos infernos, que corresponde a Uma Temporada no
Inferno, seguida pela iluminação, o conhecimento revelado. E, daí em diante, o silêncio,
por nada mais haver a ser dito. Portanto, um dado biográfico, a cronologia da obra e sua
coincidência com viagens e estadas em diferentes lugares, influi significativamente na
interpretação da obra.
O exame do biográfico, com atenção à integridade de autor e obra, pode ainda
esclarecer muita coisa na discussão do vínculo ou grau de proximidade com surrealismo.
Isso, não apenas levando em conta o fato o autor haver pertencido efetivamente a um grupo
ou movimento declaradamente surrealista. Pode-se captar indícios mais sutis, por vezes
poeticamente sugestivos. O próprio Breton já o havia feito no primeiro Manifesto,
atribuindo valor poético a dados biográficos, a exemplo de Rimbaud é surrealista em seu
modo de vida e em outras coisas (...); Jarry é surrealista no absinto (...); Vaché é
surrealista em mim (...); Reverdy é surrealista em casa.
De certo modo, utilizei essa abordagem ao discutir a ligação, ou não de autores
brasileiros ao surrealismo.108 Observei que, dando atenção à coerência e integridade, o
nome mais significativo do surrealismo no Brasil seria o de Flávio de Carvalho. Vista na
superfície, sua pintura pode ser associada ao expressionismo. Contudo, as provocações, a
intervenção em uma procissão, as roupagens tropicais, são surrealismo autêntico na
exteriorização e nas intenções, bem como o texto teatral Bailado do deus morto, proibido
pela polícia ao estrear em 1933, assim como, a seguir, também teria uma exposição
proibida. Coragem, posição clara de recusa da ordem estabelecida: estes são os verdadeiros
História Subterrânea, sobre surrealismo no Brasil, Revista Cult nº 50, São Paulo, setembro de
108

2001
atributos de surrealismo. Igualmente, em Sosígenes Costa a qualificação caberia pela
escrita excêntrica e também pela conduta íntegra, à margem do culturalmente instituído; daí
o resgate tardio (que tanto deveu a José Paulo Paes). E Campos de Carvalho foi surrealista
por sua afinidade declarada, pela narrativa onírica, a crítica a categorias do conhecimento, a
prosa poética; e, principalmente, pela conduta ética. Foi surreal no que escreveu, e no
silêncio e isolamento ao voltar as costas à vida literária depois de publicar O Púcaro
Búlgaro.
No extenso elenco de situações em que poesia e vida se encontram, o capítulo mais
fascinante e intrigante é aquele em que a poesia precede e antecipa acontecimentos, como
se tivesse uma dimensão mágica. Fatos dessa ordem equivalem à inversão da relação entre
significante e significado, linguagem e seus referentes externos. Compõem o capítulo do
acaso objetivo, examinado em outra seção desta coletânea. Nele, a poesia se realiza pela
solução da dicotomia das duas esferas, do simbólico e do real.

6. Leitura e crítica a partir do surrealismo

A questão da inclusão ou não de um no âmbito do surrealismo comporta uma


recíproca: como são lidas obras literárias não especificamente vinculadas ao surrealismo?
Em outras palavras: é possível uma crítica surrealista? (tomando a palavra “crítica”
no sentido universitário, como interpretação ou decodificação de obras) Entenda-se: uma
crítica, não do surrealismo, tomado como objeto ou tema, mas a partir dele.
Isso, mesmo levando em conta que a primeira dessas categorias, a crítica do
surrealismo, na verdade mal começou a ser feita. É a impressão que se tem ao examinar a
produção das últimas duas décadas, com novos levantamentos e coletâneas, incluindo uma
produção universitária que envolvendo alguns expoentes da teoria literária, além dos
especialistas que seguem a trilha aberta, de modo exemplar, por Marguerite Bonnet. Textos
citados aqui, como aqueles de André Breton Today, organizado por Anna Balakian, e livros
como os de Béhar e Carassou, e de Jacqueline Chénieux-Gendron, exemplificam essa nova
fase da crítica. Fica claro, a partir de seu exame, que os comentaristas e historiadores da
literatura que classificaram surrealismo como uma das vanguardas, um movimento
circunscrito às primeiras décadas do século XX, na verdade se esquivaram diante das
dificuldades e desafios à decodificação em obras como Peixe Solúvel, L’Immaculée
Conception, Arcano 17 e tantas outras obras.
Por outro lado, autores diretamente ligados ao grupo encabeçado por Breton,
principalmente após sua morte, em 1966, e a dissolução desse grupo, em 1969, por vezes
apresentaram uma produção epigonal, que não contribuiu para esse enriquecimento da
crítica. Tanto a exclusão de autores e manifestações, por não pertencerem àquele
movimento especificamente sediado em Paris e ao redor de Breton, quanto a recíproca, a
classificação e qualificação de autores por pertencerem a movimentos e grupos pelo mundo
afora, tem algo de burocrático. Acaba-se por deixar de lado o exame do que efetivamente
foi criado, em favor de uma variante da política literária.
Quanto à possibilidade de uma crítica a partir do surrealismo, já se observa, na
ensaística de Breton e outros autores ligados ao movimento, após o desprezo pelo literário
da “fase heróica”, a identificação do surreal ao poético, ao próprio valor. É subentendida na
adoção de antecedentes, bem como na retomada das demonstrações de admiração por um
Victor Hugo, supondo que, quanto maior o valor poético, tanto maior a afinidade com
surrealismo.
Breton pode ter sido sectário, mas produziu muita crítica aberta e abrangente,
contrastando com aquilo que acabei de considerar burocrático e do âmbito da política
literária. Seus elogios a contemporâneos e autores mais novos – por exemplo, a Malcolm de
Chazal, Aimé Césaire ou, em artes plásticas, a Frida Kahlo –, foram pela qualidade do que
faziam, e não pela disposição de participarem de atividades, grupos ou movimentos
surrealistas. Seu foco se dirigia, de modo muito honesto, em primeira instância para o
valor. Frida Kahlo não queria saber de surrealismo: o que atraiu Breton foi ela ser uma
grande artista.
Nesse sentido, o surrealismo é um instrumento de leitura. Possibilita melhor
interpretação ou aceitação de obras literárias e de outros campos, independentemente do
vínculo direto, de pertencerem ou não a seu âmbito. A releitura inclui, é claro, autores que o
precederam (pois esses não teriam como vincular-se a algo ainda inexistente). E o principal
exemplo dessa contribuição reside, sem dúvida, no prestígio ganho ao longo do século XX
por Lautréamont e Os Cantos de Maldoror.
Outros exemplos estão na valorização do horror gótico. Ou então, de um autor
complexo como Gérard de Nerval. Já no Primeiro Manifesto, Breton lhe havia atribuído sua
gênese. Equivaleria ao Supernaturalismo, expressão utilizada na introdução de As Filhas
do Fogo para designar o estado de devaneio onírico, a fusão do autor com aquilo que está
escrevendo, identificável ao transe ou à escrita automática. Dentre os motivos para o
interesse por Nerval, além da relação propriamente intertextual,109 está o de haver
pertencido à família dos escritores loucos, e mais, dos que, enlouquecendo, a exemplo de
Hölderlin, converteram seu delírio em obra. Aurélia, livro encerrado por sua morte ao
enforcar-se em um surto de melancolia em 1855, aos 38 anos, é uma narrativa sobre a
efusão do sonho na vida real, o modo como o onírico transborda, ultrapassa limites.
Poderia ser tomado por obra surrealista, da mesma ordem das transcrições de sonhos,
poemas com imagens livres, anotações de estados semelhantes ao transe e registros da
escrita automática a partir de 1919. Inicia-se com esta frase, que serviria como epígrafe de
um Robert Desnos, exímio anotador de sonhos: O sonho é uma segunda vida. Foi adotada
quase nesses termos, quando Breton, no primeiro Manifesto do Surrealismo, pede o
reconhecimento da onipotência do sonho, para conceder ao sonho o que recuso por vezes à
realidade, além de esperar do indício do sonho mais do que espero de um grau de
consciência cada dia mais elevado.
Sincronicamente à valorização surrealista da produção do inconsciente, Aurélia
mudou de estatuto. Passou a ser visto, não como documento de alucinações, porém como
obra de peso. Ofereceu um fundamento, ou um dos fundamentos às diatribes e impropérios
surrealistas contra os psiquiatras e a instituição hospitalar, como no final de Nadja de
Breton e, com maior veemência, em passagens da obra de Artaud, bem como às simulações
da loucura, das quais o principal registro é L’Immaculée Conception de Breton e Éluard.
Como se antecipasse o que viria a ser adotado pelo surrealismo, Nerval observara, em suas
anotações para Aurélia: O que são as coisas deslocadas! Não me acham louco na
Alemanha. (...) ...a imaginação trazia-me delícias infinitas. Recobrando o que os homens
chama de razão, não deveria eu lamentar tê-las perdido?

109
Examinada no ensaio sobre acaso objetivo, nesta edição.
O exame de uma antologia de poesia surrealista de língua espanhola, preparada por
Angel Pariente,110 talvez contribua para a discussão do âmbito do surrealismo, e da leitura
crítica a partir de sua ótica, no século XX. Isso, pela inclusão tanto de autores que devem
constar, obrigatoriamente, ao se escrever a história da poesia surrealista nas literaturas
dessa língua – os argentinos Aldo Pellegrini e Enrique Molina, ou o espanhol Juan Larrea,
bem designado como o poeta secreto da geração de 27, pelo descobrimento tardio do autor
de imagens luminosas como O homem é a mais bela conquista do ar – quanto daqueles nos
quais não há o mesmo vínculo, como os espanhóis García Lorca e Rafael Alberti, além de
contendores do surrealismo como César Vallejo e Pablo Neruda (que, por isso, nem
deveriam ter sido incluídos).
Neruda, por suas posições sectárias e poemas mais panfletários, representou algo
que o surrealismo sempre combateu. Mas, nos poemas selecionados por Angel Pariente, o
chileno enxerga uma estrela retardada entre a noite grossa e os dias de altas velas, e ainda
um céu tecido com águas e papéis, que é uma gota que sonhava caindo na grande solidão,
sob o qual o poeta se declara sonâmbulo à margem de seu sonho. São trechos da lírica de
Tentativa del hombre infinito e Residencia em la tierra, que seria sucedida pela ambiciosa
tentativa de retorno à epopéia em Canto General, e pelas facilidades de Tercera Residencia
em diante. Assim, a imagética de uma fase inicial da poesia nerudiana se valoriza, em
contraste com os rumos subseqüentes que iria tomar.
Vicente Huidobro, igualmente, não foi surrealista. Seria antes precursor, iniciador de
uma renovação, à qual o surrealismo pode ser associado. Mas a familiaridade com
surrealismo permite ler melhor e admirar algo como o fragmento em prosa poética
selecionado por Pariente, Panorama encontrado ou revelação do mundo, uma extensa e
densa página de uma só frase com todas as características de uma escrita automática. Sua
data é posterior à obra máxima, Altazor, assim sugerindo que, em sua obra, ainda há muito
a ser lido e examinado com maior atenção.
Quanto a García Lorca, também presente nessa antologia, sabe-se de suas objeções
ao surrealismo. No entanto, em Poeta em Nova Iorque, extraordinário pela riqueza
imagética e escrita paroxística, soa como profeta anunciando o apocalipse sob forma de
colisão com o mundo artificial, com sua falsa tristeza de luva desbotada e rosa química.
Angel Pariente, Antología de la poesía surrealista em lengua española, Ediciones Júcar, Madri,
110

1985.
Antevê um dilúvio de sangue, o sangue que vem, que virá/ pelos telhados e terraços, por
toda parte,/ para queimar a clorofila das mulheres loiras,/ para gemer ao pé das camas
ante a insônia dos lavabos/ e esfacelar-se em uma aurora de tabaco e baixo amarelo.111 Há
sincronia do crescimento de prestígio e valorização do surrealismo na segunda metade do
século XX, e a maior atenção à obra “hermética” e “surreal” de Lorca, incluindo Poeta em
Nova Iorque e El público.
A crítica informada pelo surrealismo também impede a mistificação, a tomada por
surrealista do que não é. Permite distinguir onde as imagens lorqueanas são o
prolongamento de uma escrita barroca, de uma tradição andaluza, ou o resultado da criação
espontânea, fruto de experiências alucinatórias e dilacerantes. Pode-se associar a riqueza
imagética do Lorca de Poeta em Nova Iorque ao pathos, à intensidade emocional.
Adaptando a lista de atributos surrealistas de escritores no primeiro manifesto de Breton,
talvez se possa afirmar que Lorca foi surrealista no desespero.
A leitura a partir do surrealismo, possível crítica surrealista, também poderá
contribuir para o melhor exame de autores brasileiros. Apenas complementando o que
deverá estar em outros capítulos desta coletânea, adotar a poética fundada na imagem faz
autores como Murilo Mendes e Jorge de Lima crescem em estatura. Conforme observei em
outro lugar,112 em Murilo Mendes se encontra o que houve de inovador em seu tempo, com
uma linha evolutiva da poesia em Cristo de Tempo e Eternidade até o ganho em síntese e
vigor de As Metamorfoses, de 1941: Estamos vestidos de alfabeto,/ Não sabemos nosso
nome.// Cavalos brancos vermelhos/ Mastigam o mundo:/ Olhai a sombra da terra,/ Uma
enorme guilhotina.// Galopa fantasma/ Vida contra a vida. Mas o misticismo associado ao
lirismo e ao erótico já está em sua poesia anterior, da década de 1920, como em Ritmos
Alternados: Noites, cruzes no mundo, as idades voltam, não sei onde estou./ Os relâmpagos
iluminam os corpos flexíveis no outro mundo, o som do saxofone dos anjos previne o
tempo, as famílias tremem dentro das casas,/ a terra molhada explode em formas novas, é
o princípio e o fim. Poeta de imagens visualmente sugestivas, que poderiam passar por
descrições de quadros de Magritte, Delvaux, Dali e, evidentemente, de Ismael Nery, Murilo

111
Federico García Lorca, Obra Poética Completa, tradução de William Agel de Melo, Globo, Rio
de Janeiro, 1989.
112
No já citado História Subterrânea.
Mendes resumiu, em 1935, uma questão à qual Breton dedicaria páginas de O amor louco
logo a seguir, em 1936: Muro, nuvem do pintor.
O que há para ser dito sobre Murilo Mendes também vale para Jorge de Lima.
Mesmo admitindo a precedência surrealista, mais evidente com a atenção recente à sua
prosa e produção como artista plástico, incluindo suas “fotomontagens”, foi um poeta de
fases. O onírico-surreal está em Anunciação e encontro de Mira-Celi, série de poemas em
prosa, como se fossem paisagens de sonho, onde os contornos se dissolvem e as coisas se
metamorfoseiam.. No Livro de Sonetos, apresenta uma reflexão sobre poesia afim a idéias
surrealistas: Não procureis qualquer nexo naquilo/ que os poetas pronunciam acordados,/
pois eles vivem no âmbito intranqüilo/ em que se agitam seres ignorados. São palavras que
anunciam a poesia hermética e cósmica de Invenção de Orfeu, onde reitera a idéia do poeta
sonâmbulo, em transe febril ao descer a um mundo arquetípico, pré-verbal e pré-civilizado:
O céu jamais me dê a tentação funesta/ de adormecer ao léu, na lomba da floresta,// onde
há visgo, onde certa erva sucosa e fria/ carnívora de certo o sono nos espia (...) Minha
cabeça estava em pedra, adormecida,/ quando me sobreveio a cena pressentida.// Em
sonâmbulo arriei os pés e as mãos culpados/ dos passos e dos gestos em vão
desperdiçados.
Passemos aos contemporâneos. O mais radical dos poetas da “geração 60”, Roberto
Piva, pode ser tomado como marco inicial, não só de uma produção afim ao surrealismo,
mas de uma atitude surrealista no Brasil, com a série de manifestos datados de março de
1962,113 distribuídos em cópias de mimeógrafo. Assinados de modo coletivo, por Os que
viram a carcaça, declaram uma poética e uma escala de valores: somos contra a mensagem
lírica do mimo; e também contra Eliot pelo Marquês de Sade. Apresenta uma filosofia de
vida: Nós nos manifestamos contra a aurora pelo crepúsculo, contra a lambreta pela
motocicleta, contra o licor pela maconha, contra o tênis pelo box etc, e também contra a
mente pelo corpo e ainda contra a lógica pela Magia. O nonsense é acentuado em
disjuntivas: contra o governo por uma convenção de cozinheiros; e na invenção de figuras
como a do cafajeste com hemorróidas. Os que viram a carcaça diferem dos de Breton pela
supressão da argumentação e pelo caráter elíptico, e não hiperbólico, mas são manifestos
surrealistas, inclusive no fecho: contra tudo por Lautréamont. Desde sua estréia em livro

113
Publicados em Roberto Piva – Antologia Poética, L&PM, 1985.
com Paranóia,114 exibe um discurso veemente na primeira pessoa, pronunciado por um
“eu” não apenas lírico, porém enfurecido: eu sou uma solidão nua amarrada a um poste,
enquanto colégios e carros fúnebres estão desertos/ pelas calçadas crescem longos delírios/
punhados de esqueletos são atirados no lixo. Em livros subseqüentes, até Ciclones,115
manteria e ampliaria a riqueza imagética. A desenvoltura com que não apenas cita, mas
dialoga com poetas como Chazal, Crevel, e os marcos iniciais, Rimbaud, Lautréamont e
Baudelaire, contribuem para situá-lo e qualificá-lo; assim como sua biografia de “maldito”
contemporâneo, à margem do instituído. Na antologia já citada de Floriano Martins, O
Começo da Busca, há poemas de Piva que equivalem a manifestos: Vocês estão cegos
graças ao temor (...) não serei vossa sobremesa nesta curta temporada no inferno (...)
façam seus orifícios cantarem o hino à estrela da manhã; ou em seu protesto contra o
clímax fraudulento dos sanduíches almoços sorvetes controles ansiedades. Há uma
continuidade entre esses trechos e a afirmação enfática da ...minha idéia da Poesia como
instrumento de libertação Psicológica e Total, como a mais fascinante Orgia ao alcance do
Homem (em uma paráfrase do A poesia se faz na cama como o amor, de Breton), acabando
por resumir que Minha obra tem que ser vista como um plano de fuga desta civilização.
É possível discutir se tais tomadas de posição tem relação mais direta com a
rebelião beat, com surrealismo, além de localizar sua origem em Rimbaud, Lautréamont ou
Baudelaire. Mas propor tais correntes e movimentos como disjuntivos ao examinar um
poeta como Piva equivale a um teste de alternativas não-excludentes, todas corretas. Se
alguém procurar a presença da beat, irá encontrá-la, assim como achará surrealismo,
rebelião romântica ou devoração antropofágica dos clássicos. A questão é outra: se a leitura
informada pelo surrealismo contribui para estabelecer seu alcance e seu valor. A resposta a
essa pergunta só pode ser afirmativa, no caso deste poeta, e, felizmente, de tantos outros
contemporâneos.
É tarefa do estudioso de literatura comparada, ou, mais precisamente, da
intertextualidade, localizar afinidades com surrealismo em obras. Ou então, é trabalho para
o biógrafo ou historiador da literatura discutir se a postura do autor é coerente com o que
propõe o surrealismo. O mais importante, porém, é saber ler poesia; é extrair mais sentido
do que poetas escreveram, incorporando a contribuição do surrealismo a essa leitura. Ou,
114
Instituto Moreira Salles, 2000; primeira edição, Massao Ohno, 1963.
115
Nankin Editorial, São Paulo, 1997.
em outros termos, saber dialogar com a poesia e os poetas. No primeiro Manifesto do
Surrealismo, Breton emprega repetidas vezes a expressão diálogo. Há um enorme débito da
crítica brasileira com relação a surrealismo. Ainda há muito a ser feito, realizando esse
diálogo, em benefício da recepção do surrealismo e da própria poesia.

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