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Transmissão:

operação topológica, operação suja


Maria Lucía Homem

Um mestre budista do século IX postulou um axioma que se tornou famoso: "Se você encontrar
Buda, mate Buda". Se por acaso você tiver a sorte ou merecimento do encontro com o
supremo iluminado, seja maior que a sedução da idolatria, destrua a tentação de subserviência
e adoração. O budismo prega justamente o desapego dessa posição.

O restante do mundo global parece incitar ao contrário: se você encontrar uma estrela popular,
tire uma foto, possua um manuscrito original, chegue o mais perto possível do ponto emissor
de luz e banhe-se nela.

E a psicanálise, o que diz? Talvez diga, junto com os budistas e ao lado de Nietzsche: chegou
o momento do crepúsculo dos ídolos. Deixemos cair os objetos maravilhosados – de
consistência sempre tão imaginária, tão fetichizada – e façamos a travessia do que foi
transferido. Assim como de sua engrenagem estrutural correlata: a máquina da fantasia.
Máquina que de certa m aneira é um aparelho de colorir – e até mesmo de pintar – cenários,
cenas e objetos. Adviria daí uma outra pulsação: no viés da transmissão? Como?

Através de um dispositivo pós-fotográfico que, de certa maneira, também trabalha com uma
câmera escura: o dispositivo analítico. Apesar de aparentemente lidar "somente" com a fala,
atua em várias e intrincadas camadas, lidando com domínios obscuros – o dispositivo busca
revelação e foco. Mas vai além das novas imagens configuradas. Aqui entra o tema central
deste momento e recorte.

O que a transmissão realiza é o mais simples e por isso mais enigmático dos procedimentos:
pôr algo em outro lugar. A origem do termo explicita: trans, o mais além; mittere, colocar. Pôr
além de, deixar passar para, transferir. É uma operação química, no sentido quase literal, de
que opera algo, causando transformação: dada configuração produz efeito, alterando
irreversivelmente o estatuto dos elementos em questão.

Coloca-se como espécie de matriz da movimentação de todas as partículas que nos consistem,
dançando infinitamente daqui para lá e de novo e de novo, na dança da sobrevivência. Uma
partícula esbarra na outra e assim se gera o transporte e o recebimento de algo: de sua força,
de sua carga, seus genes, um nome, a língua, a moral, a norma, significantes mestres e
significantes de segundo escalão, um vírus, um estilo, direitos e deveres, enfim, herança.

Mas, na psicanálise, como decantar o transmitir?

Consistência, fendas, osso: leitura

Digamos, em um circuito curto, que o processo analítico convida à leitura, via palavra falada e
entrelinha, disso que se inscreveu, escreveu, transmitiu, passou no corpo e na história de um
sujeito falante e pensante-reflectante. Inevitavelmente, consistências e certezas se esgarçarão,
amores se reposicionarão, mesmo que à custa de sua reatualização insistente no espaço de
tratamento, também sobre a figura daquele que goza ao sustentar o desejo de sua função,
analítica. Ao analista, saber-operar com esse desejo e esse gozo. Ao analisante, desejar-ler,
mesmo quando a vontade for de simplesmente se entregar à repetição – do sintoma, do gozo,
dos significantes estruturantes, do elo. Freud nomeou esta última: transferência , que se
espraia em um leque que vai da maior à menor consistência, mais ou menos imaginária, muito
ou pouco simbólica. Em suma: a forma sempre misturada com o que fio desenha a borda e se
presta a fazer laço – dito social. Übertragung, transferir, transmitir, travestir – vestir, 'por amor',
o mendigo outro que encontro na minha frente com as vestes da história a mim transmitida.
Como abrir mão das vestimentas, do querer-gozar-repetir, nas variantes colorações, que
parece ser o que fazemos ao longo de todas as horas de um dia? Essa a árida batalha. A
percepção de que seu sentido era a miragem de uma suposta naturalidade posta em cena, sua
ancoragem simbólico-imaginária pode ser deslocada e sua máscara não precisa então ser a
duras penas mantida. Mesmo porque, conclui o sujeito, não vale a pena tanto trabalho -
trabalho que também tem um viés matemático, do reino da quantificação física: efeito da
multiplicação de força e deslocamento demandante de energia.

Cai o pano: a consistência, o saber, o objeto enfeitiçante, a transferência. Pode então surgir
uma outra forma de consistir, um outro saber, um objeto causa. Essa operação se transmite?
Mas aqui temos uma outra volta da banda de Moebius, pois de transferência à transmissão se
irrigam transferências. O efeito da transmissão é nova transferência? Estamos então falando
de mecanismos estruturados em um par possivelmente dialetizante? O analista se colocaria no
ouvir sem a equivalência chapada de um gozar. Desmembraria a provocação lacaniana, que
imbrica um mecanismo no outro, dada a homofonia de sua língua (Jouis / J'ouis // Goza /
Ouço). Assim, o giro de uma transmissão suportada por um analista seria de uma ordem um
pouco diversa, pois a travessia seria justamente a partir desse não assujeitamento, no entanto
sempre prestes a nos espiar.

A psicanálise se transmite entre os pares, os 'semelhantes'; assim como entre os


dessemelhantes. E no mundo. O vírus se replica através de uma muito específica maneira: a
partir de uma posição, e uma posição advertida. Um ver de través o inconsciente, o gozo, sua
leitura e o gozo disso tudo. A operação de transmissão entre pares: não tem fórmula, dada a
multiplicidade de dizeres, mas a estrutura pode se oferecer como alternância. Se alternariam
as posições e cada um por sua vez faz às vezes da função analítica. Se faria no um a um, no
um a outro, a cada vez. Sujeitos se alternam na função do dizer e calar, fazendo caminhar o
bastão da palavra e do corte por entre o grupo? O tema não é político especificamente (ou é?),
mas fica aqui o sonho: o de um possível sistema onde o coletivo de sujeitos possa dizer.
Maioria? Consenso?: uma possibilidade de circulação de fala, função e poder. (Uma nova
escola é possível? Desejável?)

A psicanálise se transmite a cada vez que um discurso específico, na boca e gesto de um


sujeito falante específico, se coloca como estruturado sob certas condições de escuta: deixa
cair algo da verdade. Ela instaura desejo de saber? Amor à verdade? Às abelhas o mel, que se
buscam ao redor.

Algo se dá e a escuta é requisitada, há a clínica; algo se dá e a palavra passa a formalizar, há


ensino e, entremeio, transmissão. O que a psicanálise nos ensina, como ensiná-lo? Falando,
inscrevendo. A posição se decantará. E transitará, nas vias conscientes, nas médias, nas
inconscientes. Efeitos de todos os tipos e nuances se projetam em quaisquer pedaços de
ancoragem. Après-coup, lê-se: houve transmissão.

O morto, a escrita

Há muitos e inúmeros milênios o gênero homo vem buscando desenvolver a linguagem. Se há


rudimentos dela há já um milhão de anos, em sonoridades esboçadas, parece ser com o Homo
sapiens, há 50.000, que ela se oferece como um sistema de fala mais estruturado. E que ao
longo dos últimos 5.000 vem se decantando em suportes além do som e se faz escrita,
inscrição na materialidade da superfície. Há meros 100 anos o meio captura uma forma de se
reproduzir tecnicamente a imagem e se faz a chamada mídia, que, por sua própria forma de
replicação, se faz de massa. Profundo e persistente desejo de expressão, comunicação,
transmissão? Sim, mesmo que no conflito eterno de sua miragem e falência. Sim, sem dúvida:
bichos simbólicos que somos, condenados ao sentido – criamos, preservamos, transmitimos a
cultura, numa longuíssima tarefa que em muito transcende a breve vida individual. Como diz o
filósofo russo-alemão Boris Groys, estamos presos nas malhas das políticas da imortalidade, e
escrevemos para isso, luta pela permanência no disputado panteão da civilização. O manejo é
com os vivos, mas o grande diálogo é com os mortos. Lacan no embate com Freud, nós no
embate com ambos e alguns outros. Imortalidade – esse vão mas bastante operatório desejo
de existência além da existência. Transcendental? Talvez a única forma de transcendência que
nos resta, e por enquanto.

A escrita redunda naquele jogar no lixo da cultura e deixar seguir o objeto que não é mais seu,
se é que algum dia o foi. Poubellication, como diria Lacan. É o desapego feito corporificação no
objeto-suporte. Além de ser concretude fixada no objeto letra ou pixel, pequenos pedaços de
real que magicamente se significam na junção com o outro, com o outro pequeno pedaço e
com aquele que lerá os pedaços antes sem sentido, dando-lhe significação, existência e, mais
fundamental e enigmático, valor. Confere-lhe valor sobretudo a partir de redes imaginárias, de
lógica ao mesmo tempo tão absoluta (derivativa, precisa) quanto arbitrária (dada a contingência
radical de cada história que formou o gosto e o juízo de cada leitor e cada agrupamento
inevitavelmente ideológico de leitores). E quem sabe o tempo – essa a nossa crença – faça a
justiça de deixar restar o valor mais preciso, "merecido", somente aquilo que sobrevive a seu
implacável crivo.

Além do tempo juiz, há o tempo distância. O tempo espaço que nos separa do que já foi e do
que ainda nascerá – e nessa fenda de impossível nasce a mágica da transmissão via
linguagem inscrita: eu falo com você que já morreu e com aquele que virá, numa ópera
fantasmática magistral e profundamente humana. Escrita verbal, sonora, imagética; a fatura do
livro, do filme, do disco, da representação. Eis mais uma das cenas de realização de uma
relação – sexual, se quisermos, ou relação, tout court. Mas se realiza para mais adiante se
revelar o equívoco do não-todo-entendido, do não todo circulável. Afinal, nunca se recebe o
que se transmite. A inscrição trabalha no desejo de relação – mas o que escaparia a ele?

O cartel. Outra configuração na qual a transmissão pode se operar a partir de uma escrita, e
onde uma outra escrita se propõe. Utilizando-se de um limitado e constante conjunto e da
báscula estruturante de um elemento em posição de êxtimo a ele – na forma lacaniana de um a
mais na série, +1, o cartel ocupa função de pólo de endereçamento de fala e produção. Este
texto se fez brotar a partir de uma experiência desse naipe, o próprio convite à escrita e a
formulação "escrever um texto para x" se fazendo +1 lógico desse endereçamento 1.

Não há relação sexual, mas há interlocução. Sim? Inter-locus: a alguma coisa que se passa
entre dois lugares. Duas peças em posições distintas e inassimiláveis, mas que, ingênua,
pobre ou corajosamente, buscam se tocar. No impossível do dedo de deus "por um triz" de
Michelangelo, no impossível do retorno ao paraíso sempre perdido, na fala de um banquete
onde se cifraram metades desconjuntadas. A psicanálise construiu um saber e um dispositivo
para operar a verdade desse impossível. No entanto, o "entre", qualquer que seja seu
equívoco, não cessa de buscar se movimentar e inscrever.

Operação, topologia: híbrido

Enfim, transmitir é uma operação, e uma operação suja.

A transmissão se tece em registros heterogêneos, RSI enlaçados. Como fixou a língua, algo
opera de "pai para fi lho". Essa a mais enigmática – e, por que não?, milagrosa – das
transmissões: a vida se transmite. O primeiro, transmissor , sendo todo aquele que tem algo a
transmitir (num primeiro momento, o gene e o nome, de um lado, e o gene e o suporte de seu
corpo, do outro); o segundo, todo aquele que no princípio nem era ou não era o que veio-a-ser.
O recebente recebe a vida: a grande carga inicial veio num processo de transmissão
absolutamente peculiar, que é o primeiro: ele foi mirado e a seta disparada sem alvo.
Simplesmente jorrou. Essa a primeira fecundação, máxima carga de real, transmissiva.

Desde o início a matéria não se basta a si mesma no universo humanizado, aquele dos seres
simbólicos e devaneantes. Ela precisou de uma nomeação própria e singular, fruto dos sonhos,
amores e por vezes ódios de toda uma série emaranhada e inconsciente de significação. O
conceito: o nome do pai não pode não se transmitir. Mesmo quando o registro civil marca "pai
desconhecido". Seja o da mãe, seja o salvaguardador "de Jesus", o nome é instaurado. De
Jesus, aquele que é o marido da santa madre igreja e também de todas as virgens que
engravidaram sem o másculo oficial sustentar os rituais. Jesus salva e faz função. Quando o
pai é o pai, quando é a mãe, quando etéreo, a função nome necessariamente é vinculada: o
nome-do-pai não tem como não se transmitir.

A molécula, a nomeação. Dos elementos fundamentais da argamassa, outros –


imaginarizações, prospecções, extrapolações – aí se grudam, construindo o espantoso quebra-
cabeça tridimensional que chora e fala. Sinais, corpos, imagens, sons, o sujeito se constitui em
processo, forjando estilos, inibições e demandas várias, como uma transmissão ao vivo de um
programa de tv, que faz circular em ondas eletromagnéticas milhões de bits de informação que
serão redecodificados nas telas diante de cada olho em cada lar, presentificando novos sinais,
imagens e sons. Essa a mais contemporânea das transmissões, e ampla: broadcasting.

Qualquer que seja a matriz considerada, trata-se de um deslocamento de posição, uma parte
em outra parte, em outro lugar: operação topológica. A transmissão, assim, entranhada na rede
RSI, instaura desde o real da matéria e dos corpos onde potencialidades se fazem ato até a
radicalidade das inscrições e totalidades. E lança os dados em que seres se tornam outros,
infectados e educados. Vai-se corporificando vida, na longa série da hiperconsistência das
significações. Nomeada e significada, a carne e a história debulham o sentido – sentido do qual
nascemos escravos e operadores, buscando sistematizá-lo e por vezes transcendê-lo – missão
que produziu o trabalho incansável de várias vidas do XX que se dedicaram a colocar o dedo
justamente nesse emaranhado, de Wittgenstein a Joyce, passando por Lacan. O que sempre
tropeçou no resto, na marca, no osso, o detrito, o inassimilável, no além e aquém do sentido,
esbarrando no gozo místico ou belo banco SKbeau 2 – aquele que sustentaria a identificação
ao humano sinthoma, na relação com a verdade, o desejo e o gozo, fazendo elo dos alguns
nós. Nós transmissíveis.

Ou seja, sua complexidade se faz híbrida, manchada: operação suja. Espalha-se por todos os
lados, campos, a partir de elementos múltiplos, camadas diferentes e interpenetrantes.
Dialetizariam transferência e transmissão, ou, em outros termos, amor e trabalho? Mas o fazem
numa distinção não tão precisa quanto podemos crer. A transmissão se mescla –
necessariamente? – com algo da ordem da transferência, pois há algo do impacto da carga
que afeta e da idéia que move - afeto e ideal – que se entrelaça com a mais verídica intenção e
atuação de trabalho. O fim de análise inauguraria a era pós-transferencial? Talvez menos pura
do que gostaríamos de imaginar. Mas mais densa.

Não há relação sexual, mas há transmissão. Algo se transmite. Que se transmita o resto
enigmático que faz continuar a girar o moinho incessante, que seja o resto não analitizável do
desejo dos fundadores, dos ancestrais, que seja o umbigo ou outra metáfora louca qualquer, o
transmitir não se deixa interromper. Avizinha-se inevitavelmente da função de filiação 3.
Operação que, de certa forma, tem a ver com o convite – mais ou menos equivocado, mais ou
menos autoritário – para o ser se ir fazendo, segurando no fio do desejo e da marca e,
seguindo nele, consistir pertença e fantasia. O que se transmite é, também, o direito de se
colar nesse fio que bordeja desejos e gozos, um convite a dar continuidade aos elos da filiação.
Posição primeira que é de gozo, marcada pelo enquadre fantasmático e que, pouco a pouco,
via dispositivo, se "purifica " e – apesar de metáforas eugênicas – deixa decantar, inventar as
marcas do desejo no qual o sujeito se permite sustentar e autorizar. Isto a partir de uma nova
articulação gozo–significante que se forja – na secura da criação – no quarto e quiçá
estabilizador nó nomeado sinthoma. Mais além de um bem-dizer o inconsciente, e junto com
ele, uma espécie de "saber fazer ali com" ou poder-conviver com seu sinthoma, estando
advertido de seu gozo e de um tanto mais de luz sobre seu desejo. Disto somos responsáveis,
é da ordem da resposta e da oferenda de cada um.

Algo a partir daí se transmite. Algo da ordem de uma experiência com o inconsciente e a
invenção que desenha, quem sabe, os contornos dessa 'uma outra posição'. Não demais, mas
o algo suficiente para que a cadeia continue a girar. Deixar transmitir esse nó não-todo
simbolizável através das trilhas nem sempre nubladas da experiência onde o próximo curioso
venha a ser tocado pela peste. Via fala, via ato, via enigma, via desejo e oferta de um pedaço
de seu corpo, a psicanálise se transmitirá. Mesmo que ao longo da história por vezes venha a
ter que adormecer ou se disfarçar. A era da razão unívoca parece estar em xeque e o discurso
analítico afigura-se como um dos poucos que não se assustam tanto frente à nova disposição
dos vetores no grande tabuleiro.

Notas

1 A atividade de um "cartel pontual", como a posteriori a nomeamos, fez-se a partir da proposta-convite


de Acheronta para se produzir acerca da transmissão. Ela durou uma série de encontros ao longo de um
trimestre durante o qual pudemos jogar no caldeirão de falas de analistas nossas idéias e esboços de
formalização. Não poderia deixar de mencionar aqui a experiência e marcar a presença de Sara Hassan,
Welson Barbatto, Ana Vicentini, Jeanne-Marie de Freitas e Nilvana Castelli.

2 Cf. Lacan, Le sinthome, seminário XXIII.

3 Cf. comentário dessa função em um artigo da Revista de Psicanálise Textura, 2007. Temática
relacionada também com o texto "Espaço Borda", Revista Facom, 2007.

BIBLIOGRAFIA:

FREUD, S. Análise terminável e interminável. In: Obras Psicológicas Completas, vol. XXIII. Ed.
Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1980.

GRANON-LAFONT, J. A topologia de Jacques Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1990.

LACAN, J. "Lituraterre". Littérature. Paris: Larousse, n.3, p. 10, 1971.

__________ Le Séminaire. Livre XX. Encore. Paris: Seuil, 1975.

__________ Le Séminaire. Livre XXIII. Le sinthome. Paris: Seuil, 2005.

Revista de Psicoanálisis y Cultura


Número 25 - Diciembre 2008
www.acheronta.org

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