Você está na página 1de 27

Psicoses lacanianas – Pequena introdução ao Esquema L

Marcelo Veras1

Ser psicanalista é simplesmente abrir os olhos sobre essa


evidência de que não há nada mais confuso do que a realidade
humana (Lacan, 1955–6: 95).

Nos últimos anos, difundiu-se a divisão do ensino de Lacan entre sua primeira e sua

segunda clínicas. Sobretudo na clínica das psicoses, o estabelecimento do texto e a

publicação de O Seminário, livro 23: o sinthoma (1975–6), bem como a publicação do

livro sobre a psicose ordinária (Miller, 1999), ambos em 2005, pareceram, para alguns,

jogar no esquecimento todos os desenvolvimentos sobre as psicoses feitos por Lacan

antes desse Seminário.

A expressão psicose ordinária foi cunhada por Miller e tem data precisa: a

Convenção de Antibes, encontro clínico realizado nos dias 19 e 20 de setembro de 1998

(Miller, 1999). A importância que a difusão dessa expressão vem encontrando na atual

clínica lacaniana das psicoses justifica que se reproduza aqui o momento de seu

nascimento:

Eu me interrogava, ontem à noite: como se chamaria o livro que sairá dessa


jornada? Certamente não se colocará neodesencadeamento, neoconversão,
neotransferência. Chamaremos então as neopsicoses? Será que temos
realmente vontade de ligar nossa elaboração à neopsicose? Isso não me
agrada de modo algum, a neopsicose. Então me disse: enfim, estamos
falando é de psicose ordinária (: 230).

1
Psicanalista AME da Associação Mundial de Psicanálise e da Escola Brasileira de Psicanálise,
Psiquiatra da Universidade Federal da Bahia, Mestre em Psicanálise pela Universidade Paris 8 e Doutor
em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
Baixada a poeira, a solidez de O Seminário, livro 3 e a perfeita coerência da

teoria da foraclusão do Nome-do-Pai resistem intactas e, hoje, articulam-se

perfeitamente com a clínica do sinthoma, do nó borromeu e da psicose ordinária.

Neste capítulo, partirei da premissa de que a apreensão do laço social é

subvertida pela teoria lacaniana, no momento em que se aplica uma nova perspectiva

topológica à realidade. Essa intuição não é exclusivamente lacaniana, podendo ser

igualmente encontrada no gênio artístico de Maurits Cornelis Escher, desenhista gráfico

que desmontou, como poucos, a ideia de que o corte da realidade perceptiva não é

suficientemente capaz de separar a imagem de seu observador.

Não parece haver consenso entre os psicanalistas sobre o momento em que se

passaria para uma segunda clínica das psicoses em Lacan. Alguns a localizam em O

Seminário, livro 23; outros em O Seminário, livro 10, no qual se formaliza o objeto a.

Para fins didáticos, estabelecerei três e não dois momentos cruciais da teoria lacaniana

das psicoses. Três momentos distintos entre si e que, contrariamente ao que poderia ser

o sentido comum, harmonizam-se para constituir uma única e sólida teoria sobre as

psicoses. São eles: a foraclusão do Nome-do-Pai, nos anos 1950, com O Seminário,

livro 3: as psicoses (Lacan, 1955–6); a formalização do objeto a e os mecanismos de

sua extração, nos anos 1960, com O Seminário, livro 10: a angústia (Lacan, 1962–3); e,

por fim, a teoria dos nós e o sinthoma joyceano, nos anos 1970, com O Seminário, livro

23: o sinthoma (Lacan, 1975–6).

Essa divisão responde às situações clínicas e aos questionamentos que passarei a

tratar daqui para frente. A clínica dos anos 1950 permite abordar os casos de psicoses

desencadeadas e a estrutura do desencadeamento. São as psicoses que, après-coup,

podem ser nomeadas de extraordinárias: a clínica dos hospitais, dos ambulatórios de

saúde mental etc. A clínica dos anos 1960 leva à compreensão do próprio estado da
civilização, sua predileção pelo gozo, e não mais pelos ideais e, na clínica das psicoses,

da clínica da angústia, da mania, da não extração do objeto e seus efeitos corporais. Por

fim, com Joyce, está-se em pleno terreno das psicoses ordinárias: as psicoses normais.

Aqui, mais uma vez não se pode dizer que haja consenso. Para uns, significa a

psicose não desencadeada e, para outros, a psicose cujo desencadeamento ou atividade

delirante é imperceptível à clínica do olhar. De todo modo, um prenúncio da psicose

ordinária pode ser encontrado na proposição feita por Miller, em 1993, de uma clínica

universal do delírio, segundo a qual todo mundo delira. Ao partir da ideia de que todo

discurso é defesa contra o real (Miller, 1993: 5), Miller promoveu uma descentralização

radical da questão da loucura, o que não deixa de ter repercussões no modo como se

pode pensá-la no campo da Saúde Mental. Esta, com a nova clínica, pode separar-se da

clássica clínica diferencial das psicoses e, apoiando-se na psicanálise, consolidar o

projeto de pensar a loucura para além do conceito de doença.

O capítulo se distribui em três partes, respeitando a cronologia dos Seminários

acima citados. A ideia de fazer uma releitura do esquema L só se mostrou possível a

partir da leitura do curso Silet, de Miller, proferido em 1994 e 1995. Até então, eu

estava habituado a fazer uma leitura do esquema L, partindo do pressuposto de que o

gozo se localiza no eixo imaginário, enquanto o eixo do simbólico é esvaziado de gozo,

de acordo com o princípio de que a palavra mata a coisa.

A partir desse curso, surgiu outra forma de ler o esquema de Lacan, à luz da

perspectiva de que se pode localizar o gozo no eixo simbólico. Desse modo, a fala, para

além do sentido que pode comportar, passa a ser, por si só, um modo de gozar (Miller,

1994–5: 78) distinto da jubilação imaginária, cuja base foi estabelecida por Lacan com o

estádio do espelho (Lacan, 1936).


Com o curso de Miller, portanto, pude explorar o esquema L de forma inédita,

buscando localizar, de outro modo, como o gozo e todas as relações de alteridade nele

presentes se distribuem. A conexão entre o significante e o gozo leva, fatidicamente, à

questão do corpo. É justo essa relação que me interessa no estudo dos modos de

inserção da psicose no laço social. Em outras palavras, trata-se de entender como a

palavra do Outro se conecta ao corpo como fonte de gozo, e não de mortificação, o que

Miller chamou de conversão de perspectiva:

No fundo, convido-os a uma conversão de perspectiva, que consiste em


postular que o significante não tem um efeito de mortificação sobre o corpo,
que é o que supõe a teoria da fantasia, mas que o essencial é que o
significante não atrai a libido, mas a produz sob a forma do mais-de-gozar;
que o significante tem, fundamentalmente, uma incidência de gozo sobre o
corpo. É o que Lacan chama de sintoma (Miller, 1998a: 81).

Tomando como fio de Ariadne esse comentário de Miller, proponho ler os três

momentos da teoria lacaniana das psicoses como uma forma de responder à pergunta

sobre a pertinência da psicanálise na Saúde Mental. Escolhi, assim, três pontos

representativos dos períodos a que me referi: o esquema L, a extração do objeto a e o

sinthoma.

O esquema L

Esq uema L
(a)’utre
(Es)S

ia
ár
gin
a
m
ãoi in
elaç co
ns
R cie
nt
e

(A)u tre
(m oi)a
Para pensar o esquema L, é necessário recordar que, nos anos que o antecedem,

Lacan estava debruçado sobre os escritos freudianos, ou seja, não se deve dissociar a

leitura lacaniana proposta nesse esquema da segunda tópica de Freud. Ego, id e

superego são referências constantes na análise do esquema. Como se verá, seja para

ratificá-los, seja para retificá-los.

No esquema L, a relação com o mundo dos objetos e dos homens, que configura

o laço social, ocorre no eixo a–a’, chamado por Lacan de diagonal da realidade. Tal

relação pode ser vista como um avanço sobre o texto O estádio do espelho como

formador da função do eu, de 1936, uma vez que remaneja a configuração do eixo

imaginário. O eixo a–a’ é composto pela alteridade entre os semelhantes (o par a e a’),

mas se opõe à alteridade entre o sujeito e o Outro simbólico, uma relação que é marcada

pelo recalque e foi nomeada por Lacan de diagonal do inconsciente.

Após abordar os aspectos gerais da questão da alteridade em Lacan, passo em

revista agora as diversas relações de alteridade que se aplicam especificamente ao

esquema L. Com base no que foi exposto até aqui, tento demonstrar que a questão da

alteridade exposta no esquema L avança no momento em que a clínica lacaniana, com a

introdução do conceito de Coisa em O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959–

60), passa de um Outro simbólico para um Outro real.

Antes do surgimento do objeto a, a questão do gozo se baseava

fundamentalmente na oposição entre o simbólico e o imaginário, explicitada no

esquema L. No aparato conceitual de Lacan em 1956, é pelo esquema L que se


demonstram as relações do sujeito com o próprio corpo (que experimenta o gozo) e o

Outro (no amor e na identificação) (Miller, 2005: 7–ss).

Talvez em razão do acréscimo de complexidade didática, Lacan não se tenha

servido em seus Seminários dos esquemas R e I, derivações do esquema L, reservando-

os para o texto sobre as psicoses de Escritos (Lacan, 1958a). De todo modo, o que esses

esquemas buscam equacionar é a problemática relação do sujeito psicótico com o Outro.

Repassarei, inicialmente, os passos dados na construção do esquema L.

As relações de alteridade constantes nesse esquema foram propostas por Lacan

na aula inaugural de O Seminário, livro 3: as psicoses, em que introduziu a questão do

sujeito em oposição ao Outro, estabelecendo-os como (Es)S e (A)utre, espraiados num

quadrilátero composto de dois outros elementos, (moi)a e (a’)utre, que figuram no

estabelecimento de seu texto como “os dois eus” (Lacan, 1955–6: 23). De imediato,

essa referência convida a pensar que, no esquema, há mais de uma alteridade.

Como disse, Lacan chamou o eixo a–a’ de eixo da realidade e o eixo (Es)S–A de

eixo do inconsciente, cuja representação se caracteriza por iniciar-se com uma linha

cheia que se torna pontilhada, ao cruzar o eixo da realidade. Tal recurso permite

identificar nessa diagonal o recalque, uma vez que o campo da realidade impede o

acesso direto ao inconsciente. Pode-se dizer, assim, que a relação do sujeito com o

Outro e com o inconsciente fica esquecida por trás do eixo da realidade, e que, como se

verá adiante, a fragmentação do eixo a–a’ faz esse esquecimento imediatamente vacilar.

Chama a atenção ainda o fato de Lacan ter incluído, no polo que recebe a

mensagem do Outro, o isso Freudiano (Es), ou seja, o núcleo do que, na teoria

freudiana, não emerge nos conteúdos conscientes, bem como preserva intencionalmente

a sua homofonia com a letra S, que representa o sujeito não barrado.


A diagonal que se instala como a–a’ enquadra, igualmente, a vastidão dos

objetos capturados pelo sujeito no campo da realidade. Acredito ter sido nessa

perspectiva que, alguns anos depois, fizeram-se os desenvolvimentos sobre a Coisa que

se leem em O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise e imprimem maior clareza à

topologia e à alteridade presentes no esquema L. Ao articular esse Seminário com o

esquema L, busco situar, no campo da realidade (a–a’), as Sachen, ou seja, os objetos

que se percebem em oposição à Ding, a Coisa, concebida por Lacan como o vazio em

torno do qual o campo da realidade se organiza (Lacan, 1959–60).

Esse eixo, na verdade, sintetiza vários aspectos da teoria da libido que passam

pela teoria do narcisismo (Freud, 1914) e pelo estádio do espelho (Lacan, 1936). Dito de

outro modo, tem-se a impressão inicial de que o investimento libidinal está totalmente

equacionado nos limites dessa diagonal. É a leitura que se faz, quando se toma como

base o fato de que tal eixo é um prolongamento do texto sobre o estádio do espelho.

Posteriormente, todavia, o próprio Lacan refutou essa afirmação, ao dizer que um “resto

libidinal”2 fica de fora da captura pelo eixo a–a’, e que é precisamente esse resto que

introduz a necessidade de outra condição de alteridade no esquema L (Lacan, 1960–1:

50). Esse comentário, a meu ver, é um prenúncio da conversão de perspectiva que

retifica a localização do gozo na diagonal a–a’.

De outro viés, o esquema pode ser visto como a junção de dois triângulos. Há

uma triangulação composta pelo sujeito, o eu que fala e o eu para quem se fala,

demarcando a primeira relação de alteridade, ao se opor ao Outro (Autre), que preside a

cena. Trata-se da alteridade do simbólico em relação ao campo da realidade. Aqui, o

Outro é o tesouro dos significantes, polo do esquema que concentra tudo o que pode ser

dito, isto é, o catálogo universal de enunciados que podem ser proferidos por um sujeito.

2
Observo aqui um prenúncio do objeto a, formalizado por Lacan em O Seminário, livro 10: a angústia,
dois anos após esse comentário.
Pierre Skriabine ressalta que, na época do esquema L, o Nome-do-Pai tinha

precisamente a função de dar consistência a esse Outro, tornando-se, em consequência,

um ponto de crença de que haveria o Outro do Outro (Skrianibe, 1993: 78). Vale dizer,

do Outro que contém seu próprio significante, decorrendo daí a importância da

foraclusão do Nome-do-Pai como o primeiro ensaio de formalização da sua

inconsistência, que culminaria, anos mais tarde, na teoria da foraclusão generalizada

(Miller, 1993).

Proponho prosseguir com um exercício de formalização do esquema L a que

Miller alude em um de seus textos, mas sem desenvolvê-lo:

Não tenho tempo para comentar com vocês o que encontrarão em Uma
questão... Vocês têm o princípio da construção do esquema a partir de dois
triângulos, supondo-se que um deles reduz as funções do simbólico, e o
outro, as funções essenciais do imaginário (Miller, 1979: 124).

(Es)S (a)’autre
Dizer

Outro (alteridade)
Moi Tudo que pode ser dito
(a)

É da mesma época de O Seminário, livro 3 o texto A instância da letra no

inconsciente ou a razão desde Freud, que apresenta um algoritmo para a alteridade

entre as palavras e as coisas sob a forma de uma barra entre o significante e o

significado: S/s (Lacan, 1957: 515).


Essa barra entre o significante e o significado sintetiza, de modo exemplar, a

problemática da alteridade do esquema L, outra maneira de dizer que, ao marcar a

alteridade entre significante e significado, a barra problematiza as condições de

nomeação de uma coisa. Os objetos passíveis de nomeação (no caso, as Sachen),

chamados de referentes pela linguística, tornam-se inatingíveis pela palavra, outra

maneira de dizer que a alteridade da barra implica que os significantes só se

conectariam com outros significantes numa relação metonímica, sem possibilidade de

alcançar o referente. Nas palavras de Lacan: “é a conexão do significante com o

significante que permite a elisão mediante a qual o significante instala a falta do ser na

relação de objeto” (: 515).

Isso justifica a exclusão do Outro nesse primeiro triângulo como alteridade entre

as palavras e as coisas, obtendo-se o seguinte esquema para a barra:

S1,S2....Sn
Referente

Ainda nessa primeira triangulação, percebe-se que se instala outra relação de

alteridade. O eu se dirige ao outro eu (a–a’) numa relação imaginária, tomando o

próprio sujeito (Es) como terceiro. Há, portanto, uma distância entre o “S”, como

endereço da diagonal do inconsciente, e o “moi”, que representa o “eu” que se dirige ao

outro no laço social.

É importante, contudo, perceber que a menção ao Es freudiano no esquema L

indica que algo no campo do gozo do corpo impede que esse esquema seja

exclusivamente uma representação do espaço mental. Tal potência de dizer implica um

corpo, mas não se trata do corpo imaginário, esculpido no eixo a–a’, como se pode ler

em O estádio do espelho como formador da função do eu. Trata-se antes do corpo como
carne, como massa ainda não afetada pela palavra, ou seja, o Es freudiano como gozo

sem tradução no campo do simbólico. Esse momento do desenvolvimento de Lacan

parece, assim, muito próximo do modo pelo qual a carne é tratada por Merleau-Ponty,

como se viu anteriormente.

Veja-se agora o segundo triângulo. Nem o Outro, como tudo o que pode ser dito,

nem o Sujeito, como puro dizer, perfazem em si o eixo do laço social. É preciso que

uma frase – e não todo o tesouro significante – seja enunciada pelo eu e endereçada a

alguém que lhe seja semelhante. Essas relações se estabelecem quando um dito é

proveniente do eixo da realidade ligando a e a’. O eu, nesse sentido, é o aparelho

imaginário que possibilita a comunicação.

(Es)S (alteridade) a’
Dizer sem palavras/carne
Não se confunde com o Eu

laço social

a Outro

A pergunta que Lacan faz sobre o eixo imaginário, “qual a função do eu no

tratamento?”, perpassa todo o seu ensino sobre as psicoses (Lacan, 1955–6: 23). Vinte

anos depois, encontra-se questão similar a ela numa referência de O Seminário, livro 23

ao Ego de Joyce. Com efeito, na transcrição da aula de 11 de maio de 1976, lê-se um

parágrafo que parece conter ecos dessa passagem de O Seminário, livro 3. Dessa vez,
contudo, trata-se não mais da interrogação sobre o hiato entre o Eu e o Outro simbólico,

e sim sobre o hiato entre o Eu e o corpo.

Mas a forma, em Joyce, de se largar [laisser tomber] da relação com o próprio


corpo é muito suspeita para um analista, pois a ideia de si mesmo como um
corpo tem todo o seu peso. É precisamente o que chamamos de Ego (Lacan,
1975–6: 150).

Aqui, encontra-se um balizador para as mudanças que Lacan promove na

questão sobre a alteridade, tal como abordada no esquema L e em desenvolvimentos

posteriores. Enquanto, em O Seminário, livro 3, há preocupação maior em mapear a

alteridade entre o sujeito e seus pensamentos, em O Seminário, livro 23, é a alteridade

do sujeito em relação ao próprio corpo que está em foco.3 Partindo do Eu, o moi dos

esquemas iniciais, Lacan se volta para o Ego de Joyce e indica que, para além da

importância da relação com o outro e com a realidade, torna-se necessária, na

abordagem psicanalítica das psicoses, uma verdadeira subversão do real do gozo do

corpo.

A questão do tempo

Outro comentário de Miller em Silet motivou o exercício de pensar o esquema L à luz

da separação entre a sincronia e a diacronia dos significantes: “o gozo não conhece o

tempo” (Miller, 1994–5: 189). Como o próprio autor afirma, essa frase parece

contradizer a teoria da Fixierung freudiana, ou seja, a teoria da fixação da libido

freudiana, que se inscreve na temporalidade. Proponho, portanto, pensar a extensão

dessa frase de Miller aplicada ao esquema L, com o objetivo de pesquisar como se pode

inscrever nele o tempo e como ele é afetado no inconsciente a céu aberto das psicoses.

3
Confirmando a motivação de ter estudado, no capítulo anterior, a distinção entre o pensamento de Lacan
e os de Descartes e Merleau-Ponty.
O inconsciente freudiano possui características específicas que, sob a barra do

recalque, não se apresentam de imediato na relação estabelecida no eixo a–a’. Como

visto, as duas diagonais do esquema L trazem planos diferentes, que nas psicoses

implicam situações clínicas particulares. É necessário partir de Freud. Em 1915, ele

escreve, na série de artigos conhecida como a sua metapsicologia, o texto O

inconsciente (Freud, 1915), no qual descreve as propriedades particulares do sistema

Inconsciente (Ics). Freud se serve de uma topografia que proponho transpor para

topologia do esquema L. De acordo com ele, a distinção dos dois sistemas psíquicos

ganha nova significação, quando se presta atenção ao fato de que os processos de um

dos sistemas do inconsciente apresentam propriedades que não se encontram no sistema

“imediatamente superior” (: 95). No esquema L, porém, trata-se não de um conjunto de

propriedades numa “camada” superior, e sim de planos que se alternam seguindo a

topologia de uma fita de Moebius.

O sistema Ics não conhece a negação, a dúvida ou um grau de certeza. Esse

sistema, igualmente, não conhece o tempo.

Resumamos: ausência de contradição, processo primário (mobilidade de


investimentos), atemporalidade e substituição da realidade exterior pela
realidade psíquica, tais são as características que devemos esperar
encontrar nos processos pertencentes ao sistema Ics (: 97).

Pode-se assim, tendo como base essa importante consideração de Freud,

interrogar a temporalidade no esquema L com o auxílio de uma alegoria do

pragmatismo de Richard Rorty, que sempre criticou o essencialismo patente de um

mundo em que as palavras e as coisas teriam uma relação de continuidade inequívoca,

ou seja, de que por intermédio das palavras seria possível chegar à essência das coisas.

Rorty parte de uma pergunta curiosa: pode-se definir a “dezessetidade” do número 17?
É possível definir o número 17 em si mesmo ou ele deverá ser sempre entendido como

um número inferior ao número 18 e superior ao número 16? (Rorty, 1995: 67)

Para Rorty, menor que 20, raiz quadrada de 289 ou a soma de 11 mais 6 são

expressões extrínsecas e acidentais. Tentar capturar a essência do número 17 fora de

suas relações extrínsecas faria perceber que 1.678.922 é tão próximo do número 17

quanto o número 18, contudo o que parece impossível para Rorty é o fato de que o

número 17 tenha uma essência em si, ou seja, justamente o que Freud propõe, ao alegar

que, na psicose, a palavra é equivalente à coisa.

Ao aplicar tais considerações sobre o esquema L, sugiro que há um eixo

pragmático solidário à teoria de Rorty, mas também outro eixo, a diagonal do

inconsciente, que segue os princípios citados por Freud em seu texto sobre o

inconsciente. Nesse eixo, a “dezessetidade” do número 17 se torna possível.

(Es)S a’

a
is
co co
i a
át
gm ata In
a m
pr ra a co
xo alav pa nsc
i
e p la ie
vr nt
a a
é e
a
co
is
a
a A

Tal questão aparece também na obra de outro filósofo do pragmatismo, Hilary

Putnam, para quem as significações possuem uma identidade ao longo do tempo, mas

não uma essência. Como exemplo, usa seu nome próprio. Quando era pequeno e falava

apenas francês, chamava-se “Hilaire Pout-nomm”. Já adulto e falando

predominantemente inglês, diz que seu nome “Hilary Putnam” continua o mesmo
porque não houve descontinuidade suficiente para que se dissesse que a palavra não

designa a mesma coisa. “Existem práticas que nos ajudam a decidir quando há bastante

continuidade na mudança para que seja justificado dizer que é ainda a mesma pessoa

que existe” (Putman, 1988: 37).

Esse exemplo é bastante claro para mostrar por que a psicanálise não é uma

pragmática. O eixo do inconsciente como eixo fora do tempo faz com que o pequeno

Pout-nomm, enquanto resíduo da lalíngua, parasite eternamente o adulto Putnam. A

meu ver, trata-se não de uma Fixierung do nome Pout-nomm, e sim da eternização de

uma perda. Pout-nomm será, para sempre, a parte perdida do adulto Putnam. Na clínica

das psicoses, recupera-se algo dessa perda pela metáfora delirante, que será vista adiante

a partir de um fragmento clínico de uma pacata dona de casa.

O esquema L não é apenas um esquema de relações simbólicas e imaginárias.

Como visto, a presença do isso (Es) como homenagem ao reservatório das pulsões

freudiano indica que se deve articular o simbólico e o imaginário com o real do gozo

pulsional do corpo. Ao comentá-lo, Miller insiste no fato de que, em Lacan, a diagonal

do inconsciente é a diagonal da tendência da pulsão, ao passo que a diagonal da

realidade é o local onde se situa a defesa do eu (Miller, 1994–5: 85).

A diagonal do inconsciente articula, portanto, tudo o que pode ser dito e está no

campo do Outro com a condição do ser falante, que é a de fazer o significante sair pelo

corpo. Trata-se da palavra em sua ressonância no corpo, ou seja, da palavra que vibra e

é fonte de gozo.

Sirvo-me da imagem de um exemplo para demonstrar essa relação entre

pragmática e inconsciente. Imagine-se que as palavras são como as bolas numeradas

num globo de sorteio, desses que se veem nos programas de auditório. Enquanto estão

dentro do globo, essas bolas numeradas possuem uma essência, mas ainda não se
inscrevem numa série. O ritual do sorteio implica fazer com que elas passem por um

orifício, conhecendo-se assim a série sorteada.

Imagine-se ainda que a diagonal do inconsciente se assemelha ao globo de

sorteio. As palavras, suas relações de oposição, de semelhança etc., não possuem valor

próprio, isto é, não possuem sentido. No inconsciente, perto e longe, passado e presente,

barata e homem são palavras que possuem uma proximidade que não se mantém depois

que caem no campo do enunciado e passam pelo crivo do sentido que se aloja no eixo

da realidade.

Nesses termos, o funil por onde passam as palavras é precisamente o corpo do

sujeito, sua boca. As palavras podem então ser ditas, à condição de que o sejam uma a

uma. Passa-se assim de uma condição de atemporalidade e suspensão do sentido para

outra de sentido e temporalidade. É quando se ordenam num discurso que as palavras

passam a exprimir sentido, ou seja, o que a psicanálise faz, ao considerar a existência do

inconsciente, é justamente perceber que a realidade, que se organiza obedecendo às leis

de tempo e de espaço, é provisória. Sua precariedade se deve ao fato de que,

prosseguindo com a exemplificação do globo de sorteio, o conjunto de bolas em seu

interior pode despencar sobre a série, pois na verdade o globo que as conteria não

existe.

18 2 Eixo Es(S)-A
33
7 16 Atemporal
1 21 Inconsciente
0 11 Sincronia
17
5 8 9
3

Eixo a-a’
17 3 5 9 1 21 Temporal
Realidade
S1 S2 S3 Sn Diacronia
O Nome-do-Pai fornece a imagem de um continente que contém todas as bolas

e evita a sua dispersão fora da série. Nas psicoses, é precisamente a relação temporal

diacrônica que se rompe. Ao pensar a questão temporal aplicada à estrutura do

desencadeamento, Herbert Wachsberger defende que o tempo para a compreensão do

fenômeno elementar, em que se estruturaria um S2 delirante, é posterior ao momento de

concluir (Wachsberger, 1998: 26), ou seja, o primeiro momento de encontro com a

estrutura leva o sujeito à conclusão de que algo lhe concerne, de que o fenômeno

elementar, por mais enigmático que seja, tem a ver com ele. Teria sido exatamente isso

o que levou Lacan a afirmar que não há pré-psicose, apenas a percepção do psicótico de

fenômenos elementares imediatamente seguidos da certeza de que são endereçados, e

exclusivamente endereçados, a ele, como se pode depreender da aplicação do esquema

L à clínica das psicoses.

O esquema na clínica

Na Saúde Mental, a psicanálise tem o desafio de inscrever a psicose no laço social sem

que, para isso, precise recorrer à frágil aliança biopsicossocial atualmente proposta.

Como visto, esse panorama estabelece nítida separação entre as ciências que incluem o

Outro e aquelas que apontam exclusiva ou majoritariamente para os fatores biológicos

como causas do sofrimento mental. É prudente, portanto, antecipar e desfazer a

possibilidade de um equívoco ligado ao fato de que ser o Outro barrado não quer dizer

que ele pode ser simplesmente dispensado.

Embora se mostre incontestável que os desenvolvimentos presentes em O

Seminário, livro 3 apontem para uma clínica que mantém presente a dimensão do Outro,
pode-se, conhecendo-se o rumo que Lacan deu posteriormente ao Nome-do-Pai, retomar

o esquema L, no intuito de atualizar a sua aplicabilidade no novo momento clínico.

Nesse sentido, bem como advertido da evolução da teoria, ainda considero atual a

afirmação, feita nos anos 1950, de que o inconsciente é o discurso do Outro, como quer

esta célebre frase de Lacan: “a condição do sujeito S (neurótico ou psicótico) depende

daquilo que se passa no Outro” (Lacan, 1958a: 549).

Para pensar a clínica, partirei de uma constatação. Enquanto nas neuroses a

clínica se desenvolve segundo a oposição e a tensão entre os eixos do imaginário e do

simbólico, nas psicoses as manifestações clínicas decorrem muito mais de uma torção

intrínseca ao eixo da realidade. Como visto no esquema L, a realidade nas psicoses não

serve de anteparo para a relação do Es, entendido como o mais íntimo, e do Outro, tido

como o que há de mais externo. Cabe ao sujeito criar estratégias singulares (distantes do

cálculo coletivo que o eixo a–a’ autoriza) para tentar restabelecer uma separação que

impeça que o Outro lhe seja intrusivo.

Lacan isola o momento inicial de uma psicose como sendo o da perplexidade.

Curiosamente, em O Seminário, livro 3, ele consegue reunir na mesma crítica Karl

Jaspers e Gatian de Clérambault (Lacan, 1955–6: 14). O primeiro como representante,

por excelência, da aproximação fenomenológica da perplexidade (Ratlosigkeit) e o

segundo por sua abordagem mecanicista desse mesmo estado. Para Michael Turnheim,

ambos buscaram capturar o momento do fenômeno elementar que gera a perplexidade,

aproximando esse conceito de suas próprias teorias. Em Jaspers, trata-se de achar

compreensível o louco confrontar-se com a própria incompreensibilidade do fenômeno;

em Clérambault, de assimilar o conteúdo anideico do fenômeno elementar mediante a

reconstrução por meio de um discurso estabelecido (Turnheim, 1993). Lacan, ao

contrário, sustenta até o fim de seu ensino que a posição do sujeito diante da
perplexidade não pode ser assimilada por nenhum discurso estabelecido, sendo

necessária uma invenção.

Ainda que desprovido de um discurso, é possível ao sujeito, na clínica, antecipar

uma fenda no eixo da realidade, para impedir que ele sustente a separação entre o S e o

Outro, e também aplicar-se, como estratégia, à tentativa de reconstituir esse eixo, ao

preço de “colar-se” à realidade em pontos que lhe pareçam oferecer maior segurança.

Para tanto, ele se fixa à imagem do semelhante, que lhe serve de espelho e lhe permite

reorganizar a própria imagem, à condição de que isole o imaginário da possibilidade

dialética que o eixo simbólico proporciona. Essa fixação no imaginário pode tanto lhe

trazer benefícios, evitando o desencadeamento da psicose, quanto calar toda enunciação

subjetiva, levando-o a um comportamento capturado pela especularidade.

Que a falta do Nome-do-Pai no significante abra no significado um furo que


corresponda à significação fálica, que daí se siga uma dissolução da estrutura
imaginária que chega a desnudar a relação especular em seu caráter mortal
[...], isso não nos permite nesse nível, entretanto, a meu ver, falar de não
estrutura ou de a-estrutura, uma vez que certamente também, em todo caso em
Schreber, o delírio enquanto metáfora delirante vem substituir a metáfora
paterna, estabilizando, sob uma forma inédita, significante e significado
(Miller, 1979: 124).

Esses pontos me fazem interrogar diretamente de que modo intervir clinicamente

em sujeitos psicóticos, sem correr o risco de que uma interpretação os desestabilize

ainda mais. A localização no esquema L do ponto de onde parte a interpretação

constitui-se num fino instrumento para distinguir as clínicas da neurose e da psicose. Na

primeira, o psicanalista visa ao equívoco significante, ou seja, onde a realidade gera

significações, suas intervenções apontam para o inconsciente como outra cena. São

essas intervenções que dividem o eixo simbólico, permitindo que a fuga do sentido abra

as portas para o equívoco.


Tomando como base o esquema L, constata-se que, nas neuroses, onde há uma

oposição entre realidade e inconsciente, produz-se uma torção. Já nas psicoses, por essa

torção ser um dado clínico de entrada, procura-se um efeito de estabilização que a

impeça de desfazer a relação de alteridade entre o Es e o A.

Em 1956, a estabilização psicótica foi um efeito que visou fundamentalmente

restabelecer a oposição entre os dois eixos do esquema L. Em outras palavras, restituir o

algoritmo S/s, metáfora que separa as palavras (campo do Outro) das coisas (Sachen).

No cerne dessa operação, encontra-se a instituição de um significante que nomeia a

experiência de gozo enigmática. Trata-se de uma experiência enigmática porque o

sujeito não encontra respostas no campo da realidade, ou seja, onde o Outro simbólico

batizou as Sachen com palavras, matando a coisa, algo da coisa permanece como

enigma.

Na clínica do esquema L, é necessário obter um meio de estancar o gozo

enigmático e intrusivo seja com uma metáfora delirante, seja preservando uma

identificação imaginária que se mostre fundamental para o sujeito. Em O Seminário,

livro 3, portanto, a reconstituição do plano imaginário tem papel fundamental no

manejo dos casos de psicoses, apesar de, nos anos 1950, falar-se muito sobre a metáfora

delirante. Trata-se de uma clínica que inclui tanto os fenômenos “de intrusão” do eixo

do inconsciente na realidade – que chamamos de inconsciente a céu aberto – quanto os

efeitos da tentativa do sujeito de sustentar-se no eixo imaginário. Segundo Miller,

“isola-se a foraclusão do Nome-do-Pai, esquecendo-se que ela, uma vez revelada a falha

em que consiste, implica a regressão especular” (: 123).

Um caso de desencadeamento da psicose


Passo agora a indagar se o conceito de psicose ordinária deve ser considerado sinônimo

de psicose não desencadeada. Trata-se de uma vinheta clínica de uma psicose de

desencadeamento tardio, cujas coordenadas foram recuperadas numa apresentação de

pacientes no hospital psiquiátrico.

Um dos modos de apreender a clínica da psicose ordinária faz pensar que um

sujeito pode estar em permanente atividade delirante e, ao mesmo tempo, perfeitamente

coberto pelo manto da normalidade. Por que então considerá-lo um problema clínico?

Precisamente porque, como reforça Pierre Naveau, é impossível dissociar a solução

encontrada pelo sujeito psicótico da iminência de uma passagem ao ato (Naveau, 2006).

Em muitos dos casos que chegam às emergências psiquiátricas, constata-se que o

sujeito, antes da detecção da crise, entretinha uma relação apenas aparentemente

conectada com o laço social. A posteriori, aprende-se que ele estava em permanente

conexão de gozo com o Outro, sem a intermediação do eixo da realidade. O outro que

lhe servia de interlocutor no laço social estava desabitado de vida e sua verdadeira

ligação era com a voz alucinada, que lhe servia de mestre e interlocutor maior.

Amélia

Amélia tinha 48 anos quando foi levada, pela primeira vez, a uma emergência

psiquiátrica, após uma passagem ao ato que surpreendeu a todos que a conheciam. Dona

de casa exemplar, mãe dedicada, mantinha como atividade mais importante do

casamento as funções de cuidar do lar e providenciar que tudo estivesse em ordem. Por

insistência de seus familiares, no momento em que problemas relativos à idade


dificultaram as atividades cotidianas, contratou-se uma faxineira para ajudar no cuidado

com a casa. Essa contratação foi aceita com muita relutância por Amélia e, desde os

primeiros dias, a relação entre as duas se mostrou tensa, culminando numa agressão

física, em franco estado persecutório, que motivou seu atendimento emergencial.

A clínica lacaniana das psicoses valoriza as coordenadas que elucidam o

desencadeamento e a passagem ao ato. Os dados reconstituídos da história de vida do

paciente possuem a função de explicar por que o desencadeamento não se produziu

antes, ou seja, buscam delimitar as estratégias utilizadas pelo sujeito para evitar o

encontro com a loucura. Assim, enquanto a psiquiatria pergunta como começou a

loucura, a psicanálise se volta para o que sujeito fez no intuito de evitar que ela se

desencadeasse.

No caso de Amélia, essa estratégia emerge de modo muito sutil. A metáfora

delirante não precisa, necessariamente, destoar dos ideais que permeiam a trama social.

Caso o delírio de Amélia assumisse formas muito distantes da norma social – por

exemplo, ser uma personalidade famosa –, sua loucura seria detectada, com facilidade,

pelos filtros do laço social ou das redes da Saúde Mental.

Uma entrevista com a paciente durante a internação permitiu identificar a astúcia

de seu delírio. Amélia, dona de casa exemplar, delirava precisamente que era... uma

dona de casa. Ora, “dona de casa” é uma expressão comum na língua portuguesa,

empregada por todos. Não é um significante privado de nenhum dos interlocutores do

eixo a–a’, inscrevendo-se como um dos significantes no campo do Outro, que preside a

relação simbólica entre os interlocutores.


a’

laço social

Outro
a (dona de casa)

Amélia, contudo, faz uso privado do significante dona de casa, o que permite

identificar os efeitos de nomeação dessa expressão. De dona de casa, escrito em

minúscula, passamos a Donadecasa, misto de gozo da lalíngua e dádiva do Outro, que

fixa um ponto de estabilidade e impede que o sujeito parta à deriva. Donadecasa é um

elemento incomunicável, uma vez que desprovido de sentido e segregado da lei fálica.

Não havendo a função do recalque, está-se no inóspito terreno do inconsciente a céu

aberto. Consequentemente, sua presença no campo da realidade se faz como irrupção

singular de uma certeza inabalável por qualquer manobra dialética. É como se o

pontilhado das linhas do esquema L tivesse se invertido. A diagonal a–a’ se torna

pontilhada e a diagonal (Es)S–A passa a ser representada por uma linha cheia,

demarcando-se assim a perda de alteridade entre os dois polos.

Donadecasa a’

Inc
on
sc
ien
te
a cé
e ua
ad be
rto
alid
Re

a A
Com efeito, o esquema L é particularmente claro na exposição da trama de

alteridades que demarcam a relação com o pequeno outro e o grande Outro. Faltou a

Lacan, nesse esquema, o elemento topológico que permitiria visualizar, com maior

nitidez, a torção que se produz entre o que é do campo do Outro e o que é do campo do

que, posteriormente, ele chamaria de campo do Um. Todavia, no texto De uma questão

preliminar a todo tratamento possível da psicose, há uma longa nota de rodapé na qual

ele explica que, em seu esquema L, o campo da realidade é, na verdade, uma fita de

Moebius (Lacan, 1958a: 554).

No exemplo acima, percebe-se que o significante privado Donadecasa é

diferente do significante “dona de casa”, usado por todos no dia a dia. Há uma

apropriação do significante a fim de demarcar o que é do campo do gozo e o que

pertence às ruas, sendo esse o ponto fundamental que permite entender a questão do

laço social consoante a psicanálise.

As torções do laço social


Como dito, Lacan demonstra que a realidade é uma linha relativamente tênue para

garantir o laço social. Proponho, agora, seguir a indicação de Lacan na nota de rodapé

mencionada e aplicar a fita de Moebius ao plano da realidade. Quando se recorta o

plano, tem-se não a percepção de que ele é uma fita de Moebius, e sim a impressão de

que se pode separar definitivamente o que é o mais íntimo do que é o mais público do

sujeito, ou seja, o que pertence ao gozo do corpo e o que pertence ao mundo das ruas.

O corpo

Es a’

e
ad Inc
lid on
Rea sc
ien
d a te
o
an
a Pl A

A rua

Tomando-o como um plano topológico, percebe-se que a relação a–a’ é

atravessada quer pelos fenômenos do corpo, quer pela percepção do Outro. Contemplar

o esquema L sob uma perspectiva topológica leva à percepção da clivagem que se passa

na clínica das psicoses entre os fenômenos ligados ao corpo e os fenômenos ligados ao

Outro, assim como do transitivismo entre esses dois polos.

De forma engenhosa, o esquema L demonstra que a realidade em que se perfila a

trama social só garante a separação entre o mais íntimo e o mais exterior para o Eu, se
ela for um recorte da totalidade do plano. O Outro (A), assim como tudo o que pode ser

dito, é o que confere um bordo e um limite à realidade. Da foraclusão do Nome-do-Pai

aos minuciosos desenvolvimentos sobre a incompletude e inconsistência do Outro – que

autorizaram a expressão foraclusão generalizada –, apreende-se que a infinitude desse

plano revela a reversibilidade batizada por Lacan de extimidade (Lacan, 1959–60). Para

além do enquadramento do Nome-do-Pai, o laço social deixa de ser estável e se

equilibra num plano moebiano aberto à extimidade.

extimidade
A rua
a’
interior

a exterior

O corpo

O fato de o Eu se localizar nesse plano retorcido faz com que o Outro simbólico

e o Isso (das Es) se confundam, emergindo para o Eu como se fossem um único e

mesmo Outro. É o que se constata, por excelência, na problemática relação do

esquizofrênico com o seu corpo. Um ruído na rua pode ser percebido como algo que se

passa na carne, do mesmo modo que uma sensação corporal pode ser interpretada como

o resultado de uma manipulação direta do Outro no corpo do paciente.

Como então produzir o recorte necessário para que o plano da realidade, em sua

disposição moebiana, não promova a torção que inunda o campo do Outro com o gozo
ou, inversamente, para que o Outro não mate a Coisa, levando no mesmo golpe o Eu?

Encontra-se na topologia do próprio Lacan uma resposta, cuja demonstração é

relativamente simples.

O único modo de fazer com que uma fita de Moebius, que representa a

realidade, não inverta seu sentido é cortá-la, transformando-a num plano comum. Ao

aplicar essa condição à realidade, percebe-se a necessidade de operar um corte em seu

plano moebiano para que ela se estabilize. Esse é inclusive um dos modos de abordar a

questão da estabilização nas psicoses, ou seja, fazer algo que permita um recorte da

condição moebiana entre o gozo e o Outro.

Aqui, encontra-se a especificidade da teoria lacaniana do objeto a. Lacan, como

indica este comentário de Bernard Baas, “privilegia a separação como tal, quer dizer, a

disjunção que pressupõe o contato do que está separado; é por isso que ele procura

essencialmente pensar o que do corpo procede da separação” (Baas, 1995: 55),


configurando-se, assim, a importância de pensar uma clínica da extração do objeto a, o

que começo a abordar em seguida.

Você também pode gostar