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CONFINS DA PSICOSE - TEORIA E PRÁTICA1

Nieves Soria Dafunchio


Tradução livre do espanhol: Beatriz Lavieri

Cap. I – Introdução

1.O Confim

Começamos pelo título que escolhi para este seminário que é Confins da Psicose. O
termo confim é utilizado por J. Lacan, em seu escrito “O Aturdido”, em referência ao
campo das psicoses.

A particularidade que este termo tem é que situa uma zona, uma zona sem ser
exatamente um limite.

O limite é um termo que, por exemplo, em um mapa político, é o que demarca os


territórios em países, estados, províncias, etc. – isto é, aí há uma convenção que situa
um limite muito preciso, que é o limite político – e que seria efeito de uma operação
simbólica.

Mas também temos os mapas geográficos, nos quais encontramos essas zonas
intermediárias, que dividem os distintos territórios segundo suas características naturais,
essas zonas limítrofes, esses confins nos quais não é tão sensível situar um limite
preciso.

E me pareceu interessante este termo, porque Lacan, em seu texto sobre as psicoses, fala
do que ocorre nesses confins na estrutura da psicose. Quando nos deparamos com a
psicose na prática, nos encontramos muitas vezes com o problema de onde estão essas
zonas nas quais não é tão sensível encontrar o limite.

Também é um termo que posteriormente Lacan vai empregar para se referir a certas
formas do limite que não obedecem à lógica fálica, edípica, mas que obedecem muito
mais ao que ele vai chamar de lógica do feminino, que não é propriamente edípica. E
como justamente o que encontramos na psicose é que há ausência de Édipo, poderíamos
dizer que a clínica da psicose é uma clínica dos confins, uma clínica do limite quando
falta o limite.

Isto faz também que seja necessário estudar não somente dentro de cada caso de psicose
essas zonas obscuras nas quais não fica claro onde termina uma coisa e onde começa
outra, senão também dentro do que seria a estrutura mesma da psicose, quer dizer, onde
estão os limites da psicose.

Soria Dafunchio, Nieves – Confines de la Psicosis – Teoría e Práctica, 1ª ed., Buenos Aires: Del Bucle,
1

2008.

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Podemos pensar que existe um limite estrito entre neurose e psicose ou temos que falar
de confins, de zonas limítrofes nas quais se pode situar um limite? É um trabalho mais
complexo do que pode parecer uma primeira aproximação do problema.

Então, nestes encontros tenho vontade de introduzir esta complexidade que implica o
termo mesmo de confim no campo clínico das psicoses. A maneira como pensei este
seminário é dedicar, em primeiro lugar, três aulas a um desenvolvimento teórico das
psicoses, para oferecer-lhes alguns elementos mínimos com os quais abordar
posteriormente toda uma série de casos que vão ser apresentados e trabalhados aqui.

Nestas primeiras três aulas o que vamos tratar de trabalhar são os dois grandes
paradigmas que podemos encontrar no ensino de Lacan para abordar a clínica das
psicoses. O primeiro paradigma é o de Schreber, caso que Lacan trabalha no Seminário
3, que é do ano de 1956, e também em 1958, no texto “De uma questão preliminar a
todo tratamento possível da psicose”, que se encontra em Escritos 2.

Posteriormente, em 1975, Lacan vai voltar sobre a questão das psicoses, mas não em um
seminário dedicado às psicoses em si mesmas, mas vamos poder encontrar muitas lições
sobre as psicoses no Seminário sobre Joyce, no Seminário do Sinthome. Neste
seminário Lacan vai deduzir uma estrutura psicótica em Joyce e vai se interessar pela
maneira com que ele resolve seu problema de carência do recurso edípico, e como
consegue manter uma estrutura psicótica sem desencadear. Isto vai permitir abordar
toda uma série de casos que ficariam de fora do primeiro paradigma – o paradigma
Schreber – que é o paradigma da psicose francamente desencadeada. Iremos então de
Schreber a Joyce, este vai ser o movimento que tentaremos realizar nestas primeiras três
aulas.

Por outro lado, também tentaremos seguir de algum modo a lógica do ensino de Lacan e
formular algumas consequências de como conceitua a estrutura psicótica à altura do
paradigma Schreber, para nos introduzir depois na concepção do tratamento possível da
psicose. Ao mesmo tempo, tratarei de fazer um contraste, inclusive um contraponto com
o que podemos deduzir à altura do Seminário 23 – o seminário sobre Joyce – sobre a
concepção da estrutura psicótica e de sua possível abordagem pela psicanálise a esta
altura.

Vemos que se abrem perspectivas muito distintas, que vão permitir abordar a
diversidade de casos com diferentes elementos. Vamos tentar aplicar também a lógica
do confim, a lógica feminina, a cada caso que vá sendo apresentado.

Minha proposta é que, depois destas três primeiras aulas, em cada reunião um praticante
da psicanálise apresente um caso de psicose. Esses casos seguirão a seguinte sequência:
os primeiros representam muito claramente algum tipo clínico dentro das psicoses, por
exemplo: na quarta aula um caso de mania, na quinta um caso de melancolia, etc. São
casos nos quais se pode situar de maneira precisa certo tipo clínico dentro da estrutura
da psicose. Mas, ao mesmo tempo que vamos precisar dar conta da particularidade deste
tipo clínico, tentaremos adentrar na zona dos confins, quer dizer, situar isso que há de

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único em cada caso, isso que no caso é impossível de ser reduzido ao tipo clínico, ao
universal. Então, vamos ao traço singular, ao que faz não somente o único do caso desde
o ponto de vista do que não se pode classificar, mas também de como isto entra em jogo
no consultório ou no hospital (onde for), na direção da cura psicanalítica, onde não se
trata somente do tipo clínico, senão que se trata justamente da singularidade do caso.

Finalmente, nas últimas aulas, tentarei entrar mais de cheio na zona dos confins da
estrutura. Para isso, trabalharemos com casos nos quais não é tão sensível o diagnóstico
diferencial entre neurose e psicose, e onde vamos tentar, por um lado, trabalhar a
questão do diagnóstico e, por outro lado, ver se podemos chegar a uma conclusão a
respeito de como se articulam o singular e o universal na diversidade dos casos.

2. Uma Diacronia Lacaniana

Começamos então com o tema introdutório deste seminário, que é a diacronia no ensino
de Lacan. E se vamos situar o movimento que se opera desde o paradigma Schreber até
o paradigma Joyce, é fundamental seguir um pouco a lógica que orienta os distintos
momentos.

Situando os distintos momentos do ensino de Lacan, temos um primeiro tempo, que é o


tempo em que ele se dedica a estudar o registro imaginário, no qual vai trabalhar
fundamentalmente o estádio do espelho. Parece-me que não é casual que Lacan comece
por aí, já que ele – diferentemente de Freud – entra na psicanálise pela psicose.

Enquanto Freud inventa a psicanálise a partir de seu encontro com as histéricas, Lacan
tem uma formação psiquiátrica, e o que o levou à psicanálise foi seu encontro com os
psicóticos. O que mais interessou a ele das psicoses foram os profundos transtornos do
imaginário que encontramos no desencadeamento: a derrubada imaginária, o
desmoronamento que sobrevém no campo da imagem na psicose.

Tampouco é casual que, se entrou na psicanálise pela psicose, comece pelo imaginário.
Inclusive, no Seminário 3, Lacan vai do imaginário ao simbólico. Faz um movimento
que vai de todas as perturbações do imaginário na psicose – do que Freud chamava a
perda de realidade, da derrubada da realidade no desencadeamento psicótico – a tratar
de esclarecer quais são os estímulos simbólicos desta catástrofe no imaginário.

Em um segundo tempo – claramente a partir do Seminário 4 – Lacan começa a estudar o


registro do simbólico. Inclusive poderíamos dizer que vai estudar a primazia do
simbólico sobre o imaginário.

Porém, assim como no primeiro tempo se ateve a estudar a questão do estádio do


espelho, os esquemas óticos e demais, neste momento vai estudar o simbólico: como é o
simbólico, a estrutura da linguagem, e que efeitos tem na construção do imaginário.
Podemos seguir claramente este movimento desde o Seminário 4 ao Seminário 11.

Depois, em um terceiro momento – que começa no Seminário 11 – o que ocorre é que


Lacan de tanto estudar o campo ou registro simbólico, chega à conclusão de que a

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operação simbólica da constituição do sujeito deixa um resto real, que nesse momento
vai conceituar como o objeto a. Dedicar-se-á, então, a determinar as consequências – na
estrutura e na prática da psicanálise – do fato de que nesta operação haja um resto real.
Poderíamos dizer, a grandes traços, que este movimento chega até o Seminário 20.

Já em um quarto tempo, podemos situar o Seminário 18, no qual Lacan começa a


construir as fórmulas da sexuação (as quais, por sua vez, o levam ao nó borromeano),
que é o que prevalece neste último tempo de seu ensino a partir do Seminário 20, onde
justamente cai a ideia da primazia do simbólico (ainda que nunca totalmente). Então,
neste quarto momento podemos dizer que Lacan se encontra com que há uma
equivalência entre os três registros: real, simbólico e imaginário.

Assim é como, no primeiro tempo, se interessou pelo imaginário, no segundo, pelo


simbólico, no terceiro tempo, por esse resto real produzido pelo simbólico e, neste
quarto tempo – no qual os três registros são equivalentes – vai se interessar por estudar
fundamentalmente o registro do real. Obviamente estes movimentos trazem enormes
consequências a respeito de como levar a cabo a direção da cura.

Como este é um seminário dedicado às psicoses, vamos nos ater ligeiramente em dar
alguns elementos para situar quais são as consequências deste movimento que se realiza
no ensino de Lacan na concepção da estrutura psicótica e sua abordagem pela
psicanálise.

3. Schreber. O Paradigma de uma Realidade

Começaremos pelo segundo tempo, no qual vamos situar o paradigma Schreber,


momento do texto de 1958 “De uma questão preliminar..., que é um texto
contemporâneo ao Seminário 5. Quer dizer, dois anos depois do Seminário 3 das
psicoses, ele faz este escrito onde, à luz da maneira em que está trabalhando naquele
ano a estrutura, extrai o que seria sua doutrina da psicose.

É, então, nesta época que Lacan concebe uma primazia do simbólico sobre o
imaginário, na qual vai ater-se especialmente aos recursos simbólicos da estrutura e
como afetam o imaginário. É aí que Lacan aborda o texto de Freud sobre o caso
Schreber, e se dedica – como geralmente faz com a obra de Freud – a matematizar as
formulações freudianas. Para isso, vai se servir de um esquema, do esquema R.

O esquema R é um esquema no qual Lacan complexifica o que havia introduzido no


Seminário 3 como o esquema Lambda. Vocês se lembram do esquema Lambda:

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Neste esquema encontramos o eixo imaginário, no qual entra em jogo a reversibilidade
própria do espelho, e por detrás encontramos o eixo simbólico entre o sujeito e o Outro.

No Seminário 3, Lacan reformulava a relação especular, a relação imaginária,


concluindo que a relação entre o eu e o semelhante ficava sujeita a fenômenos de
transitivismo, reversibilidade, que levavam ao conflito, à ruína, à destruição, quando a
mediação do eixo simbólico não operava. Lacan propõe então que a relação imaginária
é uma relação agressiva, incestuosa, que somente encontra certa paz graças ao complexo
de Édipo, à introdução do eixo simbólico. É por isso que a conclusão do que Lacan
formula no Seminário 3 é que essa relação imaginária incestuosa é a relação entre a
criança e sua mãe. Situa aqui a mãe e aqui a criança.

Desde esta perspectiva, a relação incestuosa da criança com a mãe somente encontra um
corte, encontra a paz, quando esse terceiro – o pai no lugar do Outro – opera uma
separação, uma interdição, o que garante que esse eixo não seja irreversível. Esse
terceiro estabelece diferenças, dizendo à mãe: “não reintegrarás teu produto” e, à
criança: “não possuirás tua mãe”. Desse modo estabelece diferenças, fazendo que a
criança não possa se crer como o falo de sua mãe.

Desta maneira pode-se ver até que ponto o esquema Lambda é o precursor do esquema
R, já que, na realidade, neste eixo imaginário podemos situar a relação da criança com
sua mãe, enquanto nesta ponta do eixo simbólico – formando já o triângulo edípico –
situamos o pai em posição de Grande Outro, que intercepta a reversibilidade imaginária,
introduz um corte e pacifica a relação entre o eu e o outro.

Esta estrutura, complexificada, dará lugar ao esquema R.

De que se trata no esquema R? Da preocupação em como se constrói o campo da


realidade, daí seu nome. Freud diz que tanto na neurose como na psicose há perda da
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realidade, no entanto, não se a perde da mesma maneira nem ficam as mesmas
consequências em cada estrutura. Então, o esquema R tenta dar conta de como se
constitui em um sujeito neurótico (que conta com o pai) o campo da realidade.

O esquema R tem dois grandes triângulos: o triângulo simbólico e o triângulo


imaginário. O campo da realidade esta inserido no registro do imaginário, mas
justamente dentro do registro imaginário, nessa zona que confina com o registro
simbólico, ali onde ambos se entrecruzam.

E o que vai possibilitar que se constitua o campo da realidade (que é a faixa central do
esquema)? Lacan vai dizer que aqui está a mãe, o M, o objeto primordial, e neste outro
extremo o falo, o φ, que a criança atribui à mãe no primeiro tempo do Édipo.

Na formalização que Lacan faz do Édipo freudiano, vai dizer que no primeiro tempo do
Édipo – que é o que acontece ao pequeno Hans, que inclusive considera que todos os
seres vivos possuem falo – se dá a primazia universal do falo atribuindo, desta maneira,
um falo à mãe. É o primeiro momento do Édipo, no qual a criança ainda não se inteirou
da castração materna, por sua vez, da castração feminina. Aqui vemos o sujeito, o S,
alojado como falo da mãe, o sujeito em posição de falo materno.

Porém, não chega com este eixo a armar o campo da realidade. Para que este se
constitua, Lacan entende que tem de haver uma tensão entre estes dois vértices: aquele
em que a criança se situa como falo da mãe e aquele onde se encontra o Outro materno.
Entre ambos deve haver uma tensão possibilitada por um terceiro, o P do pai no lugar
do Outro. Novamente essa posição terceira entre a criança e sua mãe abre a dimensão
simbólica que sustenta o imaginário. Isto possibilita certa distância entre o eu e sua
imagem, certa distância entre o objeto e a imagem do objeto no outro.

Estes quatro lugares, quatro pontos: i – a – a’ – m, são os quatro vértices imaginários do


campo da realidade. Trata-se da relação entre o eu e sua imagem no espelho em um
extremo, e do lugar do outro e a imagem do outro no outro extremo. Isso é o imaginário.

Mas, ao mesmo tempo, esta borda do campo da realidade – a borda inferior – é


imaginária e simbólica. Então, ao mesmo tempo em que vocês encontram ali o outro
com minúscula, o pequeno outro e suas imagens, ao mesmo tempo temos o Outro
primordial que é a mãe, e o Ideal do eu. Podemos dizer que o campo da realidade está
sobredeterminado, imaginária e simbolicamente, pelo que neste eixo encontramos o
pequeno outro e suas imagens e, ao mesmo tempo, o Ideal do eu, que é um misto
imaginário e simbólico.

Que o pai venha ao lugar do Outro, isso quer dizer que vem garantir a cadeia simbólica
como lei, que vem garantir que há uma lei e que essa lei vai proibir a relação incestuosa
entre a criança e sua mãe, extraindo a criança do corpo-falo da mãe. Aqui intervém o pai
como terceiro, como garantidor, como homem. É o que tornará possível a constituição
do campo da realidade.

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Em seu texto “De uma questão preliminar...” Lacan arma este quadrângulo que é o
esquema R, que será o ponto de partida para estudar o que ocorre na estrutura psicótica.
Dirá que, quando a psicose desencadeia, o que ocorre é que desmonta o campo da
realidade, sobrevindo a catástrofe imaginária.

Em Schreber podemos situar isto nesse momento em que entra em um estado de


perplexidade, do qual sai dizendo que tinha estado morto – inclusive lê a notícia no
diário de que tinha estado morto. Trata-se de todo um tempo em que está em um estado
de perplexidade quase catatônico, em que perde a realidade, não podendo se relacionar
com o outro. Sai lentamente, e ao longo do tempo vai construindo esse delírio que nos
lega em suas memórias, das quais Lacan diz que são o testemunho de um trabalho de
reconstrução do campo da realidade que tinha sido perdido no desencadeamento
psicótico.

Lacan concebe desse modo o esquema I, com o qual tentará dar conta de como se
reconstrói o campo da realidade através de seu delírio. Mas nesta reconstrução da
realidade não se volta ao estado anterior, em todo caso nessa reconstrução o campo da
nova realidade não ficará circunscrito do mesmo modo que no esquema R – que é como
fica na estrutura neurótica.

Neste esquema podemos observar até que ponto o que no esquema R é uma faixa
[franja], se encontra estendido pelos quatro vértices do quadrilátero no esquema I.

Este esquema se baseia no que falta, por isso em algum sentido podemos dizer que, à
altura do paradigma Schreber, Lacan tem uma concepção deficitária da psicose. Se bem
que não se trate do déficit orgânico a que se referia a psiquiatria, se trata de um déficit
simbólico. Já que, à altura do Seminário 3, Lacan pensa que ao psicótico falta o Nome
do Pai, falta um significante fundamental, o significante que ordena o conjunto dos
significantes, os significantes que garantem a cadeia simbólica como lei do Outro que
por isso, é o significante que garante a saída do inferno imaginário, especular,
incestuoso. Essa concepção da estrutura psicótica como uma estrutura deficitária, em
déficit simbólico, será a que anima o esquema I.

Lacan conceberá então que, assim como na neurose, o campo da realidade se arma
graças a estes elementos, nas psicoses é necessário se virar com a falta desses
elementos, daí que todo o esquema I gire em torno da foraclusão do Nome do Pai, que é
um buraco no registro simbólico, o buraco que é o Nome do Pai, P0.

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Em “De uma questão preliminar...”, Lacan observará que a psicose desencadeia quando
o sujeito – por alguma contingência em sua vida – apela ao Nome do Pai no lugar do
Outro. Necessita que o significante do Nome do Pai esteja no lugar do Outro para
enfrentar determinada situação de sua vida. Lacan fala do “chamado vão”, chamado que
não encontra reposta, e então um buraco no simbólico se faz presente.

No caso Schreber, poderíamos dizer que foi sua nomeação como presidente da corte de
Dresden, nomeação que o leva a uma posição simbólica de pai, já que ele aí vai ter a
cargo homens que poderiam ser seus pais, homens de uma geração anterior. Deste
modo, para poder enfrentar essa situação terá que contar com certo elemento simbólico
que lhe permita fazer-se de pai para outros que poderiam ser – desde o ponto vista
geracional – seus próprios pais. Esta é uma leitura possível acerca do quê desencadeia a
psicose de Schreber à altura do Seminário 3.

Por outro lado, em “De uma questão preliminar...” Lacan não formula o
desencadeamento nesses termos, senão muito mais a partir da presença de Flechsig
como Um-pai no real. Mas poderíamos dizer que são dois momentos lógicos distintos:
um primeiro momento lógico que é a nomeação, quando se faz presente no simbólico o
buraco foraclusivo e começa lentamente a demolição do imaginário, e um segundo
momento lógico que se abre quando vai procurar Flechsig, que o havia tratado em sua
primeira enfermidade hipocondríaca, e se encontra com Um-Pai no real, com um Outro
gozador, começando a delirar que Flechsig quer submetê-lo sexualmente. E de Flechsig
para Deus há um passo, com o que termina armando sua solução delirante graças a seu
encontro com Flechsig.

O encontro com este buraco no simbólico, P0, vai abrir ao mesmo tempo um buraco no
imaginário. Desta maneira, o triângulo imaginário se desmonta ao ser habitado por um
buraco, no que se faz presente a foraclusão do falo. É então que o significante fálico se
demonstra inexistente para o psicótico.

No caso de Schreber, isto se verifica, clinicamente, no momento em que começa a se


desencadear sua psicose, antes de entrar nesse estado de perplexidade catatônica,
quando tem uma quantidade inusitada de poluções noturnas. Vocês lembram que ele
refere que uma noite tem muitas ejaculações. Nesse momento, o órgão deixa de
funcionar como um condensador de gozo, sendo invadido por um gozo sem limite.

Pergunta: Então, pelo que acaba de dizer, o significante Nome do Pai e o significante
fálico, os dois, estariam foracluídos da psicose?

Exatamente, já que para Lacan a metáfora paterna é uma operação na qual o Nome do
Pai significa metaforicamente o Desejo da Mãe. Que deseja a mãe? Deseja o falo do pai.
Será então a operatória do Nome do Pai que possibilita que se inscreva a significação
fálica.

Lacan vai dizer que o significante Nome do Pai é o significante do significante. É o


significante ao qual se referem todos os significantes, é o significante que os ordena,

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que é diferente de todos os demais e que possibilita então que todos se relacionem entre
si. Daí que também o chame de significante ímpar. E aí sua referência à passagem
bíblica em que Deus fala e diz: “eu sou o que sou”. É autorreferente, se refere a si
mesmo, excetuando-se do conjunto dos significantes, mas possibilitando ao mesmo
tempo o fecho desse conjunto.

Enquanto que o simbólico está conformado pelo binário S1 => S2. O significante sempre
é oposicional, então todo significante se define a partir de outro significante, com a
exceção deste Deus que diz: “sou o que sou”. Deus é um S1 sem um S2, enquanto todos
os demais significantes remetem a outro significante, como demonstra a existência do
dicionário.

Seguindo a lógica dos conjuntos, o que permite fechar o conjunto é a extração de um


elemento que pode permanecer como exterior ao mesmo.

Pergunta: Ou seja, a foraclusão do significante fálico é efeito da foraclusão do Nome


do Pai?

Sim. Ainda que Lacan interrogue essa relação no escrito “De uma questão
preliminar...”. Sim. A foraclusão do significante fálico é consequência da foraclusão do
Nome do Pai, mas o que Lacan se pergunta é se se trata de um efeito direto ou indireto.
E isto é interessante, porque permite pensar uma série de casos nos quais se pode
demonstrar a foraclusão do Nome do Pai sem que se faça presente o buraco no
imaginário. Ao contrário, casos nos quais haja evidência da foraclusão do falo,
apresentando-se o buraco no imaginário, com fenômenos elementares no campo da
significação, sem que encontremos aqueles outros fenômenos elementares no campo do
significante que dão conta da existência do buraco no simbólico. Podemos então fazer
desta distância entre ambos os buracos um instrumento fundamental para abordar a
diversidade da clínica.

Ao Lacan conceber que esta relação pode não ser direta, pode ocorrer que em uma
psicose se faça presente um buraco e não o outro – o que não quer dizer que esse outro
buraco não esteja aí, latente. Pode estar na estrutura sem se manifestar na clínica. Isto
ocorre para ambos os buracos (P0 e 0) na psicose prévia ao desencadeamento. Mas
também pode ocorrer que o desencadeamento afete só um dos dois buracos, ficando o
outro latente.

4. Significante do Significante. Significação Fálica.

Voltemos. O Nome do Pai é o significante do significante e o falo é o significante da


significação, é o significante que vai dar conta dos efeitos de significação. Na neurose,
toda significação vai ser fálica, e como não há uma relação biunívoca entre significante
e significado, senão que o significante se relaciona com outro significante, , isto
é que vai produzir efeitos de significação. Mas estes efeitos vão denotar certa
ambiguidade, e isto ocorre justamente porque não há um significante que corresponda a
um significado. É por isso que nadamos no mal-entendido, por isso nada do que

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dizemos termina de poder se aprisionar totalmente. Tudo o que falamos ou escrevemos
é passível de várias interpretações.

No entanto, estes efeitos de significação que não podem se fixar em um sentido único,
têm algum limite. Quer dizer, habitualmente não falamos absolutamente a esmo. Há
certo limite no efeito de significação, e esse limite é possibilitado justamente pelo
significante fálico, que vai dar uma significação fálica. Assim é que se bem que para
nós, os seres falantes, as palavras não estão presas às coisas, existe uma possível relação
entre as palavras e as coisas graças à significação fálica. Graças a ela, qualquer coisa
não quer dizer qualquer outra para nós, ainda que tampouco possamos dizer que esta
coisa quer dizer univocamente esta outra. Há uma margem de certa indeterminação, que
suportamos graças à significação fálica. É como se disséssemos: “tá bem, te entendi,
não sei exatamente o que quiseste dizer, mas te entendi”.

Tanto o significante Nome do Pai como o significante fálico são diferentes dos demais
significantes. O Nome do Pai porque é o que de algum modo funciona como referente
de todo o conjunto significante; e o significante fálico porque é o que funciona como
referente de todos os efeitos de significação.

Voltemos agora ao esquema I. Na derrubada de sua realidade, Schreber sente que morre,
sofre uma série de fenômenos de órgão, diz que lhe comem o cérebro, etc. Claramente,
se perde a imagem especular, se desarma a unificação narcísica e, então, tem toda uma
série de vivências de gozo de gozo nos órgãos interiores do corpo. Lacan observa que
Schreber, com todo seu trabalho de delírio, logra restabelecer o campo da realidade, e
este esquema I dá conta do estádio terminal do delírio de Schreber.

O que lemos em suas memórias é o resultado de todo esse trabalho do delírio que
consegue restabelecer o campo da realidade, o que lhe possibilita sair da internação,
voltar a sua posição de jurista e recobrar todos os seus direitos, graças ao que consegue
testemunhar como pode se relacionar com a realidade mais além desse pequeno delírio
de ser a mulher de Deus. É então que se restabelece a realidade, mas com outro esquema
diferente do da neurose.

O que Lacan diz é que como lhe falta o Nome do Pai, Schreber vai substitui-lo
esticando este vértice (do esquema R), que é o vértice do Ideal, até obrigá-lo a cumprir a
função faltante do Nome do Pai. No esquema I o Ideal vem ao lugar do Nome do Pai.
Quer dizer, para Schreber o Ideal vai cumprir a função que não cumpre o Nome do Pai.
Isto é algo que mais adiante veremos nos casos.

Em muitos casos de psicose se vê claramente que o que estabiliza o sujeito é algum


Ideal que ordena seu mundo da mesma maneira que o Nome do Pai ordena o mundo
para o neurótico.

Na parte superior do esquema acontece o mesmo. Acima encontramos o i, que é a


imagem do corpo; Schreber vai esticar a imagem do corpo desde o centro até o vértice

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