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AGRUPAMENTO DE ESCOLAS N.

º 1 DE MARCO DE CANAVESES
ESCOLA SECUNDÁRIA DE MARCO DE CANAVESES

ANO LETIVO: 2021/2022

10.º Ano

FILOSOFIA
DISCIPLINA DA COMPONENTE DA FORMAÇÃO GERAL
ENSINO SECUNDÁRIO

Docente: José Carlos de Sousa Rodrigues


UM NOVO CICLO…
O 10º ano não é apenas “mais um ano” do trajeto escolar dos alunos.
É o ano em que é dado o “salto” do Ensino Básico para o Ensino Secundário.
É o ano em que se entra num novo ciclo (ensino secundário) decorrente de uma
opção feita por cada aluno, enquanto pessoa com autonomia e liberdade de escolha,
por um determinado Curso, correspondente a uma área específica do conhecimento
humano, com a qual aquele se deve identificar em termos de gostos e capacidades
(vocação).
É o ano em que surgem novas disciplinas associadas a novas exigências e a
novas responsabilidades.
É o ano em que o sistema de avaliação do desempenho de cada um passa a ser
diferente, uma vez que as classificações obtidas, em cada uma das disciplinas, passam a
ser contabilizadas para o apuramento da média final do Ensino Secundário, sendo esta
determinante e decisiva no processo de acesso ao ensino superior/universitário ou a
qualquer outro tipo de formação/qualificação pós-secundário.
É o ano em que cada um começa a ter uma noção mais nítida, mais precisa, do
que poderá ser o seu futuro, num horizonte temporal não muito longínquo, através da
aquisição de uma série de competências específicas (e também gerais) que o irão
habilitar para o exercício de uma determinada atividade profissional, a qual se pretende,
obviamente, que seja pessoalmente gratificante, socialmente reconhecida e, claro,
financeiramente bem remunerada (realização pessoal, profissional e financeira).
É, enfim, o ano de todas as mudanças!
Assim, e como toda a mudança implica um esforço de adaptação (a todos os
níveis), convirá, desde já, recordar/relembrar algumas informações, básicas mas
importantes, que vão, precisamente, no sentido de que esse esforço (desenvolvido quer
individualmente quer coletivamente) permita que todos, sem excepção, se sintam, o
melhor e o mais rapidamente possível, integrados, num ambiente escolar que deverá
ser de entusiasmo, de otimismo, de alegria, de boa disposição, de motivação, e de
tantos outros “ingredientes” que, conjugados com o cumprimento das regras existentes
e necessárias para que tudo funcione em plena “normalidade”, conduzirão ao
sucesso!

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Assim, para além do desenvolvimento de uma conduta/comportamento
consentânea (de acordo) com as mais elementares regras da boa educação e
civismo, todos devem:
- ser assíduos e pontuais, uma vez que, para além de existirem limites de faltas
injustificadas a todas as disciplinas, será útil perceber que, antes de mais, sempre que
um aluno falta a uma aula, mesmo que esta falta seja justificada, está a dar um passo
atrás na sua caminhada para o sucesso, porque, esse aluno, independentemente das
consequências de carácter administrativo e legal (pelo facto de ter ou não justificação
legal para as faltas que contrai), acabará sempre por perder
informação/conhecimento importante acerca das matérias/conteúdos lecionados e,
consequentemente, ver diminuídas as suas capacidades de resposta perante os
desafios (testes, trabalhos, etc.) com que se vai confrontar ao longo do ano, porque, tal
como acontece em todas as áreas ou atividades, sejam elas de caráter mais teórico ou
mais prático, o exercício regular e constante (o treino, as rotinas, os hábitos) das
atividades (associadas, neste caso, ao estudo) assumem um papel decisivo nos
momentos cruciais em que, sejam eles de que espécie forem;
- ser empenhados na realização das tarefas propostas, pois, ao contrário do
que muitos poderão pensar, a avaliação é contínua e global e, portanto, não basta
simplesmente equacionar (fazer o cálculo) da classificação aritmética (média) dos testes
para se decidir/aferir a classificação final, em cada período. Existem, assim, outros
parâmetros que integram o processo de avaliação: a assiduidade, a pontualidade, o
empenho, a participação, o comportamento, a disciplina, a cooperação, a
responsabilidade, a organização, etc., são parâmetros que têm um peso
extremamente importante na apreciação global do trajeto efetuado pelo aluno.
Mas, note-se bem, o aluno deverá dar importância a estes parâmetros ou
fatores não por imposição dos professores e dos Encarregados de Educação,
como se de um favor ou uma obrigação se tratasse, mas por vontade sua (pessoal,
livre e consciente), uma vez que são os seus próprios interesses e o seu próprio
futuro que estão em causa e não os interesses e o futuro dos outros – a velha
máxima: “colhemos o que semeamos”, assume também aqui (no contexto escolar), todo
o sentido, pois, não há dúvida de que tudo ou quase tudo o que fazemos no presente
irá ter consequências no futuro, inevitavelmente…
Concluindo, é não só desejável mas indispensável que todos os alunos, sem
exceção, comecem este novo ano letivo, como já foi dito, por um lado, com entusiasmo,

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otimismo, alegria, boa disposição, motivação, etc., porque sem estas condições
ninguém consegue enfrentar os desafios do quotidiano, mas também, por outro lado,
com rigor, exigência, empenho, respeito pelas regras e sentido de
responsabilidade, pois, só desta forma lhes será possível percorrer e concluir com
sucesso esta etapa tão importante das suas vidas!

Bem-vindos, pois, ao 10º ano!

Bem-vindos à disciplina de Filosofia!

Votos de um bom ano escolar!

PROPOSTA DE ATIVIDADE/QUESTÃO:

Antes de se entrar na abordagem/lecionação dos conteúdos propriamente ditos


relativos à disciplina de Filosofia, propõe-se a cada aluno que, individualmente
considerado como pessoa única e especial (já que ninguém é igual a ninguém), faça e
partilhe uma reflexão, séria, sincera e honesta, acerca do sentido da sua vida,
nomeadamente o sentido do seu trajeto escolar, respondendo às seguintes questões
(as quais estão interligadas):

QUESTÕES:

1. Que sentido e utilidade tem, para mim, a escola?

2. Por que razão e com que finalidade (porquê e para quê) escolhi o Curso no
qual me encontro inscrito?

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UMA VIDA POR EXAMINAR NÃO MERECE SER VIVIDA!

Começar por questionar as bases fundamentais da nossa vida, os nossos


hábitos, as razões das nossas ações/decisões/opções, seria muito proveitoso, uma
vez que esse exercício nos ajudaria a termos uma consciência mais clara e mais
sólida de nós próprios e do que queremos fazer da nossa vida... O problema é que,
na maior parte das vezes, nós preferimos envolver-nos com coisas superficiais, que
nos dão uma felicidade aparente, uma fugaz ilusão de realização pessoal, afastando
para longe aquilo que realmente é importante. Sabemos que há questões que
deveríamos colocar no sentido de melhor nos conhecermos e de melhor decidirmos
sobre o rumo que devemos dar à nossa vida, mas, ao mesmo tempo, temos receio,
para não dizer medo, de encarar os problemas de frente, porque, se conseguíssemos
fazê-lo, isso obrigar-nos-ia, se calhar, a romper com todo uma série de interesses e
dependências dos quais não nos apetece, por comodismo ou por preguiça, desligar...
Uma razão importante para se estudar filosofia é o facto de, ao contrário do que
muitas vezes se quer fazer pensar, de esta lidar com aspetos/questões fundamentais
acerca do sentido da nossa existência e, embora umas questões sejam mais
importantes que outras, a maior parte das pessoas, num ou noutro momento da sua
vida, já se interrogou através de questões como estas:
– A minha vida tem algum propósito?
– Que impacto ou consequências terão no meu futuro as ações que pratico no
presente?
– Será que tudo aquilo que faço é correto?
– O que faz com que certas ações possam ser consideradas moralmente boas e
outras moralmente más?
– Onde é que está real o valor das pessoas: naquilo que são ou naquilo que têm?
– O que é que é mais importante na nossa vida: o dinheiro ou a saúde?
– O relacionamento com os outros deve basear-se nos interesses materiais ou na
amizade?
– O que é mais importante nas pessoas: o seu interior ou o seu exterior?
– Devemos tentar obter sucesso na vida através de atos que se baseiam apenas
no nosso egoísmo, sem olhar a meios para atingir fins, ou na solidariedade e no respeito
pelos outros?

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– Qual destes valores devem nortear as nossas ações: a hipocrisia ou a
sinceridade? A falsidade ou a verdade?
E assim por diante...
Embora as questões filosóficas sejam mais abrangentes e genéricas do que
particulares e individuais, a maior parte das pessoas que se relaciona com a Filosofia
acaba por ganhar uma maior sensibilidade/atenção face a este e a outro género de
questões e muitas delas consideram mesmo que não é possível viver plenamente a
vida sem a examinar, sem refletir sobre o que foram, são e serão, sobre o que
fizeram, fazem e irão fazer e sobre o que a vida significa para elas enquanto seres
autónomos, individuais, com uma personalidade própria e também enquanto seres
sociais, de relações, que vivem em sociedade, uma vez que consideram que, se não
o fizerem, não passarão de meros fantasmas, sem alma, sem rumo, enfim, sem
sentido.

PROPOSTA DE ATIVIDADE/QUESTÃO:

1. Apresente três questões relacionadas com o sentido da vida ou da


existência humana (que, do seu ponto de vista, considera importantes).

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O HOMEM: SER BIOLÓGICO E SER RACIONAL
(DOGMATISMO E ANTIDOGMATISMO)

Preenchida por um vasto conjunto de experiências de diferentes tipos ou níveis, a


existência humana é constituída por duas dimensões fundamentais:

1. DIMENSÃO BIOLÓGICA – é comum a todos os seres vivos que habitam


e partilham o planeta, visto que o homem é um ser que, tal como os restantes animais,
está sujeito às leis e aos condicionamentos da natureza ou da biologia para sobreviver.

2. DIMENSÃO RACIONAL – é exclusivamente humana, situa-se acima da


mera sobrevivência e implica a existência de Cultura (sistema ou conjunto de crenças,
hábitos, costumes, tradições, formas de ser, de estar, de agir, etc.) e de Valores (aquilo
que é apreciado, estimado, valorizado, preferido e que orienta as escolhas das pessoas
no seio de uma determinada sociedade com uma determinada cultura; por exemplo: a
valorização da democracia, da justiça, da solidariedade, da paz, da liberdade, da
amizade, etc.).

Assim, podemos afirmar que o homem, por razões naturais ou biológicas, situa-
se, numa primeira dimensão (dimensão biológica), ao nível dos restantes seres vivos e
que numa segunda dimensão (dimensão racional) ascende (sobe) a um patamar
superior, sendo que, nesta (dimensão racional) encontramos dois níveis – o nível do
vivido e o nível do pensado:
- no NÍVEL DO VIVIDO, o homem realiza, de um modo mais imediato, mais
básico, uma apreensão (conhecimento) simples e espontânea da realidade, a qual se
traduz num conhecimento empírico, que resulta das simples experiências que vamos
tendo imediata e espontaneamente através dos sentidos – por exemplo: se me
queimar no lume, fico a saber que o lume queima. Pela experiência aprendo, sem fazer
grandes juízos críticos, que o lume queima, mas não procuro saber, não reflito
aprofundadamente porque será que ele queima, pois, bastou-me a experiência). Este
tipo de saber tem a ver com um saber-fazer, um saber prático resultante de uma
aprendizagem feita através do hábito, da repetição de gestos (rotina), da prática, da
experiência. Assim, o ser humano dispõe de um vasto leque de saberes e crenças de
caráter prático, saberes de origem popular, que se afirmam ou fundam nos hábitos, nas
tradições, nos provérbios, nas lendas, etc., e que vão sendo transmitidos de geração em
geração, sendo assimilados espontaneamente, isto é, sem serem submetidos a uma

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reflexão profunda ou análise crítica propriamente dita – a este tipo de saber chamamos
senso comum.
- no NÍVEL DO PENSADO, verifica-se um questionamento mais profundo do
nível do simplesmente vivido, através de uma reflexão crítica mais rigorosa
precisamente acerca de muitas crenças que nos chegaram precisamente pela via do
senso comum e que julgávamos ser conhecimentos certos e absolutos, não as pondo,
portanto, em causa (a este tipo de crenças que não colocámos em causa e aceitamos
sem reservas chamamos dogmas e, consequentemente a este tipo de atitude de
ausência de questionamento e crítica chamamos dogmatismo). Ora, é precisamente
aqui, neste ponto em que passamos a desenvolver uma atividade reflexiva (resultante
de um pensamento mais profundo e mais rigoroso) sobre aquilo que é vivido
espontaneamente e, por conseguinte, passa a construir ou a formular juízos e
apreciações críticas sobre os mais variados aspetos da vida e do mundo, que
adotamos uma atitude que chamamos antidogmática (uma vez que põe em causa as
tais crenças às quais chamámos dogmas) – neste nível de conhecimento mais
complexo, o homem lança-se numa procura consciente e intencional de um sentido
para as suas vivências/experiências, colocando questões e procurando respostas,
isto é, através da atividade do pensamento, vai para além das simples experiências
vividas, espontâneas e imediatas do dia-a-dia (senso comum) e ascende a
patamares mais elevados de racionalidade.
Foi precisamente através desta atitude, que se caracteriza por uma
intensificação da atividade intelectual, em que o homem, através de novas formas
de lidar com o mundo e consigo mesmo e de passar a interpretar, explicar e dar
um sentido a tudo o que achava digno da sua atenção, curiosidade, perplexidade,
começou a distanciar-se das demais espécies e a tornar-se num ser racional, que
surgiu, natural e espontaneamente, a atividade filosófica.

PROPOSTA DE ATIVIDADE/QUESTÃO:

1. Baseando-se no texto, distinga, de um modo completo, dimensão biológica


de dimensão racional, indicando a qual destas duas dimensões pertence a atividade
filosófica.

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ORIGEM OU RAÍZ DO TERMO FILOSOFIA
(DEFINIÇÃO ETIMOLÓGICA)

“Para justificar que precisamos de filosofar,


temos que filosofar. Para justificar que não
precisamos de filosofar, temos que filosofar. Logo, de
uma maneira ou de outra, temos sempre que
filosofar.”

Aristóteles

A questão “O que é a filosofia?” é ela mesma uma questão filosófica e um dos


primeiros passos para começar a filosofar…
A tradição atribui a Pitágoras (pensador grego da antiguidade) a criação do termo
filosofia (“Philosophia”).
Este termo resulta da junção ou aglutinação dos termos gregos philos + sophia:
philos significa amigo, aquele que busca, que deseja, que ama; sophia significa
sabedoria, saber, conhecimento. Assim, traduzindo à letra, Filosofia é o amor, o
desejo, a busca pela sabedoria e filósofo é o amigo, o amante da sabedoria.
Pitágoras criou ainda o termo filósofo (philosophos) para designar/distinguir um
de entre três tipos de entidades/pessoas que assumem atitudes específicas face ao
saber e ao verdadeiro conhecimento:

- o primeiro tipo seria constituído por aqueles que conheceriam todas as


coisas (os sábios). Mas, como, na realidade, nenhum homem é omnisciente, ou seja,
nenhum homem sabe tudo, esta qualidade/condição superior, se existisse, só poderia
ser atribuída às divindades ou aos deuses, cuja natureza é de outro mundo, uma vez
que só a eles poderia ser atribuída a absoluta sabedoria. Tratar-se-ia, então, de
entidades que tudo saberiam e que pertenceriam a uma esfera superior,
transcendente e, como tal, impossível de ser alcançada pelos seres humanos. Por
isso, este tipo de entidades/pessoas não existem (pelo menos no mundo dos humanos).

- no segundo tipo Pitágoras incluiu a grande maioria das pessoas que,


segundo ele, julgando possuir muitos conhecimentos, não possuem saber algum.
Trata-se, no fundo, dos ignorantes que, vaidosamente, julgam conhecer tudo aquilo
de que falam, mas que, em rigor, pouco ou nada conhecem. Estas pessoas são de tal
forma presunçosas e convencidas que nem sequer se apercebem da sua cegueira
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(ignorância) face ao verdadeiro conhecimento. São, pois, pessoas que se situam numa
esfera inferior, embora estejam convencidas do contrário, e que existem, como já foi
dito, em grande número por toda a parte.

- no terceiro tipo, finalmente, situam-se algumas pessoas que, não merecendo


propriamente o nome de sábios (uma vez que esse seria apenas atribuível, como vimos
no primeiro tipo, aos deuses e não aos humanos), também não podemos considerá-las
ignorantes, pois, embora desconheçam muitas coisas, têm plena consciência do
quanto desconhecem e do quanto precisam de caminhar para virem a alcançar o
saber. Estas são aquelas que se fascinam, espantam e admiram perante tudo aquilo
que constatam existir à sua volta e mantêm sempre viva uma atitude interrogativa
face aos “segredos” e mistérios que verificam existir no mundo, tendo consciência
de que o processo de conhecimento é um processo que está sempre em aberto e
nunca concluído.
A estas pessoas ambiciosas, porque são sempre movidas por uma intensa febre
de querer saber sempre mais, mas, ao mesmo tempo, humildes, porque têm
consciência do quanto desconhecem, atribuiu Pitágoras o nome filósofos, situando-os
numa esfera intermédia, precisamente, entre os que saberiam tudo (os sábios) e os
que não sabem nada (os ignorantes).
Assim, uns, os sábios (que, vimos já, não existem e que a existirem, pertenceriam
a outra dimensão que não a humana) não precisam de saber porque tudo sabem.
Outros, os ignorantes, não desejam saber porque estão vaidosamente convencidos de
que ninguém sabe mais do que eles. E há depois os que se dedicam à filosofia – os
(verdadeiros) filósofos – que são os que sabem que não sabem (daí a célebre e
irónica frase de Sócrates: “Só sei que nada sei.”) e que amam a sabedoria.
Concluindo, segundo a sua etimologia (raiz ou origem do termo), a filosofia diz
respeito à atividade própria daqueles que, amando e desejando o saber, se
empenham, humildemente, mas com muita ambição, na aventura do
conhecimento.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Explique a origem do termo filosofia.

2. Identifique e caracterize o tipo de pessoas a quem Pitágoras chamou


filósofos.

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FILOSOFIA E FILOSOFAR
(ABORDAGEM INTRODUTÓRIA À FILOSOFIA E AO FILOSOFAR)

Fazer alguma coisa, seja o que for, sem se saber qual a razão e a intenção – o
por quê e o para quê (?) – é, no mínimo, uma inconsciência e, no limite, um absurdo,
pois, tudo o que o ser humano faz ou se propõe fazer tem que ter um nexo, uma razão
e uma explicação lógica, racional, através da identificação dos motivos e das
intenções que estão por detrás das nossas decisões, para os nossos atos, os quais
devem ser, precisamente, consequência de algo que implicou sempre alguma
ponderação/reflexão.
Pegando novamente na reflexão que fizemos sobre as razões que nos levaram a
continuar, enquanto alunos, na escola e sobre os objetivos que nos levaram a escolher
determinado Curso em detrimento (desfavor) de outros (porquê e para quê? Com que
intenções? Com que objetivos? Em função de que projetos, de que planos, de que
sonhos?), só que agora mais como pretexto para explicitar a atividade filosófica, valerá
a pena insistir nas perguntas: quando chegou o momento de nos inscrevermos no
Curso em que estamos, pensámos, ponderámos, avaliámos, refletimos sobre se
era realmente o curso que queríamos seguir? Será que essa decisão/ato foi
fruto/consequência de uma reflexão (ponderação), séria e honesta, que teve em
linha de consideração questões tais como: este é o Curso que melhor
corresponde às minhas reais capacidades/aptidões/gostos em termos
vocacionais? O que é que eu vou poder fazer com este Curso? Quais as
vantagens que este Curso me poderá trazer no futuro?
Para podermos responder a estas questões e a tantas outras, é necessário
colocarmos em ação as nossas capacidades de reflexão, sem termos medo de as
aprofundar, pois, como já tivemos oportunidade de debater, só vive a vida com
sentido quem tem a coragem de levantar e enfrentar questões, por mais
incómodas que elas sejam, uma vez que elas são determinantes no processo de
definição do rumo de cada um e que mais ninguém pode escolher, uma vez que, mesmo
vivendo coletivamente, há decisões que não podemos transferir para outros, uma vez
que são só nossas, assim como serão também recairão apenas (ou principalmente)
sobre nós as consequências diretas dessas mesmas decisões!
Ora, é precisamente aqui, neste ponto, a propósito da coragem que está
associada ao ato de refletir e de levantar questões, que entra uma outra questão, a

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qual pode ser formulada da seguinte maneira: qual a razão e o sentido da existência
da Filosofia enquanto disciplina de FORMAÇÃO GERAL que faz parte de todos os
cursos do Ensino Secundário em Portugal? A resposta só pode ser encontrada
depois de compreendermos a diferença e, ao mesmo tempo, a ligação (relação) que
existe entre Filosofia e filosofar.
Numa primeira abordagem, poderíamos dizer que a Filosofia, que nasceu na
Grécia antiga, é, hoje, no nosso país e em muitos outros, uma disciplina que faz parte do
currículo de todos os cursos do Ensino Secundário e também do currículo de vários
cursos do Ensino Superior Universitário, e que o filosofar é, essencialmente, um ato
espontâneo, natural que deriva desta capacidade extraordinária e exclusiva do ser
humano – a capacidade de pensar!
Assim, numa primeira análise, em termos de crescimento interior, deveríamos
atribuir mais importância ao ato de filosofar, que é o exercício da reflexão propriamente
dito, o “pensamento em movimento ou em ação, do que propriamente à Filosofia, que é
uma disciplina de estudo que tem mais a ver com o ensino/aprendizagem de conteúdos
específicos (que integram um Programa), dos quais constam, entre outras
matérias/informações, datas, nomes de filósofos e correspondentes ideias, teorias
ou perspetivas, as quais, por sua vez, deram origem às chamadas “correntes
filosóficas”.
O filosofar é aquele ato pelo qual todo o ser humano vai ganhando
crescente consciência de si mesmo, dos outros e do mundo, através de um
exercício reflexivo e crítico espontâneo, que pode e deve ser desenvolvido por
todos aqueles que, movidos por uma natural propensão/tendência para saber
sempre mais, aceitam honestamente o desafio de pensar por si próprios, sem
limites ou condicionamentos de qualquer espécie, interrogando-se profundamente
acerca das coisas/acontecimentos/fenómenos para tentar compreendê-los,
explicá-los e lhes atribuir um sentido.
Pelo exposto, não há dúvida de que existe uma diferença clara entre Filosofia e
filosofar, mas, atenção: como o exercício do filosofar não equivale a um pensar
mesquinho, ingénuo, vulgar e superficial, sendo, pelo contrário, um pensar sério,
rigoroso, exigente, profundo, a disciplina de Filosofia, com os seus conteúdos, com a
sua informação, com o seu método e com os seus instrumentos de trabalho,
apetrecha-nos (capacita-nos) para o próprio filosofar com mais qualidade, rigor e
profundidade, uma vez que aquela se constitui numa atividade reflexiva, crítica e

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conceptual, através de um discurso argumentativo bem estruturado e coerente (sem
contradições) – daí a importância da Filosofia enquanto instrumento de
aperfeiçoamento e aprofundamento do pensamento e do discurso, o que acaba por
ligá-la ao filosofar (atividade intelectual desenvolvida por parte daqueles que, amando o
saber, se empenham incessantemente na procura da verdade acerca das coisas).
Passa-se, assim, do filosofar espontâneo (natural), para o filosofar sistemático
(organizado, mais rigoroso, mais exigente).
A filosofia é, pois, uma atividade reflexiva, crítica e conceptual.
Ao dizermos que a filosofia é uma atividade reflexiva e crítica, estamos a dizer
que esta se dedica ao exame cuidadoso daquilo que nos foi sendo transmitido pelo
senso comum e examina algumas das noções que no dia-a-dia tomamos por certas
(porque nelas acreditamos), pondo-as em questão, através do exercício reflexivo e
crítico, através de uma atitude antidogmática que questiona, que examina, que
discute, de forma cuidadosa, rigorosa e racional, as crenças (que herdámos,
precisamente, do senso comum) que possuímos e o mundo em que vivemos.
Já ao dizermos que a filosofia é uma atividade conceptual, estamos a dizer que
esta se serve do pensamento e do raciocínio, os quais, forçosamente, para se
exercerem/desenvolverem, envolvem conceitos, que são ideias, noções ou
representações mentais (já que são instrumentos básicos do pensamento e do
discurso).
Como o exercício do pensar é, em si, um exercício autónomo e
intransmissível, isto é, algo que não se não pode impor a ninguém nem fazê-lo por
ninguém, pois ninguém pode pensar por ninguém (cada um pensa por si próprio),
caberá ao professor de Filosofia o papel de facilitador desta prática, não apenas
evitando que o aluno se sinta perdido e desorientado nos “caminhos desconhecidos
da autonomia e da liberdade de pensamento”, mas também proporcionando-lhe um
ambiente que o possa levar a afirmar-se como pessoa com ideias e pontos de vista
seus, que pensa pela sua cabeça, que não tem medo de assumir os riscos e as
responsabilidades de pensar por si próprio, dando-lhe condições que lhe permitam
pôr em ação as suas capacidades reflexivas e críticas.
Ao aluno caberá, por seu lado, aproveitar esta oportunidade, através de um
esforço que ninguém pode fazer por ele, de alcançar níveis de desenvolvimento
(pessoal, social, intelectual, cultural, etc.) que lhe permitam refletir com maturidade

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sobre si próprio e sobre tudo o que o rodeia – sempre através de uma atitude
questionadora e crítica (pensar pela sua própria cabeça, ou seja, filosofar).
Filosofar é então, o exercício de uma atividade mental
(pensamento/reflexão), através do qual levantamos questões/perguntas com o
propósito de descobrirmos/captarmos o sentido de tudo o que achamos digno da nossa
atenção (abordagem reflexiva e crítica da vida e do mundo).
Concluindo, esta atitude de pensarmos por nós próprios, de nos afirmarmos
inteiramente como pessoas, dotadas de inteligência, poder de reflexão, espírito
crítico, formando, assim, ideias próprias, sem condicionamentos, limites ou
imposições, permite-nos afirmar que filosofar é CRESCER LIVREMENTE!

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. De acordo com o texto, esclareça a diferença e, ao mesmo tempo, a ligação


(relação) existente entre Filosofia e filosofar.

2. Explicite o sentido da afirmação: “A filosofia é uma atividade reflexiva,


crítica e conceptual.”

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REFLETIR + PERGUNTAR = FILOSOFAR

A nossa sociedade valoriza cada vez mais aquilo que é material (materialismo) e
procura submeter tudo a critérios de utilidade (utilitarismo) como se tudo na vida se
resumisse a uma espécie de mercadoria que se pode adquirir, consumir, descartar…
Assim, perguntar constantemente para que serve isto ou aquilo é um vício ou
uma mania que se instalou de tal modo na nossa sociedade materialista e consumista
que há quem já não valorize as pessoas por aquilo que são (riqueza interior) mas por
aquilo que têm (riqueza exterior), deixando-se levar pelas aparências (que, muitas
vezes, não passam de mera fachada, ilusão e falsidade), pelo exibicionismo, pela
ostentação – é o momento em que o ter se sobrepõe ao ser, lamentavelmente...
Mas, seja como for, convém lembrar que o homem não é só matéria, não é só
um indivíduo que tem a capacidade de ter coisas, de ostentá-las e de consumi-las;
é também espírito ou alma, personalidade, paixão, emoção, afeto, sensibilidade,
pensamento, reflexão – tem um lado imaterial (interior) que também precisa de ser
“alimentado” – e tanto assim é que há “doenças do espírito” (mentais, neurológicas,
psicológicas, que se manifestam através de perturbações, depressões, angústias, crises
existenciais, etc.), independentemente do seu estatuto económico, social e cultural.
O homem é, portanto, um todo – espírito e matéria, alma e corpo – e, como tal,
há problemas e questões que se lhe colocam que o incomodam ou preocupam
precisamente porque ele tem essa capacidade interior de pensar, de se intrigar e de
se questionar (por exemplo, sobre problemas e questões que se prendem com a
origem, com o sentido e o fim da sua vida, com o seu passado, presente e futuro, aos
quais sempre procurou dar uma resposta).
Tal como se passava com os gregos da antiguidade, segundo os quais as
perguntas são uma via privilegiada para alcançar o conhecimento – temos como
exemplo máximo, Sócrates, cidadão ateniense e o primeiro filósofo da história digno
desse nome, que percorria as ruas de Atenas, perguntando: “O que é o amor?”, “O que
é a beleza?”, “O que é a verdade?”, “O que é a justiça?”, “O que é a virtude?”, “O que é
a vida?”, “O que é a morte?”, etc., através de uma dinâmica muito própria, cuja
estratégia de diálogo era de tal forma bem conduzida que acabava por levar os seus
interlocutores, pessoas com quem dialogava, nomeadamente os vaidosos sofistas,
mestres da retórica, a questionarem-se sobre as “certezas” (“verdades feitas”) que
julgavam possuir – também hoje, os filósofos valorizam mais o ato de perguntar do
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que a resposta pronta, uma vez que é a partir da pergunta que nos encaminhamos
para resposta, como uma espécie de “clique” que desencadeia tudo o resto. O “O quê”
e o “Porquê” são as formulações mais importantes da filosofia – daí podermos afirmar
com toda a pertinência que, na atividade filosófica, as perguntas são mais
“importantes” que as respostas.
É certo que o homem tem evoluído muito em termos de conhecimento técnico-
científico, mas, mesmo assim, apesar do progresso, há questões que se mantêm sem
uma resposta clara e definitiva e que, portanto, continuam a ser alvo da sua
reflexão e perplexidade.
Por exemplo:
− Qual é a origem do homem (de onde veio e como)?
− Será o homem resultado de uma criação intencional de alguém ou mero fruto
do acaso?
− Se é obra de alguém, com que intenção ou para que fim foi criado – por quê e
para quê lhe foi dada a possibilidade de existir? Se não é, se existe por mero acaso,
como foi possível o seu aparecimento?
− O que fazemos, afinal, nesta vida e neste mundo? Qual a nossa função?
– Será que a nossa vida obedece a um plano pré-determinado
(determinismo/destino traçado) ou não passa de um mero acontecimento passageiro em
que se nasce, se vive e se morre pura e simplesmente (acaso)?
− Terá a vida sentido (nexo) ou não (absurdo)?
− Haverá outra vida para além desta? Houve já alguma antes desta? Ou, afinal,
será esta a única vida de que dispomos?
− Como foi possível ao ser humano “superiorizar-se” relativamente aos outros
animais (em termos de inteligência/linguagem/conhecimento, etc.)?
– Quais as maiores diferenças existentes entre o ser humano e os restantes
animais?
− Como surgiu em nós a capacidade de pensar e de falar?
− O que é o conhecimento ou o que é o conhecer?
− Como se processa ou forma o nosso conhecimento?
− Que tipos de conhecimento existem e qual ou quais são os mais fiáveis
(verdadeiros)?
− Será que há formas de raciocínio iguais para todos ou cada um tem uma
forma própria de pensar e de conhecer (pensamento lógico)?

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− Porque é que valorizamos mais certos aspetos da nossa vida do que outros (o
que é que nos leva a estarmos de acordo ou em desacordo em relação a determinados
princípios, valores e normas morais que regem a nossa ação/conduta/comportamento)?
− O que é que há em cada um de nós que nos torna diferentes uns dos outros
(mesmo entre os irmãos gémeos) em termos de personalidade, de carácter, de feitio, de
temperamento, de ideias, de gostos, de vocação, etc.?
− Será que a humanidade caminha para a continuidade ou para a destruição?
− Será que da maneira que estamos a proceder, por exemplo, no que diz
respeito ao uso e abuso das tecnologias de informação e comunicação (redes sociais,
teletrabalho, etc.), poderemos falar em “progresso da humanidade” e,
consequentemente, em aumento dos níveis de felicidade e bem-estar (melhoria da
qualidade de vida individual e coletiva)?
Estas são, pois, apenas algumas das muitas questões que, numa ou noutra altura
da existência, emergem na maior parte dos espíritos humanos e os deixam inquietos…
Concluindo, perguntar, inquietar-se, angustiar-se, preocupar-se, espantar-se,
maravilhar-se é próprio daqueles que pensam, que desenvolvem uma atividade
reflexiva intensa, que não se acomodam às respostas já dadas ou às ideias feitas,
que teimam em encontrar, por si próprios, um sentido para a vida, através do
exercício dessa capacidade natural e espontânea, que se designa por filosofar.
Não filosofar, isto é, não refletir, não criticar é aceitar ser-se um boneco, um
fantoche ou uma marioneta nas mãos daqueles que querem manipular-nos de acordo
com os seus interesses obscuros, submeter-nos às suas ideias fixas, sujeitar-nos aos
seus caprichos pessoais, subjugar-nos à sua vontade de poder, e, enfim, manter-nos na
mais profunda das ignorâncias.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Explicite o conteúdo da seguinte afirmação: «na atividade filosófica, as


perguntas são mais “importantes” que as respostas.»

17
SENTIDO E UTILIDADE DA FILOSOFIA
AUTONOMIA DO PENSAR, REFLEXÃO CRÍTICA E FORMAÇÃO PESSOAL E SOCIAL

Em muitas circunstâncias da nossa vida somos levados a perguntar para que


serve isto ou aquilo. Se perguntarmos, por exemplo, para que serve uma bicicleta, uma
caneta ou um guarda-chuva, as respostas serão óbvias… Já perguntar para que serve
a Filosofia é uma pergunta de tipo diferente.
Embora possamos perguntar por que razão ou razões devemos estudar
Filosofia da mesma maneira que podemos perguntar por que razão ou razões devemos
estudar outra disciplina qualquer, visto que compete a cada uma clarificar tais razões e
identificar, desde o início, os objetivos que pretende atingir, singularmente,
diferentemente, os objetivos da Filosofia, não são, à primeira vista, assim tão claros
como os das outras disciplinas.
Claro que é legítimo perguntar qual é a função da Filosofia, mas esta não pode
ser considerada uma função de ordem material, com efeitos imediatos, uma vez que
a Filosofia não resolve tecnicamente os problemas do quotidiano, em particular, nem
até mesmo os problemas sociais, em geral, porque esta não existe para suprir ou
substituir outros domínios como a ciência, a técnica, a política, a economia, etc. – a sua
função (que deriva da sua natureza especulativa, teórica, reflexiva) é, pois,
completamente outra…
No entanto, a Filosofia pode ajudar em múltiplos aspetos da nossa vida
porque esta acaba por se “intrometer” praticamente em todas as áreas.
Mas, então, perguntamos: pode ajudar como?
Ela (Filosofia) pode conduzir à construção de um mundo mais livre e mais
humano – mais LIVRE, porque ao possibilitar o aumento das capacidades de reflexão
crítica e de argumentação de cada um de nós, está a dotar-nos de uma maior
abertura de espírito, o que, por sua vez, nos proporciona um exercício mais autêntico
da liberdade (associado, obviamente, a um maior sentido de responsabilidade) – e
mais HUMANO, porque, ao fomentar o confronto e a partilha de ideias, através de
uma coexistência (convivência) pacífica baseada no respeito pela diferença e pelas
liberdades individuais (próprio de um espírito desenvolvido, aberto, tolerante e
próspero) de forma saudável e democrática (diálogo franco e aberto), permite-nos
encontrar sentidos e direções comuns da nossa existência como seres humanos
realmente dignos desse nome, evitando a proliferação (alastramento) de atitudes

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individualistas, egoístas, nacionalistas e etnocêntricas que acabam sempre por, mais
tarde ou mais cedo, descambar em violência verbal e física, discriminação, racismo,
xenofobia, homofobia, etc. (típicas de uma mentalidade primária, fechada, limitada,
rígida e retrógrada).
Por conseguinte, a Filosofia não substitui nenhuma área específica da ação
humana mas é uma atividade reflexiva e crítica através da qual podemos colocar
questões com vista a obtermos uma consciência mais nítida sobre os caminhos já
percorridos e sobre aqueles que ainda temos que percorrer. Nessa medida,
podemos atrever-nos a dizer que os filósofos são a “consciência do mundo”, uma
vez que nos fazem parar para pensar sobre o rumo/direção/sentido que estamos a
dar à nossa existência e ao nosso planeta, obrigando-nos a encarar os problemas
de frente e, por conseguinte, mostrando-nos o que realmente está por detrás de
uma realidade cada vez mais “turva”, cada vez mais ilusória e cada vez mais
construída, através do exercício requintado e subtil da demagogia e do populismo,
como formas encapotadas de manipulação e de chantagem, por aqueles que têm
os seus interesses instalados e deles não querem abdicar.
Assim, quando se diz que a filosofia é uma atividade crítica, o que faz dela um
grande incómodo para muitos, está-se a dizer que esta não é dogmática, ou seja, que
não se baseia em dogmas (um dogma é uma doutrina ou um sistema de
ideias/preceitos cuja verdade é tomada por garantida e que não pode ser posta em
causa ou questionada – as religiões e certas ideologias, por exemplo, têm dogmas) e
que, pelo contrário, somos livres para colocar em questão toda e qualquer doutrina
ou perspetiva. Para a maior parte dos filósofos, essa liberdade é importante porque o
objetivo é descobrir e mostrar a verdade.
No entanto, mesmo sendo sinónimo de liberdade, a reflexão e a crítica
filosóficas, exigem um uso responsável destes mecanismos ou processos de busca
da verdade – quando se critica uma doutrina ou perspetiva há que fazê-lo apresentando
boas razões para as criticarmos e não as rejeitarmos “só porque sim!”
A este uso responsável da liberdade crítica está associada uma outra
“utilidade” à Filosofia: o seu valor formativo – uma vez que esta é uma disciplina que
visa ajudar as pessoas não apenas a refletir, a problematizar e a relacionar melhor os
diversos aspetos da realidade/vida, mas também a serem mais sensíveis aos
problemas, circunstâncias e condições de vida dos outros (dignidade).

19
Vivemos num mundo em que se torna cada vez mais urgente que as pessoas
reflitam sobre esta necessidade imperiosa, mas cada vez mais esquecida, de nos
afirmarmos como seres verdadeiramente humanos, bem formados, bem-educados,
civilizados, pacíficos, sociáveis (educação, respeito, compreensão, solidariedade) e
não como “inimigos” que constantemente se “digladiam” por tudo e por nada, como se
a vida fosse uma guerra, que é preciso vencer a qualquer custo, sem olhar a meios
para atingir fins…
De que me servirá, por exemplo, ser um advogado muito conceituado se me
faltar sensibilidade, honestidade e compreensão e na forma como lido com as
pessoas, sejam elas ricas, pobres ou remediadas?
E de que me servirá, para citar outro exemplo, ser um professor muito erudito
(muito “culto”) se não souber tratar os alunos com educação, respeito e
consideração?
Assim, qualquer indivíduo, seja ele advogado, professor, médico, arquiteto,
gestor, empresário, ator, cantor, futebolista, mecânico, agricultor, etc., necessita, para
além do saber específico que detém para poder desempenhar a sua profissão/atividade,
de uma formação geral que o habilite a ser um cidadão responsável, consoante a
circunstância e o papel que tiver na família, no trabalho e na sociedade a que pertencer.
Ora, é precisamente pela degradação crescente a que o ser humano se vem
expondo, em termos de formação pessoal e social, que o valor formativo da Filosofia
se tornou numa necessidade imperiosa, na medida em que proporciona a cada ser
humano o desenvolvimento de uma visão (atitude crítica) cujo horizonte mental
(abertura de espírito) vai muito para além daquele que o sistema educativo tradicional
(status quo) oferece.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÃO:

1. Baseando-se no texto dado, explicite, de um modo geral, a “utilidade” da


Filosofia.

20
ESPANTO, CURIOSIDADE E PERPLEXIDADE…
O Universo é algo que desde muito cedo espantou e deixou perplexos os seres
humanos... Aliás, ainda hoje colocamos questões (as chamadas “eternas questões”)
acerca da sua origem (de onde viemos), da sua evolução, da sua dimensão
existencial (quem somos) e até mesmo do seu fim (para onde vamos).
A Natureza, com os seus fenómenos, regulares e irregulares (as estações do
ano, a sucessão dos dias e das noites, os vulcões, os tsunamis, as tempestades, etc.),
para além de assustados, sobressaltados e preocupados, também os deixou
espantados, curiosos e perplexos…
Os animais, perfeitamente integrados nessa natureza, também exercem sobre
nós um fascínio enorme (basta constatar o interesse com que acompanhamos as séries
televisivas ou os vídeos publicados na internet que nos mostram o maravilhoso reino
animal).
E o Homem? Isto é, nós próprios: não seremos os mais intrigantes de todos
os animais?! Os mais misteriosos?! Os mais enigmáticos?! Os mais espantosos?!
Os mais complexos?!
É que, não basta apenas colocar e tentar responder à questão: como surgiu o
Homem? Essa questão é muito interessante, mas, com o devido respeito por todos
aqueles que se debruçam sobre ela, mais interessante será uma outra:
Como foi (ou como teria sido) que o Homem conseguiu diferenciar-se dos
restantes animais? Ou, se quisermos, o que teria determinado essa diferenciação e
lhe permitiu seguir um caminho completamente diferente, quase oposto, ao das
restantes espécies? Como foi isso possível?
As respostas são várias, mas praticamente todas elas assentam em tentativas
explicativas que, embora sendo muito válidas, mesmo em termos científicos, não
passam de meras suposições teóricas, não nos oferecendo, por isso, certezas…
Assim, e dadas estas dificuldades, talvez seja mais razoável colocar uma outra
questão, que decorre da anterior, mas que acaba por ser mais objetiva, que é a
seguinte:
O que distingue, afinal, o Homem dos restantes seres vivos?
Ora, é precisamente aqui que se situa o nosso ponto de partida, em termos de
reflexão filosófica, no sentido de conseguirmos identificar alguns aspetos

21
(dimensões) que são exclusivos dos seres humanos e que, precisamente por isso, os
distinguem dos restantes seres vivos que com ele partilham o planeta…

PROPOSTA DE ATIVIDADE/QUESTÃO:

1. Identifique pelo menos dois aspetos (dimensões/capacidades/atividades) que


são exclusivos dos seres humanos (que o distinguem dos restantes
animais/espécies).

22
ORIGEM DO PENSAMENTO RACIONAL
(O MITO – PERÍODO COSMOGÓNICO)

Desde muito cedo que os múltiplos e variados fenómenos do mundo suscitaram


no homem temor, espanto e perplexidade, lançando-o na busca da sua compreensão,
principalmente em relação àqueles aspetos que mais o inquietavam...
Foi esta busca de explicação e compreensão do real, esta procura da
“verdade” das coisas que, no séc. VII a. C. na Grécia, deu início ao pensamento
racional ou pensamento filosófico, na medida em que há notícias de homens gregos
que, neste período, procuraram compreender logicamente a origem das coisas e
explicar a ocorrência dos fenómenos da natureza com base noutros fenómenos
também naturais.
Assim, o surgir de um modo característico de pensar, ou seja, o aparecimento
de uma nova forma de interpretar o homem, o mundo e a vida comprova, pois, o
exercício autónomo da razão/pensamento.
Mas, o que quer dizer uso autónomo da razão/pensamento?
Será que até ao séc. VII a. C. a razão/pensamento não se exercia
autonomamente, independentemente, livremente?
Se a razão não era autónoma, livre, de que é que dependia, então?
A resposta a estas questões remete-nos para uma análise de um outro tipo de
mentalidade (anterior à mentalidade racional, filosófica) que, normalmente, se designa
por consciência mítica ou pensamento mítico.
É, aliás, o estudo ou abordagem desta forma embrionária/inicial de
pensamento que nos possibilita compreender a génese ou origem do pensamento
racional…

O MITO

Numa primeira abordagem, podemos afirmar que a mentalidade mítica é uma


forma de o homem se situar e compreender a realidade, não através de esquemas
(explicações) racionais, mas através de mitos…
Mas, o que são mitos?
O mito narra uma história sagrada; relata um acontecimento ocorrido durante o
tempo primordial (inicial), o “tempo fabuloso dos começos”, da origem de tudo…

23
Dito de outro modo, o mito conta como, graças às ações primordiais/originais
dos seres sobrenaturais (deuses), surgiu o cosmos (mundo ordenado), uma ilha, um
comportamento humano, etc.
O mito aparece sempre como uma narrativa de uma “criação”: conta como
qualquer facto/coisa/fenómeno foi produzido, ou seja, como começou a ser…
Estas narrativas são consideradas sagradas na medida em que os personagens
que nelas intervêm não são seres humanos, mas deuses ou semideuses. São
sagradas também pelo facto de revelarem um mistério, ou seja, de desvendarem aos
homens ações sobrenaturais que originaram as coisas. Consideram-se sagradas
ainda porque as ações se reportam a acontecimentos ou a factos ocorridos pela
primeira vez num “tempo originário” e “puro”.
Em suma, o seu carácter sagrado deriva do facto de descreverem atos que se
situam muito para além das possibilidades humanas, como é o caso dos atos de
criação ou de origem.

Vejamos, por exemplo, uma versão grega do mito da origem do mundo ou do


cosmos (cosmogonia), a partir de extratos de um poema de Hesíodo:

“…Zeus luta pela soberania/poder contra Tífon, dragão de mil vozes, força de confusão
e de desordem. Zeus mata o monstro, cujo cadáver dá nascimento aos ventos que
sopram no espaço, separando o céu e a terra, dando ordem a tudo.”

Como vemos, o cosmos surge a partir da vitória de uma divindade sobre uma
entidade oposta, interessada no caos (desorganização/desordem).
Esta luta constitui-se como o aspeto mais característico da grande maioria dos
mitos. De uma maneira geral, os mitos descrevem um drama/luta cujo centro é a
tensão entre duas forças antagónicas/contrárias que pugnam/lutam pela
supremacia/poder sobre todas as coisas.
Deuses e monstros, heróis e seus adversários, são, no fundo, personagens que
simbolizam o dualismo antagónico (oposto/contrário) ordem/desordem;
cosmos/caos; bem/mal.
Se o mito que acabámos de referir conta como o universo surgiu, outros
relatam o aparecimento de aspetos particulares da natureza e da vida, como, por
exemplo, os mitos gregos de Prometeu (ligado à origem do fogo, como resultado da
desobediência humana) e de Pandora (que mostra a origem de uma série de males
e de doenças que passaram a afetar a humanidade, como resultado da curiosidade

24
e também da desobediência humanas), o que comprova que existia nos mitos uma
incontestável função explicativa.
A sucessão dos dias e das noites, a chuva, a seca, os relâmpagos, o trajeto solar,
as estrelas no céu, o curso ou corrente dos rios, a reprodução, a doença, a morte, etc.,
são exemplos de fenómenos/acontecimentos que impressionaram/espantaram o
homem de então. Incapaz de lhes escapar, impotente para os dominar, sente-se
intrigado, perplexo, assustado e, consequentemente, inseguro com a origem e
natureza destes e de outros fenómenos/acontecimentos que o transcendem ou
ultrapassam…
Ora, precisamente, estes sentimentos inquietantes são como que
atenuados/diminuídos através dos mitos, pois, estes, ao fornecerem ao homem uma
“explicação” para os fenómenos/acontecimentos de que se acabou de dar alguns
exemplos, acabam por acalmar o seu espírito inquieto e sobressaltado, dando-lhe
uma maior sensação de segurança e de confiança tanto em relação a tudo o que o
rodeia como em relação a si próprio.
A ideia de entidades (deuses) superiores e sobrenaturais capazes de originar
todas as coisas, de senhores das trevas e da luz, do bem e do mal, autores do homem e
do mundo e controladores eficientes do seu destino, clarifica/esclarece/explica, de
certo modo, a ocorrência de fenómenos até aí misteriosos, até aí demasiado ocultos
e demasiado complexos para serem entendidos pela razão humana/conhecimento
racional, ainda muito limitado.
Claro que estas explicações de carácter sobrenatural parecem-nos, hoje em
dia, demasiado ingénuas ou infantis, se as compararmos com as explicações de
carácter científico da atualidade, mas, para o homem de mentalidade mítica,
constituíram respostas suficientemente capazes de o satisfazer e de lhe permitir
orientar-se no contacto com a realidade.
Atraso? Ingenuidade? Ignorância? Decerto... Contudo, a criação de mitos
prova que a mentalidade humana, mesmo em fase dita “primitiva”, recusa a ideia de
que os fenómenos aconteçam ao acaso e sem algo que os produza ou determine a
sua ocorrência, o que revela já um esforço de raciocínio lógico, ainda que não
fundamentado em explicações racionais tais como as concebemos nos nossos dias.
Para além de tentarem explicar/desvendar (à sua maneira) aspetos da
realidade inacessíveis às capacidades da compreensão humana, os mitos
desempenham também uma importante função normativa, na medida em que ditam

25
aos homens um conjunto de normas gerais de ação/comportamento (com as
respetivas benesses e castigos impostos pelas divindades), as quais acabam por se
revestir de um carácter didático/educativo. Apresentando aos homens os atos que
deve seguir e os atos que deve evitar, os mitos (através das suas histórias, lendas e
narrativas com um conteúdo moral) fazem com que aqueles acabem por descobrir
nestes alguns princípios orientadores da sua conduta, uma vez que muitos dos
seus relatos ou histórias constituem sérios modelos de conduta a observar e a
seguir – ser como são os deuses, conduzir-se como eles se conduzem, eis o
grande projeto existencial do homem mítico.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Esclareça o conceito ou noção de mito.

2. Explicite o conteúdo da seguinte afirmação: “Para além de tentar


explicar/desvendarem (à sua maneira) aspetos da realidade inacessíveis às
capacidades da compreensão humana, os mitos desempenham também uma importante
função normativa.”

26
DO MITO À RAZÃO
(RUTURA OU CONTINUIDADE?)

O homem não ficaria eternamente amarrado aos esquemas próprios de uma


mentalidade mítica. A evolução natural das suas estruturas intelectuais vai permitir-lhe
que, a dada altura, o espírito ganhe autonomia face ao universo em que vive
mergulhado e sinta necessidade de explicar racionalmente esse mesmo
universo...
Os mitos narrativos (ou narrativas míticas) mostraram que o homem viveu
durante muito tempo ancorado (agarrado) ao sobrenatural; contudo, isso não quer
dizer que não existisse já nele a noção de que os segredos do cosmos teriam que ir
sendo desvendados pelos meios que ele tinha ao seu alcance, ou seja, lentamente,
progressivamente, o homem, de acordo com as suas possibilidades de
conhecimento, foi percebendo que o mundo, a vida, os fenómenos naturais, etc.,
teriam que ser esclarecidos de uma forma que ultrapassava já o âmbito das
“explicações” de carácter mítico ou mitológico…
À medida que a consciência mítica se vai degradando (perdendo força), o
pensamento racional vai ganhado terreno, possibilitando-lhe uma progressiva
dessacralização/desmistificação do real – isto significa que a natureza se vai
naturalizando, que da concepção de um universo totalmente sacralizado o homem passa
para um universo com características que devem ser explicadas de uma forma mais
natural e, sobretudo, mais racional.
E quando é que o homem alcançou este “momento”?
Quando é que o homem foi capaz de se subtrair à esfera mística e sagrada
do mito e passou a agir segundo moldes caracteristicamente racionais/lógicos?
Poderemos nós demarcar (assinalar) um limite histórico para o surgimento
do pensamento lógico/racional?

É difícil responder a estas questões…


Vejamos a opinião de Werner Jaeger:

“O mérito dos gregos não pode ser interpretado em termos de milagre, como se
repentinamente o espírito grego irrompesse e começasse a funcionar em pleno,
entrando bruscamente em rutura com tudo o que havia para trás.
A arrancada e a marcha do pensamento racional só foi possível devido a fatores
ou condições objetivas, de que podemos destacar as boas condições geográficas, o
27
clima de paz e prosperidade económica e o ambiente/regime social e político
(democracia) em que se vivia nas cidades (“polis”) gregas.
Não é, pois, fácil traçar a fronteira temporal do momento em que surge o
pensamento racional, mas uma coisa podemos dizer: a intuição mítica e o pensamento
racional não existiram absolutamente separados; durante os primeiros tempos o mito
exerceu supremacia sobre a razão e durante os tempos posteriores foi a razão que
passou a exercer supremacia sobre o mito, mas, na verdade, nunca se excluíram
completamente um ao outro.
A partir deste ponto de vista, devemos encarar a história da filosofia grega como
um processo de progressiva/crescente libertação da racionalidade humana face à
conceção «religiosa» do mundo implícita nos mitos.”

JAEGER, Werner – Paideia (adaptado)

Não podemos, pois, localizar rigorosamente no tempo a passagem do mito à


razão, na medida em que a razão mergulha as suas raízes mais profundas no mito e
dele extrai elementos capazes de a fazer desabrochar e progredir. De facto, nas
primeiras tentativas explicativas da origem do mundo/natureza de carácter
filosófico/lógico/racional ainda encontramos muitos elementos característicos da
mentalidade mítica. Contudo, apesar de, na sua essência, as explicações serem ainda
de natureza mítica, notamos nelas uma certa tentativa/esforço de ordenação do
pensamento muito próximos de um tipo de pensar já racional.
Em última análise, podemos, pois, dizer que durante um certo período de tempo
passa a haver uma mistura entre o mito e determinadas teorias que são resultantes
daquilo que se considera ser já o pensamento racional propriamente dito – a filosofia
(sinónimo de pensamento racional, mais ambicioso e mais exigente) não nasceu,
então, milagrosamente, de um dia para o outro; ela foi, isso sim, emergindo, lenta e
gradativamente, a partir do mito, com o qual, aos poucos, pretendeu romper.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÃO:

1. Explicite o modo como se processou a passagem da mentalidade mítica


para o pensamento racional/filosófico propriamente dito.

28
OS PRIMEIROS PENSADORES
(PRÉ-SOCRÁTICOS – PERÍODO COSMOLÓGICO)

Os pensadores pré-socráticos (antes de Sócrates)

Os primeiros pensadores não se sentiram atraídos pelo homem em si, mas pela
diversidade do mundo exterior, no qual notam mudanças e regularidades
constantes: há frio e há calor; há dia e há noite; há gelo e há vapor; há vida e há
morte...
Perante estas e outras constatações interrogam-se:
- O que é a natureza?
- Qual o princípio originário de todas as coisas?
- O que é que permanece na mudança?
As respostas a estas questões, fornecidas pelas explicações poéticas e
mitológicas existentes, já não satisfazem totalmente estes pensadores, os quais
procuram explicações baseadas no pensamento racional, fundamento do
pensamento filosófico que, entretanto, vai timidamente emergindo.
É na perspetiva de encontrar o primeiro elemento responsável pelo
aparecimento de tudo, o elemento primordial, o princípio explicativo do cosmos,
que se situam os primeiros filósofos/pensadores que, por volta do séc. VI a. C., nas
cidades helénicas (gregas) da Ásia Menor, abrem caminho à especulação filosófica
(ato de, por meio de uma atitude reflexiva, levantar perguntas e de dar respostas, no
plano teórico, a essas mesmas perguntas).
Tales e Anaxímenes, primeiros pensadores que atingiram alguma notoriedade,
preocupam-se com a explicação do mundo que lhes é revelado pelos sentidos, isto é,
sem porem em causa a existência real desse mundo e aceitando-o tal como este se lhes
apresenta aos seus olhos, refletem sobre a sua origem, levantam questões e
procuram encontrar respostas plausíveis, aceitáveis, pertinentes e racionais para
essas perguntas.
Podemos, assim, afirmar que a sua perspetiva é cosmológica porque meditam
sobre aquilo que existe à sua volta, ou seja, sobre o cosmos (mundo ou universo
ordenado/com ordem) e não colocam ainda qualquer questão sobre o homem em si
mesmo.

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Tales de Mileto, considerado um dos sete sábios da Grécia (pela variedade de
temas a que se dedicou – astronomia, engenharia, matemática, política, finanças, etc.),
embora ainda revele nas suas especulações/reflexões/teorias alguma
mistura/confusão entre a mentalidade mítica e o pensamento racional, característica
da “filosofia” grega daquele tempo, já denotava uma atitude diferente no que diz respeito
à forma como procurava responder às questões colocadas acerca da origem das coisas,
chegando mesmo a prever, com quase quinhentos anos de antecedência e apenas
através de cálculos matemáticos, a ocorrência de um eclipse do Sol.
Não chegaram até nós quaisquer escritos deste pensador, pelo que o
conhecimento da sua doutrina filosófica se deve, sobretudo a Aristóteles (discípulo de
Platão e um dos maiores filósofos da antiguidade), que afirma o seguinte: “Tales dizia
que o princípio de tudo é a água, que a terra está sobre a água, que esta se encontra
em tudo o que possui vida e que, portanto, o princípio de tudo é a água.”

Como vemos, já não se trata de encontrar uma explicação mítica para a origem
do universo; antes se nota a preocupação de descobrir a substância (o suporte, o que
sustenta) ou o primeiro elemento subjacente (que está na base, na origem) à
natureza na sua totalidade.
Se bem que a água, como elemento físico, natural, seja um princípio explicativo
das coisas que, de certo modo, rompe com as narrativas míticas, é de admitir que este
princípio tenha sido sugerido a Tales pelas cosmogonias egípcias (narrativas míticas
acerca da origem e funcionamento do cosmos/universo) ou ainda pela leitura dos
poemas homéricos (do escritor e poeta grego Homero), os quais são, também, de
inspiração mitológica.
Quanto a Anaxímenes, que, como já foi dito, também se preocupou com a
origem das coisas, considera ser o ar o elemento primordial, ou seja, o primeiro
princípio responsável pelo aparecimento de tudo.
Para este pensador, o ar é tão necessário como a água, sendo, contudo, de
natureza mais subtil, mais leve. Assim, mediante processos de condensação,
dilatação, evaporação e outros, é o ar que origina todas coisas…
Depois de Tales e Anaxímenes o pensamento grego prosseguiu a sua marcha;
Heraclito, Pitágoras, Zenão, Empédocles e Anaxágoras, entre outros, dão
continuidade à demanda (busca) filosófica do princípio fundamental de que todas as
coisas provêm.

30
O pensamento reflexivo destes homens (pensadores), que são, sobretudo,
fisiólogos, cosmólogos ou filósofos naturalistas (porque procuram explicar a
origem da natureza através da própria natureza e dos seus elementos
constituintes), é ainda, nalguns aspetos, uma herança da forma de abordagem sobre a
origem do mundo e dos fenómenos naturais que, no fundo, entroncava nos deuses,
ou seja, numa cosmogonia (conjunto de narrativas e lendas míticas acerca da origem
do cosmos/universo/mundo), a qual, aos poucos, passou a constituir-se numa
cosmologia (tentativa explicativa da origem do mundo, da natureza e de todas as
coisas de uma forma lógica e racional, sem recurso absoluto aos mitos), passando-se,
desta forma, do período cosmogónico para o período cosmológico.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Porque é que é afirmado no texto que os primeiros pensadores são,


sobretudo, filósofos naturalistas?

2. Distinga cosmogonia (do período cosmogónico) de cosmologia (do período


cosmológico).

31
RETÓRICA e RELATIVISMO
(OS SOFISTAS – PERÍODO ANTROPOLÓGICO)

Em meados do séc. V a. C., depois da vitória na guerra sobre os Persas, novas


concepções ou visões sobre o papel do homem na sociedade e no mundo vão surgindo
através das principais escolas filosóficas que se situam em Atenas, transformada, então,
no grande centro cultural da Grécia…
A investigação racional sobre a physis (natureza) começava a dar lugar a uma
outra preocupação emergente: a necessidade de preparar os jovens para a vida
pública.
Vejamos como François Châtelet nos descreve os progressos operados no
estatuto do cidadão grego desta época:
“Incontestavelmente, a concepção grega do homem e do mundo foi-se
progressivamente desmitificando e o universo dos deuses foi-se enfraquecendo pouco a
pouco. Enquanto anteriormente as narrativas se organizavam primeiro à volta das
personagens divinas e depois à volta de elementos da natureza, como princípio
explicativo da origem de todas as coisas, ficando as personagens humanas reduzidas a
um plano inferior e de quase dependência, nesta época, a época clássica, o homem
aparece como parte integrante do seu destino.
A instauração da democracia que se efetua em Atenas é um momento marcante,
pois, trata-se de uma democracia que é, sobretudo, o regime no qual o governo está no
«centro» e em que cada um dos cidadãos tem o direito de nele participar.
Organiza-se, assim, um pensamento novo que rejeita o interesse excessivo quer
pelos deuses quer pelos elementos mais ou menos naturais que estariam na origem de
tudo e que, doravante, assenta num interesse exclusivo pelos homens.”
Como se alude no texto acima dado, a vida democrática na cidade convida à
participação dos cidadãos na política e, para isso, torna-se urgente que estes
mesmos cidadãos sejam capazes de, pelos seus dotes oratórios, discursar (falar
bem), convencer (argumentar) e responder (contra-argumentar) diante dos
interlocutores adversários, em particular, e do público, em geral.
É neste contexto que têm que ser entendidas as alterações ocorridas no
caminho/trajeto que até esse momento o pensamento percorrera.
Qual foi, então, a viragem desse pensamento?

32
Aos pensadores anteriores interessaram as questões relacionadas com o
cosmos, com o mundo e com a natureza; aos que agora se seguem interessa o
próprio homem (como centro de toda a reflexão). Passa-se, assim, do período
cosmológico (cosmos) para o período antropológico (homem).
De facto, a reflexão sobre o homem não tinha sido ainda aprofundada pelos
pensadores precedentes... Disto se apercebem os pensadores desta época, em especial
aqueles a quem se passou a chamar Sofistas, os quais, mais do que refletir e
levantar questões (especulação filosófica), se voltam para a formação prática do
homem como cidadão e como político.
Os Sofistas eram uma espécie de “professores itinerantes” que deambulavam de
cidade em cidade com o objetivo de, mediante uma remuneração, proporcionar aos
jovens cidadãos (de famílias abastadas/ricas), desejosos de alargar o seu horizonte
intelectual, uma aprendizagem eficiente no sentido de os habilitar para o ingresso
na vida pública. Ensinando moral, política, economia e retórica, ganham dinheiro e
alcançam notável êxito social.
A sua pedagogia (técnica de ensino) assentava na oratória e na retórica. O
fundamental é falar bem e impor-se através de bons argumentos que destruam os
do adversário (argumentação e contra-argumentação).
Deste modo, os Sofistas põem de lado a procura da verdade para dar lugar à
arte de discursar e de convencer – se estão ou não no caminho da verdade isso é
assunto secundário.
Protágoras, um dos principais representantes da comunidade sofista, mostra a
relatividade da verdade ao afirmar: “O verdadeiro é o que parece ou o que convém
a cada um.” Ou seja, a verdade em si não existe, o que existe são “verdades”, as
quais variam consoante o contexto.
Nas suas múltiplas viagens, os Sofistas dão-se conta de que as opiniões
divergem de comunidade para comunidade, de cultura para cultura e até de
pessoa para pessoa, defendendo que a verdade dos discursos é a verdade que
serve/convém ao ser humano, ou seja, é uma verdade relativa, feita à medida das
necessidades e circunstâncias de cada um – daí podermos afirmar que os Sofistas
foram os fundadores de uma perspetiva filosófica acerca do conhecimento e da
verdade designada por RELATIVISMO. “O HOMEM É A MEDIDA DE TODAS AS
COISAS.” – constitui uma das frases mais célebres da história do pensamento e que
melhor ilustra a perspetiva relativista, cujo o autor é também Protágoras.

33
Coube, assim, aos Sofistas, apesar do relativismo em que caíram, o mérito de,
ao negarem a possibilidade de atingir a verdade absoluta, de abrirem caminho para
correntes ceticistas (que negam toda e qualquer possibilidade de se conhecer
verdadeiramente, uma vez que a sua principal característica é uma visão cética radical
em relação às interpretações da realidade, que aniquila valores e convicções) e
despoletarem a especulação (discussão teórica) filosófica sobre o que se viria a chamar
problemática do conhecimento (a abordar no 11.º ano).

Em última análise, os Sofistas foram os primeiros pedagogos


(“professores”/mestres na arte de ensinar) e o objetivo da sua educação não deixa de
ser nobre: capacitar os homens “a governar bem as suas casas e as suas cidades”.
Também foram os primeiros na atribuição do valor à formação cultural do homem
como membro integrante e participante da comunidade (cidade), contribuindo,
assim, para a formação de um ideal de homem que se traduzia num cidadão
perfeitamente integrado e consciente das realidades públicas do seu tempo.
Porém, isto não significa que, em termos filosóficos, eles tenham feito do ser
humano e da sua condição o centro das suas investigações, uma vez que, mais do
que refletir profundamente sobre o homem, interessou-lhes apenas contribuir para
o êxito da conduta do homem como cidadão, o que, tal como já foi afirmado, não é o
mesmo que abordar a condição ou a existência humana (nomeadamente, o
conhecimento e a verdade) de um modo filosófico.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Em que consistiu a viragem do pensamento/filosofia (em termos de objeto


de interesse/reflexão) que o texto no relata?

2. Explicite a principal atividade/ocupação dos Sofistas.

3. Identifique a perspetiva filosófica que está subjacente à frase de Protágoras:


“O homem é a medida de todas as coisas.”

34
RELATIVISMO VS. VERDADE
(SÓCRATES VS. SOFISTAS – PERÍODO ANTROPOLÓGICO)

Como já se fez referência no texto anterior, em meados do século V a. C., Atenas


começava a instituir a ordem democrática, abrindo a vida política à participação dos
cidadãos.
Pela sua natureza, o regime democrático necessitava de um novo modelo de
educação – antes, segundo o modelo de formação tradicional, ensinava-se os jovens a
serem bons cavaleiros, bons guerreiros, respeitadores das divindades e da recordação
dos antepassados, mas, agora, isso já não é suficiente – é preciso saber falar!
A palavra é doravante a “técnica das técnicas”, aquela que permite a cada
um, seja na Ágora, seja na Assembleia (espécie de assembleia municipal), seja nos
Tribunais, fazer valer o seu ponto de vista. É graças a ela (palavra) que o cidadão
pode defender a sua posição, a sua independência e impor-se na cidade (pólis).
Tornava-se, então necessária uma formação específica para a conquista do poder,
uma formação que conferisse capacidade de discursar nas assembleias de
cidadãos, uma arte que permitisse persuadir e convencer o auditório.
Abrem-se escolas (academias) dirigidas por mestres de retórica e de oratória que
suscitam uma afluência considerável, sendo os seus mais ilustres representantes
Protágoras, Górgias e Hípias, que dominavam a arte de persuadir pela palavra e
surpreendiam tanto pela sua vasta erudição (“sabedoria”) como pelos seus discursos
eloquentes. Têm como único programa ensinar os seus alunos a bem falar sobre
seja o que for e a defender com persuasão seja que causa for.
Estamos, pois, perante um novo tempo a que Aristófanes chamou ironicamente
“civilização da linguagem”.
Pode-se, assim, dizer que os Sofistas criaram a retórica como arte do
discurso persuasivo, dispondo-o de acordo com um “ideal de prova” bem
ornamentada e rebuscada, sendo (o discurso e a retórica), portanto, a única ciência
possível. No entanto, o fundamento que dão à retórica tornou-se bem perigoso, uma
vez que o discurso não pode mais pretender ser verdadeiro, mas só eficaz (apenas
para convencer), o que equivale a vencer, deixando o interlocutor (opositor) sem
réplica (sem resposta). A finalidade dessa retórica não é encontrar a verdade, mas
dominar através da palavra – esta já não significa saber, mas sim poder.

35
Daí que, por oposição ao nome “filósofo” (amigo do saber), o termo “Sofista”,
que originariamente significava sábio, passa, assim, a estar associado ao falso saber, já
que o Sofista é aquele que detém uma sabedoria aparente, que faz uso do
raciocínio falacioso (sofisma), centrado mais na forma do que no conteúdo,
ensinando a técnica ou a arte de fazer triunfar um discurso em função da
“conveniência de cada um” (relativismo).
Ora, contra esta relativização da verdade e esta valorização da retórica como
arte do discurso persuasivo em detrimento da sabedoria insurgem-se filósofos
como Sócrates e Platão.
Se para os Sofistas a retórica é a arte de bem falar ou técnica de persuadir
para ganhar um dado auditório a favor de uma determinada opinião, para Sócrates
e Platão, a argumentação só pode servir a busca da verdade. Uma boa
argumentação – uma retórica digna – é aquela que serve o filósofo na busca da
verdade. Verdade e Bem são ideias que convêm à filosofia e, portanto, quem
procura o conhecimento da verdade (o filósofo) só pode praticar o bem.
A busca da verdade é, pois, tarefa do filósofo. A filosofia socrático-platónica
não aceita o relativismo dos Sofistas e pretende inviabilizar a prática de uma
retórica baseada em opiniões ou meras aparências. Por isso, partindo de um
método assente no diálogo e na eliminação do que é contraditório, Sócrates e
Platão inauguram o fosso que durante séculos separará a filosofia da retórica.
O Sofista, para eles (Sócrates e Platão), é o homem que ensina a técnica e a
moral do sucesso, do gozo, da vaidosa afirmação de si mesmo, que nega as
noções profundamente solidárias da verdade e do bem objetivos.
O ensino sofístico forma o orador público, essa falsificação do homem de
estado verdadeiro, ou seja, o homem capaz de arrastar a multidão com argumentos
baseados não no saber, mas na ilusão do saber e na paixão. O orador público é,
pois, o homem da ilusão oposta à realidade, o homem da mentira oposta à
verdade, a falsificação requintada do verdadeiro filósofo – a relativização da
verdade aliada ao facto de receberem dinheiro pelos seus serviços, deu azo a uma
visão depreciativa (negativa) dos sofistas.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Qual a necessidade emergente em Atenas em meados do século V a. C.?

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2. Que nome deu Aristófanes ao novo tempo que se vivia?

3. Qual o programa de ensino dos mestres mais ilustres, como Górgias e


Protágoras?

4. Explicite a perspetiva relativista da verdade.

5. Que tipo de retórica desenvolveram os sofistas?

6. Qual a reação/posição de Sócrates e de Platão face ao relativismo dos


sofistas?

7. Explicite a tarefa do filósofo face à retórica sofista.

37
APROFUNDAMENTO DA REFLEXÃ O FILOSÓ FICA
(SÓCRATES E A PROCURA DA VERDADE)

Nos finais do séc. V a. C., em Atenas, e na Grécia em geral, o tempo da


prosperidade política e social começa a desaparecer.
Do ponto de vista político, a democracia começa a desvanecer-se dando lugar
à tirania e à plutocracia – governo de uma minoria rica e exploradora – a guerra
instala--se: ligas políticas e militares fazem-se e desfazem-se rapidamente; cidade
contra cidade; homens jovens morrem inutilmente na guerra; os campos são deixados
em pousio (sem cultivo); os barcos não se fazem ao mar; há muita miséria, cobiça e
rapina!
Neste difícil contexto, a fome grassa (abunda) nos estômagos e o pessimismo
instala-se nos corações – Atenas atravessa um período realmente crítico…

SÓCRATES, O PRIMEIRO INTÉRPRETE DA NECESSIDADE DE MUDANÇA

A mudança, ao nível da reflexão, operada por Sócrates, não é apenas a


passagem do interesse sobre o “cosmos” ou sobre a natureza para o próprio
homem – isto já os Sofistas o tinham feito ao fixarem como seu principal objetivo a
preparação do indivíduo para a prática da cidadania e para o exercício de determinados
cargos na vida pública e política.
Assim, a mudança a que agora se faz referência é, pois, uma mudança
mais profunda, já que se trata de uma mudança ao nível dos valores (valores
morais, valores éticos, valores religiosos, valores jurídicos, valores culturais, valores
estéticos, etc.) e da perspetiva filosófica acerca da verdade, traduzidas nas seguintes
questões filosóficas: O que é o bem? O que é a virtude? O que é a justiça? O que é a
sabedoria? O que é o belo?
De resto, o objetivo de Sócrates era claro: educar para a procura da verdade
através de um “método que permita extrair do próprio homem a verdade que está
no homem e que diz respeito apenas ao homem”.
Se no período anterior a sociedade ateniense entrou em decadência
precisamente pelo facto de a corrente sofística, com o seu relativismo e ceticismo,
conduzir a um desânimo na procura da verdade, neste período o pensamento
filosófico vai ser revigorado, uma vez que o seu fundador, Sócrates, como já foi dito,
assentou todas as suas esperanças na busca da verdade, que se exerceria através do
38
esforço da definição objetiva e universal dos conceitos, incentivando os seus
contemporâneos a encontrar a autêntica sabedoria/conhecimento como via segura
para encontrar a virtude e, consequentemente, a felicidade.
Diz-nos Jean-Brun na sua obra sobre Sócrates:

“A sua escola é a praça pública, onde passeia (...) conversando com um,
interrogando outro, e tomando sempre como ponto de partida os mil e um problemas da
vida quotidiana. Sócrates não se cansa de repetir ter recebido uma missão divina de
educar os seus contemporâneos: «Eu sou o moscardo que, dia após dia, não cessa de
vos despertar, de vos aconselhar, de repreender cada um de vós, e que vós
encontrareis em toda a parte, colocado ao vosso lado!»...

Jean-Brun, Sócrates

Sócrates, não deixou obra escrita. Conhecemos o seu pensamento através de


Xenofonte, que lhe dedica várias das suas obras; de Platão, um dos seus mais fiéis
discípulos e seguidores, que fez dele o principal personagem dos seus diálogos; de
Aristóteles, que a ele alude várias vezes nos seus escritos; e ainda de Aristofanes,
que, numa obra intitulada As nuvens, dá dele uma imagem caricata e desvirtuada, o que
denota bem a hostilidade e a troça de que Sócrates foi alvo por alguns setores da
sociedade ateniense da época.
Num diálogo, também da autoria de Platão – Apologia de Sócrates – o filósofo
defende-se, perante 501 juízes no tribunal público, da acusação de que terá
“corrompido os jovens cidadãos com os seus diálogos, pondo em causa, segundo
aqueles, os usos, os costumes e as crenças que vigoravam na sociedade de então”,
através de uma atitude filosófica inovadora, cujo discurso era predominantemente
irónico, crítico e onde claramente se evidencia o conflito entre o filósofo e os
Sofistas – aquele, ao contrário destes, diz sempre a verdade: “Homens de Atenas,
não sei o quanto vos afetaram os meus acusadores. Eu, por mim, quase cheguei a
esquecer-me de quem sou, tão convincente foi o discurso deles. E, contudo, nada do
que disseram é verdade. O que mais me espantou, entre o muito que inventaram, foi
dizerem que ficásseis alerta contra a minha habilidade no falar, de modo a que eu não
vos enganasse ou iludisse. A não ser que chamem hábil a falar só por dizer a verdade,
não posso concordar que tenho jeito para falar. Mas, se é isso que acham, concordo que
sou um orador, embora não à maneira deles.
Estes homens (Sofistas), garanto-vo-lo, pouco ou nenhuma verdade disseram.
Da minha boca, pelo contrário, ouvireis só a verdade. Decerto que não ouvireis de mim
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discursos aprimorados como os deles, com palavras e frases bem arranjadas, pois, as
palavras que ouvireis de mim são as que me vierem à boca, porque acredito que aquilo
que digo é justo.”

Platão, Apologia de Sócrates, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, p. 67

Assim, resumidamente, as diferenças entre os Sofistas e os filósofos são as


seguintes:

1. Enquanto o sofista é uma espécie de “professor” ambulante ou itinerante que


se faz pagar pelos seus serviços; o filósofo é um amante, desinteressado, do saber.

2. Enquanto o sofista centra o seu discurso na forma; o filósofo centra o seu


discurso no conteúdo.

3. Enquanto o sofista exibe uma mera técnica ou habilidade para discursar com
eficácia (baseado na retórica); o filósofo desenvolve o exercício da reflexão e da
argumentação rigorosa e sem contradições (baseado na sabedoria).

4. Enquanto o sofista entende a verdade à medida das conveniências e


circunstâncias individuais de cada um (subjetiva e relativa); o filósofo entende a verdade
como existente em si mesma, independente dos interesses, conveniências ou
constrangimentos subjetivos, esforçando-se por chegar ao verdadeiro conhecimento
através da identificação e definição (objetiva e universal) de conceitos.

5. Enquanto o sofista baseia o seu discurso em opiniões e aparências; o filósofo


baseia o seu discurso na Verdade e no Bem.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Explicite o conteúdo do seguinte excerto: “A mudança, ao nível da


reflexão, operada por Sócrates, não foi apenas a passagem do interesse sobre o
“cosmos” ou sobre a natureza para o próprio homem...”

2. Defina, de modo sucinto, o objetivo de Sócrates (indicado no texto).

3. Apresente as diferenças existentes entre sofistas e filósofos.

40
EM BUSCA DA DEFINIÇÃO DOS CONCEITOS
(O MÉTODO SOCRÁTICO)

A DEFINIÇÃO DE CONCEITOS

Uma das proezas que, segundo Aristóteles, devem ser atribuídas a Sócrates e
que de nenhum modo se lhe pode negar é, justamente, a determinação dos (conceitos)
universais.
Vejamos, através do diálogo que se segue, o qual faz parte de uma obra de
Platão (“Ménon”), como é que Sócrates procede na busca dos conceitos:

“Ménon: – Mas, Sócrates, para mim não há dificuldade em dizer. Se desejas


saber o que é a virtude do homem, vou dizer-te o que é a virtude do homem: saber gerir
os negócios de Estado. (...) Queres agora a virtude de uma mulher? Não é difícil dizer
que ela deve administrar bem a casa. (...) Outras virtudes são as de um arquiteto, de um
político, de um professor…
Sócrates: – Ah, Ménon, que felicidade para mim, que procuro uma única virtude,
encontrar na tua mão um enxame de virtudes! E se, aproveitando a imagem do enxame
de abelhas, te perguntasse qual a natureza da abelha e tu me respondesses que há
muitas espécies de abelhas, perguntar-te-ia: defendes que é pelo facto de serem
abelhas que diferem umas das outras ou que por esse mesmo facto não diferem nada?
Ménon: – Não diferem nada uma das outras porque são todas abelhas.
Sócrates: – O mesmo acontece em relação às virtudes! Mesmo sendo de várias
espécies, devem possuir características idênticas que fazem com que todas sejam
virtudes, não? Então, diz-me agora, Ménon, o que é a virtude?
Ménon: – Efetivamente, Sócrates, reconheço que não consigo encontrar uma
definição de virtude como a que procuras de cuja unidade todas as outras participam.”

Como o texto nos mostra, quando Sócrates pergunta o que é a virtude, faz
notar ao seu interlocutor (Ménon) que, afinal, este não sabe dizer (definir) o que essa
realidade verdadeiramente é, dado que as respostas apresentadas assentam em
exemplos que remetem para casos particulares em vez de remeterem para uma
definição geral e universal.
No prosseguimento do diálogo com o seu interlocutor, através de um método
que contempla dois momentos fundamentais (ironia e maiêutica), Sócrates orienta-o
no sentido da descoberta daquilo que há de comum em todos os atos de virtude e

41
daquilo que distingue a virtude do que não o é, levando-o, primeiro, à tomada
consciência da sua própria ignorância (ironia) para, depois, chegar progressivamente
ao conceito em questão (maiêutica), no caso concreto, àquilo que é a virtude na sua
essência e ao que permite defini-la (de um modo geral, universal).
Este esforço metodológico de definição dos conceitos pressupõe uma
inabalável fé na capacidade da razão humana como único meio eficaz para alcançar
a verdade universal (verdadeiro conhecimento).

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÃO:

1. À luz do texto acima dado, explicite o processo ou método socrático que


conduz à definição de conceitos.

42
A DIMENSÃO DISCURSIVA DO TRABALHO FILOSÓFICO
(RACIONALIDADE ARGUMENTATIVA DA FILOSOFIA)

TESE E ARGUMENTO

Temos vindo a considerar a Filosofia como uma atividade conceptual (uma vez
que se serve dos instrumentos lógicos mais elementares ou mais básicos do
pensamento, como são os conceitos ou ideias) e argumentativa (uma vez que se serve
da linguagem para expressar esses mesmos conceitos ou ideias, os quais, por sua vez,
articulados, se manifestam através de proposições).
Como vimos, o ponto de partida do trabalho filosófico são os problemas. A partir
deles, os filósofos formulam teses ou teorias – respostas aos problemas – que devem
ser defendidas ou discutidas com base em boas razões. Neste sentido a filosofia é uma
atividade tipicamente argumentativa. Filosofar não é exibir, dogmaticamente, convicções
ou limitar-se a dar respostas de sim ou não. Filosofar implica justificar e sujeitar-se
permanentemente ao teste ou exame da razão.
A este propósito, atentemos no seguinte texto:

A filosofia é um envolvimento crítico com as ideias através das palavras. Envolve


argumentos e contra-argumentos, exemplos e contraexemplos. Os filósofos não se
limitam a expressar as suas crenças – justificam-nas com provas e argumentos,
raciocinando, definindo, clarificando. Acima de tudo, os filósofos estão interessados na
verdade, numa tentativa constante de ir além das aparências. Tentam formular as suas
posições com a clareza e o rigor que lhes permite serem desafiados e até criticados.
Deste modo, a filosofia de tendências e atitudes mais ou menos simpáticas, mas de
posições racionais que conduzem a conclusões bem fundamentadas. Apesar disso,
pode mesmo assim, ser apaixonante e viva.

Nigel Warburton (2007), O que é a arte? Bizâncio, p. 16 (adaptado)

Após a leitura deste texto, podemos, então, perguntar: para o autor, o que é a
filosofia?
Como resposta, podemos afirmar que, para o autor, “a filosofia é o
envolvimento crítico com as ideias através das palavras”, pois exige
fundamentação – argumentos e contra-argumentos, exemplos e contraexemplos.

43
Procura-se a verdade, o que implica ir além das aparências e que as posições sejam
suportadas por boas razões.
Como podemos verificar, a resposta ao tema/problema – o que é a filosofia? –
faz-se de forma bem defendida e corresponde à conclusão de um argumento.
Assim, aprender filosofia exige um conjunto de competências básicas, tais
como, problematizar, conceptualizar, argumentar e identificar teses, pois, como
refere o texto, a filosofia envolve argumentos, sendo estes (argumentos) complexos
formados por uma ou várias proposições (premissas ou antecedentes), a partir da(s)
qual(ais) se infere (extrai) uma única proposição (conclusão ou consequente). A
relação que se estabelece entre a(s) premissa(s) e a conclusão é uma relação de
justificação ou de sustentação (conseguida ou não), frequentemente assinalada como
logo, portanto, então, por conseguinte, etc.
As premissas são o ponto de partida de um argumento. Devem apoiar
racionalmente a conclusão e visam, no seu conjunto, fornecer os fundamentos para
que a conclusão ou tese seja aceite.

Assim:

Problematizar é identificar e formular um problema filosófico contido numa


experiência (consiste em formular problemas filosóficos que desafiem a nossa reflexão).
A Filosofia é uma atividade questionadora e crítica, por isso, a problematização
é, normalmente, o ponto de partida da reflexão. Além disso, a capacidade de perguntar e
de formular corretamente o problema é essencial para a descoberta de uma solução.

Conceptualizar é identificar (reconhecer), elaborar (criar) e definir (clarificar)


conceitos. Um conceito é uma ideia, noção ou representação mental geral de algo,
uma vez que designa uma categoria ou classe de objetos que possuem características
ou atributos que o identificam e o distinguem de todos os outros. É a unidade mais
básica do pensamento, uma vez que sem conceitos nem o pensamento nem a
linguagem seriam possíveis.

Argumentar é construir proposições relacionadas (articuladas logicamente) de


modo a justificar (ou concluir) uma tese. Trata-se de uma tarefa fundamental, pois é
pela argumentação que se demonstra racionalmente uma tese.

Identificar uma tese é, em termos gerais, captar uma proposição teórica, uma
posição crítica ou uma opinião (ponto de vista) que alguém expõe sobre um

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determinado tema, propondo-se discuti-la ou defendê-la. A tese é a parte fundamental
para a existência de um texto argumentativo.
Defender e refutar teses, através da leitura, da produção/escrita de textos e do
debate são tarefas permanentes da atividade do filósofo.
No âmbito da racionalidade argumentativa da Filosofia e da sua dimensão
discursiva, as teses (filosóficas) são respostas possíveis aos problemas da Filosofia.
Podemos também usar termos como “teorias” ou “perspetivas” para nos referirmos às
teses. Como uma das características da Filosofia é a ausência de respostas
consensuais (únicas) para os problemas discutidos, o estudo de um problema
filosófico envolve a identificação de várias teses.
Por exemplo, se estivermos a discutir a existência de Deus, importa reconhecer
as seguintes teses:
a) Deus existe.
b) Deus não existe.
c) Não sabemos se Deus existe.

As teses mais importantes costumam ser designadas por “ismos” – assim, as


teses das alíneas a), b) e c) correspondem, respetivamente ao Teísmo, ao Ateísmo e
ao Agnosticismo. Os “ismos” são abreviaturas muito convenientes, mas não devemos
usá-las sem saber exatamente que teses designam, até porque termos como
“objetivismo” ou “realismo”, apesar da sua proximidade quanto ao que significam, podem
exprimir teses muito diferentes. Numa resposta de exame, quando nos é pedido para
identificarmos uma tese, tal como racionalismo ou empirismo, por exemplo, as quais
nos remetem para teorias do conhecimento completamente distintas, importa deixar bem
claro o que se entende pelo “ismo” que se está a usar.

A LEITURA E ANÁLISE DE UM TEXTO FILOSÓFICO

Os textos filosóficos são uma das fontes privilegiadas da filosofia e um bom


exercício para desenvolver as competências que temos vindo a explicitar. Podemos
dizer que a leitura de textos filosóficos exige uma análise filosófica do conteúdo
(também ele filosófico) desses mesmos textos.
Em síntese, para fazermos uma leitura (filosófica) de um texto filosófico de forma
adequada, devemos:

1. Fazer uma leitura atenta do texto filosófico e relê-lo quantas vezes forem
necessárias;
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2. Identificar o tema;

3. Formular o problema ou problemas;

4. Anotar os conceitos principais que estruturam o texto (à medida que se vai


prosseguindo a análise do texto, devemos fazer as nossas próprias notas de leitura,
pois, ao fazê-las tomamos consciência das nossas dificuldades, exercitamos a nossa
capacidade de síntese, consolidamos a nossa aprendizagem e facilitamos a revisão da
matéria) e explicitar o seu significado (recorrendo a um dicionário de Filosofia ou ao
glossário do manual, caso ele exista);

5. Identificar a tese ou teses apresentadas pelo autor (podemos anotar à


margem ou sublinhar);

6. Enunciar os argumentos;

7. Apresentar as objeções (reparos/críticas) e/ou refutar (contestar/contrariar) a


tese do autor.

O DEBATE E A DISCUSSÃO

O debate e a discussão de ideias são momentos fundamentais de diálogo e de


confronto de ideias que, tal como a leitura, devem seguir algumas regras básicas para
que cumpram os seus objetivos:

1. Centrar-se no tema em discussão;

2. Saber ouvir e estar aberto aos argumentos dos outros;

3. Intervir oportunamente;

4. Evitar a agressividade e o ataque pessoal;

5. Usar linguagem clara e rigorosa (rigor conceptual);

6. Usar argumentos válidos e convincentes;

7. Evitar contradições, isto é, não defender simultaneamente uma


determinada ideia ou ponto de vista e o seu contrário;

8. Registar as conclusões.

A ELABORAÇÃO DE SÍNTESES E DE OUTROS TRABALHOS

Para elaborar sínteses, textos argumentativos e outros, é necessário:

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1. Formular com rigor o tema e o problema;

2. Expor com imparcialidade (isenção) as teses em debate, confrontando-as


entre si;

3. Explicar, clarificar e criticar os argumentos;

4. Tomar posição (defender uma tese), justificando-a com argumentos


válidos.

Consideremos o texto que se segue, do filósofo australiano Peter Singer (1946-):

Não defendi que a caça à baleia devia parar porque as baleias estão em perigo
de extinção. Sabia que havia muitos especialistas em ecologia e biologia marinha que
avançariam essa tese e, portanto, percebi rapidamente que não seria útil ir por aí.
Assim, ao invés, defendi que as baleias são animais sociais com grandes cérebros,
capazes de gozar a vida e de sentir dor – e não apenas dor física, mas muito
provavelmente também aflição face à perda de um membro do seu grupo. As baleias
não podem ser mortas de forma humanitária – são demasiado grandes, e mesmo com
um arpão explosivo, é difícil atingir a baleia no sítio certo. Além disso, os baleeiros não
querem usar muitos explosivos porque isso acabaria por destruí-la por completo, e o
objetivo da caça à baleia é extrair o seu óleo precioso ou a sua carne. Daí que as
baleias arpoadas morram geralmente muito devagar e de forma muito dolorosa.
Estes factos põem um enorme ponto de interrogação ético na caça à baleia. Se
houvesse uma necessidade de vida ou de morte a que os seres humanos só pudessem
satisfazer matando baleias, talvez se pudesse responder com alguma razoabilidade às
razões éticas contra matar baleias. Mas, a verdade é que não há qualquer necessidade
humana que obrigue a matar baleias. Tudo o que obtemos das baleias pode ser
conseguido sem crueldade. Causar sofrimento a seres inocentes sem uma razão
extremamente forte para o fazer é um mal, e, portanto, a caça à baleia é imoral.

Peter Singer (2017), Ética no mundo real, Edições 70, pp. 71-72 (adaptado)

Como podemos verificar,

O tema abordado por Peter Singer é: a caça à baleia.

O problema filosófico é: a moralidade da caça à baleia.

A questão é: será a caça à baleia uma atividade moralmente correta?

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A tese ou teoria (perspetiva) que o autor do texto defende é: a caça à baleia é
imoral.

Os argumentos (razões que sustentam a tese) são:


a) A caça à baleia causa sofrimento a seres inocentes;
b) Não há qualquer necessidade humana que obrigue a matar baleias;
c) Causar sofrimento a seres inocentes sem uma razão extremamente forte
para o fazer é um mal.

A conclusão (da tese defendida ou sustentada) é: a caça à baleia é um mal (é


imoral).

Argumentar é, então, defender uma conclusão ou tese com base numa ou em


várias premissas. Premissas e conclusão são proposições, apesar de terem funções
diferentes no corpo de um argumento.
Chamamos proposição ao conteúdo verdadeiro ou falso expresso por uma
frase declarativa. Tal significa que uma proposição é, necessariamente, portadora de
valor de verdade ou valor lógico. Assim, as frases usadas para exprimir ordens,
pedidos, conselhos ou perguntas, por exemplo, não são proposições.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Identifique e explicite as competências básicas que estão associadas à


aprendizagem da Filosofia (trabalho filosófico).

2. Leia o texto que segue:

A Filosofia é uma reflexão sobre os problemas humanos. Tem uma finalidade


prática: contribuir para que todos os seres humanos aprendam a pensar por si próprios e
a viver humanamente uns com os outros.
Há, porém, quem defenda que “os filósofos não são para serem levados a sério”
porque são “pessoas estranhas”, uma espécie de “visionários” (videntes), pelo que “a
Filosofia não tem credibilidade”.
Outros afirmam que “a Filosofia não tem razão de ser e que a ciência deve tomar
o seu lugar”. Segundo esses,” a ciência é útil; os resultados do seu trabalho estão em
todo o lado e mudaram o mundo! Enquanto a Filosofia não.”
De facto, a ciência mudou o mundo e nenhum de nós, apesar das consequências
negativas desse desenvolvimento, aceitaria de bom grado viver sem os recursos que o

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desenvolvimento tecnológico nos deixou. Porém não podemos ignorar que foi graças à
Filosofia e aos seus ilustres representantes (filósofos) que a ciência nasceu e se
desenvolveu ao ponto de ser o que é hoje…
Seja como for, vamos fixar-nos na Filosofia e afirmar que não é verdade que esta
não sirva para nada. A Filosofia é útil, mas a sua utilidade é de uma natureza diferente.
Trata-se de cuidar do ser humano, em si e em comunhão com os outros, e cuidar
da natureza como a casa comum.

2.1 Sublinhe ou anote os conceitos principais.

2.2 Identifique o tema.

2.3 Identifique o problema.

2.4 Identifique a tese.

2.5 Identifique os argumentos apresentados.

49
FRASES E PROPOSIÇÕES

A identificação e clarificação da tese remetem-nos para as frases e proposições,


uma vez que as teses são proposições.
Argumentar é, então, defender uma conclusão ou tese com base numa ou em
várias premissas. Premissas e conclusão são proposições, apesar de terem funções
diferentes no corpo de um argumento.
Chamamos proposição ao conteúdo verdadeiro ou falso expresso por uma frase
declarativa. Tal significa que uma proposição é, necessariamente, portadora de valor de
verdade ou valor lógico.
Assim, proposição é aquilo que é expresso por uma frase que tem valor de
verdade (ou, se quisermos, é a expressão de um juízo que pode ser verdadeiro ou
falso). Por exemplo: “Neste momento, no Marco de Canaveses, está a chover”.
De um modo geral, as frases que exprimem proposições são declarativas. As
perguntas, as ordens e os conselhos, por exemplo, não exprimem proposições.
Uma frase exprime uma proposição se fizer sentido classificá-la como verdadeira ou
falsa. As frases com valor de verdade são precisamente aquelas que são verdadeiras
ou falsas, mesmo que não saibamos se são uma coisa ou outra. Perguntar pelo valor
de verdade de uma frase ou da proposição que esta exprime é perguntar se ela é
verdadeira ou falsa.
Exemplos de frases que exprimem proposições:
A porta desta sala de aula está aberta.
A porta desta sala de aula não está aberta.
Se a porta desta sala de aula está aberta, então alguém a abriu.

Exemplos de frases que não exprimem proposições:


Abre a porta! (ordem)
A porta está aberta? (interrogação ou pergunta)
Seria melhor se abrisses a porta… (conselho ou sugestão)

As frases são a expressão linguística das proposições. Para clarificar um


pouco a relação que existe entre frases e proposições, importa sublinhar o seguinte:
1. Se duas frases diferentes significam o mesmo, então exprimem a mesma
proposição. Por exemplo, as frases: “O ouro é um metal” e “Gold is a metal” exprimem
a mesma proposição.
2. Se uma frase pode significar coisas diferentes, isto é, se for ambígua, então
pode exprimir proposições diferentes. Por exemplo, a frase: “João viu Patrícia com os
50
binóculos” pode exprimir proposições diferentes, pois tanto pode querer dizer que João
viu Patrícia através de binóculos como que João viu Patrícia a usar binóculos.

PROPOSIÇÕES CONDICIONAIS

Algumas teses filosóficas consistem em proposições condicionais. Vejamos


alguns exemplos de proposições deste género:

Se está a chover, então o chão está molhado.


Se os animais não têm deveres, então têm direitos.
Se tudo o que acontece tem uma causa, então não temos livre-arbítrio.
Se Deus não existe, então somos fruto do acaso.
Se os milagres são racionais, então as explicações científicas não têm
fundamento.

Como estes exemplos deixam claro, todas as proposições condicionais podem


ser expressas por frases com a forma: “Se P então Q”. Note-se que no lugar de “P” e
de “Q” encontramos também proposições. Por exemplo, a primeira proposição
condicional da lista de exemplos apresentada é constituída pelas proposições expressas
pelas frases “Está a chover” e “O chão está molhado”. E a segunda é constituída pelas
proposições expressas pelas frases “Os animais não têm deveres” e “Os animais não
têm direitos”.

As proposições que constituem uma proposição condicional têm nomes


diferentes. Numa frase com a forma “Se P então Q”, a primeira proposição, “P”, é a
antecedente, e a segunda proposição, “Q”, é a consequente.
Numa proposição condicional a antecedente é uma condição suficiente para
a consequente.

Tomemos como exemplo a primeira proposição da condicional da lista. Esta


significa que estar a chover é uma condição suficiente para o chão estar molhado. Ou
seja, diz-nos que basta ser verdade que está a chover para também ser verdade que o
chão está molhado.
Numa proposição condicional a consequente é uma condição necessária
para a antecedente.

A primeira proposição da lista significa, portanto, que o chão estar molhado é


uma condição necessária para estar a chover. Ou seja, diz-nos que é preciso que
seja verdade que o chão está molhado para que também seja verdade que está a
chover (se o chão não estiver molhado, então não está a chover).
51
Resumindo, numa frase com a forma “Se P então Q”, “P” é condição suficiente
para “Q” e “Q” condição necessária para “P”.

Consideremos agora as seguintes proposições condicionais:

Se João vai à praia, então vê o mar.


Se João vê o mar, então vai à praia.

Estas proposições são diferentes. A primeira diz-nos que João ir à praia é uma
condição suficiente para ele ver o mar. E a segunda significa antes que João ir à praia
é uma condição necessária para ele ver o mar. Se ambas as proposições forem
verdadeiras, João ir à praia é, então, uma condição necessária e suficiente para João
ver o mar. Para exprimir esta ideia numa única frase, podemos dizer o seguinte:

João vai à praia se, e apenas se, ele vê o mar.

Ora, esta é uma proposição bicondicional. As proposições deste género podem


ser expressas por frases com a forma “P se, e apenas se, Q”. As bicondicionais são,
por assim dizer, condicionais que funcionam nos dois sentidos. Algumas das teses
filosóficas que iremos discutir são bicondicionais.
Numa proposição bicondicional estabelece-se uma relação de equivalência
entre as duas proposições que a constituem, sendo cada uma delas condição
necessária e suficiente para a outra – daí que nenhuma delas possa ser designada
por “antecedente” e “consequente”.

Consideremos mais um exemplo de uma proposição bicondicional:

Margarida passa o ano se, e somente se, estuda todos os dias.

Isto significa que se Margarida passa o ano, então estuda todos os dias, e que se
Margarida estuda todos os dias, então passa o ano. Portanto, Margarida passar o ano é
equivalente a ela estudar todos os dias – cada uma das coisas é condição necessária e
suficiente para a outra.

PROPOSIÇÕES UNIVERSAIS

Muitas teses filosóficas consistem em proposições universais. A forma mais


comum das proposições universais afirmativas é: “Todos os A são B”. E a forma mais
comum das proposições universais negativas é: “Nenhum A é B”.

Exemplos de proposições universais afirmativas:

Todos os mamíferos são animais.

52
Todo o conhecimento tem origem na experiência.
Qualquer obra de arte imita a realidade.

Exemplos de proposições universais negativas:

Nenhum mamífero tem penas.


Nenhum objeto físico ultrapassa a velocidade da luz.
Nenhuma ideia é inata.

Consideremos agora algumas proposições que não são universais:

Algumas aves não voam.


Algumas ideias são inatas.
Sócrates era filósofo.
O Porto é uma cidade antiga.

As duas primeiras proposições são particulares, pois dizem respeito apenas a


algumas coisas. E as duas últimas são singulares, já que dizem respeito a um único
indivíduo ou objeto determinado.

As proposições universais, sejam elas afirmativas ou negativas, envolvem


condicionais – isto torna-se claro quando constatamos, por exemplo, que “Todos os
mamíferos são animais” (o que significa que para qualquer objeto X, se X é um
mamífero, então X é um animal) e quando constatamos, por exemplo, que “Nenhum
mamífero tem penas” (o que significa que para qualquer objeto X, se X é um mamífero,
então X não tem penas).

A primeira afirmação (“Todos os mamíferos são animais”) significa, então, que ser
um mamífero é condição suficiente para ser um animal, ou, o que é o mesmo, que ser
um animal é condição necessária para ser um mamífero. E a segunda afirmação
(“Nenhum mamífero tem penas”) significa que ser um mamífero é condição suficiente
para não ter penas.

Eis agora um exemplo de uma proposição universal que envolve uma


bicondicional:

“Todas as aves, e apenas elas, têm penas”.

Fazer esta afirmação é o mesmo que dizer duas coisas: que todas as aves têm
penas e que tudo aquilo que tem penas é uma ave ou, por outras palavras, ser uma ave
é condição necessária e suficiente para ter penas.

53
PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Defina proposição.

2. Dê um exemplo de uma frase que exprima uma proposição.

3. Dê um exemplo de uma frase que não exprima uma proposição.

4. Defina frase.

5. O que são proposições condicionais?

6. Dê um exemplo de uma proposição condicional.

7. Numa proposição condicional, que função desempenha a antecedente?

8. Numa proposição condicional que função desempenha a consequente?

9. O que é uma proposição bicondicional?

10. Dê um exemplo de uma proposição bicondicional.

11. Apresente um exemplo de uma proposição universal afirmativa.

12. Apresente um exemplo de uma proposição universal negativa.

13. Apresente um exemplo de uma proposição universal afirmativa e um


exemplo de uma proposição universal negativa que envolva condicionais.

14. Dê um exemplo de uma proposição universal que envolva uma


bicondicional.

54
CONTRAEXEMPLOS

Na atividade filosófica discutem-se as teses propostas. Tentamos defender


(afirmar) certas teses e refutar (contrariar) outras. Quando se pretende refutar uma tese
que consiste numa proposição universal, uma forma de o fazer é apresentar
contraexemplos.
Um contraexemplo é um caso particular que contraria uma proposição
universal.
Para apresentar um contraexemplo a uma proposição universal afirmativa com a
forma “Todos os A são B”, indica-se algo que é “A”, mas que não é “B”.
Suponhamos que queremos refutar a afirmação: “Todas as obras de arte imitam
a realidade”. Uma pintura abstrata, como, por exemplo, Guernica de Pablo Picasso,
pode servir de contraexemplo a esta afirmação, já que este objeto (pintura abstrata) é
obra de arte, mas, aparentemente, não imita a realidade (por isso é que é classificada
como arte abstrata).
Para apresentar um contraexemplo a uma proposição universal negativa com a
forma “Nenhum A é B”, indica-se algo que é “A”, mas que também é “B”. Suponhamos
que queremos refutar a afirmação “Nenhuma obra de arte imita a realidade”. Uma
pintura como, por exemplo, Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, pode servir de
contraexemplo a esta afirmação, pois, este objeto é obra de arte, mas, aparentemente
(e pelo que conhecemos da sua história), imita a realidade.

CONSISTÊNCIA

As proposições estão relacionadas entre si de várias formas. Uma das relações


mais importantes é a de consistência ou, se quisermos, de coerência (termo que
também é usado para designar esta relação entre as proposições).

Um conjunto de proposições é consistente se, e apenas se, é possível que


todas elas sejam verdadeiras.

Quando se diz que “é possível que todas as proposições sejam verdadeiras”, não
se quer dizer que o sejam, mas sim que nenhuma das proposições consideradas
contraria ou falsifica outra qualquer. A consistência garante a possibilidade de
verdade, mas não a verdade das proposições. Não se deve igualmente dizer que uma
teoria ou proposição "é consistente com o mundo"; as teorias ou proposições só
podem ser consistentes entre si e não com o mundo. Relativamente ao mundo, as

55
teorias e proposições são verdadeiras ou falsas, consoante descrevem fielmente ou
não o modo como as coisas são.

Se duas ou mais proposições são consistentes isso significa que são apenas
logicamente compatíveis entre si.
Por exemplo, as seguintes proposições são consistentes entre si:
Beethoven compôs sinfonias.
As sinfonias são obras de arte.
Beethoven compôs obras de arte.

Independentemente de as proposições serem verdadeiras ou falsas, não


existe qualquer incompatibilidade lógica entre as três proposições acima dadas. É
por isso que elas são consistentes entre si, pois não apresentam incoerências.

As seguintes proposições, pelo contrário, formam um conjunto inconsistente:

Os quadros de Leonardo da Vinci não imitam a realidade.


Todas as obras de arte imitam a realidade.
Os quadros de Leonardo da Vinci são obras de arte.

Estas proposições são logicamente incompatíveis entre si. Nada precisamos


de saber sobre Leonardo da Vinci, quadros ou obras de arte para concluir que é
impossível que todas estas proposições sejam verdadeiras. Pelo menos uma delas há-
de ser falsa.

Se um conjunto de proposições é inconsistente, então pelo menos uma


delas é falsa.

É por isto que temos de nos preocupar com a consistência. Quem defende teses
inconsistentes está de certeza enganado em algum aspeto, pois, pelo menos, uma
dessas teses é falsa. Mas importa não esquecer o seguinte:
Se um conjunto de proposições é consistente, isso não garante que alguma
das proposições seja verdadeira.

Podemos ter conjuntos consistentes de proposições constituídos apenas


por proposições falsas. Por isso, o simples facto de alguém defender teses
consistentes significa muito pouco, pois é possível que todas essas teses sejam falsas.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. O que é um contraexemplo?
56
2. Apresente um contraexemplo para refutar a afirmação: “Todos os automóveis
são carros de corrida”.

3. Apresente um contraexemplo para refutar a afirmação: “Nenhum automóvel é


carro de corrida”.

4. Quando é que podemos afirmar que um conjunto de proposições são


consistentes?

4.1 Apresente um exemplo.

5. Quando é que podemos afirmar que um conjunto de proposições são


inconsistentes?
5.1 Apresente um exemplo.

6. Explicite o conteúdo da seguinte afirmação: “Se um conjunto de proposições é


consistente, isso não garante que alguma das proposições seja verdadeira”.

57
CONCEITOS

As proposições são constituídas por conceitos. Por exemplo, a proposição


expressa pela frase: “Os mamíferos são animais” inclui os conceitos de mamífero e de
animal. E a proposição expressa pela frase “O conhecimento científico é incerto” inclui
os conceitos de ciência e de incerteza.

TERMOS E CONCEITOS

Do mesmo modo que usamos frases para exprimir linguisticamente as


proposições, usamos termos para exprimir os conceitos que possuímos.

Os conceitos são o significado dos termos (o conteúdo a que os termos se


referem).

Assim, se dois termos significam o mesmo, então exprimem o mesmo conceito.


Por exemplo, os termos “verde” e “green” exprimem um único conceito. Um termo
ambíguo pode significar coisas diferentes, pelo que pode exprimir conceitos distintos.
Por exemplo, o termo “banco” tanto pode designar uma peça de mobiliário como uma
instituição financeira, exprimindo em cada caso um conceito diferente.

DEFINIÇÕES

A clarificação de conceitos é uma parte importante da atividade filosófica para


elucidar (esclarecer, clarificar, explicitar) o significado de um termo, para captar o
conceito que este exprime, recorre-se a definições.
Existem diversos tipos de definições, mas as mais comuns são como as que se
seguem:
Uma obra de arte é uma imitação da realidade.
Um solteiro é um homem que não é nem nunca foi casado.
Uma pessoa é um ser racional, autónomo e consciente de si.

Nas definições deste tipo estamos a dizer que o termo a definir (no caso, “obra
de arte”) significa o mesmo que outra expressão linguística (no caso “imitação da
realidade”) explicitamente apresentada. Estas são, por isso, definições explícitas.

Para definir explicitamente C de uma forma correta, é preciso apresentar


condições necessárias e suficientes para que algo seja C.

Por exemplo, se a primeira definição da lista acima apresentada (“Uma obra de


arte é uma imitação da realidade.”) for correta, então um objeto ser uma imitação da

58
realidade é uma condição necessária e suficiente para que esse objeto seja uma
obra de arte.

A ideia de que as definições explícitas têm de indicar condições necessárias e


suficientes pode ser apresentada desta forma:

Uma definição explícita é errada se for demasiado lata (demasiado extensa,


ampla ou abrangente) e/ou demasiado restrita (demasiado limitada, reduzida ou
compreensiva). Ou seja, uma definição explícita para ser considerada correta não
pode ser nem demasiado lata (demasiado extensa, ampla ou abrangente) nem
demasiado restrita (demasiado limitada, reduzida ou compreensiva).

Uma definição demasiado lata abrange mais do que devia abranger – por
exemplo, se existem imitações da realidade que não são obras de arte, então a
definição de “obra de arte” acima dada (“Uma obra de arte é uma imitação da
realidade.”) é demasiado lata (demasiado extensa, ampla ou abrangente).

Uma definição demasiado restrita abrange menos do que devia abranger –


por exemplo, se existem obras de arte que não são imitação da realidade, então a
definição de “obra de arte” acima dada (“Uma obra de arte é uma imitação da
realidade.”) é demasiado restrita (demasiado limitada, reduzida ou compreensiva).

Outra regra comum para avaliar definições explícitas é a seguinte: uma


definição explícita é errada se aquilo que se pretende definir surge (já está contido)
na expressão definidora (não acrescentando nada de novo).

Vejamos três exemplos de definições que apresentam este erro:

Um ato livre é aquele que realizamos livremente.


A ciência é uma atividade científica.
As divindades são seres divinos.

São definições erradas porque não elucidam (não explicitam, não esclarecem,
não clarificam) o significado daquilo que se pretende definir. Pegando no primeiro
exemplo, se queremos saber o que é um ato livre, de nada nos serve que nos digam que
é um ato que realizamos livremente. Os outros dois exemplos têm o mesmo defeito,
acabando, portanto, por ser todos exemplos de definições inadequadas e,
consequentemente, insatisfatórias.

Outra regra é a seguinte: uma definição explícita é errada se a expressão


definidora for mais obscura (de difícil compreensão, demasiado vaga) do que aquilo
que se pretende definir.
59
As definições que se seguem constituem exemplos deste género de erros:

Um ato livre é uma manifestação imediata da transcendência.


O conhecimento é a fusão última entre sujeito e objeto.
As divindades são os fantasmas do inconsciente humano.

Pegando no primeiro exemplo, se já por si não é muito claro o que é um “ato


livre”, é ainda menos claro o que é “uma manifestação imediata da transcendência”. Por
isso, a definição não elucida (não explicita, não esclarece, não clarifica) o significado
daquilo que queremos definir, pelo que todas as definições apresentadas, são
insatisfatórias, ou seja, estão erradas.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. O que são conceitos?

2. O que são termos?

3. O que são definições?

4. O que é necessário para definir explicitamente algo de forma correta?

5. Quando (em que casos) é que temos definições explícitas erradas?

5.1 Apresente um exemplo de uma definição explícita errada.

60
ARGUMENTOS

Os filósofos não se limitam a apresentar teses em resposta aos problemas


colocados. Propõem também argumentos para defender as teses em que acreditam,
consistindo uma das partes mais importantes do estudo da Filosofia na compreensão, na
discussão e na avaliação desses argumentos.
Os argumentos são a manifestação verbal dos raciocínios e resultam de um
encadeamento (ligação, articulação) de proposições.

PREMISSAS E CONCLUSÃO

Argumentar a favor de uma tese é apresentar razões para as aceitarmos.

Eis um exemplo muito simples de um argumento:

Os animais têm direitos porque são capazes de sofrer, e um ser tem direitos se
tiver essa capacidade.

A tese defendida é a de que os animais têm direitos. Para justificar ou sustentar


esta tese, apresentam-se duas razões: a primeira é a de que os animais têm a
capacidade de sofrer e a segunda é a de que se um ser tem a capacidade de sofrer,
então tem direitos. O raciocínio que está por detrás deste argumento é correto, visto
não apresentar contradições em termos lógicos.
Ainda assim, podemos apresentar este mesmo argumento de uma forma mais
“arrumada” (mais bem ordenada):

Se um ser tem a capacidade de sofrer, então tem direitos.


Os animais têm a capacidade de sofrer.
Logo, os animais têm direitos.

Como vemos, este argumento é composto por três proposições (afirmações),


sendo a terceira e última proposição, na qual reside a tese, a conclusão (ou
consequente) do argumento e as duas primeiras proposições, nas quais residem as
razões que visam justificar ou sustentar a tese, as premissas (ou antecedentes) do
argumento. A ordem pela qual se apresenta as premissas de um argumento é
irrelevante. A proposição que constitui a conclusão surge no fim, precedida pelo termo
“Logo” ou pelo símbolo “⛬”.

Um argumento é, então, um conjunto de proposições em que uma delas (a


conclusão ou consequente) é a tese defendida a partir das restantes (proposições)
que a precedem (as premissas ou antecedentes).

61
Um argumento tanto pode ter uma premissa como várias premissas. No
entanto, nunca pode ter mais do que uma conclusão (a conclusão de um argumento
é sempre apenas uma).
Podemos também designar os argumentos por “raciocínios” ou por “inferências”,
pois, inferir, como aliás já foi afirmado, é um processo lógico de extração (deriva) de
uma conclusão a partir da relação entre certas premissas e raciocinar é partir de
certas premissas para chegar a uma determinada conclusão.

AVALIAR ARGUMENTOS

Nem todos os argumentos são bons. Se nos propõem um argumento a favor de


uma tese, é preciso examiná-lo criticamente.
Quando avaliamos um argumento, temos de colocar questões muito diferentes:

1. Será que todas as premissas são verdadeiras?


2. Será que as premissas apoiam suficientemente a conclusão?

Se respondermos NÃO a pelo menos uma destas questões, teremos de concluir


que o argumento avaliado não é bom.

Consideremos agora alguns argumentos muito simples que não são bons:

Todas as aves voam.


Os pombos são aves.
⛬ Os pombos voam.

Todos os seres vivos são animais.


As árvores são seres vivos.
⛬ As árvores são animais.

Nestes argumentos, as premissas apoiam suficientemente a conclusão, já que


em cada um deles, se as premissas fossem todas verdadeiras, a conclusão também
seria verdadeira. Contudo, a primeira premissa de cada um destes argumentos é
falsa, e por isso, nenhum deles é um bom argumento.

Consideremos agora outro par de argumentos:

Todos os mamíferos são animais.


As aves não são mamíferos.
⛬ Os gatos não são plantas.

62
Todas as árvores são plantas.
Todas as plantas são seres vivos.
⛬ Todos os seres vivos são árvores.

Todas as premissas destes argumentos são verdadeiras. Porém, nenhum


deles é bom, pois as premissas não apoiam suficientemente a conclusão. No
primeiro caso (Todos os mamíferos são animais. As aves não são mamíferos. ⛬ Os
gatos não são plantas.) isso é evidente, pois, as premissas estão completamente
“desligadas” da conclusão, uma vez que nada dizem sobre gatos ou plantas.
No segundo caso (Todas as árvores são plantas. Todas as plantas são seres
vivos. ⛬ Todos os seres vivos são árvores.) o problema é menos evidente, mas só até
percebermos que a conclusão que se poderia extrair seria a de que todas as árvores
são seres vivos, o que é muito diferente de afirmar que todos os seres vivos são
árvores.
Obviamente, um argumento pode ter ambos os defeitos: pode ter premissas
falsas e ter premissas que não apoiam suficientemente a conclusão.

VALIDADE, FORÇA E SOLIDEZ DOS ARGUMENTOS

Dedução e indução

Num bom argumento, as premissas apoiam suficientemente a conclusão. Há


duas formas através das quais isso pode acontecer: através da dedução (argumentos
dedutivamente válidos) e através da indução (argumentos indutivamente fortes).

Num argumento dedutivamente válido, é impossível que as premissas sejam


verdadeiras e a conclusão seja falsa.

Num argumento indutivamente forte, é muito improvável, mas não


impossível, que as premissas sejam verdadeiras e a conclusão seja falsa.

Consideremos dois exemplos de argumentos dedutivamente válidos:

1. Se temos livre-arbítrio, somos responsáveis pelo que fazemos.


Temos livre-arbítrio.
⛬ Somos responsáveis pelo que fazemos.

2. Todas as ações são acontecimentos.


Todos os acontecimentos são causados.
⛬ Todas as ações são causadas.

63
Estes argumentos são válidos porque neles a conclusão resulta
necessariamente das premissas, sendo, portanto, uma sequência lógica destas. Por
outras palavras, se as premissas forem verdadeiras, então é absolutamente
garantido que a conclusão também é verdadeira.
Um argumento válido pode ter premissas falsas e/ou conclusão falsa. Aquilo
que não pode ter é premissas verdadeiras e conclusão falsa.
Quando estamos perante um argumento válido e aceitamos as suas premissas,
não podemos rejeitar a sua conclusão. Por exemplo, se aceitarmos que todas as
ações são acontecimentos e que todos os acontecimentos são causados, então temos
de aceitar a conclusão de que todas as ações são causadas. Se rejeitássemos esta
conclusão estaríamos a ser inconsistentes (incoerentes) e, por conseguinte, a cometer
um erro de lógica.
Num argumento dedutivamente válido existe uma relação (necessária) de
implicação entre as premissas e a conclusão. As premissas implicam a conclusão.
Esta é a forma mais segura de as premissas apoiarem a conclusão, uma vez que se as
premissas forem verdadeiras, não existe qualquer hipótese desta última (a
conclusão) ser falsa.

Consideremos agora um exemplo de um argumento indutivamente forte:

Os cães têm coração e têm rins.


Os leões têm coração e têm rins.
Os cangurus têm coração e têm rins.
Os pombos têm coração e têm rins.
(Etc.)
⛬ Todos os animais que têm coração também têm rins.

Estes argumentos não são indutivamente válidos, uma vez que é possível que
as suas premissas sejam verdadeiras e que, ainda assim, tenham uma conclusão
falsa. Mesmo que todos os animais com coração observados até hoje tenham rins, isso
não exclui a possibilidade de existirem alguns animais com coração mas sem rins.
Porém, se as premissas destes argumentos forem verdadeiras, é muito
improvável que as respetivas conclusões sejam falsas. É por isso que estes
argumentos são indutivamente fortes.

Quando estamos perante um argumento indutivamente forte e aceitamos as


suas premissas, podemos rejeitar a sua conclusão sem cairmos numa

64
inconsistência. Ainda assim, não é razoável rejeitar a conclusão de um argumento
indutivamente forte se aceitarmos as suas premissas (como verdadeiras), já que a
verdade das suas premissas torna muito improvável a falsidade da conclusão.

Num argumento indutivamente forte existe uma relação de confirmação


entre as premissas e a conclusão, uma vez que as premissas confirmam a
conclusão num grau muito elevado. É por isso que podemos afirmar que as
premissas apoiam suficientemente a conclusão.

FORMA E CONTEÚDO

Comparemos, agora, um dos argumentos dedutivamente válidos atrás


apresentados, com um novo argumento:

1. Se temos livre-arbítrio, somos responsáveis pelo que fazemos.


Temos livre-arbítrio.
⛬ Somos responsáveis pelo que fazemos.

2. Se João bebeu, teve um acidente.


João bebeu.
⛬ João teve um acidente.

No que respeita ao conteúdo, estes argumentos em nada se assemelham, pois


as proposições que os constituem são acerca de assuntos diferentes. Mas eles têm
exatamente a mesma forma lógica, que é a seguinte:

Se P, então Q.
P.
⛬ Q.

No argumento 1 no lugar de “P” encontramos a frase “Temos livre-arbítrio” e no


argumento 2 encontramos no lugar de “P” a frase “João bebeu”. No argumento 1 no
lugar de “Q” encontramos a frase “Somos responsáveis pelo que fazemos” e no
argumento 2 no lugar de “Q” encontramos a frase “João teve um acidente”.

Façamos agora o mesmo género de comparação com o outro argumento válido


atrás apresentado:

3. Todas as ações são acontecimentos.


Todos os acontecimentos são causados.
⛬ Todas as ações são causadas.

4. Todos os alentejanos são portugueses.


65
Todos os portugueses são europeus.
⛬ Todos os alentejanos são europeus.

Uma vez mais, estamos perante argumentos que diferem totalmente no


conteúdo, mas que têm a mesma forma lógica. Essa forma é a seguinte:

Todos os A são B.
Todos os B são C.
⛬ Todos os A são C.

Obteremos os argumentos 3 e 4 se substituirmos “A”, “B” e “C” pelos termos


apropriados.

Então, à pergunta: por que razão é importante distinguir o conteúdo dos


argumentos da sua forma lógica?
Devemos responder: porque a validade depende da forma lógica. Ou seja,
para determinar se um argumento é dedutivamente válido, podemos ignorar o seu
conteúdo e examinar apenas a sua forma. De referir que apesar de todos os
argumentos atrás apresentados terem uma forma válida, outros há que têm formas
inválidas.

Convém referir também que a lógica formal, tal como já foi abundantemente
explicado nas aulas de Filosofia (inclusive através de “esquemas” no quadro feitos pelo
professor), serve para distinguirmos a argumentação dedutivamente válida da
inválida, consistindo no estudo da forma lógica dos argumentos. Assim, tanto a
lógica aristotélica como a lógica proposicional, que iremos abordar a seguir, são teorias
da lógica formal. Graças a estas (teorias da lógica formal), como também já foi referido,
podemos evitar muitos raciocínios/argumentos enganadores que podem parecer válidos,
mas não o são, nomeadamente os falaciosos (falácias formais).

Uma falácia (formal) é um argumento enganador já que se trata de um


argumento inválido que pode parecer-nos válido. Daí também podermos dizer que
se trata de um falso argumento. Quando cometemos uma falácia (formal), julgamos
estar a raciocinar corretamente quando, na verdade, estamos a incorrer num erro de
raciocínio. As falácias formais são, pois, aquelas que resultam de uma confusão
entre formas dedutivamente inválidas e formas dedutivamente válidas.

VALIDADE, VERDADE E SOLIDEZ


66
Como vimos já também, a lógica (formal) opera (trabalha) com formas de
pensamento que, independentemente de terem ou não qualquer adequação ou
correspondência à verdade (dos factos – lógica material ou informal), se preocupa
apenas com o sentido e a coerência interna (formal) dos raciocínios/argumentos
produzidos. Ora, a esse sentido e coerência interna (formal) dos
raciocínios/argumentos damos o nome de validade.
Mas, o que vem a ser a validade de um raciocínio/argumento?
Considera-se a validade de um raciocínio/argumento a forma como as
premissas (ou antecedentes, que são como pressupostos ou pontos de partida de um
raciocínio/argumento) e a conclusão (ou consequente, que é o que se retira como
consequência ou inferência dos tais pressupostos ou pontos de partida) estão
encadeadas (ligadas, articuladas ou relacionadas), independentemente de estarem ou
não de acordo com a verdade (material, concreta, factual) a que aquele
(raciocínio/argumento) se refere (conteúdo).
Vejamos, como exemplo, o seguinte raciocínio/argumento ou silogismo (forma
de raciocínio/argumento lógico, introduzido por Aristóteles), em que de duas premissas
(antecedentes) se infere, tira ou extrai uma conclusão (consequente):
(Premissa maior) Todos os homens são imortais.
(Premissa menor) Sócrates é homem.
(Consequente) Logo, Sócrates é imortal.
Como podemos constatar, trata-se de um raciocínio/argumento que mesmo não
correspondendo à realidade/verdade (já que, na realidade/verdade, os homens não são
imortais), não deixa de ser, sob o ponto de vista da lógica formal, válido, visto que não
deixa de respeitar as regras que presidem à boa e correta construção ou encadeamento
(lógico) dos raciocínios/argumentos.
A validade refere-se, pois, à forma ou ao modo lógico (correto, coerente) de
articulação existente entre os elementos estruturais de um raciocínio/argumento e
nada mais.
Já a verdade de um raciocínio/argumento implica a referência à
verdade/realidade, ou seja, exige a existência de uma correspondência ou de um
acordo entre o conteúdo de um raciocínio/argumento (mais concretamente, as
proposições que o constituem ou dele fazem parte) se apresenta e a
verdade/realidade (material, concreta, factual) a que aquele se refere.

67
Assim, e no seguimento do exemplo anteriormente dado para explicar a validade
de um raciocínio/argumento, se quiséssemos que o dito raciocínio/argumento, para além
da validade que já possui, gozasse de verdade, ou seja, fosse verdadeiro sob o ponto
de vista da lógica material ou informal (verdade dos factos), bastaria que, muito
simplesmente, se apresentasse deste modo ou forma:

Todos os homens são mortais.


Sócrates é homem.
Logo, Sócrates é mortal.

Como vemos, existe aqui uma correspondência entre o modo como o


raciocínio/argumento se apresenta e o modo como as coisas são.
Em síntese, a validade de um raciocínio/argumento situa-se ao nível da forma,
ou seja, da sua estrutura interna – ou seja, é o acordo do pensamento consigo
mesmo. A verdade (ou falsidade) situa-se ao nível do conteúdo, da matéria
concreta/realidade a que um raciocínio/argumento (mais concretamente, as proposições
que o constituem ou dele fazem parte) procura corresponder ou adequar-se – ou seja, é
o acordo do pensamento com a realidade.
É importante perceber que a validade e a invalidade são propriedades dos
argumentos e não das proposições que o constituem. Um argumento pode ser válido
ou inválido, mas não faz sentido dizer que um argumento tem premissas válidas
ou que tem uma conclusão inválida. Só um argumento no seu TODO é que pode
ser válido ou inválido (correto ou incorreto sob o ponto de vista lógico).
É igualmente importante compreender que, em rigor, a verdade e a falsidade
são propriedades apenas das proposições e não dos argumentos, isto é, só as
premissas (proposições) de um argumento é que podem ser consideradas
verdadeiras ou falsas. Por isso faz todo o sentido afirmar que um argumento tem
premissas verdadeiras (ou falsas) e/ou que tem conclusão verdadeira (ou falsa),
mas é absurdo dizer que um argumento/raciocínio é verdadeiro ou que é falso, já
que estes são apenas válidos ou inválidos (corretos ou incorretos em termos formais,
em termos lógicos) – não existem, pois, argumentos que sejam verdadeiros ou
falsos mas apenas argumentos que sejam válidos ou inválidos.

Para concluir esta apresentação das noções elementares de lógica, falta


apenas introduzir o conceito de solidez:

Um argumento sólido é aquele que, simultaneamente, é válido e tem só


premissas verdadeiras, o que equivale a dizer que se um argumento é inválido ou
68
tem uma premissa falsa, então não é sólido – como vemos, a validade acaba por
estar relacionada com a verdade.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. O que são argumentos?

2. O que é inferir?

3. Distinga argumentos dedutivamente válidos de argumentos


indutivamente fortes. Dê um exemplo para cada um deles.

4. Distinga forma de conteúdo.

5. Por que razão é importante distinguir o conteúdo dos argumentos da sua


forma lógica?

6. Para que serve a lógica formal?

7. O que são falácias?

8. Distinga validade de verdade.

69
O CONCEITO E O TERMO

Embora não seja fácil definir “filosofia” de uma forma que seja consensual,
podemos caracterizar a filosofia como uma atividade conceptual e argumentativa.
Mas o que é que isto quer dizer? Quer dizer que a filosofia é uma atividade conceptual
porque se faz com conceitos (ideias, noções ou representações mentais) e com
definições desses mesmos conceitos, sendo, portanto, em parte, uma reflexão sobre
conceitos.
Os filósofos interrogam-se sobre conceitos, tentam analisá-los e procuram
clarificá-los. Interessam-se por conceitos importantes e muito gerais, como os de
conhecimento, verdade, bem, causa, liberdade, justiça, felicidade, arte, religião,
morte, etc.

CONCEITO – é o elemento mais simples, mais básico do pensamento e consiste


apenas na ideia, noção ou representação mental ou intelectual da essência de um
objeto (concreto ou abstrato), mas sem nada afirmar ou negar a seu respeito, isto é, sem
fazer dele qualquer juízo.
O intelecto humano tem, pois, esta capacidade espantosa de abstrair (separar,
isolar, destacar, retirar) aquilo que há de essencial (aquilo que é determinante,
indispensável, decisivo, para que uma coisa seja o que é), de permanente, de imutável e
de comum em todos os objetos (ordenando-os por classes), em detrimento ou desfavor
daquilo que neles há de acidental (aquilo que, embora faça parte de uma coisa, não é
determinante – não é indispensável, não é decisivo, não é essencial – para que uma
coisa seja o que é).
Assim, para formar conceitos, o intelecto, por meio de um esforço de abstração
(separação, isolamento, destacamento) retira dos objetos ou coisas as suas
propriedades essenciais, definidoras (primárias), pondo de lado aquelas que lhes são
acidentais, acessórias (secundárias), e, por meio de um esforço de generalização
passa a fazer corresponder a cada conceito formado todos aqueles objetos que,
precisamente pela via generalista ou universalista do conceito, pertencem a uma mesma
classe (e que o próprio conceito, de modo geral e universal, representa) – por exemplo,
o conceito de árvore, ao referir-se a todas as árvores e não apenas a uma ou a alguma
em particular, reveste-se de um carácter geral ou universal.
Mas, os conceitos não se referem só a objetos ou a coisas materiais, concretas,
como, por exemplo, o conceito de árvore, de mesa, de casa, etc., pois, para além
70
destes, há conceitos ideais, puros, abstratos, como, por exemplo, o de justiça, felicidade,
amor, etc.

TERMO – é a expressão verbal, externa, material do conceito. É através dos


termos que se manifestam os conceitos.
O termo é como que o conceito ou a ideia materializada e concretizada, visto que
só damos existência objetiva a um conceito ou a uma ideia depois de
encontrarmos o termo que a pode exprimir.
Em última análise, o termo é a proposição do conceito, a sua manifestação, a
sua face visível e pode ser formado por uma ou mais palavras, sendo, por isso, a marca
exterior daquilo que temos em mente.

RELAÇÃO ENTRE O CONCEITO E O TERMO – tal como perguntámos já se


poderíamos conceber o pensamento e a linguagem como dois processos separados,
chegando à conclusão de que tal não é possível, porque são inseparáveis, também
poderemos perguntar, agora, se será possível conceber o conceito e o termo como dois
elementos ou instrumentos lógicos desligados um do outro.
O conceito e o termo estão de tal modo ligados que se torna difícil delimitar com
precisão o lugar e a função de cada um; a sua relação é, precisamente, aquela relação
que envolve o pensamento e a linguagem, ou seja, os conceitos precisam dos termos
para se materializarem, para se expressarem, para se comunicarem, e os termos só têm
razão de ser uma vez que são a expressão material/verbal dos conceitos. A relação
entre estes dois instrumentos lógicos é, portanto, uma correlação, uma relação vital,
ou seja, um e outro só são o que são na medida em que se relacionam e servem
mutuamente (convêm-se um ao outro).
Os conceitos, representações mentais, ideias ou noções das coisas (materiais ou
abstratas), para poderem ser pensados e para se exprimirem necessitam dos termos, na
medida em que são estes que lhes servem de marca exterior, que lhes conferem a sua
face visível ou que os traduzem, ou seja, sem os termos, os conceitos não passariam
de imagens pontuais, dispersas, desligadas, irrefletidas e sem significante
(estariam apenas registadas fotograficamente na nossa memória). É que, sem um
termo que o traduzisse, o conceito nada seria ou, quando muito, limitar-se-ia a um
“pensamento mudo”.
Por seu turno, o termo sem conceito também nada seria, já que só existe
enquanto manifestação verbal deste. Se não tivesse algo a que se referir (um
significado que ele próprio significa), o termo não teria razão de existir.
71
Em jeito de conclusão, se os conceitos e os termos são instrumentos básicos
do pensamento, então, sem aqueles (conceitos e termos) este (pensamento) não
poderia existir, porque o pensamento é sempre pensamento de ou sobre alguma
coisa.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Defina Conceito e defina Termo.

2. Caracterize a relação entre o Conceito e o Termo.

3. Explicite a relação existente entre Linguagem e Pensamento.

72
O JUÍZO E A PROPOSIÇÃO

Pensar implica estabelecer relações entre conceitos.


O juízo é uma operação mental que consiste em afirmar ou negar um
conceito de outro, ou seja, é o ato de pensamento pelo qual o espírito humano afirma
ou nega uma relação de conveniência entre duas ideias ou conceitos.
Afirmar: “a caneta é azul” é julgar. O juízo é esta forma lógica, expressa
verbalmente numa proposição, que permite relacionar entre si os conceitos. É certo que
para a formação dos juízos são necessárias as ideias ou os conceitos, mas estes, por si
sós, não bastam; é preciso relacioná-los e não simplesmente justapô-los ou amontoá-los
(assim como pedras, madeira, cimento, ferro, etc., não nos dão um edifício, mas apenas
um montão de materiais, também um conjunto de conceitos ou ideias desligadas,
desconexas ou dispersas não nos dão juízos); daí que os conceitos em si mesmos,
isoladamente, fora da sua relação com os outros conceitos (e com as coisas que
representam) nada valem… Se se disser, por exemplo, “mesa”, “amarela”, “bonita”, não
se está a emitir nenhum juízo mas apenas a enunciar três conceitos que, da forma
desligada como se dispõem, não afirmam nem negam absolutamente nada de nada
(uma vez que entre eles não foi estabelecida nenhuma relação de conveniência), mas se
eu disser: “Esta mesa amarela é bonita”, já estou a produzir um juízo (neste caso, um
juízo de gosto, de opinião ou de valor).
Assim, se analisarmos a estrutura do juízo encontramos nele três elementos
constituintes:

 o sujeito – aquilo acerca do qual se afirma ou nega algo;


 o predicado – a qualidade, característica ou atributo que se afirma pertencer
ou não ao sujeito (que recai sobre o sujeito);
 a cópula (verbal) – o elemento de ligação entre o sujeito e o predicado que,
habitualmente, é representado pelo verbo ser. Esta cópula reveste o aspeto de
afirmação ou negação, consoante o verbo afirma ou nega alguma coisa de alguma
coisa e, como tal, constitui o elemento estruturante que dá forma ao juízo; sem ela
(cópula verbal) não formularíamos juízos e apenas teríamos termos.
Por exemplo, no juízo: “O João é bom aluno” encontramos no termo João o
sujeito; no termo é a cópula verbal; e no termo bom aluno o predicado.
Para além destes três elementos, os juízos, muitas vezes, integram uma partícula
que antecede o sujeito e o quantifica, isto é, indica se o predicado é atribuído a um só
73
sujeito, se a todos os membros da classe de um sujeito, se somente a uma parte
(alguns) deles ou se a nenhum deles.
Por exemplo, no juízo: “Alguns filósofos são ateus”, o termo ou partícula
“Alguns” recebe o nome de quantificador (que serve para indicar, como já foi dito, se o
predicado é atribuído a todos os membros da classe do sujeito, se somente a uma parte
deles ou se não é atribuído a qualquer deles). Ora, neste juízo, ao incluir-se alguns
membros da classe dos filósofos na classe dos ateus, está-se, ao mesmo tempo, a
afirmar que há outros membros daquela classe que não se incluem nesta (se é dito que
“Alguns filósofos são ateus”, implicitamente, também é dito que outros não são e que,
portanto, nem todos são).
Assim, como termos ou partículas quantificadoras podemos enunciar: Todos,
Alguns, Nenhum.
A proposição é, como já sabemos, a expressão verbal do juízo, a sua
manifestação ou face visível. Qualquer proposição é um enunciado que tem um valor
de verdade, isto é, ou é verdadeira ou é falsa, na medida em que descreve factos,
estados de coisas ou relações entre coisas.
As proposições devem distinguir-se das ordens, dos conselhos, das perguntas e
das exclamações uma vez que estas não possuem um valor de verdade. As ordens
indicam uma conduta que deve ser realizada, os conselhos sugerem comportamentos
que são desejáveis, as perguntas são (algumas delas) pedidos de informação, as
exclamações exprimem sentimentos e/ou emoções – em nenhum destes casos faz
sentido falar de proposições.
Devemos, no entanto, estar atentos ao facto de que há muitas perguntas, ordens,
conselhos e até mesmo exclamações que visam, ainda que de modo indireto (a ironia,
por exemplo), sugerir proposições ou juízos, isto é, atos judicativos (que julgam, que
ajuízam, que estabelecem relações de conveniência entre uns conceitos e outros,
formando, assim, juízos). Embora, como se vê, juízo e proposição não sejam
absolutamente idênticos, passaremos a falar deles sem qualquer distinção, ou seja,
como quem fala de uma só noção.

ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Defina Juízo e Proposição.

2. Enuncie as partículas quantificadoras (expressas no texto) que podem ser


usadas na construção e emissão de juízos.
74
O RACIOCÍNIO E O ARGUMENTO
O raciocínio consiste na combinação ou articulação de dois ou mais juízos
para daí se extrair/tirar/concluir um novo juízo; por exemplo:
Todos os homens são mortais;
Sócrates é homem;
(Logo) Sócrates é mortal.
O argumento é a expressão verbal do raciocínio, ou seja, os raciocínios
expressam-se ou manifestam-se sob a forma de argumentos.
De um conjunto bem articulado de juízos/proposições conseguimos
formar/construir raciocínios/argumentos com um sentido ou nexo – a este tipo de
raciocínios/argumentos chamamos válidos.
A validade de um raciocínio/argumento reside precisamente na forma como os
antecedentes ou premissas (que são como pressupostos ou pontos de partida de um
raciocínio/argumento) e a conclusão (que é o que se retira como consequência ou
inferência dos tais pressupostos ou pontos de partida) estão encadeadas (ligadas ou
relacionadas), independentemente de estarem ou não de acordo com a realidade
material, concreta e factual a que, eventualmente, aquele (raciocínio/argumento) possa
referir-se (conteúdo empírico).
Vejamos, pegando no exemplo acima dado, o seguinte raciocínio/argumento ou
silogismo (forma de raciocínio/argumento lógico, introduzido por Aristóteles, em que de
dois antecedentes ou premissas se tira um consequente ou conclusão):
(Premissa maior) Todos os homens são imortais.
(Premissa menor) Sócrates é homem.
(Consequente ou conclusão) (Logo) Sócrates é imortal.
Como podemos constatar, trata-se de um raciocínio/argumento que mesmo não
correspondendo à realidade (já que, na verdade, os homens não são imortais), não
deixa de ser, sob o ponto de vista da Lógica Formal, Válido, isto é, não deixa de
respeitar as regras que presidem à boa e correta construção ou encadeamento (lógico)
dos raciocínios/argumentos, já que a validade se refere apenas à forma ou ao modo
correto de articulação existente entre os elementos estruturais de um
raciocínio/argumento.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÃO:

1. Defina Raciocínio e Argumento.


75
FILOSOFIA, ARGUMENTAÇÃO E LÓGICA

Raciocinar (pensar) e argumentar (discursar) são atividades que estão


intimamente ligadas e que obedecem a regras lógicas elementares (necessárias), sem
as quais não seria possível produzirmos conceitos e termos, juízos e proposições,
raciocínios e argumentos.
Como sabemos, com a linguagem, ou através dela, realizamos diferentes tipos
de atos; por exemplo, exprimimos emoções e sentimentos, damos ordens ou conselhos,
fazemos perguntas, influenciamos a conduta dos outros, organizamos e comunicamos
os nossos conhecimentos, justificamos as nossas posições, argumentamos,
informamos, etc., mas, tudo isso, só produzirá os efeitos desejados se for desenvolvido
com lógica para que o seu sentido seja sempre assegurado.
A experiência ou prática da argumentação desenvolve-se praticamente todos os
dias, a propósito das mais variadas matérias ou assuntos, e nos mais variados meios:
lemos argumentos nos livros, nos jornais, nas revistas, ouvimo-los na televisão e na
rádio e utilizamo-los quer nas nossas conversas mais banais quer nos momentos mais
importantes da nossa vida...
Então, poderemos perguntar:
O que é a Lógica e qual a vantagem ou quais as vantagens que poderemos
retirar do estudo da mesma?
A lógica estabelece as normas ou regras que devemos seguir para
raciocinar e argumentar de forma correta e o seu estudo fornece-nos os
instrumentos para construirmos argumentos válidos (consistentes, coerentes, sem
contradições) e, entre outros benefícios, contribui para:
- o aumento da confiança em nós mesmos, quando procuramos convencer os
outros (argumentação);
- permite-nos criticar ou atacar os argumentos dos outros (contra-
argumentação);
- ajuda-nos a perceber melhor as razões que os outros apresentam quando
de nós discordam (compreensão dos argumentos dos outros);
- desperta a nossa atenção para os raciocínios mal construídos e
incoerentes (com contradições).
Mas, há uma outra questão que persiste:

76
Por que será que esse estudo (da lógica) ocorre na disciplina de Filosofia e
não noutras (como, por exemplo, na disciplina de Português, aparentemente mais virada
para a expressão de ideias e de argumentos, ou na de Matemática, com a qual o
raciocínio lógico parece ter aproximações bem mais evidentes)?
Uma das razões é de carácter histórico: a lógica está ligada à filosofia desde a
sua origem. Aristóteles, filósofo grego do séc. IV a. C., é, geralmente, considerado o
fundador da lógica, embora antes dele outros filósofos já investigassem o que distingue
os argumentos bons dos maus, como, por exemplo, Sócrates e Platão.
Mesmo nos nossos dias, em que a lógica é cada vez mais uma ciência
autónoma, há ainda muitos filósofos cujo trabalho, de uma maneira ou de outra, a ela
está diretamente ligado.
Mas esta ligação tradicional entre a Lógica e a Filosofia não é razão suficiente
para que se estude Lógica na disciplina de Filosofia. Há uma razão muito mais
importante: aquela que se prende com o papel ou função que a argumentação tem na
atividade filosófica.
Como já sabemos, a Filosofia trata de problemas que, pela sua própria natureza,
mais teórica e especulativa, não podem ser resolvidos com o recurso a estratégias e
instrumentos de carácter prático. Se, por exemplo, o nosso automóvel se “recusa a
pegar”, nós podemos construir a teoria simples de que a razão/origem disso está na falta
de bateria e para testar essa teoria basta substituir a bateria que julgamos estar sem
carga por uma que esteja em condições ou, então, recorrer a uma oficina onde, com os
instrumentos apropriados, seja possível verificar se a nossa teoria está ou não correta.
Mas com os problemas filosóficos as coisas não são assim…
Na discussão dos problemas e das teorias filosóficas, a argumentação tem um
papel de grande relevo. Os problemas filosóficos são problemas conceptuais, teóricos,
especulativos, e, por esse motivo, os filósofos não podem, como os cientistas, recorrer à
experiência para testar e provar as suas ideias. Então, a única saída que têm à sua
disposição é a argumentação, uma vez que a Filosofia assenta essencialmente no
pensamento/reflexão e no discurso acerca desse mesmo pensamento/reflexão.
Nas mais diferentes áreas a Lógica permite clarificar as ideias e avaliar a
qualidade dos argumentos, assumindo uma função de auxiliar de trabalho mais ou
menos importante (por exemplo, no discurso político ou no discurso publicitário), mas, em
Filosofia, a Lógica é praticamente tudo com que os filósofos podem contar para
progredir nas suas investigações, porque a Filosofia é constituída por problemas,

77
teorias e argumentos onde a Lógica tem um importante papel, uma vez que em todos
estes domínios são utilizados argumentos e há ideias a clarificar.
Para além de se preocuparem com o rigor da linguagem e a clarificação de
ideias (definição de conceitos), os filósofos usam argumentos para defender as suas
ideias/perspetivas e para atacar os argumentos de outros filósofos. Para isso, quer a
compreensão quer a análise rigorosa das ideias quer a apresentação de bons
argumentos é, logicamente, fundamental.
Há pessoas que pensam que a Lógica impõe, através das suas regras, limites
demasiado estreitos e rígidos ao pensamento e que a Filosofia, para ser criativa, deve
libertar-se das amarras da Lógica. Mas isso é um erro profundo.
A Lógica não coloca limites à criatividade.
A Lógica apenas coloca limites ao pensamento e ao discurso que se
apresentam cheios de contradições e que, precisamente por isso, são incoerentes,
sem nexo, resultando, muitas vezes, no absurdo.
É certo que se não estudarmos lógica isso não quer dizer que já não sejamos
capazes de raciocinar corretamente, no entanto, como a lógica permite distinguir os
bons dos maus argumentos e detetar mais facilmente os erros que as pessoas
cometem ao argumentar, tornar-nos-á mais capazes para construirmos bons
argumentos e de raciocinarmos mais corretamente.
Em Filosofia, como em qualquer outra atividade intelectual séria, o pensamento
deve ser rigoroso e disciplinado. Ora, precisamente, a Lógica disciplina o
pensamento, tornando-o, ao mesmo tempo, mais forte (sem falhas) e mais criativo
(arrojado) na medida em que possibilita uma progressão efetiva das reais faculdades
ou capacidades argumentativas.
Em resumo, a Lógica deve ser estudada porque permite avaliar a qualidade
dos argumentos e clarificar aquilo que dizemos.

Juiz para o ladrão:


– Como é que pode declarar-se inocente quando
foi visto a roubar por quatro pessoas?
Ladrão:
– Oh, senhor Doutor Juiz! Posso arranjar
milhares de pessoas que não viram…

D. K. Saxena, India

78
PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. De que é que se ocupa, em concreto, a lógica?

2. Qual a vantagem ou quais as vantagens decorrentes do estudo da lógica,


segundo o texto? Justifique.

3. Explicite a ligação existente entre a Lógica e a Filosofia.

OS PRINCÍPIOS LÓGICOS
79
(CONDIÇÕES DE VALIDADE DO PENSAMENTO E DO DISCURSO)

Aristóteles (384-322 a. C.) dedicou muita atenção ao método silogístico e ao


raciocínio dedutivo. Preocupou-se, pois, com o processo de encadeamento
(articulação lógica) das proposições de um modo tal que, da relação entre elas, se
pudesse extrair, por meio de um sistema dedutivo (partindo de casos gerais para chegar
a casos particulares), determinadas conclusões logicamente válidas. A este processo de
encadeamento lógico mediante o qual o pensamento, partindo de determinadas
premissas (antecedentes), chega a determinadas conclusões (consequentes) que
derivam logicamente das anteriores, chamou raciocínio silogístico ou, mais
simplesmente, silogismo.
Este sistema lógico assenta em três princípios básicos – o princípio da
identidade, o princípio da não-contradição e o princípio do terceiro excluído – a partir
dos quais se deduz a possibilidade de toda a demonstração; ou seja, sem estes
princípios fundamentais, nos quais assentam, de resto, todos os raciocínios, não haveria
pensamento possível.
Assim, temos:

1. O PRINCÍPIO DA IDENTIDADE:
Uma coisa é o que é. O que é é. O que não é não é. Uma coisa é igual a si
mesma.
Este princípio proíbe-nos de afirmar que uma coisa possa ser diferente de si
mesma. Por exemplo, a afirmação/juízo/proposição que se segue: “esta cadeira é um
banco”, é uma afirmação que, violando o princípio da identidade, deve ser considerada
incoerente, ou, no mínimo ambígua…
Formulado em termos lógicos, este princípio diz que, no decurso de um raciocínio
ou argumento, os seus termos não podem mudar de significação (identidade) nem
podem mudar o seu valor de verdade – é que uma coisa é, obviamente, equivalente a
si mesma.

2. O PRINCÍPIO DA NÃO-CONTRADIÇÃO:
Uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo e sob o mesmo aspeto.
Este princípio indica que uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo e
sob a mesma relação, aspeto ou perspetiva.
Em modos lógicos, se estamos a tratar um juízo/proposição como verdadeiro,
não podemos estar, ao mesmo tempo, a tratá-lo como falso; assim, um
80
juízo/proposição não pode ser verdadeiro e falso ao mesmo tempo e sob o mesmo
aspeto; um juízo/proposição e a sua negação não podem ser simultaneamente
verdadeiros; dois juízos/proposições contraditórios não podem ser
simultaneamente verdadeiros ou simultaneamente falsos.

3. O PRINCÍPIO DO TERCEIRO EXCLUÍDO:


Uma coisa é ou não é. Não há uma terceira possibilidade. Não há meio-
-termo (essa terceira possibilidade ou meio-termo fica excluída).
Este princípio, no seguimento do princípio enunciado anteriormente (princípio da
não-contradição), não admite mistura de ser e de não ser.
Por exemplo, se pensarmos no preto e no branco, talvez encontremos uma
terceira possibilidade: o cinzento; mas, o mesmo já não se passa com o ser e o não ser.
Este princípio diz, em última análise, que só há dois e apenas dois valores de
verdade: o verdadeiro e o falso – não há outro valor de verdade alternativo.
Desta forma, um juízo/proposição ou é verdadeiro ou é falso; não há outra
possibilidade. De dois juízos/proposições contraditórios, se um é verdadeiro, o outro é
falso, e, reciprocamente, se um é falso, o outro é verdadeiro; não há, também, outra
hipótese.

Em última análise, podemos inferir que estes três princípios lógicos estão,
necessariamente, associados, visto que a forma como o pensamento/raciocínio, de
um modo geral, se desenvolve, pressupõe, para que possa ser considerado válido, a
existência de uma conexão ou articulação lógica entre os mesmos.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Esclareça o conceito de raciocínio silogístico ou silogismo.

2. Apresente, de forma sintética, os três princípios lógicos do pensamento e


do discurso.

PROBLEMA LÓGICO

81
QUEM É MAIS ALTO?

Há problemas, desafios e dilemas que nós podemos resolver utilizando apenas


como via, meio ou instrumento o nosso pensamento (raciocínio lógico) sem
precisarmos de recorrer a mais nenhum outro processo de investigação para chegar a
uma resposta, resultado ou conclusão.
Os problemas lógicos são, portanto, problemas que põem à prova a nossa
inteligência ou a nossa capacidade de raciocínio.

Eis um desses problemas:

Daniel é mais alto que Pedro;


Pedro é mais alto que Joaquim;
Joaquim é mais baixo que Daniel;
José é mais alto que António;
António é mais alto que Daniel.

– Quem é mais alto?

RESPOSTA: _____________________

PROBLEMA LÓGICO
82
O CHAPÉU DOS PRISIONEIROS

É fácil reconhecer a verdade ou falsidade de muitas afirmações através do


testemunho direto dos nossos órgãos sensoriais (sentidos). Assim, pela perceção
sensível (dos sentidos) sabemos de modo quase imediato se são ou não verdadeiras
determinadas proposições como as que se seguem:

Hoje, na cidade do Marco de Canaveses, está um dia de sol radiante.

O professor de Filosofia traz sapatos pretos.

O quadro é branco.

Há casos, porém, em que a verdade ou a falsidade em relação a algo não é


conhecida de modo sensível e imediato, porque não é alcançada nem confirmada pelos
nossos sentidos, mas, antes, por processos discursivos internos (formais), ou seja, pelo
exercício ou atividade do nosso pensamento (raciocínio).
Ora, o problema que aqui é exposto pede ou aponta para uma solução que
passa, precisamente, por um processo ou atividade do pensamento/raciocínio que se vai
realizando de forma metódica/ordenada e logicamente encadeada/organizada e
constitui, por isso, um desafio à nossa capacidade de raciocínio lógico.

Problema:
Certo dia, numa prisão, um carcereiro (“guarda prisional”) louco propôs o seguinte
jogo aos seus três prisioneiros:
− Tenho aqui cinco chapéus: dois vermelhos e três brancos. Vou pôr-vos uma
venda nos olhos e, depois, entrego um chapéu a cada um de vós. A seguir retiro-vos
a venda e podereis ver o chapéu de cada um dos vossos companheiros, mas não
podereis ver os vossos próprios chapéus. Seguidamente, perguntarei, a um de cada
vez, qual a cor do seu próprio chapéu. Quem o souber será libertado, quem
responder erradamente será enforcado e quem reconhecer que não sabe
continuará a cumprir a sua pena!
Assim fez…
O primeiro a ser inquirido reconheceu que não sabia a cor do seu chapéu.
O segundo, que tinha ouvido o primeiro, não soube também decidir-
-se quanto à cor do seu chapéu.

83
O carcereiro disse, então, dirigindo-se ao terceiro prisioneiro:
– Para que hei-de eu perguntar-te a ti, que és cego e que, portanto, não
viste a cor do chapéu dos teus companheiros, “qual a cor do teu chapéu?!”
– Por uma questão de justiça, dá-me a oportunidade que deste aos outros
– pediu o terceiro prisioneiro (cego).
– Está bem – disse o carcereiro – Qual é, então, a cor do teu chapéu?
– Os meus companheiros de cela não são loucos – respondeu o prisioneiro
cego – se eles não conseguiram deduzir a cor do seu chapéu é porque, e até um
cego como eu pode “ver” isso, o meu chapéu é...

PROPOSTA DE ATIVIDADE/DESAFIO:

1. Descubra a verdade que conclui esta história/problema, ou seja, descubra a


cor do chapéu do terceiro prisioneiro.

2. Descreva o caminho/processo que seguiu para chegar à conclusão a que


chegou.

RESOLUÇÃO DO PROBLEMA LÓGICO

84
O CHAPÉU DOS PRISIONEIROS

É claro que o chapéu é branco.


O prisioneiro cego poderia ter pensado assim: – Supondo que o meu chapéu é
vermelho, então só eram possíveis as três combinações seguintes:

Combinação nº 1:

1.º Prisioneiro – Branco; 2.º Prisioneiro – Vermelho; 3.º Prisioneiro – Vermelho.

A combinação nº 1 não se deu, pois se o carcereiro a tivesse escolhido, o


primeiro prisioneiro saberia logo que o seu chapéu era branco.

Combinação nº 2:

1.º Prisioneiro – Vermelho; 2.º Prisioneiro – Branco; 3.º Prisioneiro – Vermelho.

A combinação n.º 2 também não foi possível, pois o segundo prisioneiro


igualmente concluiria que o seu chapéu era branco.

Combinação nº 3:

1.º Prisioneiro – Branco; 2.º Prisioneiro – Branco; 3.º Prisioneiro – Vermelho.

É mais difícil de ver que a combinação n.º 3 também não ocorreu. Se o carcereiro
a tivesse escolhido, o segundo prisioneiro teria pensado assim: – O primeiro prisioneiro
viu um chapéu vermelho como eu estou a ver; ora, se eu tivesse um chapéu vermelho,
então o primeiro prisioneiro saberia que o seu chapéu era branco. Como não soube, o
meu chapéu tem que ser branco.
Pois bem, o segundo prisioneiro não soube a cor do seu chapéu, pelo que a
terceira combinação também não ocorreu.
A conclusão final é óbvia: o prisioneiro não podia ter um chapéu vermelho,
Logo, o seu chapéu só podia ser BRANCO!
COMBINAÇÃO CORRETA: 1.º Prisioneiro – Vermelho; 2.º Prisioneiro –
Vermelho; 3.º Prisioneiro – Branco (V V B).

A CLASSIFICAÇÃO DOS JUÍZOS/PROPOSIÇÕES

85
1. JUÍZOS OU PROPOSIÇÕES SEGUNDO A QUANTIDADE:
Universais, Particulares e Singulares

Classificar os juízos ou proposições segundo a quantidade é classificá-los


segundo a extensão em que é tomado o sujeito. Se a proposição englobar toda a
extensão do sujeito, uma parte indeterminada ou um ente (ser) singular, teremos,
respetivamente, proposições universais, particulares e singulares.

Juízos ou proposições universais – uma proposição universal é aquela na qual


o sujeito representa todos os membros de uma classe, ou seja, é aquela na qual o
sujeito é tomado em toda a sua extensão.
Proposições como: “Todos os homens são mortais”; “As galinhas não têm
dentes”; “Os triângulos são triláteros”; são universais porque se referem,
respetivamente, a todos os homens, a todas as galinhas e a todos os triângulos.
Na forma-padrão as proposições universais apresentam quantificadores
universais que são: “Todos” e “Nenhum”.
Das proposições indicadas falta indicar o quantificador das duas últimas: “As
galinhas não têm dentes” significa “Nenhuma galinha é possuidora de dentes”; “Os
triângulos são triláteros” significa “Todos os triângulos têm três lados”.

Juízos ou proposições particulares – uma proposição particular é aquela na


qual o sujeito representa uma parte não determinada dos membros de uma classe, ou
seja, é tomado em parte indeterminada da sua extensão.
Os juízos: “Alguns alunos são estudiosos”; “Há estudantes preocupados”;
“Pelo menos dois lápis são azuis” são juízos particulares, porque neles o sujeito só
designa, respetivamente, alguns alunos, alguns estudantes e alguns lápis.
A particularidade do juízo clarifica-se apresentando o juízo na forma-padrão:
quantificador (algum ou alguns) – sujeito – cópula – predicado.
Assim, de “Há estudantes preocupados” obtemos: “Alguns estudantes são
pessoas preocupadas”; e de “Pelo menos dois lápis são azuis” obtemos: “Alguns
lápis são azuis”.

Juízos ou proposições singulares – os juízos singulares são os que têm como


sujeito um ente concreto, determinado. Por exemplo: “Sócrates é mortal” ou “Esta caneta
é azul”.

2. JUÍZOS OU PROPOSIÇÕES SEGUNDO A QUALIDADE:


86
Afirmativos e Negativos

A qualidade de uma proposição é a propriedade que ela tem de ser afirmativa ou


negativa.

Uma proposição é negativa – quando a cópula (ligação) indica que o predicado


não convém ao sujeito. Por exemplo: “O homem não é um animal rastejante”.
Contudo, deve ter-se em conta que nem sempre a cópula verbal determina
expressamente que o juízo é negativo. É o caso da proposição “Nenhum homem é
réptil”. Esta proposição é negativa, embora a cópula possa criar a ilusão do contrário. É
conveniente, neste caso, “traduzir”: “Nenhum homem é réptil” por “Todos os homens não
são répteis” – devemos, pois, estar atentos a este tipo de “trocadilhos”.

Uma proposição é afirmativa – quando a cópula (ligação) indica que o


predicado convém ao sujeito. Por exemplo: “O homem é um animal bípede”.

3. OS QUATRO TIPOS DE PROPOSIÇÕES CATEGÓRICAS: Universal


Afirmativa; Universal Negativa; Particular Afirmativa; Particular Negativa

Nos juízos anteriormente considerados demos atenção primeiro à quantidade e


depois à qualidade para esclarecermos o que cada uma destas propriedades significava.
Mas, a verdade é que em toda e qualquer proposição categórica a quantidade e a
qualidade estão ligadas: não há juízo que não tenha, ao mesmo tempo, uma qualidade
e uma quantidade.
É o caso de, por exemplo: “Alguns mamíferos são carnívoros”.
Como se vê, combinando a quantidade e a qualidade, temos de dizer que esta
proposição é particular afirmativa.

Realizando as combinações possíveis entre a quantidade e a qualidade, os


lógicos medievais obtiveram quatro tipos de proposições, que simbolizaram com as
letras A, E, I e O.

A – Universal Afirmativa: “Todos os homens são mortais”.

E – Universal negativa: “Nenhum homem é mortal”.

I – Particular Afirmativa: “Alguns homens são mortais”.

O – Particular Negativa: “Alguns homens não são mortais”.


87
Foi um comentador de Aristóteles quem designou as proposições mediante as
vogais das palavras latinas “nego” e “afirmo”. O seu nome é Pedro Hispano, natural
de Lisboa, que, depois de ter sido arcebispo de Braga, se tornou Papa com o nome de
João XXI.
Da palavra “AFIRMO” destacou as vogais “A” e “I”, que passaram a simbolizar,
respetivamente, as proposições universais afirmativas e as particulares afirmativas.
Da palavra “NEGO” destacou as vogais “E” e “O” que passaram a simbolizar,
respetivamente, as proposições universais negativas e as particulares negativas.

SÍNTESE SOBRE A CLASSIFICAÇÃO DAS


PROPOSIÇÕES

Os juízos/proposições universais podem, quanto à qualidade, ser afirmativos


(“Todos... são...”) ou negativos (“Nenhum... é...”), o mesmo acontecendo com os juízos
88
particulares que podem, quanto à qualidade, ser afirmativos (“Alguns... são...”) ou
negativos (“Alguns... não são...”). Verificamos, assim, que, combinando quantidade e
qualidade, obtemos quatro espécies de juízos. Destas, a tradição deu uma
classificação abreviada com as vogais A, E, I e O, retiradas das palavras afirmo e nego.

Universais afirmativas – quando o predicado se refere a todos os membros da


classe representada pelo sujeito.
Por exemplo: “Todos os homens são inteligentes”.

Universais negativas – quando se nega um determinado predicado a todos os


membros da classe representada pelo sujeito.
Por exemplo: “Nenhum homem é inteligente”.

Particulares afirmativas – quando o predicado se atribui somente a uma parte


indeterminada dos membros da classe representada pelo sujeito.
Por exemplo: “Alguns homens são inteligentes ”.

Particulares negativas – quando se nega um determinado predicado a alguns


membros da classe representada pelo sujeito.
Por exemplo: “Alguns homens não são inteligentes”.

Símbolo Quantidade Qualidade

A Universal Afirmativa Todos... são...

E Universal Negativa Nenhum... é...

I Particular Afirmativa Alguns... são...

O Particular Negativa Alguns... não são...

Nota: os juízos singulares não estão presentes nesta classificação, porque, como já foi dito, eles
são tratados como se fossem juízos universais (exemplo: O Homem é racional).
PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Como se classificam os juízos/proposições segundo a quantidade?

2. Como se classificam os juízos/proposições segundo a qualidade?

89
3. Apresente um exemplo de um juízo/proposição universal.

4. Apresente um exemplo de um juízo/proposição particular.

5. Apresente um exemplo de um juízo/proposição negativo.

6. Apresente um exemplo de um juízo/proposição afirmativo.

7. Apresente um exemplo de um juízo/proposição universal afirmativo e um


juízo/proposição universal negativo.

8. Apresente um exemplo de um juízo/proposição particular afirmativo e um


juízo/proposição particular negativo.

CLASSIFICAÇÃO DOS JUÍZOS/PROPOSIÇÕES


PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Classifique os seguintes juízos ou proposições quanto à qualidade:


a) Os espanhóis são europeus.
b) Nenhum homem é santo.
90
RESPOSTAS:

a) ______________________________________
b) ______________________________________

2. Classifique os seguintes juízos no que respeita à quantidade:


a) Os espanhóis são europeus.
b) Nenhum homem é santo.
c) Alguns alemães são protestantes.

RESPOSTAS:

a) _______________________________________
b) _______________________________________
c) _______________________________________

3. Classifique os seguintes juízos ou proposições (quando se pede,


simplesmente, para classificar um juízo – sem se especificar se é só quanto à qualidade
ou só quanto à quantidade – deve o aluno classificá-lo indicando quer a qualidade, quer
a quantidade):
a) Há historiadores cujo dom da escrita faz das suas obras autênticos romances
para quem os lê.
b) Os atletas que recebem dinheiro para participar em competições desportivas
não podem ser considerados amadores.
c) Alguns membros das famílias ricas e famosas não são ricos nem famosos.
d) Os polícias são agentes da autoridade.

RESPOSTAS:

a) ______________________________________
b) ______________________________________
c) ______________________________________
d) ______________________________________

CLASSIFICAÇÃO DOS JUÍZOS OU PROPOSIÇÕES


RESOLUÇÃO DAS ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Classifique os seguintes juízos ou proposições quanto à qualidade:


a) Os espanhóis são europeus.
b) Nenhum homem é santo.
91
RESPOSTAS:
a) Juízo afirmativo – afirma-se que todos os espanhóis são europeus.
b) Juízo negativo – nega-se a todos os homens o predicado “santo”.

2. Classifique os seguintes juízos no que respeita à sua quantidade:


a) Os espanhóis são europeus.
b) Nenhum homem é santo.
c) Alguns alemães são protestantes.

RESPOSTAS:
a) Juízo ou proposição universal – diz-se que todo e qualquer espanhol é
europeu. Todo e qualquer membro da classe “espanhol” é membro da classe
“europeu”.

b) Juízo ou proposição universal – nega-se a todo e qualquer homem a


qualidade de ser santo; qualquer membro da classe “homens” está excluído da
classe “santo”.

c) Juízo ou proposição particular – afirma-se que alguns dos alemães são


“protestantes”, mas não todos, obviamente.

3. Classifique os seguintes juízos ou proposições (quando se pede,


simplesmente, para classificar um juízo – sem se especificar se é só quanto à qualidade
ou só quanto à quantidade – deve o aluno classificá-lo indicando quer a qualidade, quer
a quantidade):
a) Há historiadores cujo dom da escrita faz das suas obras autênticos romances
para quem os lê.
b) Os atletas que recebem dinheiro para participar em competições desportivas
não podem ser considerados amadores.
c) Alguns membros das famílias ricas e famosas não são ricos nem famosos.
d) Os polícias são agentes da autoridade.

RESPOSTAS:
a) Juízo particular afirmativo – afirma-se que alguns historiadores são
escritores de tal modo talentosos que as suas obras até podem ser lidas como
quem lê romances.

92
b) Juízo universal negativo – nega-se a condição ou estatuto de “amador”
aos atletas que tenham recebido dinheiro para competir; portanto, nenhum atleta
que tenha recebido dinheiro para competir é amador.

c) Juízo particular negativo – nega-se a alguns membros de famílias ricas e


famosas os predicados “rico” e “famoso”.

d) Juízo universal afirmativo – afirma-se que todos os polícias são agentes


da autoridade.

OPOSIÇÃO LÓGICA DAS PROPOSIÇÕES

93
A lógica aristotélica, como o próprio nome indica, foi introduzida por Aristóteles
(384-322 a. C.) e sistematizada (organizada, ordenada, estruturada) na Idade Média. A
única parte da lógica aristotélica que aqui nos interessa é a oposição lógica das
proposições que, através do quadrado da oposição, o qual iremos examinar neste
capítulo, nos mostra como certas proposições se relacionam entre si.

QUATRO TIPOS DE PROPOSIÇÕES

Na lógica aristotélica reconhecem-se apenas proposições que tenham uma de


quatro formas lógicas, sendo que as proposições destes tipos incluem sempre dois
termos. O termo sujeito é aquele que ocupa o lugar de S e o termo predicado é
aquele que ocupa o lugar de P.
Assim:

1. Todos os S são P. (Todos os homens são racionais)


2. Nenhum S é P. (Nenhum homem é racional)
3. Alguns S são P. (Alguns homens são racionais)
4. Alguns S não são P. (Alguns homens não são racionais)

Vejamos como estas formas são designadas na lógica aristotélica:

As proposições com a forma “Todos os S são P” são as de tipo A ou


Universais Afirmativas.
As proposições com a forma “Nenhum S é P” são as de tipo E ou Universais
Negativas.
As proposições com a forma “Alguns S são P” são de tipo I ou Particulares
Afirmativas.
As proposições com a forma “Alguns S não são P” são as de tipo O ou
Particulares Negativas.

Na resolução de exercícios de lógica aristotélica é preciso apresentar as


proposições na sua forma canónica (forma clássica e mais usual de representar uma
relação – neste caso, entre dois conceitos que integram uma proposição – de acordo
com as regras mais simples a que uma estrutura frásica ou proposicional deve
obedecer).
Por exemplo, a frase: “Há homens mortais” exprime uma proposição de tipo I,
mas não está apresentada na sua forma canónica. De modo a convertê-la ou

94
transformá-la na forma canónica das proposições de tipo I (“Alguns S são P”), teríamos
de a exprimir através da frase: “Alguns homens são mortais”.

As tabelas que se seguem mostram algumas formas de exprimir as proposições


de tipo A, E, I e O, indicando a sua transformação na forma canónica:

TIPO A

PROPOSIÇÕES TRANSFORMAÇÃO NA FORMA CANÓNICA

Qualquer português é europeu.


Todos os portugueses são europeus.
Os portugueses são europeus.

Todo o português é europeu.

Só os europeus são portugueses.1

1
Note-se que a afirmação “Só os europeus são portugueses” significa que ser
europeu é condição necessária para ser português. Daí que esta afirmação signifique o
mesmo que “Todos os portugueses são europeus”.

TIPO E

PROPOSIÇÕES TRANSFORMAÇÃO NA FORMA CANÓNICA

Nem uma única obra de arte é agradável.

Não há obras de arte que sejam Nenhuma obra de arte é agradável.

agradáveis.

Não existem obras de arte agradáveis.

Tudo aquilo que é uma obra de arte não é


agradável.

TIPO I

PROPOSIÇÕES TRANSFORMAÇÃO NA FORMA CANÓNICA

95
Existem animais carnívoros. Alguns animais são carnívoros.

Há animais que são carnívoros.

Pelo menos um animal é carnívoro.

Certos animais são carnívoros.

TIPO O

PROPOSIÇÕES TRANSFORMAÇÃO NA FORMA CANÓNICA

Existem filósofos gregos que não são Alguns filósofos gregos não são

geniais. geniais.

Nem todos os filósofos gregos são geniais.

Pelo menos um filósofo grego não é


genial.

Certos filósofos gregos não são geniais.

RELAÇÕES ENTRE AS PROPOSIÇÕES


OPOSIÇÃO DAS PROPOSIÇÕES – QUADRADO LÓGICO DA OPOSIÇÃO

Combinando ou articulando os vários tipos de proposição, já por nós conhecidas,


quanto à sua quantidade (universais e particulares) e quanto à sua qualidade
(afirmativas e negativas), Aristóteles construiu um esquema-tipo de relações entre
esses vários tipos de proposições, o qual passou a ser designado por quadrado lógico
da oposição das proposições ou, simplesmente, quadrado lógico.
Examinemo-lo, então:

96
Como se vê no quadro lógico da oposição das proposições, mais
precisamente nas linhas diagonais, há uma relação de contradição entre proposições
de tipo A e de tipo O, bem como entre proposições de tipo E e de tipo I, que tenham
os mesmos termos.
As proposições contraditórias têm valores de verdade opostos: se uma delas
é verdadeira a outra é falsa; se uma delas é falsa, a outra é verdadeira. As
proposições contraditórias não podem, portanto, ser ambas verdadeiras nem
ambas falsas. Por exemplo, “Todos os gatos são negros” e “Alguns gatos não são
negros” contradizem-se. O mesmo acontece com “Nenhum gato é negro” e “Alguns
gatos são negros”.

Passemos à linha horizontal superior do quadrado. Entre as proposições


universais que têm os mesmos termos há uma relação de contrariedade.
Proposições contrárias não podem ser ambas verdadeiras, embora possam ser
ambas falsas. Por exemplo, as proposições expressas por “Todos os cisnes são
brancos” e “Nenhum cisne é branco” não podem ser ambas verdadeiras. Contudo,
podem ser ambas falsas, o que acontecerá se alguns cisnes não forem brancos e se
outros cisnes forem brancos.

Na linha horizontal inferior do quadrado encontramos as proposições


particulares. Entre as proposições particulares que têm os mesmos termos há
uma relação de subcontrariedade. Proposições subcontrárias podem ser ambas

97
verdadeiras, mas não podem ser ambas falsas. Por exemplo, as proposições
expressas pelas frases “Algumas rosas são vermelhas” e “Algumas rosas não são
vermelhas” podem ser ambas verdadeiras, mas não podem ser ambas falsas.
Falta considerar as linhas verticais, que dizem respeito à relação entre
proposições universais e proposições particulares que têm os mesmos termos. As
proposições particulares mantêm uma relação de subalternidade com as
proposições universais que têm a mesma qualidade: as proposições de tipo I são
subalternas das de tipo A; as proposições de tipo O são subalternas das de tipo E.
Isto significa o seguinte: se a proposição universal é verdadeira, a particular que lhe
corresponde também é verdadeira; se a proposição particular é falsa, a
proposição universal que lhe corresponde também é falsa. Por exemplo, se for
verdade que Todos os Filósofos são Matemáticos, também será verdade que
Alguns Filósofos são Matemáticos. E se for falso que Alguns Filósofos são
Matemáticos, também será falso que Todos os Filósofos são Matemáticos.
Assim:

As proposições contrárias e subcontrárias têm a mesma quantidade, mas


diferem na qualidade.
As proposições contraditórias não têm a mesma quantidade nem a mesma
qualidade.
As proposições subalternas têm a mesma qualidade, mas diferem em
quantidade.

De acordo com os exemplos aristotélicos, para identificar melhor cada uma das
proposições (contrárias, subcontrárias, contraditórias e subalternas), vamos estabelecer
o valor de verdade e de falsidade em cada uma das relações estabelecidas, com as
letras V e F, construindo, deste modo, os seguintes quadros:

PROPOSIÇÕES CONTRÁRIAS

As proposições de tipo A (Todos os homens são fortes) e de tipo E (Nenhum


homem é forte) têm a mesma quantidade, mas diferem na qualidade. Não podem ser
ambas verdadeiras, mas podem ser ambas falsas:

Se A (Todos os homens são fortes) é V (verdadeira), então E (nenhum homem é forte) é


F (falsa).

98
Se E (Nenhum homem é forte) é V (verdadeira), então A (Todos os homens são fortes) é
F (falsa).

Se A (Todos os homens são fortes) é F (falsa), não se pode saber se E (Nenhum homem
é forte) é V (verdadeira) ou F (falsa). *

Se E (Nenhum homem é forte) é F (falsa) não se pode saber se A (Todos os homens são
fortes) é V (verdadeira) ou F (falsa). *

*(nestes dois últimos casos, diz-se que o valor de E ou de A é indeterminado).

PROPOSIÇÕES SUBCONTRÁRIAS

As proposições de tipo I (Alguns homens são fortes) e de tipo O (Alguns homens


não são fortes) são semelhantes quanto à quantidade, mas diferem quanto à qualidade.
Não podem ser ambas falsas, embora possam ser ambas verdadeiras:

Se I (Alguns homens são fortes) é F (falsa), então O (Alguns homens não são fortes) é V
(verdadeira).

Se O (Alguns homens não são fortes) é F (falsa), então I (Alguns homens são fortes) é V
(verdadeira).

Se I (Alguns homens são fortes) é V (verdadeira), não se pode saber se O (Alguns


homens não são fortes) é V (verdadeira) ou F (falsa). *

Se O (Alguns homens não são fortes) é V (verdadeira), não se pode saber se I (Alguns
homens são fortes) é V (verdadeira) ou F (falsa). *

*(nos dois últimos casos o seu valor diz-se indeterminado).

PROPOSIÇÕES CONTRADITÓRIAS

As proposições contraditórias de tipo A (Todos os homens são fortes), de tipo O


(Alguns homens não são fortes), de tipo E (Nenhum homem é forte) e de tipo I (Alguns
homens são fortes) não têm a mesma qualidade nem a mesma quantidade. Não podem
ser ambas verdadeiras nem ambas falsas, ao mesmo tempo:

Se A (Todos os homens são fortes) é V (verdadeira), então O (Alguns homens não são
fortes) é F (falsa).

Se A (Todos os homens são fortes) é F (falsa), então O (Alguns homens não são fortes)
é V (verdadeira).

99
Se E (Nenhum homem é forte) é V (verdadeira), então I (Alguns homens são fortes) é F
(falsa).

Se E (Nenhum homem é forte) é F (falsa), então I (Alguns homens são fortes) é V


(verdadeira).

PROPOSIÇÕES SUBALTERNAS

As proposições subalternas têm a mesma qualidade, mas diferem em quantidade.

A verdade das proposições universais de tipo A (Todos os homens são fortes) e


de tipo E (Nenhum homem é forte) implica a verdade das proposições particulares de
tipo I (Alguns homens são fortes) e de tipo O (Alguns homens não são fortes), bem como
a falsidade das proposições particulares implica a falsidade das proposições universais.
Porém, quando as proposições universais são falsas, não se pode saber se as
particulares correspondentes são verdadeiras ou falsas, bem como, quando as
proposições particulares são verdadeiras, não se pode saber se as proposições
universais correspondentes são verdadeiras ou falsas.

Se A (Todos os homens são fortes) é V (verdadeira), então I (Alguns homens são fortes)
é V (verdadeira).

Se E (Nenhum homem é forte) é V (verdadeira), então O (Alguns homens não são fortes)
é V (verdadeira).

Se I (Alguns homens são fortes) é F (falsa), então A (Todos os homens são fortes) é F
(falsa).

Se O (Alguns homens não são fortes) é F (falsa), então E (Nenhum homem é forte) é F
(falsa).

Mas:

Se A (Todos os homens são fortes) é F (falsa), não se pode saber se I (Alguns homens
são fortes) é V (verdadeira) ou F (falsa).

Se E (Nenhum homem é forte) é F (falsa) não se pode saber se O (Alguns homens não
são fortes) é V (verdadeira) ou F (falsa).

Se I (Alguns homens são fortes) é V (verdadeira), não se pode saber se A (Todos os


homens são fortes) é V (verdadeira) ou F (falsa).

Se O (Alguns homens não são fortes) é V (verdadeira), não se pode saber se E (Nenhum
homem é forte) é V (verdadeira) ou F (falsa).

100
Quadro-síntese das inferências

PROPOSIÇÃO
PROPOSIÇÕES OPOSTAS
ORIGINAL

Se A é verdadeira E é falsa I é verdadeira O é falsa

Se E é verdadeira A é falsa I é falsa O é verdadeira

Se I é verdadeira E é falsa A é indeterminada O é indeterminada

Se O é verdadeira A é falsa E é indeterminada I é indeterminada

Se A é falsa O é verdadeira E é indeterminada I é indeterminada

Se E é falsa I é verdadeira A é indeterminada O é indeterminada

Se I é falsa A é falsa E é verdadeira O é verdadeira

Se O é falsa A é verdadeira E é falsa I é verdadeira

101
OPOSIÇÃO DAS PROPOSIÇÕES
EXERCÍCIOS RESOLVIDOS

Questão 1:

A partir da proposição “Nenhum deputado é adolescente” encontre:

a) A sua contraditória;

b) A sua contrária;

c) A sua subcontrária;

d) A sua subalterna.

Resposta:

a) A contraditória de “Nenhum deputado é adolescente” é a proposição que


dela difere em quantidade e em qualidade, ou seja, uma proposição particular
afirmativa: “Alguns deputados são adolescentes”.

b) A contrária de “Nenhum deputado é adolescente” é a proposição que dela


difere só no aspeto qualitativo. Assim, se a proposição dada diz que “Não há deputados
adolescentes”, a sua contrária dirá que “Todos os deputados são adolescentes”,
constituindo-se, assim, numa proposição universal afirmativa.

c) A relação de subcontrariedade verifica-se simplesmente, quando a uma


proposição particular se opõe uma outra proposição diferente quanto à qualidade; ou
seja, a subcontrariedade é uma oposição que só se dá entre proposições particulares.
Ora, como a proposição apresentada é de carácter universal (“Nenhum deputado é
adolescente”), não tem, logicamente, subcontrária.

d) A subalterna de “Nenhum deputado é adolescente” é uma proposição que


dela difere na quantidade: “Alguns deputados não são adolescentes”, o que torna
numa proposição de índole particular negativa.

Questão 2:

Encontre as proposições opostas de “Todas as alfaces são vegetais”


(universal afirmativa).
102
Resposta:

a) Contraditória – “Algumas alfaces não são vegetais” (particular negativa).

b) Contrária – “Nenhuma alface é vegetal” (universal negativa).

c) Subcontrária – Não há. Porque se trata de uma proposição universal e,


portanto, não tem subcontrária. Só as proposições particulares têm subcontrárias.

d) Subalterna – “Algumas alfaces são vegetais” (particular afirmativa).

Questão 3:

Das proposições que se seguem, encontre as respetivas contraditórias:

a) “Um peixe não é um mamífero”.

b) “Poucos soldados são heróis”.

Resposta:

a) A proposição “Um peixe não é um mamífero” equivale a dizer que “Nenhum


peixe é mamífero”; daí que, sendo uma proposição universal negativa, a sua
contraditória será, obviamente, particular afirmativa: “Alguns peixes são
mamíferos”.

b) A proposição “Poucos soldados são heróis” diz-nos que “Alguns soldados


são heróis”; a sua contraditória será: “Nenhum soldado é herói” (na quantidade é
universal e na qualidade é negativa).

103
OPOSIÇÃO DAS PROPOSIÇÕES*
PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Partindo da proposição: “Todos os professores são ignorantes” encontre:

a) A sua contraditória.

b) A sua subalterna.

c) A sua contrária.

d) A sua subcontrária.

2. Partindo da proposição: “Alguns homens não são ciumentos” encontre:

a) A sua subcontrária.

b) A sua contrária.

c) A sua subalterna.

d) A sua contraditória.

NOTA DE ESCLARECIMENTO:
Contrárias: Todos... são.../Nenhum... é...
Subcontrárias: Alguns... são.../Alguns... não são...

104
OPOSIÇÃO DAS PROPOSIÇÕES
RESOLUÇÃO DAS ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Partindo da proposição: “Todos os professores são ignorantes” encontre:

a) A sua contraditória.
R: Alguns professores não são ignorantes.

b) A sua subalterna.
R: Alguns professores são ignorantes.

c) A sua contrária.
R: Nenhum professor é ignorante.

d) A sua subcontrária.
R: Não tem. Porque as proposições universais (afirmativas e negativas) não
têm subcontrárias. Apenas têm subcontrárias as proposições particulares (afirmativas
e negativas).

2. Partindo da proposição: “Alguns homens não são ciumentos” encontre:

a) A sua subcontrária.
R: Alguns homens são ciumentos.

b) A sua contrária.
R: Não tem. Porque as proposições particulares (afirmativas e negativas) não
têm contrárias. Apenas têm contrárias as proposições universais (afirmativas e
negativas).

c) A sua subalterna.
R: Nenhum homem é ciumento.

d) A sua contraditória.
R: Todos os homens são ciumentos.

105
OPOSIÇÃO DAS PROPOSIÇÕES
PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Indique a oposição lógica que rege as proposições (apresentadas aos


pares) que abaixo lhe são dadas:

a) Algumas mulheres ciumentas são perigosas.


Nenhuma mulher ciumenta é perigosa.
_______________________________________________________

b) Alguns cães não são boa companhia.


Todos os cães são boa companhia.
_______________________________________________________

c) Algumas ruas não são transitáveis.


Nenhuma rua é transitável.
_______________________________________________________

d) Todos os loucos são homens.


Nenhum louco é homem.
_______________________________________________________

e) Alguns filmes são aborrecidos.


Alguns filmes não são aborrecidos.
_______________________________________________________

f) Todos os gatos de noite são pretos.


Alguns gatos de noite não são pretos.
_______________________________________________________

g) Alguns símios são chimpanzés.


Nenhum símio é chimpanzé.
_______________________________________________________

106
LÓGICA PROPOSICIONAL
FORMAS DE INFERÊNCIA VÁLIDA

LÓGICA PROPOSICIONAL

A lógica proposicional, como o próprio nome indica, estuda proposições e a


forma de as combinar, definindo regras de combinação específicas para cada
operação lógica. É com base nessas regras que analisa a validade ou invalidade dos
argumentos, o que equivale a dizer que a lógica proposicional serve para
determinar se certos argumentos são válidos. Mais precisamente, a lógica
proposicional ocupa-se de argumentos cuja validade depende de noções como “ou”,
“e” ou “não”.

NOÇÕES BÁSICAS
FRASES DECLARATIVAS E PROPOSIÇÕES

Como já tivemos oportunidade de estudar, uma proposição é o conteúdo


expresso por uma frase declarativa com valor de verdade (verdadeira ou falsa).
Frases interrogativas como, por exemplo, “O que é a lógica?”, exclamativas
como “Que bom é viajar!” e imperativas como “Fecha a porta!”, não exprimem
proposições. Já frases declarativas como “Esta flor é vermelha” é uma proposição
porque diz algo sobre a realidade.
Uma proposição tem apenas um de dois valores de verdade, ou seja, ou é
verdadeira ou é falsa. Por isso dizemos que a lógica proposicional é bivalente.

OPERADORES DE FORMAÇÃO DE FRASES


LINGUAGEM PROPOSICIONAL

Os operadores de formação de frases são palavras ou sequências de palavras


tais como “não”, “e”, “ou”, “se… então”, “se e só se”, que servem para ligar uma ou
mais frases simples ou complexas (compostas), gerando novas frases.

Chamamos operadores verofuncionais aos operadores que geram


proposições complexas (compostas), proposições estas cujo valor de verdade é
determinado pelo das proposições simples que as compõem.

107
Uma proposição simples é a que não contém em si mesma outra proposição
como parte componente e, por isso, não pode decompor-se. Uma proposição
complexa (ou composta) resulta da ligação de proposições simples. Há proposições
complexas (compostas) de diferentes tipos, conforme os operadores de formação de
frases usados para as gerar.
Exemplo:
Comecemos por considerar as proposições simples expressas pelas frases “O
céu é azul”, “A relva é verde” Se ligarmos estas duas frases ou proposições simples por
intermédio da palavra “e”, ou da sequência de palavras “se… então”, teremos
construído proposições complexas (compostas) que se expressam através das
seguintes formas:

“O céu é azul e a relva é verde.”


“Se o céu é azul, então a relva é verde.”

Porque os operadores utilizados para formar cada uma destas proposições são
verofuncionais, o valor de verdade de cada uma delas é função (resultado) de uma
regra de combinação dos valores de verdade das proposições que a compõem.

Consideremos outro exemplo:

João ganha as eleições ou Maria perde o emprego.


João não ganha as eleições.
∴ Maria perde o emprego.

Assim, para captar a forma lógica deste argumento, começa-se por identificar
as proposições mais elementares (simples) que o constituem, designando cada uma
delas por uma letra. Neste caso, temos duas proposições:

A = João ganha as eleições.


B = Maria perde o emprego.

Chama-se a isto dicionário ou interpretação.


Ora, partindo deste dicionário, podemos representar agora a forma do
argumento, que é a seguinte:

A ou B. (João ganha as eleições ou Maria perde o emprego).


Não-A. (João não ganha as eleições).
∴ B. (Logo, Maria perde o emprego).

108
Esta é uma forma válida. Qualquer argumento que tenha esta forma, seja qual
for o seu conteúdo, é dedutivamente válido.
No argumento precedente, “ou” e “não” são conectivas proposicionais ou
conectivas lógicas. A lógica proposicional, que aqui nos interessa abordar, contempla
seis conectivas, sendo cada uma delas representada ou designada por um símbolo
diferente.
Vejamos, pois:

CONECTIVAS LÓGICAS SÍMBOLOS

Negação Não P ¬

Conjunção PeQ ⋀

Disjunção Inclusiva P ou Q ⋁

Disjunção Exclusiva Ou P ou Q ⩒

Condicional Se P, então Q →

Bicondicional P se, e somente se Q ↔

Recorrendo aos símbolos lógicos apropriados para representar a forma do


argumento anterior (A ou B. Não-A. ∴ B.), obtemos a seguinte função ou resultado:
A ⋁ B (João ganha as eleições ou Maria perde o emprego).
¬ A (João não ganha as eleições).
→ B (Logo, Maria perde o emprego).
Mas o que é exatamente uma conectiva proposicional ou conectiva lógica?
Uma conectiva proposicional ou conectiva lógica é apenas uma expressão que
forma novas frases quando é devidamente acrescentada a uma ou várias frases.
Por exemplo, se temos as frases “Está a chover” e “Está a nevar”, podemos formar uma
nova frase mais complexa, recorrendo à conectiva “ou” (que se traduz pelo símbolo
lógico adotado⋁, que consta da tabela acima dada): “Está a chover ou está a nevar”
(representada por P ⋁ Q).

109
FORMALIZAÇÃO DE PROPOSIÇÕES

Como foi já atrás referido, podemos distinguir dois tipos de proposições – as


proposições simples e as proposições complexas (ou compostas):
As proposições simples são aquelas que não têm quaisquer conectivas,
como, por exemplo, a proposição expressa pela frase “Hoje vou ao cinema.”
As proposições complexas são aquelas que têm conectivas, como, por
exemplo, as proposições expressas pelas frases “Hoje não vou ao cinema.” e “Se hoje
vou ao cinema, então vou chegar atrasado.”
As letras (maiúsculas) do princípio do alfabeto A, B, C, … são as letras
proposicionais utilizadas para designar proposições simples, e as letras (maiúsculas,
nalguns manuais, e/ou, minúsculas noutros) do meio do alfabeto, P, Q, R, … são as
letras proposicionais a que, embora também utilizadas para designar proposições
simples, chamamos variáveis de fórmula, funcionam como uma espécie de “lugares”
que poderão ser ocupados por qualquer proposição, seja ela simples ou complexa – por
exemplo, em linguagem proposicional, as letras A e B, que representam as
proposições simples “O céu é azul”, “A relva é verde”, respetivamente, poderão,
segundo o dicionário, ser representadas por P e Q, ocupando P o lugar de A e Q o
lugar de B.
Assim, a proposição complexa “O céu é azul e a relva é verde.” (resultante da
composição ou junção das duas proposições simples “O céu é azul” e “A relva é verde”),
recorrendo às letras proposicionais, às conectivas lógicas e aos símbolos lógicos,
que constituem os operadores de formação de frases verofuncionais, pode ser

formalizada da seguinte maneira: P ⋀ Q.

Sintetizando, formalizar uma proposição é, então, expressá-la numa


linguagem lógica.
Para formalizarmos uma proposição, temos de adotar os seguintes
procedimentos:
1. Apresentar o dicionário ou interpretação;
2. Identificar a conectiva ou as conectivas usadas e os âmbitos respetivos;
3. Escrever a fórmula (chamamos fórmula a qualquer sequência de elementos do
cálculo proposicional).

Exemplo da formalização de proposições expressas nas seguintes frases


declarativas:

110
a) Picasso é um pintor impressionista e Camões um poeta épico.
b) Se Camões é um poeta épico, então Picasso é um pintor impressionista.
c) Picasso não é um pintor impressionista.

Uma vez que se trata de várias frases complexas compostas a partir das mesmas
frases simples, o dicionário é:
Picasso é um pintor impressionista – P
Camões é um poeta épico – Q

Cada uma das frases foi formada a partir de uma conectiva diferente – uma
conjunção (a), uma condicional (b) e uma negação (c):

a) P ⋀ Q (Picasso é um pintor impressionista e Camões um poeta épico).


b) Q → P (Se Camões é um poeta épico, então Picasso é um pintor impressionista).
d) ¬ P (Picasso não é um pintor impressionista).

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Selecione, em cada caso, a opção correta.

1.1 Uma proposição é o conteúdo expresso por:


(A) Uma frase exclamativa com valor de verdade.
(B) Uma frase interrogativa sem valor de verdade.
(C) Uma frase declarativa com valor de verdade.
(D) Uma frase declarativa sem valor de verdade.

1.2 Formalizar uma proposição é:


(A) Expressá-la em linguagem natural.
(B) Expressá-la através de uma frase.
(C) Expressá-la através de uma frase declarativa.
(D) Expressá-la em linguagem lógica.

1.3 A lógica proposicional usa linguagem:


(A) Natural.
(B) Simbólica.
(C) Natural e simbólica.
(D) Matemática.
111
1.4 Em linguagem proposicional, uma proposição simples é representada
por:
(A) Uma letra proposicional.
(B) Uma fórmula.
(C) Uma frase declarativa.
(D) Este símbolo lógico: ↔

1.5 Na lógica proposicional, “dicionário” ou “interpretação” designa:


(A) Uma regra.
(B) A identificação da conectiva usada.
(C) A identificação do código usado para representar as proposições simples.
(D) Um livro de consulta.

1.6 Os símbolos lógicos ⋀ e → representam, respetivamente:

(A) Uma condicional e uma negação.


(B) Uma conjunção e uma condicional.
(C) Uma conjunção e uma disjunção.
(D) Uma bicondicional e uma conjunção.

2. Apresente as seguintes proposições em linguagem proposicional.


Comece por explicitar o dicionário usado.
2.1 Está calor e vou à praia.
2.2 Não está calor e vou à praia.
2.3 É falso que esteja calor e que vá à praia.
2.4 Se está calor, então vou à praia.

3. Considere o dicionário:
Pedro toca piano – P
Vítor toca violino – Q

Escreva em linguagem natural:

a) P ⋀ Q
b) P → ¬ Q
c) ¬ P ↔ Q
d) P ⋁ Q

112
RESOLUÇÃO DAS ATIVIDADES/QUESTÕES PROPOSTAS (páginas 108 e 109):

1. Selecione, em cada caso, a opção correta.

1.1 Uma proposição é o conteúdo expresso por:


(A) Uma frase exclamativa com valor de verdade.
(B) Uma frase interrogativa sem valor de verdade.
(C) Uma frase declarativa com valor de verdade.
(D) Uma frase declarativa sem valor de verdade.

1.2 Formalizar uma proposição é:


(A) Expressá-la em linguagem natural.
(B) Expressá-la através de uma frase.
(C) Expressá-la através de uma frase declarativa.
(D) Expressá-la em linguagem lógica.

1.3 A lógica proposicional usa linguagem:


(A) Natural.
(B) Simbólica.
(C) Natural e simbólica.
(D) Matemática.

1.4 Em linguagem proposicional, uma proposição simples é representada


por:
(A) Uma letra proposicional.
(B) Uma fórmula.
(C) Uma frase declarativa.
(D) Este símbolo lógico: ↔

1.5 Na lógica proposicional, “dicionário” ou “interpretação” designa:


(A) Uma regra.
(B) A identificação da conectiva usada.
(C) A identificação do código usado para representar as proposições simples.
(D) Um livro de consulta.

1.6 Os símbolos lógicos ⋀ e → representam, respetivamente:

(A) Uma condicional e uma negação.


113
(B) Uma conjunção e uma condicional.
(C) Uma conjunção e uma disjunção.
(D) Uma bicondicional e uma conjunção.

2. Apresente as seguintes proposições em linguagem proposicional.


Comece por explicitar o dicionário usado.

RESPOSTA:
Explicitação do dicionário:
Está calor – P
Vou à praia – Q

2.1 Está calor e vou à praia. P ⋀ Q


2.2 Não está calor e vou à praia. ¬ P ⋀ Q
2.3 É falso que esteja calor e que vá à praia. ¬ P ⋀ ¬ Q ou ¬ (P ⋀ Q)
2.4 Se está calor, então vou à praia. P → Q

3. Considere o dicionário:
Pedro toca piano – P
Vítor toca violino – Q

Escreva em linguagem natural:

a) P ⋀ Q
b) P → ¬ Q
c) ¬ P ↔ Q
d) P ⋁ Q

RESPOSTA:

a) P ⋀ Q - Pedro toca piano e Vítor toca violino.


b) P → ¬ Q - Se Pedro toca piano, então Vítor não toca violino.
c) ¬ P ↔ Q - Pedro não toca piano se, e somente se, Vítor toca violino.
d) P ⋁ Q - Pedro toca piano ou Vítor toca violino.

114
CONJUNÇÃO E DISJUNÇÃO

CONJUNÇÃO

Comecemos por analisar a conjunção, tomando como ponto de partida o


seguinte dicionário:
A = Sara gosta de lógica.
B = Miguel gosta de literatura.

Portanto:

A ⋀ B = Sara gosta de lógica e Miguel gosta de literatura.

Para sabermos se a conjunção “A ⋀ B” é verdadeira, basta que conheçamos os


valores de verdade de A e de B.
A e B são conjuntas, isto é, são proposições que formam a conjunção.

Suponhamos que A é falsa e que B também é falsa. Neste caso, “A ⋀ B” será


falsa.
E se A for falsa, mas B for verdadeira? Nesse caso, “A ⋀ B” também será falsa.
Uma terceira possibilidade é A ser verdadeira, mas B ser falsa. Nesse caso, uma vez
mais “A ⋀ B” será falsa.
Resta uma última possibilidade: A ser verdadeira e B ser também verdadeira. Só
neste caso é que “A ⋀ B” será verdadeira.

A conclusão a retirar é a seguinte:

Uma conclusão é verdadeira apenas no caso de ambas as conjuntas serem


verdadeiras.

Usando uma tabela em que V designa a verdade e F designa a falsidade,


podemos exprimir assim esta ideia:

P Q P⋀Q

V V V

V F F

F V F

F F F

115
Esta é uma tabela de verdade. Nas duas primeiras colunas encontramos todas
as combinações possíveis de valores de verdade para P e Q. Na coluna da direita
encontramos o valor de verdade da fórmula “P ⋀ Q” em cada uma dessas
combinações. Uma tabela deste género mostra-nos, então, em que condições é
verdadeira ou falsa a fórmula da linha superior da coluna da direita.
Note-se que as letras P e Q são variáveis de fórmula, o que significa que no seu
lugar podem estar quaisquer proposições.
Quando usamos a fórmula “A ⋀ B” para representar uma certa frase, estamos a
formalizar ou traduzir essa frase. É importante saber fazer formalizações ou traduções
corretas.
Na tabela seguinte figuram alguns exemplos de tipos de frases que se formalizam
ou traduzem como conjunções na lógica proposicional:

FRASE FORMALIZAÇÃO

Gosto de Mozart. A

Gosto de Coldplay. B

Gosto de Mozart e gosto de Coldplay. A⋀B


Gosto de Mozart e de Coldplay.
Gosto de Mozart, mas também gosto de Coldplay.
Embora goste de Mozart, gosto de Coldplay.
Apesar de gostar de Mozart, também gosto de
Coldplay.

DISJUNÇÃO (INCLUSIVA E EXCLUSIVA)

Consideremos agora a disjunção. As proposições que formam uma disjunção


são (passe o pleonasmo ou redundância) as disjuntas. A ideia mais importante a reter
sobre esta conectiva é a seguinte:

Uma disjunção inclusiva é falsa apenas no caso de ambas as disjuntas


serem falsas.
Pode parecer estranho que, quando P e Q são verdadeiras, “P ⋁ Q” seja
verdadeira. Isso acontece porque “⋁” representa a disjunção inclusiva.
A tabela 1 é a tabela de verdade para a disjunção inclusiva:
116
Tabela 1

P Q P⋁Q

V V V

V F V

F V V

F F F

Pelo contrário, uma disjunção exclusiva só é verdadeira quando uma disjunta


é verdadeira e a outra é falsa.
A tabela 2 é a tabela de verdade para a disjunção exclusiva:

Tabela 2

P Q P⩒Q

V V F

V F V

F V V

F F F

Na seguinte tabela apresenta-se alguns exemplos de tipos de frases que se


formalizam como disjunções na lógica proposicional:

FRASE FORMALIZAÇÃO

Manuel vai à praia. A

Manuel vai ao campo. B

Manuel vai à praia ou Manuel vai ao campo.


Manuel vai à praia ou ao campo. A⋁B
Manuel vai à praia a não ser que vá ao campo.
Manuel vai à praia a menos que vá ao campo.

Usou-se aqui (na tabela imediatamente acima dada) sempre a disjunção


inclusiva. Há que usar a disjunção exclusiva apenas quando é inteiramente claro
117
que se está a excluir a possibilidade de ambas as disjuntas serem verdadeiras.
Isso acontece em frases com dois “ou”, como “Ou vou à praia ou vou ao campo.”

NEGAÇÃO

Entre as conectivas da lógica proposicional, só a negação é unária (chamamos


unário ao operador que afeta uma proposição, simples ou composta). Todas as
restantes conectivas são binárias (chamamos binário ao operador que liga duas
proposições simples ou compostas). A negação é unária porque opera apenas sobre
uma frase. Por exemplo, obtemos a frase “Não está a chover:” tomando como ponto de
partida uma única frase: “Está a chover.” As restantes conectivas são binárias
porque operam sobre duas frases.

Uma negação tem sempre um valor de verdade diferente do da proposição


negada.

Como a negação é uma conectiva unária, a sua tabela de verdade é a mais


simples:

P ¬P

V F

F V

Na tabela que se segue apresenta-se alguns exemplos de tipos de frases que se


formalizam como negações na lógica proposicional:

FRASE FORMALIZAÇÃO

O ataque é a melhor defesa. A

O ataque não é a melhor defesa.


É falso que o ataque seja a melhor defesa. ¬A
Não é verdade que o ataque seja a melhor defesa.

CONDICIONAL

118
Como vimos, as proposições condicionais têm uma antecedente e uma
consequente. A ideia mais importante a reter sobre a condicional (também conhecida
por implicação material) é a seguinte:

Uma condicional é falsa apenas quando a antecedente é verdadeira e a


consequente é falsa.

Esta é, então, a tabela de verdade para a condicional:

P Q P→Q

V V V

V F F

F V V

F F V

É preciso muito cuidado na formalização de condicionais, pois nem sempre é


fácil identificar corretamente a antecedente e a consequente. Da tabela seguinte
constam alguns exemplos de tipos de frases que se formalizam como condicionais na
lógica proposicional:

FRASE FORMALIZAÇÃO

Bobby é um cão. A

Bobby é carnívoro. B

Se Bobby é um cão, então Bobby é carnívoro.


Se Bobby é um cão, é carnívoro.
Bobby é carnívoro se é um cão.
Bobby é um cão somente se é carnívoro. A→B
Desde que Bobby seja um cão, é carnívoro.
Para que Bobby seja carnívoro, basta que seja um cão.
É preciso que Bobby seja carnívoro para que seja um cão.
Bobby ser um cão é condição suficiente para que seja carnívoro.
Bobby ser carnívoro é condição necessária para ele ser um cão.

BICONDICIONAL
119
A ideia mais importante a reter sobre a bicondicional (também conhecida por
equivalência) é a seguinte.

Uma bicondicional é verdadeira apenas quando P e Q têm o mesmo valor de


verdade, sendo falsa nos demais casos.

Esta é, então, a tabela de verdade para a bicondicional:

P Q P↔Q

V V V

V F F

F V F

F F V

A seguinte tabela apresenta alguns exemplos de tipos de frases que se


formalizam como bicondicionais na lógica proposicional:

FRASE FORMALIZAÇÃO

João perde 100 euros. A

João perde a carteira. B

João perde 100 euros se, e apenas se, João perde a carteira.
João perde 100 euros se, e somente se, perder a carteira.
João perde 100 euros precisamente nas circunstâncias em que A↔B
perde a carteira.
João perder 100 euros é condição necessária e suficiente para
perder a carteira.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

120
1. Após explicitar o dicionário usado, formalize as seguintes proposições (em
linguagem proposicional):

a) Não é verdade que Beethoven tenha composto a 5.ª Sinfonia.


b) Se Beethoven compôs a 5.ª Sinfonia, então é um grande compositor.
c) Beethoven é um grande compositor se, e somente se, compôs a 5.ª Sinfonia.
d) Beethoven nem compôs a 5.ª Sinfonia, nem é um grande compositor.
e) Beethoven compôs a 5.ª Sinfonia, mas não é um grande compositor.

2. Atente no seguinte dicionário:

João vive em Lisboa – P


João dá aulas em Santarém – Q

2.1 Escreva em linguagem natural:

a) Q ⋀ P
b) ¬ P
c) ¬ P ⋀ ¬ Q
d) ¬ Q → P
e) Q ↔ (Q ⋀ ¬ P)

121
RESOLUÇÃO DAS ATIVIDADES/QUESTÕES PROPOSTAS (pág.121):

1. Após explicitar o dicionário usado, formalize as seguintes proposições (em


linguagem proposicional):

a) Não é verdade que Beethoven tenha composto a 5.ª Sinfonia.


b) Se Beethoven compôs a 5.ª Sinfonia, então é um grande compositor.
c) Beethoven é um grande compositor se, e somente se, compôs a 5.ª Sinfonia.
d) Beethoven nem compôs a 5.ª Sinfonia, nem é um grande compositor.
e) Beethoven compôs a 5.ª Sinfonia, mas não é um grande compositor.

RESPOSTA:
Explicitação do dicionário:
Beethoven compôs a 5.ª Sinfonia – P
Beethoven é um grande compositor – Q

RESPOSTA:
Formalização das proposições (em linguagem proposicional):
a) ¬ P (Não é verdade que Beethoven tenha composto a 5.ª Sinfonia).
b) P → Q (Se Beethoven compôs a 5.ª Sinfonia, então é um grande compositor).
c) Q ↔ P (Beethoven é um grande compositor se, e somente se, compôs a 5.ª Sinfonia).
d) ¬ P ⋀ ¬ Q (Beethoven nem compôs a 5.ª Sinfonia, nem é um grande compositor).
e) P ⋀ ¬ Q (Beethoven compôs a 5.ª Sinfonia, mas não é um grande compositor).

2. Atente no seguinte dicionário:

João vive em Lisboa – P


João dá aulas em Santarém – Q

2.1 Escreva em linguagem natural:

a) Q ⋀ P
b) ¬ P
c) ¬ P ⋀ ¬ Q
d) ¬ Q → P
e) Q ↔ (Q ⋀ ¬ P)

RESPOSTA:
a) João dá aulas em Santarém e vive em Lisboa. Q ⋀ P

122
b) João não vive em Lisboa. ¬ P
c) João não vive em Lisboa nem dá aulas em Santarém. ¬ P ⋀ ¬ Q
d) Se João não dá aulas em Santarém, então vive em Lisboa. ¬ Q → P
e) João dá aulas em Santarém se, e somente se, dá aulas em Santarém e não
vive em Lisboa. Q ↔ (Q ⋀ ¬ P)

123
ÂMBITO DAS CONECTIVAS

Uma fórmula pode conter várias conectivas. A proposição (¬ P ⋀ Q) → P, por


exemplo, apresenta três conectivas: uma negação, uma conjunção e uma condicional,
respetivamente.
O âmbito de cada uma destas conectivas é a parte da fórmula a que se
aplica.
Chamamos conectiva principal de uma fórmula à conectiva que tem maior
âmbito, ou seja, que afeta a totalidade da fórmula.
O cálculo do valor de verdade deve ser feito por ordem, começando por
calcular-se o valor de verdade gerado pela conectiva de menor âmbito e acabando
na conectiva de maior âmbito. Por esta razão, é importante ter sempre em atenção
que, nas fórmulas com mais do que uma conectiva, antes de efetuar o cálculo é
preciso identificar o âmbito das conectivas, o qual, por vezes, não parece muito claro
nas frases enunciadas em linguagem natural.

A colocação dos parêntesis em lugares diferentes da fórmula transforma-a


numa fórmula diferente.

Vejamos isto mesmo, através do exemplo que se segue:

(¬ P ⋀ Q) → P ¬ (P ⋀ Q) → P ¬ P ⋀ (Q → P)

DO MENOR PARA O MAIOR ÂMBITO

(1) (2) (3)


Âmbito da negação: P Âmbito da conjunção: P e Q Âmbito da negação: P
Âmbito da conjunção: ¬ P e Q Âmbito da negação: P ⋀ Q Âmbito da condicional: Q e P
Âmbito da condicional: a Âmbito da condicional: a Âmbito da conjunção: a
proposição completa – é a proposição completa – é a proposição completa – é a
conectiva principal. conectiva principal. conectiva principal.

Em (2) a mudança do lugar do parêntesis alterou a estrutura do antecedente da


condicional.

Em (3) a mudança do lugar do parêntesis alterou a estrutura de toda a fórmula,


transformando-a numa conjunção.

124
Como já foi afirmado atrás, o âmbito que uma conectiva tem numa certa
fórmula é a parte dessa fórmula a que ela se aplica.
Mesmo correndo o risco de nos tornarmos repetitivos, para esclarecer melhor esta
ideia, valerá a pena considerar as seguintes fórmulas:

1. P ⋁ ¬ Q
2. ¬ P → ¬ Q

Qual é o âmbito de cada uma das conectivas que surgem nestas fórmulas?
Podemos encontrar a resposta na tabela que segue (o âmbito de cada conectiva
corresponde à parte sublinhada da fórmula):

Âmbito da disjunção P⋁¬Q


1.
Âmbito da negação P⋁¬Q

Âmbito da primeira negação ¬P→¬Q

2. Âmbito da condicional ¬P→¬Q

Âmbito da segunda negação ¬P→¬Q

A conectiva principal de uma fórmula é aquela que tem o maior âmbito,


aplicando-se a toda a fórmula. Na primeira fórmula, ⋁ é a conectiva principal. Na
segunda fórmula, → é a conectiva principal.

Consideremos agora uma nova fórmula:

3. P → Q ⋁ R
Esta fórmula é incorreta ou “mal formada”, pois pode ser lida de duas formas
muito diferentes, precisamente porque o âmbito das conectivas utilizadas não é
claro. Afinal, aqui, em 3. P → Q ⋁ R, não podemos saber qual é a conectiva
principal.

Também como já foi dito, na lógica proposicional usam-se parêntesis para


indicar o âmbito das conectivas. Recorrendo, então, aos parêntesis, podemos
apresentar as duas leituras possíveis de 3. P → Q ⋁ R, que são as seguintes:

4. P → (Q ⋁ R)

125
5. (P → Q) ⋁ R
Estas já são fórmulas corretas ou “bem formadas”, pois o âmbito das
conectivas é agora bem nítido. A conectiva principal em 4. é →, ao passo que em 5. a
conectiva principal é ⋁.
A tabela que se segue mostra o âmbito das conectivas de 4. e de 5.

Âmbito da condicional P → (Q ⋁ R)
4.
Âmbito da disjunção P → (Q ⋁ R)

Âmbito da condicional ( P → Q) ⋁ R
5.
Âmbito da disjunção ( P → Q) ⋁ R

Para deixar claro que 4. e 5. são significativamente diferentes, adotemos o


seguinte dicionário:
P = Eu vou ao cinema.
Q = Eu encontro Maria.
R = Eu encontro Ricardo.

De acordo com este dicionário, 4. e 5. representam, respetivamente, as


seguintes proposições:

Se eu vou ao cinema, então encontro Maria ou encontro Ricardo.


Se eu vou ao cinema, encontro Maria, a não ser que encontre Ricardo.

É evidente que estas duas proposições são diferentes:

A primeira é uma proposição condicional cuja consequente é uma


disjunção.
A segunda é uma proposição disjuntiva cuja primeira disjunta é uma
condicional.

126
PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Classifique as afirmações como verdadeiras (V) ou falsas (F):

(A) Se uma proposição P ⋀ Q for verdadeira, significa que as proposições


simples, P e Q, são verdadeiras.

(B) Se uma proposição P ⋁ Q for verdadeira, as proposições simples P e Q


podem ser ambas verdadeiras ou uma verdadeira e a outra falsa.

(C) Uma proposição ¬ P é verdadeira se P for verdadeira.

(D) Qualquer proposição da forma P → Q é verdadeira exceto se o antecedente


for verdadeiro e o consequente for falso.

(E) Qualquer proposição da forma P ↔ Q é verdadeira nos casos em que as


proposições que ocuparem os lugares de P e Q tenham o mesmo valor de verdade.

127
RESOLUÇÃO DAS ATIVIDADES/QUESTÕES PROPOSTAS (pág. 127):

1. Classifique as afirmações como verdadeiras (V) ou falsas (F):

(A) Se uma proposição P ⋀ Q for verdadeira, significa que as proposições


simples, P e Q, são verdadeiras. V (VERDADEIRA)
(B) Se uma proposição P ⋁ Q for verdadeira, as proposições simples P e Q
podem ser ambas verdadeiras ou uma verdadeira e a outra falsa. V (VERDADEIRA)
(C) Uma proposição ¬ P é verdadeira se P for verdadeira. F (FALSA)
(D) Qualquer proposição da forma A → B é verdadeira exceto se o antecedente
for verdadeiro e o consequente for falso. V (VERDADEIRA)
(E) Qualquer proposição da forma A ↔ B é verdadeira nos casos em que as
proposições que ocuparem os lugares de A e B tenham o mesmo valor de verdade. V
(VERDADEIRA)

128
TABELAS DE VERDADE
CONSTRUÇÃO DE TABELAS DE VERDADE

Vejamos agora como se constroem tabelas de verdade para fórmulas com mais
de uma conectiva.

É preciso calcular os valores de verdade pela ordem certa, começando pelas


conectivas com menor âmbito e acabando na conectiva principal, a qual é
calculada em último lugar, uma vez que é nesta conectiva (principal) que
encontramos o resultado final, isto é, o valor de verdade de toda a fórmula em cada
combinação possível dos valores de verdade das proposições simples.

Vejamos, pois, como se constrói uma tabela de verdade para, por exemplo, a
fórmula P ⋀ (P → Q).
A tabela a completar é a seguinte:

P Q P ⋀ (P → Q)

V V

V F

F V

F F

Uma vez desenhada a tabela, com uma fórmula (com mais do que uma
conectiva) já inserida, começa-se por calcular a coluna de →, aplicando-se a
definição da condicional, pois esta é a conectiva de menor âmbito, para se chegar a
este resultado:

P Q P ⋀ (P → Q)

V V V

V F F

F V V

F F V

129
Para concluir, calcula-se a coluna de ⋀, que é a conectiva principal, aplicando-
se a definição da conjunção a P e aos valores de verdade obtidos na coluna já
calculada, para se chegar a este resultado:

P Q P ⋀ (P → Q)

V V V V

V F F F

F V F V

F F F V

Conclui-se, assim, que a fórmula ¬ P ⋀ (P ⋁ ¬ Q) é verdadeira apenas quando


P e Q são verdadeiras.

Como segundo exemplo, consideremos a fórmula (P ⋁ Q) → ¬ Q. A tabela de


verdade para esta fórmula é a seguinte:

P Q (P ⋁ Q) → ¬ Q

V V V F F

V F V V V

F V V F F

F F F V V

Ordem do cálculo 1 2 1

Os números apresentados abaixo da tabela indicam a ordem pela qual é


preciso calcular os valores de verdade de cada conectiva. É indiferente começar
pela coluna de ⋁ ou pela coluna de ¬, mas só depois de termos completado estas
colunas podemos avançar para a conectiva da coluna principal. Esta é calculada
mediante a aplicação da definição de → aos valores de verdade previamente obtidos
nas outras duas colunas.
Da análise da tabela acima dada, conclui-se que a fórmula (P ⋁ Q) → ¬ Q é
verdadeira apenas no caso em que P é verdadeira e Q é falsa e no caso em que P e
Q são falsas.

130
DETERMINAÇÃO DO VALOR DE VERDADE DAS PROPOSIÇÕES

Uma vez compreendida a forma como devemos construir as tabelas de verdade


e definidas as funções de verdade, estamos preparados para determinar o valor de
verdade de proposições compostas (ou complexas).
O cálculo do valor de verdade de uma proposição complexa (ou composta)
faz-se numa tabela de verdade. Como já foi explicado, a tabela terá um cabeçalho,
duas colunas e o número de linhas necessário para ter em conta todas as
possibilidades de combinação dos valores de verdade das proposições
componentes.

Vamos apresentar três exemplos:

1. (P ⋀ Q) → P
2. ¬ ⦋ P → (P ⋁ Q) ⦌
3. P ↔ ¬ Q

1. O valor de verdade de (P ⋀ Q) → P

Para desenhar a tabela relativa à proposição (P ⋀ Q) → P, desenhamos o


cabeçalho, duas colunas e mais quatro linhas, pois a fórmula (P ⋀ Q) → P tem duas
proposições simples, P e Q.

Cabeçalho:
a) À esquerda, escrevemos todas as proposições simples que compõem a
fórmula.
b) À direita, escrevemos a fórmula.

Coluna da esquerda:
c) Escrevemos os valores de verdade de todas as possibilidades de combinação
de P e Q, alinhados por baixo de cada letra proposicional, um em cada linha. Na
primeira letra proposicional alterna “V” e “F” em grupos de dois. Na segunda letra
proposicional alterna “V” e “F” um a um.

Coluna da direita:
d) Identificamos o âmbito de cada operador ou conectiva lógica.

131
e) Calculamos os valores de verdade da fórmula, começando por calcular os
valores da conectiva de menor âmbito (neste caso, P ⋀ Q).
f) Calculamos os valores para cada linha.

Qual é, pois, o valor de verdade de (P ⋀ Q) → P?


É verdadeira em todas as linhas da tabela. Chamamos tautologias às
proposições que são verdadeiras sejam quais forem os valores de verdade das
proposições componentes, isto é, são verdadeiras apenas em virtude da sua forma
lógica.
Vejamos, pois:

P Q (P ⋀ Q) → P

V V V V

V F F V

F V F V

F F F V

Ordem do cálculo 1 2

O valor de verdade de (P ⋀ Q) obtém-se Com base nos valores de verdade de


aplicando a regra da conjunção (uma P⋀Q e de P, aplica-se a regra da
conjunção só é verdadeira se ambas as condicional (uma condicional só é falsa
proposições simples forem verdadeiras). quando o antecedente é verdadeiro e o
consequente é falso).

2. O valor de verdade de ¬ ⦋P → (P ⋁ Q)⦌


Neste caso, a fórmula tem três conectivas: ¬, → e ⋁. A conectiva de âmbito mais
longo é a negação, definida pela existência de um parêntesis reto, uma vez que já
usámos um parêntesis curvo.

A ordem do cálculo será:


1. P ⋁ Q, pois ⋁ é a conectiva de menor âmbito.

132
2. O valor de verdade da condicional →, em que o antecedente é P ⋁ Q.
3. O valor de verdade da negação, que afeta toda a fórmula.

P Q ¬ ⦋P → (P ⋁ Q)⦌

V V F V V

V F F V V

F V F V V

F F F V F

Ordem do cálculo 3 2 1

A proposição é falsa em todas as circunstâncias da tabela de verdade. Por isso


dizemos que a sua falsidade depende da forma lógica e chamamos-lhe contradição.

As contradições são falsidades lógicas, isto é, são negações de verdades


lógicas.

3. O valor de verdade de P ↔ ¬ Q

P Q P↔¬Q

V V F F

V F V V

F V V F

F F F V

Ordem do cálculo 2 1

Neste caso, estamos perante uma fórmula verdadeira em algumas linhas da


tabela e falsa noutras. Trata-se de uma proposição contingente.
Chamamos contingentes (ou contingências) às proposições cuja verdade ou
falsidade não pode ser determinada apenas em função da sua forma lógica, sendo
que em algumas circunstâncias são verdadeiras e noutras falsas.

Podemos concluir que há três tipos de proposições compostas:


133
- Tautologias – proposições compostas que são verdadeiras, qualquer que seja o
valor de verdade das proposições componentes.

- Contradições – proposições compostas que são falsas, qualquer que seja o valor de
verdade das proposições componentes.

- Contingências – proposições que são verdadeiras em algumas circunstâncias e


falsas noutras; a sua verdade não depende da sua forma lógica, mas do valor de
verdade das proposições que as compõem.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Tendo em conta o dicionário seguinte, transcreva para linguagem


proposicional as frases apresentadas.

Dicionário:
Hoje faço anos – P
Hoje é dia de festa – Q

Frases em linguagem natural:

(A) Não faço anos hoje.

(B) Hoje faço anos e é um dia de festa.

(C) Hoje faço anos ou não é um dia de festa.

(D) Se hoje faço anos, então é um dia de festa.

(E) Hoje é um dia de festa se, e somente se, hoje fizer anos.

2. Considere a fórmula (P → Q) ↔ ⦋ ¬ (P ⋀ ¬ Q) ⦌

2.1 Identifique a conectiva principal e justifique.

2.2 Determine o valor de verdade da fórmula proposicional por meio de uma


tabela de verdade.

2.3 Classifique a proposição composta quanto ao valor de verdade.

134
3. Classifique as seguintes fórmulas proposicionais, presentes nas alíneas
a) e b), quanto ao seu valor de verdade, mediante a construção de tabelas de
verdade, e justifique cada uma delas.

a) P → Q
b) (P ⋀ Q) ⋀ ¬ Q

4. Selecione a opção correta.


A fórmula proposicional (P → Q) ↔ (¬ P → ¬ Q) é:
(A) Uma tautologia.
(B) Uma contradição.
(C) Uma contingência.
(D) Uma falsidade lógica.

135
RESOLUÇÃO DAS ATIVIDADES/QUESTÕES PROPOSTAS (pp. 134 e 135):

1. Tendo em conta o dicionário seguinte, transcreva para linguagem


proposicional as frases apresentadas.

Dicionário:
Hoje faço anos – P
Hoje é dia de festa – Q

Frases em linguagem natural:


(A) Não faço anos hoje.
RESPOSTA: ¬ P

(B) Hoje faço anos e é um dia de festa.


RESPOSTA: P ⋀ Q

(C) Hoje faço anos ou não é um dia de festa.


RESPOSTA: P ⋁¬ Q

(D) Se hoje faço anos, então é um dia de festa.


RESPOSTA: P → Q

(E) Hoje é um dia de festa se, e somente se, hoje fizer anos.
RESPOSTA: Q ↔ P

2. Considere a fórmula (P → Q) ↔ ⦋ ¬ (P ⋀ ¬ Q) ⦌

2.1 Identifique a conectiva principal e justifique.


RESPOSTA: a conectiva principal é a bicondicional, pois é o operador que
afeta toda a fórmula.

2.2 Determine o valor de verdade da fórmula proposicional (acima dada) por


meio de uma tabela de verdade.
RESPOSTA:

P Q (P → Q) ↔ ¬ (P ⋀ ¬ Q)

136
V V V V V F F

V F
F V F V V

F V V V V F F

F F V V V F V

Ordem do cálculo 4 5 3 2 1

2.3 Classifique a proposição composta quanto ao valor de verdade.

RESPOSTA: a proposição composta, quanto ao seu valor de verdade, é uma


tautologia, ou verdade lógica, pois é verdadeira em todas as circunstâncias da
tabela.

3. Classifique as seguintes fórmulas proposicionais, presentes nas alíneas


a) e b), quanto ao seu valor de verdade, mediante a construção de tabelas de
verdade, e justifique cada uma delas.

a) P → Q
RESPOSTA:

P Q P→Q
V V V

V F F

F V V

F F V

CLASSIFICAÇÃO E RESPETIVA JUSTIFICAÇÃO: a fórmula proposicional, quanto


ao seu valor de verdade, é uma CONTINGÊNCIA, pois, é verdadeira em algumas
circunstâncias e falsa noutras.

b) (P ⋀ Q) ⋀ ¬ Q
RESPOSTA:

P Q (P ⋀ Q) ⋀ ¬ Q

V V
V F F

V F F F V

137
F V F F F

F F F F V

Ordem do cálculo 2 3 1

CLASSIFICAÇÃO E RESPETIVA JUSTIFICAÇÃO: a fórmula proposicional, quanto


ao seu valor de verdade, é uma CONTRADIÇÃO, pois é falsa em todas as
circunstâncias da tabela.

4. Selecione a opção correta.


A fórmula proposicional (P → Q) ↔ (¬ P → ¬ Q) é:
(A) Uma tautologia.
(B) Uma contradição.
(C) Uma contingência.
(D) Uma falsidade lógica.

138
DETERMINAÇÃO DA VALIDADE OU INVALIDADE DOS ARGUMENTOS

Um argumento é, como já sabemos, um conjunto de proposições, premissas


e conclusão. As premissas devem estar de tal modo relacionadas que sustentem a
conclusão.

Há argumentos dedutivos e argumentos não dedutivos. Somente os argumentos


dedutivos são formalmente válidos, isto é, válidos em virtude da sua forma lógica.
Como já sabemos também, um argumento dedutivo válido é um argumento em que
é impossível ter todas as premissas verdadeiras e a conclusão falsa.

A lógica proposicional permite-nos testar a validade dos argumentos com


base nas combinações do valor de verdade das proposições simples e das
condições de verdade das conectivas lógicas.

Podemos determinar a validade de muitos argumentos através de tabelas de


verdade. Para determinar a validade de cada um desses argumentos, faz-se uma tabela
de verdade que mostre o valor de verdade de cada uma das suas premissas e da
conclusão em todos os casos possíveis.

INSPETORES DE CIRCUNSTÂNCIAS

Deste processo de determinação da validade dos argumentos faz parte um


dispositivo gráfico chamado “inspetor de circunstâncias”, que consiste numa tabela
de verdade semelhante às tabelas que usamos para determinar o valor de verdade
das proposições complexas (ou compostas), para testar a validade dos argumentos
dedutivos. É nesta tabela que se calculam os valores de verdade das premissas e
da conclusão de um argumento.
139
Consideremos o seguinte argumento:

P→Q
P
∴Q
Na coluna da esquerda, escrevemos as letras proposicionais e os respetivos
valores de verdade.
Na coluna da direita, em vez da fórmula proposicional, escrevemos o
argumento: a premissa ou premissas, separadas por vírgulas, seguidas da palavra
“logo”, ou do sinal ∴, e a conclusão.
Testamos a validade de um argumento verificando se há alguma circunstância
(alguma linha da tabela) que apresente premissas verdadeiras e conclusão falsa. Se
existir, o argumento é inválido. Se não existir, o argumento é válido.

Atentemos, pois, na seguinte tabela:

P Q P → Q, P , ∴ Q

V V V V V

V F F V F

F V V F V

F F V F F

No argumento em análise, podemos concluir que na única circunstância em


que as premissas são ambas verdadeiras (linha 1), a conclusão também é
verdadeira; portanto, o argumento é válido. Assim:
Se, na tabela de verdade, não existir qualquer linha com todas as premissas
verdadeiras e a conclusão falsa, o argumento tem uma forma válida.

Se, na tabela de verdade, existir pelo menos uma linha com todas as
premissas verdadeiras e a conclusão falsa, o argumento tem uma forma inválida.

Ora, dado que na tabela construída nenhuma linha tem ambas as premissas
verdadeiras e a conclusão falsa, conclui-se que o argumento é válido.

Determinemos agora a validade do seguinte argumento:

140
Se os seres humanos não são moralmente responsáveis, então não têm livre-
arbítrio. Ora, os seres humanos não têm livre-arbítrio. Por isso, não têm
responsabilidade moral.

Temos que começar por construir um dicionário:

Os seres humanos são moralmente responsáveis – P


Os seres humanos têm livre-arbítrio – Q

Este é um dicionário correto, pois capta adequadamente as duas proposições


simples que figuram no argumento, o qual se formaliza da seguinte forma:

¬P→¬Q

¬Q
∴¬P

O próximo passo é construir a tabela de verdade, que é a seguinte:

P Q ¬ P → ¬ Q, ¬ Q ∴ ¬ P

V V F V F F F

V F F V V V F

F V V F F F V

F F V V V V V

Finalmente, analisa-se a tabela: dado que no segundo caso possível (aquele


em que P é verdadeira e Q é falsa) ambas as premissas são verdadeiras e a
conclusão é falsa, o argumento é inválido.
Assim, e no âmbito do que está a ser exposto, podemos considerar que um
argumento válido é aquele em que não há nenhuma circunstância em que as
premissas sejam todas verdadeiras e a conclusão falsa e que um argumento
inválido é aquele em que há pelo menos uma circunstância em que as premissas
são todas verdadeiras e a conclusão é falsa.

Determinemos agora a validade de um argumento com três letras proposicionais


(P, Q e R):

141
“Se Deus existe, então João vai para o paraíso ou vai para o inferno. Ora, Deus
existe, mas João não vai para o paraíso. Logo, João vai para o inferno.”

Neste argumento figuram três proposições simples. Um dicionário correto é o


seguinte:

Deus existe – P
João vai para o paraíso – Q
João vai para o inferno – R

E a formalização correta é esta:

P → (Q ⋁ R)
P⋀¬Q
∴R

Para completar a tabela, é preciso calcular os valores de verdade pela ordem


certa. Assim, de acordo com este procedimento, em cada fórmula é preciso começar
pelas conectivas de menor âmbito.

Atentemos, pois, na tabela seguinte:

P Q R P → (Q ⋁ R), P ⋀ ¬ Q ∴ R

V V V V V F F V

V V F F F
V V F

V V V V V
V F V

V F F F F V V F

F V V V V F F V

F V F V V F F F

F F V V V F V V

F F F V F F V F

Da análise desta tabela conclui-se que o argumento é válido. Afinal, existe


apenas um caso possível (o terceiro) em que ambas as premissas são verdadeiras,
mas, neste caso, a conclusão é também verdadeira.
142
FORMAS DE INFERÊNCIA VÁLIDAS

A lógica proposicional permite-nos reconhecer que os argumentos que têm certas


formas lógicas são válidos, seja qual for o seu conteúdo.
As duas primeiras, das sete formas válidas que devemos conhecer, são as
seguintes: Modus Ponens (ou afirmação da antecedente) e Modus Tollens (ou
negação da consequente).
Vejamos:

1. Modus ponens 2. Modus tollens

P→Q
P→Q
P
¬Q
∴Q
∴¬P

Como podemos observar, a primeira premissa de ambas as formas é uma


proposição condicional. A outra premissa afirma a antecedente em 1. (Modus
Ponens ou afirmação da antecedente) ou nega a consequente em 2. (Modus Tollens ou
negação da consequente).

Também a forma do Modus tollens apresenta, no inspetor de circunstâncias,


conclusão verdadeira na circunstância em que as premissas são ambas verdadeiras.
Trata-se de um argumento válido, conforme podemos constatar observando a tabela
que se segue:

P Q P → Q, ¬ Q, ∴ ¬ P

V V V F F

V F F V F

F V V F V

F F V V V

Note-se que P e Q são variáveis de fórmula, o que significa que podemos ter no
seu lugar qualquer proposição, seja ela simples ou complexa.

143
Qualquer argumento em que uma premissa seja uma proposição
condicional, a outra premissa afirme a antecedente dessa condicional e a
conclusão afirme a sua consequente é um exemplo ou uma “instância” do MODUS
PONENS (ou afirmação da antecedente).

E qualquer argumento em que uma premissa seja uma proposição


condicional, a outra premissa negue a consequente dessa condicional e a
conclusão negue a sua antecedente é um exemplo ou uma “instância” do MODUS
TOLLENS (ou negação da consequente).
Basicamente, no Modus ponens temos a afirmação da antecedente:
P→Q
P
∴Q
No Modus tollens temos a negação da consequente:
P→Q
¬Q
∴¬P

Na tabela que se segue (na página seguinte) encontramos algumas das inúmeras
instâncias destas duas formas válidas:

Instâncias do Modus ponens Instâncias do Modus tollens

1) P → Q 1) P → Q
P ¬Q
∴Q ∴¬P
2) ¬ P → Q 2) ¬ P → Q
¬P ¬Q
∴Q ∴¬¬P
3) (P ⋀ Q) → (R ⋁ S) 3) (Q ⋀ P) → (R ⋁ S)
P⋀Q ¬ (R ⋁ S)
∴R⋁S ∴¬P⋀Q
4) (P ⩒ ¬ Q) → ¬ R 4) (P ↔ ¬ Q) → ¬ R
P⩒¬Q ¬¬R

144
∴¬R ∴ ¬ (P ↔ ¬ Q)

Outras duas formas válidas são as seguintes:

3. Silogismo disjuntivo 4. Silogismo hipotético

P⋁Q P⋁Q P→Q


¬P ou Q Q→R

∴Q ∴P ∴P→R

Obviamente, também estas formas têm inúmeras instâncias. Por exemplo, esta é
uma instância do silogismo disjuntivo:

(P ⋀ Q) ⋁ R
¬ (P ⋀ Q)
∴R
Em termos mais simples, o silogismo disjuntivo formula argumentos em que
uma das premissas é uma disjunção e a outra nega uma das proposições
disjuntas. A conclusão afirma a outra premissa disjunta:
P⋁Q
¬P

∴Q

E esta uma instância do silogismo hipotético:

¬P→¬Q
¬Q→¬R
∴¬P→¬R

Em termos mais simples, o silogismo hipotético formula argumentos em que


as premissas e a conclusão são proposições condicionais. Se uma proposição P
implica uma proposição Q, e se a proposição Q implica R, então a proposição P
implica R:
P→Q
Q→R
∴P→R
145
Outras duas formas válidas a considerar são as seguintes:

5. Contraposição 6. Leis de De Morgan

¬ (P ⋁Q) ≡ ¬ P ⋀ ¬ Q
P→Q≡¬Q→¬P
¬ (P ⋀Q) ≡ ¬ P ⋁ ¬ Q

Encontramos aqui um símbolo novo, ≡. Este símbolo significa que tanto


podemos inferir a segunda parte da fórmula a partir da primeira como inferir a
primeira parte da fórmula a partir da segunda.

Portanto, por contraposição, podemos fazer esta duas inferências:

P→Q∴¬Q→¬P
¬Q→¬P∴P→Q

Assim, e segundo a regra da contraposição, contrapor equivale a inverter o


antecedente e o consequente de uma condicional, negando-os ao mesmo tempo.
Dado que a condicional não é comutativa, P → Q não é equivalente a Q → P.

E, pelas Leis de De Morgan, podemos fazer estas quatro inferências:

¬ (P ⋁Q) ∴ ¬ P ⋀ ¬ Q
¬ P ⋀ ¬ Q ∴ ¬ (P ⋁Q)
¬ (P ⋀Q) ∴ ¬ P ⋁ ¬ Q
¬ P ⋁ ¬ Q ∴ ¬ (P ⋀Q)

Assim, as Leis de De Morgan são leis de equivalência lógica entre a


conjunção e a disjunção que permitem inferir da conjunção uma disjunção e da
disjunção uma conjunção.
A negação da conjunção de P e Q é equivalente à disjunção da negação de
P e da negação de Q.
A negação da disjunção de P e Q é equivalente à conjunção da negação de
P e de Q.
Assim:
¬ (P ⋀Q) ¬ (P ⋁Q)
∴¬P⋁¬Q ∴¬P⋀¬Q
146
Para interiorizar (apreender, compreender e conservar na memória) as Leis de
De Morgan, importa reter as seguintes ideias:

- Negar uma disjunção P ⋁Q, é o mesmo que negar P e negar Q.


- Negar uma conjunção P ⋀Q, é o mesmo que negar P ou negar P.

Obviamente, também a contraposição e as Leis de De Morgan, admitem


inúmeras instâncias.
Para concluir, consideremos esta forma válida muito simples, que consiste em
negar duplamente uma proposição:

7. Negação dupla

P≡¬¬P
ou
¬¬P∴P

De acordo com a regra da negação dupla (ou da dupla negação), negar duas
vezes uma proposição é o mesmo que afirmá-la, ou seja, negar duplamente uma
proposição equivale à sua negação.
Por exemplo, dizer: “É falso que seja falso que está a chover.” equivale a dizer:
“Está a chover.” ou “É verdade que está a chover.”

¬¬P
∴P

147
PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Formalize os seguintes argumentos (um silogismo disjuntivo e um


argumento condicional) e teste a sua validade, usando, para o efeito, inspetores
de circunstâncias. Justifique.

a) Ou apanho boleia ou vou a pé. Não apanho boleia, portanto vou a pé.

b) Se a lógica ensina a pensar, então é útil. A lógica ensina a pensar. Por


conseguinte, é útil.

2. Classifique as seguintes afirmações como verdadeiras (V) ou falsas (F):

(A) A negação da proposição condicional “Se Ana vai ao cinema, então o Paulo
também vai” é: “Ou a Ana ou o Paulo vão ao cinema.”

(B) P → Q não é equivalente a Q → P, pois a condicional não é comutativa.

(C) ¬ (P ⋁Q) é equivalente a ¬ P ⋁¬ Q.

3. Selecione, em cada um dos casos, a única opção correta:

3.1 As fórmulas P ⋀Q e P ⋁Q são, respetivamente:

(A) Uma conjunção e uma condicional.

148
(B) Uma condicional e uma disjunção.

(C) Uma conjunção e uma disjunção.

(D) Uma conjunção e uma condicional.

3.2 Uma proposição que, na tabela de verdade, seja falsa numas


circunstâncias e verdadeira noutras é:

(A) Uma contradição.

(B) Uma falsidade lógica.

(C) Uma tautologia.

(D) Uma contingência.

3.3 ¬ Q → ¬ P ∴ P → Q traduz:

(A) A regra dupla da negação.

(B) A regra da condicional negada.

(C) A regra da contraposição.

(D) Uma das Leis de De Morgan.

3.4 Teste a validade do seguinte argumento (indique se é válido ou inválido) e


justifique:

(P → Q) ⋀ (Q ⋁ ¬ R), ¬ R, ∴ ¬ P.

149
RESOLUÇÃO DAS ATIVIDADES/QUESTÕES PROPOSTAS (pp. 148-149):

1. Formalize os seguintes argumentos, começando pelo dicionário (um


silogismo disjuntivo e um argumento condicional), e teste a sua validade, usando,
para o efeito, inspetores de circunstâncias. Justifique.

a) Ou apanho boleia ou vou a pé. Não apanho boleia, portanto vou a pé.

b) Se a lógica ensina a pensar, então é útil. A lógica ensina a pensar. Por


conseguinte, é útil.
RESPOSTAS:
a) Dicionário:
Apanho boleia – P
Vou a pé – Q

Tabela (inspetor de circunstâncias):

P Q P ⋁ Q, ¬ P ∴ Q

V V V F V
150
V F V F F

F V V V V

F F F V F

Justificação: na única circunstância em que as duas premissas são verdadeiras


(linha 3), a conclusão também é verdadeira; por isso, o argumento é válido.

b) Dicionário:
A lógica ensina a pensar – P
A lógica é útil – Q

Tabela (inspetor de circunstâncias):

P Q P → Q, P ∴ Q

V V V V V

V F F V F

F V V F V

F F V F F
Justificação: na única circunstância em que as duas premissas são verdadeiras
(linha 1), a conclusão também é verdadeira; por isso, o argumento é válido.

2. Classifique as seguintes afirmações como verdadeiras (V) ou falsas (F):

(A) A negação da proposição condicional “Se Ana vai ao cinema, então o Paulo
também vai” é: “Ou a Ana ou o Paulo vão ao cinema.” F

(B) P → Q não é equivalente a Q → P, pois a condicional não é comutativa. V

(C) ¬ (P ⋁Q) é equivalente a ¬ P ⋁¬ Q F

3. Selecione, em cada um dos casos, a única opção correta:

3.1 As fórmulas P ⋀Q e P ⋁Q são, respetivamente:

(A) Uma conjunção e uma condicional.

(B) Uma condicional e uma disjunção.

(C) Uma conjunção e uma disjunção.

(D) Uma conjunção e uma condicional.

151
3.2 Uma proposição que, na tabela de verdade, seja falsa numas
circunstâncias e verdadeira noutras é:

(A) Uma contradição.

(B) Uma falsidade lógica.

(C) Uma tautologia.

(D) Uma contingência.

3.3 ¬ Q → ¬ P ∴ P → Q traduz:

(A) A regra dupla da negação.

(B) A regra da condicional negada.

(C) A regra da contraposição.

(D) Uma das Leis de De Morgan.

3.4 Após testar a validade do seguinte argumento, indique apenas se é


válido ou inválido e justifique:

(P → Q) ⋀ (Q ⋁ ¬ R), ¬ R, ∴ ¬ P
RESPOSTA:
Indicação: argumento inválido.

Justificação: numa das circunstâncias em que ambas as premissas são


verdadeiras (linha 5), a conclusão é falsa.

152
PRINCIPAIS FALÁCIAS FORMAIS

DEFINIÇÃO DE FALÁCIA

Será que fazemos sempre inferências corretas, ou seja, construímos argumentos


e deles extraímos conclusões válidas?
Se não tivermos cuidado ou estivermos desatentos, podemos cometer erros…
É que certos argumentos têm formas aparentemente válidas, mas na
verdade não têm. Podem parecer válidos porque se assemelham a formas válidas, o
que os torna enganadores.
Assim, chamamos falácia ao argumento que, parecendo válido, é, na
realidade inválido, uma vez que viola pelo menos uma das regras da lógica.

Existem falácias formais e falácias informais.

Falácias formais são argumentos dedutivos cuja forma não é válida, isto é,
em que a conclusão não decorre das premissas, não sendo, pois, sustentada ou
justificada por elas.

153
As falácias formais apresentam pelo menos uma circunstância em que as
premissas são verdadeiras e a conclusão é falsa.

Falácias informais são argumentos cuja invalidade não depende


exclusivamente da forma lógica, mas do conteúdo das proposições constituintes
(as quais iremos abordar mais à frente).

Existindo diferentes tipos de erros, existem, naturalmente, vários tipos de


falácias e muitas maneiras diferentes de as classificar.

Por agora, iremos analisar alguns exemplos de falácias formais (e só a seguir,


como já fizemos referência, é que analisaremos algumas falácias informais):

EXEMPLO DE ARGUMENTOS VÁLIDOS EXEMPLO DE FALÁCIAS FORMAIS

Modus Ponens Falácia da afirmação da consequente

P→Q P→Q
P Q
∴Q ∴P

EXEMPLO DE ARGUMENTOS VÁLIDOS EXEMPLO DE FALÁCIAS FORMAIS

Modus Tollens Falácia da negação da antecedente

P→Q P→Q
¬Q ¬P
∴¬P ∴¬Q

EXEMPLO DE ARGUMENTOS VÁLIDOS EXEMPLO DE FALÁCIAS FORMAIS

Contraposição Falácia da inversão da condicional

P→Q P→Q
∴¬Q→¬P ∴Q→P

154
EXEMPLO DE ARGUMENTOS VÁLIDOS EXEMPLO DE FALÁCIAS FORMAIS

Condicional negada Falácia da condicional negada

¬ (P → Q) ¬ (P → Q)
∴P⋀¬Q ∴¬P→¬Q

PROPOSTA DE ATIVIDADES/EXERCÍCIOS DE VERIFICAÇÃO E DE CONSOLIDAÇÃO


DAS APRENDIZAGENS:

1. SELECIONE A ALTERNATIVA CORRETA:


1. 1 “Todos os cães são amigáveis” e “Nenhum cão amigável” exprimem
proposições que mantêm entre si uma relação de:
(A) Contradição.
(B) Contrariedade.
(C) Subcontrariedade.
(D) Subalternidade.

1. 2 Uma proposição de tipo E:


(A) É particular na sua quantidade e negativa na sua qualidade.
(B) É universal na sua quantidade e negativa na sua qualidade.
(C) É universal na sua qualidade e negativa na sua quantidade.
155
(D) É particular na sua qualidade e negativa na sua quantidade.

1.3 As proposições de tipo I e de tipo O com os mesmos termos são:


(A) Contraditórias.
(B) Contrárias.
(C) Subcontrárias.
(D) Subalternas.

1. 4 Suponha que uma certa proposição de tipo A é falsa. Nesse caso, pode-
se determinar o valor de verdade:
(A) Da sua contraditória, da sua contrária e da sua subalterna.
(B) Só da sua contraditória e da sua contrária.
(C) Só da sua contraditória e da sua subalterna.
(D) Só da sua contrária e da sua subalterna.

1. 5 Suponha que uma certa proposição de tipo E é verdadeira. Nesse caso,


pode-se determinar o valor de verdade:
(A) Da sua contraditória, da sua contrária e da sua subalterna.
(B) Só da sua contraditória e da sua contrária.
(C) Só da sua contraditória e da sua subalterna.
(D) Só da sua contrária e da sua subalterna.

1. 6 Uma condicional é falsa só se:


(A) A antecedente e a consequente são falsas.
(B) A antecedente e a consequente são verdadeiras.
(C) A antecedente é verdadeira e a consequente é falsa.
(D) A antecedente é falsa e a consequente é verdadeira.

1. 7 Uma conjunção é verdadeira só se:


(A) Ambas as conjuntas são verdadeiras.
(B) Ambas as conjuntas são falsas.
(C) A primeira conjunta é verdadeira e a segunda é falsa.
(D) A primeira conjunta é falsa e a segunda é verdadeira.

1. 8 P → ¬ Q ∴ ¬ ¬ Q → ¬ P é uma instância:
(A) Das leis de De Morgan.

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(B) Da contraposição.
(C) Do modus ponens.
(D) Do modus tollens.

1. 9 (P ⋁ Q) → ¬ R, ¬ ¬ R ∴ ¬ (P ⋁ Q) é uma instância:
(A) Do modus ponens.
(B) Do modus tollens.
(C) Da falácia da negação da antecedente.
(D) Da falácia da afirmação da consequente.

1. 10 De ¬ (P ⋀ Q) → R pode-se inferir validamente:


(A) R → ¬ (P ⋀ Q)
(B) R → (P ⋁ Q)
(C) ¬ R → (P ⋀ Q)
(D) ¬ R → ¬ (P ⋁ Q)

2. TRADUZA CADA UMA DAS AFIRMAÇÕES QUE SE SEGUEM PARA A SUA


FORMA CANÓNICA E INDIQUE O SEU TIPO:
1. Qualquer marciano é voador.
2. Não existem quadrados redondos.
3. Os portugueses habitam a Europa.
4. Há músicos que apreciam matemática.
5. Nenhum cristão acredita na reencarnação.
6. Certos artistas não são especialmente criativos.
7. Existem felinos surpreendentemente meigos.
8. Um político honesto é alguém que sabe ouvir os cidadãos.
9. Os peixes não sobrevivem fora da água.
10. Alguns pianos de cauda custam uma fortuna.
11. Há quem seja admirador de Mozart e de Metallica.
12. Qualquer empirista que se preze não tem religião.
13. Nem todos os mamíferos são animais selvagens.
14. Pelo menos um filósofo não gosta de lógica.
15. Nada é simultaneamente carnívoro e herbívoro.

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3. CONSIDERE CADA UMA DAS PROPOSIÇÕES SEGUINTES E O VALOR DE
VERDADE QUE LHE É ATRIBUÍDO ENTRE PARÊNTESIS. IDENTIFIQUE O SEU
TIPO E DIGA O QUE SE PODE INFERIR QUANTO AO VALOR DE VERDADE DAS
OUTRAS TRÊS PROPOSIÇÕES QUE FIGURARIAM NO QUADRADO DA
OPOSIÇÃO:
1. Alguns empiristas são céticos. (Verdadeira)
2. Nenhum animal com garras é herbívoro. (Falsa)
3. Todos os predadores são animais com garras. (Falsa)
4. Alguns católicos não são socialistas. (Verdadeira)
5. Alguns músicos são apreciadores de Bach. (Falsa)
6. Todos os ditadores são inimigos da liberdade. (Verdadeira)
7. Nenhum defensor da pena de morte é homicida. (Verdadeira)
8. Alguns heróis não são corajosos. (Falsa)

4. FORMALIZE CADA UMA DAS FRASES QUE SE SEGUEM NA LÓGICA


PROPOSICIONAL:
1. A virtude não se ensina.
2. João gosta de jazz ou de música clássica.
3. Este livro é interessante e claro.
4. Não é verdade que este livro seja interessante e claro.
5. Este livro não é interessante nem claro.
6. O Benfica ganha, a menos que o Sporting empate e o Porto ganhe.
7. Maria vai passar de ano, a não ser que não estude o suficiente.
8. Platão era filósofo, mas não gostava da democracia.
9. É falso que os gatos sejam egoístas ou interesseiros.
10. Ou lavo a loiça ou varro o chão.

5. FORMALIZE CADA UMA DAS FRASES QUE SE SEGUEM NA LÓGICA


PROPOSICIONAL:
1. Dou-te o livro se, e apenas se, cumprires a tua promessa.
2. Se Deus existe o mundo não surgiu por acaso.
3. Vou ao cinema se tiver tempo para estudar.
4. Vou ao cinema apenas se tiver tempo para estudar.
5. Se não tiver tempo para estudar, não vou ao cinema.
6. Não vou ao cinema se, e somente se, não tiver tempo para estudar.

158
7. Basta que esteja calor para as férias serem boas.
8. O Porto poderá vencer o campeonato caso o Benfica não ganhe.
9. Uma condição suficiente para João ser eleito é Miguel não ser eleito.
10. Se Mariana for eleita, então precisa de baixar os impostos para cumprir o seu
programa.

6. FORMALIZE CADA UM DOS ARGUMENTOS QUE SE SEGUEM NA LÓGICA


PROPOSICIONAL:
1. Se a arte é expressão de sentimentos, então a arquitetura exprime sentimentos
ou não é uma arte.
2. A ética é subjetiva somente se os valores são subjetivos, mas os valores não
são subjetivos.
3. A música é arte se exprime sentimentos, a menos que a arte não seja a
expressão de sentimentos.
4. Se está a chover ou a nevar, então não está calor e as férias estão estragadas.
5. Não é verdade que, se Deus não existe, o bem é uma ilusão e podemos fazer
tudo.
6. Se Joana ou Sara são culpadas, então a testemunha mentiu. Mas a
testemunha não mentiu. Logo, Sara não é culpada.
7. É falso que Fernando Pessoa seja um poeta e um pintor. Ora, Fernando
Pessoa é um poeta. Logo, Fernando Pessoa não é um pintor.
8. Existe vida após a morte somente se a alma humana não é material. Portanto,
existe vida após a morte, pois a alma humana não é material.
9. O Benfica ou ganha ou não ganha. Se o Benfica ganhar, o Sporting vence o
campeonato. Se o Benfica não ganhar, o Porto vence o campeonato. Portanto o
Sporting ou o Porto vencem o campeonato.
10. Se Miguel gosta de Metallica, então vai ao concerto. Se ele vai ao concerto,
então não vai ao cinema nem vai ao teatro. E se ele não vai ao cinema nem ao teatro,
então gosta de Metallica. Logo, Miguel gosta de Metallica se, e apenas se, vai ao
concerto.

7. CONSIDERE O SEGUINTE DICIONÁRIO:


A = Pedro é culpado.
B = Carla é culpada.
C = As provas são forjadas (falsificadas).

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D = Uma testemunha mentiu.
E = O criminoso continua livre.

7. 1 BASEANDO-SE NESTE DICIONÁRIO, TRADUZA PARA FRASES DA


LÍNGUA PORTUGUESA CADA UMA DAS FÓRMULAS QUE SE SEGUEM:
1. A ↔ ¬ B
2. (A ⋀ B) ⋁ C
3. ¬ B → (C ⩒ D)
4. ¬ (A ⋀ B) ↔ (D ⋁ E)
5. E ↔ (C ⋁ D)
6. (¬ A ⋀ ¬ B) → C
7. (C → D) ⋀ A
8. E → ⦋D ⋀ (A ⋁ B)⦌
9. (A → E) ⋀ (B → ¬ E)
10. ⦋(A ⋁ B) → C⦌ ⋁ D

8. CONSTRUA TABELAS DE VERDADE PARA CADA UMA DAS FÓRMULAS


QUE SE SEGUEM:
1. (A ⋁ B) → B
2. ¬ (A ⋀ ¬ B)
3. A ↔ (B ⋀ A)
4. (A → B) ⋀ (B → A)
5. ¬ (A ⋁ B) → ¬ B
6. ¬ A → ¬ B
7. ¬ (A ⋀ B) ↔ ¬ (A ⋁ B)
8. C ⋀ (A → B)
9. ⦋(C → A) ⋀ B⦌ → A
10. ¬ (A ⋁ C) → (¬ B ⋀ ¬ A)

9. DETERMINE A VALIDADE DE CADA UMA DAS FORMAS


ARGUMENTATIVAS QUE SE SEGUEM, MEDIANTE A CONSTRUÇÃO E A ANÁLISE
DE TABELAS DE VERDADE:
1. A → B ∴ B → A
160
2. A ↔ ¬ B ∴ ¬ B → A
3. ¬ (A ⋀ B) ∴ ¬ A ⋁ ¬ B
4. ¬ (A ⋀ B), ¬ A ∴ ¬ B
5. A → (B ⩒ C), ¬ C ∴ ¬ A

10. DETERMINE A VALIDADE DE CADA UM DOS ARGUMENTOS QUE SE


SEGUEM, MEDIANTE A CONSTRUÇÃO E A ANÁLISE DE TABELAS DE VERDADE.
1. Se as pessoas têm direitos, têm deveres. Ora, as pessoas têm deveres. Logo,
têm direitos.
2. Se tudo é material, a alma humana é mortal. Logo, nem tudo é material ou a
alma humana é mortal.
3. Dado que Manuel estuda ou não passa de ano, ele não vai passar de ano, pois
não estuda.
4. Não é verdade que os cristãos e os budistas tenham ambos razão. Logo, os
cristãos não têm razão e os budistas não têm razão.
5. Deus existe se o mundo teve um começo. Ora, o mundo teve um começo.
Portanto, Deus existe se, e apenas se, o mundo teve um começo.
6. Se Maria não é culpada, também João não é culpado. Portanto, Maria não é
culpada, a não ser que João o seja.
7. Amanhã chove ou não chove. Se amanhã chover, falto às aulas. Se não
chover, falto às aulas. Se não chover, falto às aulas. Logo, falto às aulas.
8. Se abriste o computador ou não enviaste o registo, a garantia é nula. Não
abriste o computador e enviaste o registo. Logo, a garantia não é nula.
9. O Benfica ganha, a não ser que o Porto e o Sporting empatem. Mas o Sporting
não empata. Logo, o Benfica ganha.
10. Se tudo é material, tudo obedece às leis da natureza. E não somos livres se
tudo obedece às leis da natureza. Por isso, não somos livres somente se tudo é material.

11. CONSIDERE AS SEGUINTES FORMAS DE INFERÊNCIA VÁLIDAS E


FALÁCIAS FORMAIS:
A. Modus ponens.
B. Modus tollens.
C. Silogismo disjuntivo.
D. Silogismo hipotético.

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E. Contraposição.
F. Leis de De Morgan.
G. Falácia da afirmação da consequente.
H. Falácia da negação da antecedente.

11.1 INDIQUE A FORMA DA INFERÊNCIA VÁLIDA OU A FALÁCIA FORMAL


QUE É INSTANCIADA EM CADA UMA DAS FORMAS ARGUMENTATIVAS QUE SE
SEGUEM (nota: a ordem das premissas é irrelevante. Por exemplo, tanto “A → B, A ∴ B”
como “A, A → B ∴ B” são instâncias dos modus ponens):
1. A → B ∴ ¬ B → ¬ A
2. A → B, B ∴ A
3. ¬ A → B, ¬ A ∴ B
4. ¬ A → ¬ B, ¬ B → C ∴ ¬ A → C
5. ¬ B, A → ¬ B ∴ A
6. ¬ ⦋(A → B) ⋀ C⦌ ∴ ¬ (A → B) ⋁ ¬ C
7. (A ⋀ B) → C, ¬ C ∴ ¬ (A ⋁ B)
8. ¬ A, ¬ A → (B → C) ∴ B → C
9. (¬ A ⋀ B) ⋁ C, ¬ C ∴ ¬ A ⋀ B
10. (A ⋀ ¬ B) → (C ⋁ ¬ D), ¬ (A ⋀ ¬ B) ∴ ¬ (C ⋁ ¬ D)

12. CONSIDERE AS FORMAS DE INFERÊNCIA VÁLIDAS E AS FALÁCIAS


PROPOSICIONAIS REFERIDAS NO EXERCÍCIO ANTERIOR. INDIQUE A FORMA DE
INFERÊNCIA VÁLIDA OU A FALÁCIA FORMAL QUE É INSTANCIADA EM CADA UM
DOS ARGUMENTOS QUE SE SEGUEM, COMEÇANDO POR FORMALIZÁ-LOS.
1. Se Deus não existe e a reencarnação é um facto, os budistas têm razão. Mas
os budistas não têm razão. Logo, não é verdade que Deus exista e a reencarnação seja
um facto.
2. Se a inflação sobe e o desemprego aumenta, o Governo cai e o Presidente
convoca eleições. Mas é falso que a inflação suba ou o desemprego aumente. Logo, é
também falso que o Governo caia e o Presidente convoque eleições.
3. Se Becky é uma gata, então não gosta de cães e gosta de caçar pássaros. Se
tem estes gostos, não é bom ter outros animais em casa. Por isso, se Becky é uma gata,
então não é bom ter outros animais em casa.

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4. Se David não é um extraterrestre nem é um duende, então é um gato muito
peculiar (extraordinário). Ora David é um gato muito peculiar. Portanto, não é um
extraterrestre nem um duende.
5. Paulo é culpado se Pedro é culpado, a não ser que Joana esteja envolvida.
Mas Joana não está envolvida. Por isso, se Pedro é culpado, Paulo também é culpado.

RESOLUÇÃO DOS EXERCÍCIOS DE CONSOLIDAÇÃO E VERIFICAÇÃO DAS


APRENDIZAGENS (pp. 155-162)

1. SELECIONE A ALTERNATIVA CORRETA:


1. 1 “Todos os cães são amigáveis” e “Nenhum cão é amigável” exprimem
proposições que mantêm entre si uma relação de:
(A) Contradição.
(B) Contrariedade.
(C) Subcontrariedade.
(D) Subalternidade.

1. 2 Uma proposição de tipo E:


(A) É particular na sua quantidade e negativa na sua qualidade.
(B) É universal na sua quantidade e negativa na sua qualidade.
(C) É universal na sua qualidade e negativa na sua quantidade.
163
(D) É particular na sua qualidade e negativa na sua quantidade.

1.3 As proposições de tipo I e de tipo O com os mesmos termos são:


(A) Contraditórias.
(B) Contrárias.
(C) Subcontrárias.
(D) Subalternas.

1. 4 Suponha que uma certa proposição de tipo A é falsa. Nesse caso, pode-
se determinar o valor de verdade:
(A) Da sua contraditória, da sua contrária e da sua subalterna.
(B) Só da sua contraditória e da sua contrária.
(C) Só da sua contraditória e da sua subalterna.
(D) Só da sua contrária e da sua subalterna.

1. 5 Suponha que uma certa proposição de tipo E é verdadeira. Nesse caso,


pode-se determinar o valor de verdade:
(A) Da sua contraditória, da sua contrária e da sua subalterna.
(B) Só da sua contraditória e da sua contrária.
(C) Só da sua contraditória e da sua subalterna.
(D) Só da sua contrária e da sua subalterna.

1. 6 Uma condicional é falsa só se:


(A) A antecedente e a consequente são falsas.
(B) A antecedente e a consequente são verdadeiras.
(C) A antecedente é verdadeira e a consequente é falsa.
(D) A antecedente é falsa e a consequente é verdadeira.

1. 7 Uma conjunção é verdadeira só se:


(A) Ambas as conjuntas são verdadeiras.
(B) Ambas as conjuntas são falsas.
(C) A primeira conjunta é verdadeira e a segunda é falsa.
(D) A primeira conjunta é falsa e a segunda é verdadeira.

1. 8 P → ¬ Q ∴ ¬ ¬ Q → ¬ P é uma instância:
(A) Das leis de De Morgan.

164
(B) Da contraposição.
(C) Do modus ponens.
(D) Do modus tollens.

1. 9 (P ⋁ Q) → ¬ R, ¬ ¬ R ∴ ¬ (P ⋁ Q) é uma instância:
(A) Do modus ponens.
(B) Do modus tollens.
(C) Da falácia da negação da antecedente.
(D) Da falácia da afirmação da consequente.

1. 10 De ¬ (P ⋀ Q) → R pode-se inferir validamente:


(A) R → ¬ (P ⋀ Q)
(B) R → (P ⋁ Q)

(C) ¬ R → (P ⋀ Q)

(D) ¬ R → ¬ (P ⋁ Q)

2. TRADUZA CADA UMA DAS AFIRMAÇÕES QUE SE SEGUEM PARA A SUA


FORMA CANÓNICA E INDIQUE O SEU TIPO:
1. Qualquer marciano é voador.
RESPOSTA:
Todos os marcianos são voadores. (Tipo A)
2. Não existem quadrados redondos.
RESPOSTA:
Nenhum quadrado é redondo. (Tipo E)
3. Os portugueses habitam a Europa.
RESPOSTA:
Todos os portugueses são habitantes da europa. (Tipo A)
4. Há músicos que apreciam matemática.
RESPOSTA:
Alguns músicos são apreciadores de matemática. (Tipo I)
5. Nenhum cristão acredita na reencarnação.
RESPOSTA:
Nenhum cristão é uma pessoa que acredite na reencarnação. (Tipo E)
6. Certos artistas não são especialmente criativos.

165
RESPOSTA:
Alguns artistas não são especialmente criativos. (Tipo O)
7. Existem felinos surpreendentemente meigos.
RESPOSTA:
Alguns felinos são surpreendentemente meigos. (Tipo I)
8. Um político honesto é alguém que sabe ouvir os cidadãos.
RESPOSTA:
Todos os políticos honestos são pessoas que sabem ouvir os cidadãos.
(Tipo A)
9. Os peixes não sobrevivem fora da água.
RESPOSTA:
Nenhum peixe é um ser que sobreviva fora de água. (Tipo E)
10. Determinados pianos de cauda custam uma fortuna.
RESPOSTA:
Alguns pianos de cauda são objetos que custam uma fortuna. (Tipo I)
11. Há quem seja admirador de Mozart e de Metallica.
RESPOSTA:
Alguns admiradores de Mozart são admiradores de Metallica. (Tipo I)
12. Qualquer empirista que se preze não tem religião.
RESPOSTA:
Nenhum empirista que se preze é uma pessoa com religião. (Tipo E)
13. Nem todos os mamíferos são animais selvagens.
RESPOSTA:
Alguns mamíferos não são animais selvagens. (Tipo O)
14. Pelo menos um filósofo não gosta de lógica.
RESPOSTA:
Alguns filósofos não são pessoas que gostam de lógica. (Tipo O)
15. Nada é simultaneamente carnívoro e herbívoro.
RESPOSTA:
Nenhum carnívoro é herbívoro. (Tipo E)

3. CONSIDERE CADA UMA DAS PROPOSIÇÕES SEGUINTES E O VALOR DE


VERDADE QUE LHE É ATRIBUÍDO ENTRE PARÊNTESIS. IDENTIFIQUE O SEU
TIPO E DIGA O QUE SE PODE INFERIR QUANTO AO VALOR DE VERDADE DAS

166
OUTRAS TRÊS PROPOSIÇÕES QUE FIGURARIAM NO QUADRADO DA
OPOSIÇÃO:
1. Alguns empiristas são céticos. (Verdadeira)
RESPOSTA:
Proposição de Tipo I. Sendo verdadeira, pode inferir-se que a sua
contraditória, de Tipo E, é falsa. Nada se pode inferir quanto ao valor de verdade
da sua subcontrária, de Tipo O, nem quanto ao valor de verdade da proposição de
Tipo A, da qual é subalterna.
2. Nenhum animal com garras é herbívoro. (Falsa)
RESPOSTA:
Proposição de Tipo E. Sendo falsa, pode inferir-se que a sua contraditória,
de Tipo I, é verdadeira, e que a sua subalterna, de Tipo O, é falsa. Nada se pode
inferir quanto ao valor de verdade da sua contrária, de Tipo A.
3. Todos os predadores são animais com garras. (Falsa)
RESPOSTA:
Proposição de Tipo A. Sendo falsa, pode inferir-se que a sua contraditória,
de Tipo O, é verdadeira, e que a sua subalterna, de Tipo I, é falsa. Nada se pode
inferir quanto ao valor de verdade da sua contrária, de Tipo E.
4. Alguns católicos não são socialistas. (Verdadeira)
RESPOSTA:
Proposição de Tipo O. Sendo verdadeira, pode inferir-se que a sua
contraditória, de Tipo A, é falsa. Nada se pode inferir quanto ao valor de verdade
da sua subcontrária, de Tipo I, nem quanto ao valor de verdade da proposição de
Tipo E, da qual é subalterna.
5. Alguns músicos são apreciadores de Bach. (Falsa)
R: Proposição de Tipo I. Sendo falsa, pode inferir-se que a sua contraditória,
de Tipo E, é verdadeira, que a sua subcontrária, de Tipo O, é verdadeira, e que a
proposição de Tipo A, da qual é subalterna, é falsa.
6. Todos os ditadores são inimigos da liberdade. (Verdadeira)
RESPOSTA:
Proposição de Tipo A. Sendo verdadeira, pode inferir-se que a sua
contraditória, de Tipo O, é falsa, que a sua contrária, de Tipo E, é falsa, e que a sua
subalterna, de Tipo I, é verdadeira.
7. Nenhum defensor da pena de morte é homicida. (Verdadeira)

167
RESPOSTA:
Proposição de Tipo E. Sendo verdadeira, pode inferir-se que a sua
contraditória, de Tipo I, é falsa, que a sua contrária, de Tipo A, é falsa, e que a sua
subalterna, de Tipo O, é verdadeira.
8. Alguns heróis não são corajosos. (Falsa)
RESPOSTA:
Proposição de Tipo O. Sendo falsa, pode inferir-se que a sua contraditória,
de Tipo A, é verdadeira, que a sua subcontrária, de Tipo I, é verdadeira, e que a
proposição de Tipo E, da qual é subalterna é falsa.

4. FORMALIZE CADA UMA DAS FRASES QUE SE SEGUEM NA LÓGICA


PROPOSICIONAL:
1. A virtude não se ensina.
RESPOSTA:
A = A virtude ensina-se.
¬A
2. João gosta de jazz ou de música clássica.
RESPOSTA:
A = João gosta de Jazz.
B = João gosta de música clássica.
A⋁B
3. Este livro é interessante e claro.
RESPOSTA:
A = Este livro é interessante.
B = Este livro é claro.
A∧B
4. Não é verdade que este livro seja interessante e claro.
RESPOSTA:
A = Este livro é interessante.
B = Este livro é claro.
¬ (A ∧ B)
5. Este livro não é interessante nem claro.
RESPOSTA:
A = Este livro é interessante.

168
B = Este livro é claro.
¬A∧¬B
6. O Benfica ganha, a menos que o Sporting empate e o Porto ganhe.
RESPOSTA:
A = O Benfica ganha.
B = O Sporting empata.
C = O Porto ganha.
A ⋁ (B ∧ C)
7. Maria vai passar de ano, a não ser que não estude o suficiente.
RESPOSTA:
A = Maria vai passar de ano.
B = Maria estuda o suficiente.
A⋁¬B
8. Platão era filósofo, mas não gostava da democracia.
A = Platão era filósofo.
B = Platão gostava da democracia.
A∧¬B
9. É falso que os gatos sejam egoístas ou interesseiros.
RESPOSTA:
A = Os gatos são egoístas.
B = Os gatos são interesseiros.
¬ (A ⋁ B)
10. Ou lavo a loiça ou varro o chão.
RESPOSTA:
A = Lavo a loiça.
B = Varro o chão.
A⩒B

5. FORMALIZE CADA UMA DAS FRASES QUE SE SEGUEM NA LÓGICA


PROPOSICIONAL:
1. Dou-te o livro se, e apenas se, cumprires a tua promessa.
RESPOSTA:
A = Dou-te o livro.
B = Cumpres a tua promessa.
169
A↔B
2. Se Deus existe o mundo não surgiu por acaso.
RESPOSTA:
A = Deus existe.
B = O mundo surgiu por acaso.
A→¬B
3. Vou ao cinema se tiver tempo para estudar.
RESPOSTA:
A = Vou ao cinema.
B = Tenho tempo para estudar.
B→A
4. Vou ao cinema apenas se tiver tempo para estudar.
RESPOSTA:
A = Vou ao cinema.
B = Tenho tempo para estudar.
A→B
5. Se não tiver tempo para estudar, não vou ao cinema.
RESPOSTA:
A = Vou ao cinema.
B = Tenho tempo para estudar.
¬B→¬A
6. Não vou ao cinema se, e somente se, não tiver tempo para estudar.
RESPOSTA:
A = Vou ao cinema.
B = Tenho tempo para estudar.
¬A↔¬B
7. Basta que esteja calor para as férias serem boas.
RESPOSTA:
A = Está calor.
B = As férias são boas.
A→B
8. O Porto poderá vencer o campeonato caso o Benfica não ganhe.
RESPOSTA:

170
A = O Porto pode vencer o campeonato.
B = O Benfica ganha.
¬B→A
9. Uma condição suficiente para João ser eleito é Miguel não ser eleito.
RESPOSTA:
A = João é eleito.
B = Miguel é eleito.
¬B→A
10. Se Mariana for eleita, então precisa de baixar os impostos para cumprir o seu
programa.
RESPOSTA:
A = Mariana é eleita.
B = Mariana baixa os impostos.
C = Mariana cumpre o seu programa.
A → (C → B)

6. FORMALIZE CADA UM DOS ARGUMENTOS QUE SE SEGUEM NA LÓGICA


PROPOSICIONAL:
1. Se a arte é expressão de sentimentos, então a arquitetura exprime sentimentos
ou não é uma arte.
RESPOSTA:
A = A arte é expressão de sentimentos.
B = A arquitetura exprime sentimentos.
C = A arquitetura é uma arte.
A → (B ⋁¬ A)
2. A ética é subjetiva somente se os valores são subjetivos, mas os valores não
são subjetivos.
RESPOSTA:
A = A ética é subjetiva.
B = Os valores são subjetivos.
(A → B) ⋀¬ B
3. A música é arte se exprime sentimentos, a menos que a arte não seja a
expressão de sentimentos.
A = A música é arte.
171
B = A música exprime sentimentos.
C = A arte é expressão de sentimentos.
(B → A) ⋁ ¬ C
4. Se está a chover ou a nevar, então não está calor e as férias estão estragadas.
A = Está a chover.
B = Está a nevar.
C = Está calor.
D = As férias estão estragadas.
(A ⩒ B) → (¬ C ⋀ D)
5. Não é verdade que, se Deus não existe, o bem é uma ilusão e podemos fazer
tudo.
RESPOSTA:
A = Deus existe.
B = O bem é uma ilusão.
C = Podemos fazer tudo.
¬ ⦋ ¬ A → (B ⋀ C)⦌
6. Se Joana ou Sara são culpadas, então a testemunha mentiu. Mas a
testemunha não mentiu. Logo, Sara não é culpada.
RESPOSTA:
A = Joana é culpada.
B = Sara é culpada.
C = A testemunha mentiu.
(A ⋁ B) → C
¬C
∴¬B
7. É falso que Fernando Pessoa seja um poeta e um pintor. Ora, Fernando
Pessoa é um poeta. Logo, Fernando Pessoa não é um pintor.
RESPOSTA:
A = Fernando Pessoa é um poeta.
B = Fernando Pessoa é um pintor.
¬ (A ⋀ B)
A
∴¬B

172
8. Existe vida após a morte somente se a alma humana não é material. Portanto,
existe vida após a morte, pois a alma humana não é material.
RESPOSTA:
A = Existe vida após a morte.
B = A alma humana é material.
A→¬B
¬B
∴A
9. O Benfica ou ganha ou não ganha. Se o Benfica ganhar, o Sporting vence o
campeonato. Se o Benfica não ganhar, o Porto vence o campeonato. Portanto o
Sporting ou o Porto vencem o campeonato.
RESPOSTA:
A = O Benfica ganha.
B = O Sporting vence o campeonato.
C = O Porto vence o campeonato.
A⩒¬A
A→B
¬A⭢C
∴B⋁C
10. Se Miguel gosta de Metallica, então vai ao concerto. Se ele vai ao concerto,
então não vai ao cinema nem vai ao teatro. E se ele não vai ao cinema nem ao teatro,
então gosta de Metallica. Logo, Miguel gosta de Metallica se, e apenas se, vai ao
concerto.
RESPOSTA:
A = Miguel gosta de Metallica.
B = Miguel vai ao concerto.
C = Miguel vai ao cinema.
D = Miguel vai ao teatro.
A→ B
B → (¬ C ⋀ ¬ D)
(¬ C ⋀ ¬ D) ⭢ A
∴A↔B

173
7. CONSIDERE O SEGUINTE DICIONÁRIO:
A = Pedro é culpado.
B = Carla é culpada.
C = As provas são forjadas (falsificadas).
D = Uma testemunha mentiu.
E = O criminoso continua livre.

7. 1 BASEANDO-SE NESTE DICIONÁRIO, TRADUZA PARA FRASES DA


LÍNGUA PORTUGUESA CADA UMA DAS FÓRMULAS QUE SE SEGUEM:
1. A ↔ ¬ B
RESPOSTA:
Pedro é culpado se, e apenas se, Carla não é culpada.
2. (A ⋀ B) ⋁ C
RESPOSTA:
Pedro e Carla são culpados, a não ser que as provas sejam forjadas.
3. ¬ B → (C ⩒ D)
RESPOSTA: Se Carla não é culpada, então ou as provas são forjadas ou
uma testemunha mentiu.
4. ¬ (A ⋀ B) ↔ (D ⋁ E)
RESPOSTA:
Se é falso que Pedro e Carla sejam culpados, então uma testemunha mentiu
ou o criminoso continua livre.
5. E ↔ (C ⋁ D)
RESPOSTA:
O criminoso continua livre se, e apenas se, Pedro ou Carla são culpados.
6. (¬ A ⋀ ¬ B) → C
RESPOSTA:
Se nem Pedro nem Carla são culpados, então as provas são forjadas.
7. (C → D) ⋀ A
RESPOSTA:
Se as provas são forjadas, uma testemunha mentiu, mas Pedro é culpado.
8. E → ⦋D ⋀ (A ⋁ B)⦌
RESPOSTA:

174
Se o criminoso continua livre, então uma testemunha mentiu e Pedro ou
Carla são culpados.
9. (A → E) ⋀ (B → ¬ E)
RESPOSTA:
Se Pedro é culpado, o criminoso continua livre, mas se Carla é culpada, o
criminoso já não está livre.
10. ⦋(A ⋁ B) → C⦌ ⋁ D
RESPOSTA:
Se Pedro ou Carla são culpados, as provas são forjadas, a não ser que uma
testemunha tenha mentido.

8. CONSTRUA TABELAS DE VERDADE PARA CADA UMA DAS FÓRMULAS


QUE SE SEGUEM:
1. (A ⋁ B) → B
RESPOSTA:

AB (A ⋁ B) → B

VV V V
VF V F
FV V V
FF F V

2. ¬ (A ∧ ¬ B)

AB ¬ (A ⋀ ¬ B)

VV V F F
VF F V V
FV V F F
FF V F V

3. A ↔ (B ⋀ A)

AB A ↔ (B ⋀ A)

VV V V

175
VF F F
FV V F
FF V F

4. (A → B) ⋀ (B → A)

AB (A → B) ⋀ (B → A)

VV V V V
VF F F V
FV V F F
FF V V V

5. ¬ (A ⩒ B) → ¬ B

AB ¬ (A ⩒ B) → ¬B

VV V V F V
VF F F V V
FV F V V F
FF V V V V

6. ¬ A → ¬ B

AB ¬ A → ¬B

VV F V F
VF F V V
FV V F F
FF V V V

7. ¬ (A ⋀ B) ↔ ¬ (A ⋁ B)

AB ¬ (A ⋀ B) ↔ ¬ (A ⋁ B)

VV F V V F V

176
VF V F F F V
FV V F F F V
FF V F V V F

8. C ⋀ (A → B)

ABC C ⋀ (A → B)

VVV V V
VVF F V
VFV F F
VFF F F
FVV V V
FVF F V
FFV V V
FFF F V

9. ⦋(C → A) ⋀ B⦌ → A

ABC ⦋(C → A) ⋀ B⦌ →A

VVV V V V
VVF V V V
VFV V F V
VFF V F V
FVV F F V
FVF V V F
FFV F F V
FFF V F V

177
10. ¬ (A ⋁ C) → (¬ B ⋀ ¬ A)

ABC ¬ (A ⋁ C) → (¬ B ⋀ ¬ A)

VVV F V V F F
VVF F V V F F
VFV F V V F F
VFF F V V F F
FVV F V V F V
FVF V F F F V
FFV F V V V V
FFF V F V V V

9. DETERMINE A VALIDADE DE CADA UMA DAS FORMAS


ARGUMENTATIVAS QUE SE SEGUEM, MEDIANTE A CONSTRUÇÃO E A ANÁLISE
DE TABELAS DE VERDADE:
1. A → B ∴ B → A

AB A→B ∴ B→A

VV V V
VF F V
FV V F
FF V V

O argumento é inválido porque, como se constata na terceira linha de


circunstâncias possíveis, pode ter a premissa verdadeira e a conclusão falsa.

2. A ↔ ¬ B ∴ ¬ B → A

AB A↔ ¬B ∴ ¬B →A

VV F F F F
VF V V V V
FV V F F V
FF F V V F

O argumento é válido porque, como mostra a tabela, em nenhuma


circunstância possível temos premissas verdadeiras e conclusão falsa.

178
3. ¬ (A ⋀ B) ∴ ¬ A ⋁ ¬ B

AB ¬ (A ⋀ B) ∴ ¬A ⋁ ¬B

VV F V F F F
VF V F F V V
FV V F V V F
FF V F V V V

O argumento é válido porque, como mostra a tabela, em nenhumas


circunstâncias possíveis temos premissas verdadeiras e conclusão falsa.

4. ¬ (A ⋀ B), ¬ A ∴ ¬ B

AB ¬ (A ⋀ B), ¬A ∴ ¬B

VV F V F F
VF V F F V
FV V F V F
FF V F V V

O argumento é inválido porque, como se constata na terceira linha de


circunstâncias possíveis, pode ter premissas verdadeiras e conclusão falsa.

5. A → (B ⩒ C), ¬ C ∴ ¬ A

ABC A → (B ⩒ C), ¬C ∴ ¬A

VVV F F F F
VVF V V V F
VFV V V F F
VFF F F V F
FVV V F F V
FVF V V V V
FFV V V F V
FFF V F V V

O argumento é inválido porque, como se constata na segunda linha de


circunstâncias possíveis, pode ter premissas verdadeiras e conclusão falsa.
179
10. DETERMINE A VALIDADE DE CADA UM DOS ARGUMENTOS QUE SE
SEGUEM, MEDIANTE A CONSTRUÇÃO E A ANÁLISE DE TABELAS DE VERDADE.
1. Se as pessoas têm direitos, têm deveres. Ora, as pessoas têm deveres. Logo,
têm direitos.
RESPOSTA:
A = As pessoas têm direitos.
B = As pessoas têm deveres.

AB A → B, B ∴ A

VV V V V
VF F F V
FV V V F
FF V F F

O argumento é inválido porque, como se constata na terceira linha de


circunstâncias possíveis, pode ter premissas verdadeiras e conclusão falsa.

2. Se tudo é material, a alma humana é mortal. Logo, nem tudo é material ou a


alma humana é mortal.
RESPOSTA:
A = Tudo é material.
B = A alma humana é mortal.

AB A → B ∴ ¬A ⋁ B

VV V F V
VF F F F
FV V V V
FF V V V

O argumento é válido porque, como mostra a tabela, em nenhuma


circunstância possível a premissa é verdadeira e a conclusão falsa.

3. Dado que Manuel estuda ou não passa de ano, ele não vai passar de ano, pois
não estuda.
RESPOSTA:
A = Manuel estuda.

180
B = Manuel passa de ano.

AB A ⋁ ¬ B, ¬A ∴ ¬B

VV V F F F
VF V V F V
FV F F V F
FF V V V V

O argumento é válido porque, como mostra a tabela, em nenhuma


circunstância possível tem premissas verdadeiras e conclusão falsa.

4. Não é verdade que os cristãos e os budistas tenham ambos razão. Logo, os


cristãos não têm razão e os budistas não têm razão.
RESPOSTA:
A = Os cristãos têm razão.
B = Os budistas têm razão.

AB ¬ (A ⋀ B) ∴ ¬A ⋀ ¬B

VV F V F F F
VF V F F F V
FV V F V F F
FF V F V V V

O argumento é inválido porque, como se constata na segunda e na terceira


linhas de circunstâncias possíveis, pode ter a premissa verdadeira e a conclusão
falsa.

5. Deus existe se o mundo teve um começo. Ora, o mundo teve um começo.


Portanto, Deus existe se, e apenas se, o mundo teve um começo.
RESPOSTA:
A = Deus existe.
B = O mundo teve um começo.

AB B → A, B ∴ A ↔ B

VV V V V
VF V F F
FV F V F

181
FF V F V

O argumento é válido porque, como mostra a tabela, em nenhuma


circunstância possível tem premissas verdadeiras e conclusão falsa.

6. Se Maria não é culpada, também João não é culpado. Portanto, Maria não é
culpada, a não ser que João o seja.
RESPOSTA:
A = Maria é culpada.
B = João é culpado.

AB ¬A → ¬ B) ∴ ¬A ⋁ B

VV F V F F V
VF F V V F F
FV V F F V V
FF V V V V V

O argumento é inválido porque, como se constata na segunda linha de


circunstâncias possíveis, pode ter a premissa verdadeira e a conclusão falsa.

7. Amanhã chove ou não chove. Se amanhã chover, falto às aulas. Se não


chover, falto às aulas. Se não chover, falto às aulas. Logo, falto às aulas.
RESPOSTA:
A = Amanhã chove.
B = Amanhã falto às aulas.

AB A ⋁ ¬ A, A → B ¬ A → B ∴ B

VV V F V F V V
VF V F F F V F
FV V V V V V V
FF V V V V F F

O argumento é válido porque, como mostra a tabela, em nenhuma


circunstância possível tem premissas verdadeiras e conclusão falsa.

7. Se abriste o computador ou não enviaste o registo, a garantia é nula. Não


abriste o computador e enviaste o registo. Logo, a garantia não é nula.
RESPOSTA:

182
A = Abriste o computador.
B = Enviaste o registo.
C = A garantia é nula.

ABC (A ⋁ ¬ B) → C, ¬ A ⋀ B ∴ ¬ C

VVV V F V F F F
VVF V F F F F V
VFV V V V F F F
VFF V V F F F V
FVV F F V V V F
FVF F F V V V V
FFV V V V V F F
FFF V V F V F V

O argumento é inválido porque, como se constata na quinta linha de


circunstâncias possíveis, pode ter premissas verdadeiras e conclusão falsa.

9. O Benfica ganha, a não ser que o Porto e o Sporting empatem. Mas o Sporting
não empata. Logo, o Benfica ganha.
RESPOSTA:
A = O Benfica ganha.
B = O Porto empata.
C = O Sporting empata.

ABC A ⋁ (B ⋀ C), ¬B ∴ A

VVV V V F V
VVF V F F V
VFV V F V V
VFF V F V V
FVV V V F F
FVF F F F F
FFV F F V F
FFF F F V F

O argumento é válido porque, como mostra a tabela, em nenhuma


circunstância possível tem premissas verdadeiras e conclusão falsa.

183
10. Se tudo é material, tudo obedece às leis da natureza. E não somos livres se
tudo obedece às leis da natureza. Por isso, não somos livres somente se tudo é
material.
RESPOSTA:
A = Tudo é material.
B = Tudo obedece às leis da natureza.
C = Somos livres.

ABC A → B, B → ¬C ∴ ¬C → A

VVV V F F F V
VVF V V V V V
VFV F V F F V
VFF F V V V V
FVV V F F F V
FVF V V V V F
FFV V V F F V
FFF V V V V F

O argumento é inválido porque, como se constata na sexta e na oitava linhas de


circunstâncias possíveis, pode ter premissas verdadeiras e conclusão falsa.

11. CONSIDERE AS SEGUINTES FORMAS DE INFERÊNCIA VÁLIDAS E


FALÁCIAS FORMAIS:
A. Modus ponens.
B. Modus tollens.
C. Silogismo disjuntivo.
D. Silogismo hipotético.
E. Contraposição.
F. Leis de De Morgan.
G. Falácia da afirmação da consequente.
H. Falácia da negação da antecedente.

11.1 INDIQUE A FORMA DA INFERÊNCIA VÁLIDA OU A FALÁCIA FORMAL


QUE É INSTANCIADA EM CADA UMA DAS FORMAS ARGUMENTATIVAS QUE SE
SEGUEM (Nota: a ordem das premissas é irrelevante – por exemplo, tanto “A → B, A ∴
B” como “A, A → B ∴ B” são instâncias dos modus ponens):

184
1. A → B ∴ ¬ B → ¬ A
RESPOSTA: Forma E (contraposição).
2. A → B, B ∴ A
RESPOSTA: Falácia G (afirmação da consequente).
3. ¬ A → B, ¬ A ∴ B
RESPOSTA: Forma A (modus ponens).
4. ¬ A → ¬ B, ¬ B → C ∴ ¬ A → C
RESPOSTA: Forma D (silogismo hipotético).
5. ¬ B, A → ¬ B ∴ A
RESPOSTA: Falácia G (afirmação da consequente).
6. ¬ ⦋(A → B) ⋀ C⦌ ∴ ¬ (A → B) ⋁ ¬ C
RESPOSTA: Forma F (leis de De Morgan).
7. (A ⋀ B) → C, ¬ C ∴ ¬ (A ⋁ B)
RESPOSTA: Forma B (modus tollens).
8. ¬ A, ¬ A → (B → C) ∴ B → C
RESPOSTA: Forma A (modus ponens).
9. (¬ A ⋀ B) ⋁ C, ¬ C ∴ ¬ A ⋀ B
RESPOSTA: Forma C (silogismo disjuntivo).
10. (A ⋀ ¬ B) → (C ⋁ ¬ D), ¬ (A ⋀ ¬ B) ∴ ¬ (C ⋁ ¬ D)
RESPOSTA: Forma H (negação da antecedente).

12. CONSIDERE AS FORMAS DE INFERÊNCIA VÁLIDAS E AS FALÁCIAS


PROPOSICIONAIS REFERIDAS NO EXERCÍCIO ANTERIOR. INDIQUE A FORMA DE
INFERÊNCIA VÁLIDA OU A FALÁCIA FORMAL QUE É INSTANCIADA EM CADA UM
DOS ARGUMENTOS QUE SE SEGUEM, COMEÇANDO POR FORMALIZÁ-LOS.
1. Se Deus não existe e a reencarnação é um facto, os budistas têm razão. Mas
os budistas não têm razão. Logo, não é verdade que Deus exista e a reencarnação seja
um facto.
RESPOSTA:
A = Deus existe.
B = A reencarnação é um facto.
C = Os budistas têm razão.
(¬ A ⋀ B) → C, ¬ C ∴ ¬ (¬ A ⋀ B)
Forma B (modus tollens).
185
2. Se a inflação sobe e o desemprego aumenta, o Governo cai e o Presidente
convoca eleições. Mas é falso que a inflação suba ou o desemprego aumente. Logo, é
também falso que o Governo caia e o Presidente convoque eleições.
RESPOSTA:
A = A inflação sobe.
B = A reencarnação é um facto.
C = O Governo cai.
D = O Presidente convoca eleições.
(A ⋁ B) → (C ¬ D), ¬ (A ⋁ B) ∴ ¬ (C ⋀ D)
Falácia H (negação da antecedente).

3. Se Becky é uma gata, então não gosta de cães e gosta de caçar pássaros. Se
tem estes gostos, não é bom ter outros animais em casa. Por isso, se Becky é uma gata,
então não é bom ter outros animais em casa.
RESPOSTA:
A = Becky é uma gata.
B = Becky gosta de cães.
C = Becky gosta de caçar pássaros.
D = É bom ter outros animais em casa.
A → (¬ B ⋀ C), (¬ B ⋀ C) → ¬ D ∴ A → ¬ D
Forma D (silogismo hipotético).

4. Se David não é um extraterrestre nem é um duende, então é um gato muito


peculiar (extraordinário). Ora David é um gato muito peculiar. Portanto, não é um
extraterrestre nem um duende.
RESPOSTA:
A = David é um extraterrestre.
B = David é um duende.
C = David é um gato muito peculiar.
(¬ A ⋀ ¬ B) → C, C ∴ ¬ A ⋀ ¬ B
Falácia G (afirmação da consequente).

5. Paulo é culpado se Pedro é culpado, a não ser que Joana esteja envolvida.
Mas Joana não está envolvida. Por isso, se Pedro é culpado, Paulo também é culpado.
RESPOSTA:
A = Paulo é culpado.
186
B = Pedro é culpado.
C = Joana está envolvida.
(B → A) ⋁ C, ¬ C ∴ B → A
Forma C (silogismo disjuntivo).

ARGUMENTOS INFORMAIS

PRINCIPAIS TIPOS DE ARGUMENTOS


ARGUMENTOS INFORMAIS

O discurso argumentativo para se poder considerar um discurso eficaz e de


qualidade tem que obedecer a uma estrutura e a uma organização lógicas que permitam
distinguir claramente as premissas da conclusão. Naturalmente que, para isso, é
fundamental usar premissas plausíveis, pertinentes, aceitáveis, razoáveis para que a
conclusão possa ser, também ela, plausível, pertinente, aceitável, razoável e
minimamente sustentável.
Em qualquer discurso argumentativo são vários os tipos de argumentos que
poderemos usar quando queremos convencer alguém da razoabilidade
(pertinência/plausibilidade) de uma determinada tese, ideia, ponto de vista, posição,
perspetiva. Para além dos argumentos dedutivos, sobre os quais já nos debruçámos,
187
podemos usar outro tipo de argumentos – os argumentos indutivos (ou não-
dedutivos), dos quais fazem parte: os argumentos por indução, os argumentos por
analogia e os argumentos de autoridade.
Convirá dizer que nem todos os argumentos inválidos são maus. Muitos
argumentos são manifestamente inválidos e, no entanto, as premissas apoiam
suficientemente a conclusão. Ora, é precisamente destes argumentos que vamos
ocupar-nos agora. Queremos saber identificá-los, distinguindo-os daqueles em que as
premissas não dão um apoio suficiente à conclusão.
Temos, então, como argumentos indutivos (ou não-dedutivos):

1. Os argumentos por indução (generalizações e previsões).


2. Os argumentos por analogia.
3. Os argumentos de autoridade.

Todos estes argumentos, embora sejam distintos, são informais, porque a sua
força não depende apenas da sua forma lógica.

1. ARGUMENTOS POR INDUÇÃO: A GENERALIZAÇÃO E A PREVISÃO

Entre os argumentos por indução (ou indutivos) podemos distinguir as


generalizações das previsões:

GENERALIZAÇÃO – um argumento que consiste numa generalização


(indutiva) é um argumento com uma conclusão geral extraída de casos
particulares, ou seja, resulta de um movimento da inteligência (a que vulgarmente
chamamos raciocínio/argumento) que parte do particular para o geral, sendo a sua
conclusão mais geral do que a(s) premissa(s).
Assim, uma generalização (indutiva) será válida se cumprir dois requisitos:
- Se partir de casos particulares representativos.
- Se não existirem contra-exemplos (exemplos que contrariem os exemplos que
suportam a conclusão que se pretende “impor”).

Por exemplo:
a) Cada um dos cisnes observados até agora é branco.
Logo, todos os cisnes são brancos.

Como, no que se refere ao ser branco, qualquer cisne parece ser um caso
representativo para todos os outros, e como, por outro lado, até à data, não se acharam

188
contra-exemplos relativamente a esta conclusão, pode-se considerar o exemplo acima
dado uma generalização (indutiva) válida.

Mas analisemos o exemplo que se segue:

b) O xarope para a tosse que o meu primo tomou provocou-lhe graves problemas
de saúde.
Logo, todos os xaropes fazem mal à saúde.

Este exemplo de generalização não cumpre nenhum dos requisitos apontados


(o de partir de casos particulares representativos e o de não existirem contraexemplos),
porque, em primeiro lugar, aquele medicamento não é representativo de todos os
medicamentos e porque, em segundo lugar, não será difícil encontrar um
contraexemplo suscetível de tornar ilegítima (infundada, injustificada) a conclusão –
trata-se, assim, de uma generalização (indutiva) inválida.

PREVISÃO – um argumento que consiste numa previsão (indutiva) é um


argumento que, baseando-se em casos passados, antevê casos futuros não
observados. A sua validade está dependente de a probabilidade de a conclusão
corresponder, ou não, à realidade – este é um tipo de argumento muito usado pelas
ciências.

Por exemplo:
c) Em todos anos passados de que se tem conhecimento, no mês de agosto, as
temperaturas foram mais elevadas do que no mês de janeiro.
Logo, no mês de agosto deste ano, as temperaturas serão mais elevadas do que
no mês de janeiro.

Trata-se de uma previsão válida, na medida em que é provável que a


conclusão corresponda à realidade – a verdade da premissa fornece uma forte
razão para aceitar a conclusão.
Assim, uma previsão indutiva também parte de casos particulares, mas a
conclusão inferida é a de que algo ocorrerá no futuro.

A premissa partilhada por estes argumentos diz respeito àquilo que se observou
em diversos casos particulares, que, no fundo, constituem uma amostra. Em ambos os
casos, a conclusão ultrapassa a informação contida nas premissas. No primeiro
exemplo/argumento da generalização, conclui-se que todos os cisnes, e não só os que
189
já foram observados, são brancos. Já no primeiro exemplo/argumento da previsão,
conclui-se que o próximo cisne que será observado, à semelhança dos que já foram
observados, há-de ser branco.

Os argumentos deste género podem ser indutivamente fortes se as suas


premissas, caso sejam verdadeiras, constituírem uma razão para acreditarmos
que é muito provável que a conclusão seja verdadeira.
Ora, como podemos saber se uma generalização ou uma previsão é
indutivamente forte? Não é pela forma destes argumentos que conseguimos determinar
em que medida as premissas confirmam a conclusão. Mas existem dois critérios que
são úteis para determinar tal coisa. O primeiro é o seguinte:

► Quanto maior é a amostra referida na premissa ou premissas, mais estas


confirmam a conclusão.
Por exemplo, se tiverem sido observados mil cisnes, os argumentos a) e c) serão
mais fortes do que no caso de terem sido observados apenas cem cisnes. Porém, a
dimensão da amostra não é tudo, pois, interessa também atender ao seguinte critério:

► Quanto mais diversificada é a amostra referida na premissa ou


premissas, mais estas confirmam a conclusão.

Por exemplo, caso se tenham observado cisnes em várias regiões, os


argumentos a) e c) serão mais fortes do que no caso de se terem observado cisnes
apenas numa região. Na verdade, mais do que ter uma amostra grande, importa ter
uma amostra suficientemente variada ou representativa (que se aproxime o mais
possível da realidade). O exemplo mais flagrante e atual deste critério é o caso do
processo de experimentação de vacinas anti-Covid-19 num universo (embora limitado,
mas diversificado) de pessoas que se voluntariaram para esse efeito, no sentido de se
poder aferir do seu grau de tolerância, por um lado, e de eficácia, por outro, para,
depois disso, se poder passar à aplicação à generalidade dos seres humanos.

2. ARGUMENTOS POR ANALOGIA (por comparação)

As analogias são outro género importante de argumento não-dedutivo ou


informal.
Um argumento por analogia é uma inferência (conclusão) baseada numa
comparação e consiste em partir de certas semelhanças ou relações entre dois
objetos ou duas realidades e encontrar novas semelhanças ou relações.

190
Os argumentos por analogia argumentam a partir de um caso ou exemplo
específico para provarem que outro caso, semelhante ao primeiro em muitos
aspetos, é também semelhante num outro aspeto determinado.

Vejamos um exemplo com o texto que se segue:

O presidente norte-americano Donald Trump argumentou uma vez que o papel do


vice-presidente é o de apoiar as políticas do presidente, concordando ou não com elas,
porque, dizia ele, “ninguém quer marcar golos na própria baliza!”
Desta forma, Trump estava a sugerir que fazer parte da sua administração é
como fazer parte de uma equipa de futebol, pois, quando alguém entra para uma equipa
de futebol, concorda em obedecer às decisões e ordens do treinador, uma vez que o
sucesso da equipa depende dessa obediência. Assim, Trump quis passar a mensagem
de que, analogamente (comparativamente), entrar para a sua administração significava
assumir um compromisso de obediência relativamente às suas decisões e ordens,
porque o sucesso dessa administração dependia também da obediência.
Distinguindo premissas e conclusão, quando alguém entra para uma equipa de
futebol, concorda em obedecer às decisões e ordens do treinador, porque o sucesso da
equipa depende da obediência dos respetivos elementos/membros.
Ora, nesta linha de ideias, a administração americana é como uma equipa de
futebol e o seu presidente é como um treinador, sendo que o seu sucesso depende
também da obediência dos respetivos membros. Logo, quando alguém entra para a
administração americana, concorda em obedecer às decisões e ordens do presidente.

Anthony Weston (2019) A Arte de Argumentar, Lisboa Gradiva, pp. 43-44 (adaptado)

O argumento por analogia baseia-se, assim, na comparação que se


estabelece entre as realidades, as coisas, os factos, as situações, supondo
semelhanças novas a partir das já conhecidas.

Eis as relações que se estabelecem no caso do exemplo do texto:

EQUIPA DE FUTEBOL = ADMINISTRAÇÃO AMERICANA


(TREINADOR = PRESIDENTE DOS EUA)

Importa, no entanto, referir que, se a administração americana é semelhante, em


certos aspetos, a uma equipa de futebol, noutros aspetos será diferente. A par de
características semelhantes, existem outras que não o são – seja como for, um

191
argumento por analogia é considerado válido quando as semelhanças entre as
realidades (comparadas) são mais relevantes do que as diferenças.

Consideremos mais dois exemplos de argumentos deste género, só que de uma


forma mais estruturada:

O universo é como uma máquina.


As máquinas são criadas por seres inteligentes.
Logo, o universo foi criado por um ser inteligente.

Como estes exemplos tornam claro, os argumentos por analogia têm


geralmente esta estrutura: dado que duas coisas se assemelham
significativamente (isto é, são análogas, ou seja, são comparáveis), e dado que uma
delas tem uma certa característica ou propriedade, conclui-se que também a outra
tem essa mesma característica ou propriedade.
As analogias são classificadas por vezes como uma forma de indução, a par das
generalizações e das previsões.
Caso as semelhanças entre as realidades que se se estão a comparar sejam
menos relevantes do que as diferenças, então, nesse caso, o argumento é inválido,
conforme poderemos verificar no seguinte exemplo:

O Universo é infinito.
A sociedade é tão complexa como o Universo.
Logo, a sociedade é infinita.

Comentando o exemplo imediatamente acima dado, não se pode dizer que uma
sociedade e o Universo sejam semelhantes de um modo relevante, sobretudo se
tivermos em conta as grandes diferenças que existem entre uma coisa e outra,
pelo que o argumento se revela inválido (falacioso).
Para determinar em que medida as premissas de uma analogia confirmam a sua
conclusão, podemos recorrer a certos critérios, sendo dois deles os seguintes:
► Uma analogia não é forte se os objetos comparados não forem
semelhantes nos aspetos relevantes.
Com este critério, pode-se questionar o primeiro argumento apresentado que
compara o universo a uma máquina, alegando que o universo não é realmente como
uma máquina, já que existem diferenças significativas entre o universo e as máquinas.
Por exemplo, sabemos que as máquinas foram programadas para desempenhar uma

192
determinada função, mas já não sabemos se o universo foi programado e se tem uma
função.
► Quanto maiores forem as semelhanças relevantes (mais importantes) entre
os objetos comparados nas premissas, mais estas confirmam a sua conclusão.
A relevância das semelhanças depende daquilo que está em questão.

Seja como for, e independentemente do seu maior ou menor grau de rigor, o


raciocínio por analogia é, talvez, o mais espontâneo de todos os argumentos.
Muito típico da infância, ele constitui um instrumento essencial na adaptação da
criança à realidade, para já não falar na frequência com que, no nosso quotidiano, a
propósito dos mais variados assuntos, recorremos a este tipo de raciocínio para expor e
defender os nossos pontos de vista (argumentação).

ARGUMENTOS DE AUTORIDADE

Os argumentos de autoridade, embora a maior parte das vezes sejam


falaciosos (inválidos, falsos), sobretudo em filosofia, podem ser definidos como os
argumentos que se apoiam na opinião de especialistas para fazerem valer a sua
conclusão. Para este tipo de argumentos serem válidos deve-se cumprir quatro
requisitos:

1. O especialista usado deve ser um perito no tema/assunto/matéria em


questão;

2. A autoridade invocada tem de ser imparcial (isenta, neutra) sobre o


assunto em causa;
3. Não pode existir controvérsia (discórdias significativas) entre os
especialistas do tema/assunto/matéria em causa;

4. O argumento não pode ser mais fraco do que outro argumento contrário
(com o qual tenha que se debater ou contra o qual tenha que argumentar).

Comecemos por considerar dois argumentos de autoridade:

a) Os filósofos Platão e Descartes acreditavam na imortalidade da alma.


Logo, a alma é imortal.

b) As maiores organizações de defesa dos direitos dos animais afirmam que uma
dieta integralmente vegetariana é a mais saudável.
Logo, uma dieta integralmente vegetariana é mais saudável.
193
c) Os maiores toureiros do mundo garantem que as touradas não provocam
qualquer sofrimento aos touros.
Logo, as touradas não provocam qualquer sofrimento aos touros.

A partir destes exemplos, torna-se fácil perceber o que caracteriza os argumentos


deste género bem como as condições ou requisitos a que devem obedecer:

► Num argumento de autoridade conclui-se que uma determinada


proposição é verdadeira porque uma certa autoridade (um ou vários indivíduos, uma
ou várias organizações) defende que essa proposição é verdadeira.

Os argumentos de autoridade não são dedutivamente válidos, mas as suas


premissas podem confirmar a sua conclusão, isto é, podem torná-la provavelmente
verdadeira. Para que isso aconteça, é preciso que a autoridade invocada satisfaça
certas condições. Uma delas é a condição de competência, ou seja:

► A autoridade invocada tem de ser competente no que respeita ao assunto


em causa e não podem existir autoridades igualmente competentes que a
contradigam.

Isto mostra que o argumento a) é insatisfatório, pois, apesar de ser verdade que
Platão e Descartes foram grandes filósofos que refletiram profundamente sobre a
imortalidade da alma humana, sendo, por isso, autoridades competentes no que respeita
a este assunto, muitos outros filósofos igualmente reputados (reconhecidos e
respeitados) como, por exemplo, o grande filósofo alemão Friedrich Nietzsche, negaram
que a alma humana seja imortal, o que significa que existem autoridades igualmente
competentes que contradizem a opinião de Platão e de Descartes sobre a imortalidade
da alma, pelo que não podemos tomar a sua opinião como uma justificação satisfatória
para acreditar que temos uma alma imortal.

Para além disto, existe uma outra condição ou requisito, que é, como já foi dito
atrás, a imparcialidade:

► A autoridade invocada tem de ser imparcial sobre o assunto em causa.

Isto mostra que o argumento b) também é insatisfatório, uma vez que,


independentemente das convicções de cada um, aqueles que argumentam que uma
dieta integralmente vegetariana é a mais saudável estão comprometidos com a causa ou
a defesa (muito nobre e muito digna, diga-se) dos direitos dos animais.
194
Salvaguardando as devidas diferenças, por exemplo, se uma empresa tabaqueira
declarasse que o tabaco não faz mal à saúde ou uma empresa cervejeira difundisse a
ideia de que a ingestão de cerveja faz bem ao organismo, não levaríamos a sério as
suas posições, pois sabemos que essas empresas não são imparciais, dados os seus
interesses em vender tabaco e cerveja, respetivamente.
O mesmo se passa relativamente às touradas: as pessoas e comunidades que
“vivem” das touradas e fazem delas “modo de vida” ou rendimento, ao afirmarem que “os
touros nasceram para serem toureados” e que “daí não resulta qualquer sofrimento para
o animal”, estão a produzir argumentos insatisfatórios, porque, desde logo, não têm o
distanciamento, a neutralidade, a imparcialidade e a isenção necessárias para se
pronunciarem sobre a legitimidade das touradas, visto que estão económica e
culturalmente envolvidos nesta atividade a que chamam “arte” e “espectáculo”. Do
mesmo modo, como as organizações de defesa dos animais estão interessadas em
protegê-los da exploração humana, acabam por não ser uma autoridade fiável no
problema de se saber se é saudável comê-los. Quem, eventualmente, poderá ser uma
autoridade nesta matéria serão os especialistas em nutrição.
Assim, um argumento de autoridade mais satisfatório seria o seguinte:
Os nutricionistas defendem que uma alimentação pobre em vegetais é pouco
saudável.
Logo, uma alimentação pobre em vegetais é pouco saudável.

Assumindo que os nutricionistas são autoridades competentes e imparciais no


que respeita à nutrição, a premissa constitui efetivamente uma boa razão para aceitar a
conclusão.

Naturalmente que se invocássemos a opinião, por exemplo, de um cantor


(independentemente do reconhecimento do valor e do respeito que os cantores nos
possam merecer), para defendermos esta mesma conclusão, estaríamos a apresentar
um argumento de autoridade inválido, ou seja, estaríamos a dar origem a um
argumento falacioso.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

195
1. Identifique os argumentos não dedutivos a que no texto se faz referência.

2. Em que consiste, nos argumentos por indução, a generalização?

3. Explicite os requisitos que uma generalização tem que cumprir para ser
válida.

3.1 Apresente um exemplo de uma generalização (indutiva) válida.

3.1.1 Apresente um exemplo de uma generalização (indutiva) não válida (ou


inválida).

4. Em que consiste, nos argumentos por indução, a previsão?

4.1 De que depende a sua validade?

4.1.1 Dê um exemplo de uma previsão válida.

4.1.2 Identifique os critérios que nos são úteis para saber/determinar se uma
generalização ou uma previsão é indutivamente forte?

5. O que é um argumento por analogia?

5.1 Apresente um exemplo de um argumento por analogia


(independentemente de ser válido ou inválido).

5.1.1 Enuncie os critérios que são usados para determinar em que medida as
premissas de uma analogia confirmam a sua conclusão.

6. Defina argumentos de autoridade.

6.1 Explicite os requisitos que estes argumentos devem cumprir para ser
válidos.

6.1.1 Apresente um exemplo de um argumento de autoridade válido.

6.1.2 Dê um exemplo que mostre que estamos perante um argumento de


autoridade inválido.

6.1.3 Enuncie as condições ou os requisitos a que os argumentos de


autoridade devem obedecer para serem válidos.

7. Identifique os seguintes argumentos e indique se são válidos ou inválidos:

a) Um comentador desportivo afirmou que o Orçamento de Estado é justo. Logo,


o Orçamento de Estado é justo.

b) As girafas têm um pescoço comprido. As toupeiras, sendo animais, são como


as girafas. Logo, as toupeiras têm o pescoço comprido.
196
c) Todos os meus amigos gostam de ir às discotecas. Logo, todas as pessoas
gostam de ir às discotecas.

d) Todas as sardinhas respiram por guelras. Será de prever que as sardinhas


que ainda não nasceram respirarão por guelras.

FALÁCIAS INFORMAIS

DEFINIÇÃO DE FALÁCIA

De um modo geral, por falácia designa-se todo o raciocínio ou inferência que


se apresenta incorreto ou inválido. Nas falácias distinguimos as que são cometidas
involuntariamente daquelas que são cometidas voluntariamente, isto é,
intencionalmente, propositadamente e com consciência da sua falta de validade. A
falácia involuntária é designada por paralogismo. Já a falácia voluntária é designada
por sofisma.

197
À lógica não compete pronunciar-se acerca das intenções de quem comete as
falácias, uma vez que tal assunto é de natureza ética e moral – à lógica interessa
somente a análise das diferentes modalidades da argumentação falaciosa.
Como vimos já, existem dois tipos de falácias: as falácias formais e as falácias
informais. As falácias formais são aquelas que não respeitam as regras lógicas de
inferência válida porque têm uma forma dedutivamente inválida – por exemplo: Se
chove, fico em casa. Fico em casa. Logo, chove. Sabemos que, para ser válido, o
raciocínio ou inferência deveria ter a seguinte forma lógica (já que não é pelo facto de
eu ficar em casa que chove ou deixa de chover): Se chove, fico em casa. Chove.
Logo, fico em casa.
As falácias informais, por sua vez, são argumentos inválidos, mas cuja
invalidade, diferentemente das falácias formais, não resulta de uma deficiência
lógica (formal), mas sim do próprio conteúdo do argumento (material), que acaba
por ser inválido, mas sem o parecer.
Assim, podemos dizer que as falácias informais (que são aquelas de que nos
vamos ocupar agora) são pseudoargumentos (falsos argumentos), aparentemente
válidos, as quais, pela forma “engenhosa” e “artificiosa” como são construídos, exigem
um espírito muito atento e perspicaz por parte de todo aquele que quiser detetá-las
como tal.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Defina falácia.

2. Distinga falácias formais de falácias informais.


1. FALÁCIA DA GENERALIZAÇÃO PRECIPITADA

Encontramos esta falácia no seguinte argumento:

O meu avô fumava dois maços de tabaco por dia e viveu até aos noventa anos.
Logo, o tabaco não faz mal à saúde.

Numa generalização precipitada, extrai-se uma conclusão geral a partir de


um número manifestamente insuficiente (escasso) de casos, isto é, a partir de uma
amostra demasiado reduzida.

Outro exemplo:

198
O João é estudante.
O João é mau aluno.
Logo, todos os estudantes são maus alunos.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Explicite/caracterize, sucintamente, a falácia da generalização precipitada.

1.1. Apresente um exemplo.

2. FALÁCIA DA AMOSTRA NÃO REPRESENTATIVA

Suponha-se que estamos numa época em que quase só os mais ricos têm
telefone. Dada esta suposição, encontramos a falácia da amostra não representativa
no seguinte argumento:
Noventa por cento das dez mil pessoas contactadas telefonicamente afirmaram
que tencionam votar no Partido dos Ricos.
Logo, o Partido dos Ricos vai ganhar as eleições com noventa por cento dos
votos.
O problema deste argumento é que a amostra, embora não seja reduzida, não
representa adequadamente o universo do eleitorado. Como quase só os ricos têm
199
telefone, a amostra, por conter apenas pessoas com telefone, é muito enviesada (denota
grande falta de rigor e fiabilidade), já que contém um número desproporcionalmente
elevado de pessoas ricas. Para ser representativa, a amostra deveria incluir, de
forma proporcional, eleitores das diversas classes socioeconómicas.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Explicite/caracterize, sucintamente, a falácia da amostra não


representativa.

1.1. Apresente um exemplo.

3. FALÁCIA DA FALSA ANALOGIA

Como vimos já, no âmbito dos argumentos não-dedutivos ou informais, um


argumento por analogia também pode constituir-se num falso argumento, designado
por falácia da falsa analogia.

Encontramos esta falácia no seguinte argumento:

A cerveja, como o sumo de laranja, é constituída sobretudo por água.


O sumo de laranja é saudável.
Logo, a cerveja é saudável.

200
Incorre-se numa falsa analogia quando, num argumento, supostamente por
analogia, se ignoram diferenças relevantes entre os objetos comparados. Neste
caso, ignora-se o facto de a cerveja, ao invés do sumo de laranja, conter álcool.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Explicite/caracterize, sucintamente, a falácia da falsa analogia.

1.1. Apresente um exemplo.

4. FALÁCIA DO APELO À AUTORIDADE NÃO-QUALIFICADA (argumentum ad


verecundiam)

Como ficámos a saber, aquando da abordagem dos principais tipos de


argumentos informais, especificamente dos argumentos não-dedutivos, o
argumento de autoridade também pode assumir contornos falaciosos, dando origem à
falácia do apelo à autoridade não qualificada.

Assim, encontramos esta falácia no seguinte argumento:

O mais recente Prémio Nobel da Literatura tem um livro em que defende o


consumo de heroína para combater o stress.

201
Logo, a heroína é a melhor substância que existe para combater o stress.

Já vimos que nem todos os argumentos de autoridade são falaciosos, no entanto,


quando não há consenso (acordo comum) entre os especialistas ou quando a
autoridade invocada não é especialista no assunto em causa, comete-se uma
falácia. No argumento acima apresentado, o problema é que se pode ser muito bom
escritor, mas não ter qualquer competência em medicina ou neurologia.
Quando, para provarmos a verdade de certa ideia ou conclusão, nos
apoiamos numa tradição absoluta, na reputação de uma pessoa que não é uma
autoridade nem um especialista no assunto em causa ou na opinião da maioria,
cometemos a falácia do apelo à autoridade não-qualificada.

Mas, o que torna uma suposta autoridade não credível?

Primeiro, como já se deu a entender, o facto de essa suposta autoridade não


ser especialista (“expert”) no assunto ou matéria em causa; segundo, o facto de
poder estar afetada por preconceitos, por interesses pessoais, motivações
particulares, etc.
É evidente que em muitos assuntos o nosso saber é nulo ou inadequado e, por
isso, recorremos a quem julgamos ser especialista ou autoridade na matéria:
consultamos advogados, médicos, professores, livros, sites, etc.
Recorrer, num dado problema, a uma autoridade competente/qualificada
delegando a solução desse problema numa outra pessoa quando o nosso saber não é
adequado é uma atitude reveladora de modéstia e razoabilidade. Contudo não há
nenhuma razão para ficar impressionado com as opiniões dadas por pessoas que
devido à sua reputação noutras áreas não têm nenhuma competência especial no
assunto. Nem devem as opiniões ou juízos de grandes personalidades históricas, que
viveram há muitos séculos ou numa era bem diferente da nossa, ser tomados como
autoridades absolutas a que devemos cegamente recorrer para solucionar os problemas
de hoje.
O necessário recurso à autoridade envolve riscos, por isso é que devemos ser
prudentes e cautelosos em situações deste género. Com efeito, sabemos que para
resolver um problema que afeta um bebé, por exemplo, a autoridade indicada é um
médico pediatra e não um físico, um mecânico de automóveis ou um astrólogo.
As autoridades a que recorremos nem sempre estão corretas nos juízos que
formulam. Por isso, mesmo quando argumentamos que dada conclusão é correta com
base no facto de que uma autoridade ou especialista na matéria em causa chegou a
202
essa conclusão, corremos o risco de ser falaciosos. Devemos, pois, ser prudentes e não
declarar essa conclusão como necessariamente verdadeira, mas simplesmente digna
de confiança dada a reputação e competência de quem a afirmou.
Se mesmo as autoridades legítimas não estão livres da dúvida, pois, com
frequência, os próprios especialistas têm posições opostas ou divergentes acerca de um
mesmo assunto, há, contudo, casos em que o apelo à autoridade é claramente
falacioso ou abusivo – acontece quando estrelas de cinema, desportistas consagrados
e músicos famosos são apresentados como autoridades relativamente a produtos como
dentífricos, pastilhas elásticas, automóveis, produtos financeiros, suplementos
vitamínicos ou alimentares, e a outros assuntos que, salvo raríssimas exceções, estão
completamente fora do campo das suas competências.

Exemplos:

Cristiano Ronaldo, um dos melhores futebolistas do mundo, afirmou que o


champô Linic é o melhor para o tratamento do couro cabeludo. Logo, é verdade que não
há melhor champô que o Linic para o tratamento do couro cabeludo.

Cristina Ferreira afirma que o melhor suplemento vitamínico para combater a


osteoporose é o Calcitrin. Logo, o Calcitrin é o que há de melhor para os ossos.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Explicite/caracterize, sucintamente, a falácia do apelo à autoridade não


qualificada (argumentum ad verecundiam).

1.1. Apresente um exemplo.

5. FALÁCIA DA PETIÇÃO DE PRINCÍPIO ou do ARGUMENTO CIRCULAR

Processo que consiste em assumir como verdadeiro aquilo que se pretende


provar. Neste tipo de argumento falacioso, a conclusão (consequente) é usada, de
uma forma implícita, como premissa (antecedente), encontrando-se, muitas vezes,
disfarçada com palavras de significação idêntica (redundante) à daquelas que
aparecem na conclusão propriamente dita, acabando por não acrescentar nada, ou
seja, a conclusão acaba por não ser diferente da(s) premissa(s) – daí também se
poder chamar a esta falácia (da petição de princípio) argumento circular.

203
Exemplos:

Andar a pé é um desporto saudável.


Logo, andar a pé é um desporto que faz bem à saúde.

O ser humano é inteligente porque é um ser que possui inteligência.

A Bíblia é a palavra de Deus.


Se a Bíblia é a palavra de Deus, então é verdadeira.
Na Bíblia está escrito que Deus existe.
Logo, Deus existe.

Este último argumento visa provar a existência de Deus através de três


premissas. Porém, na primeira premissa já está implícita a afirmação de que Deus
existe (se a Bíblia for realmente a palavra de Deus, então Deus existe). Portanto, neste
argumento pressupõe-se numa das premissas a conclusão que se pretende estabelecer.
É isso que faz deste argumento uma petição de princípio.
Comete-se esta falácia quando se pressupõe indevidamente nas premissas
aquilo que se quer provar com o argumento.
A petição de princípio é conhecida também, como já foi afirmado atrás, por
argumento circular ou falácia da circularidade. Esta designação deve-se ao facto de
as petições de princípio conduzirem a um círculo lógico ou um “círculo vicioso” do
qual não se consegue sair, o que nos permite afirmar que estamos perante a falácia
da petição de princípio.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Explicite/caracterize, sucintamente, a falácia da petição de princípio.

1.1. Apresente um exemplo.

204
6. FALÁCIA DO FALSO DILEMA

Consiste em reduzir as opções possíveis a apenas duas, ignorando as


restantes alternativas. Trata-se, portanto de extrair uma conclusão a partir de uma
disjunção falsa.
Comete-se a falácia do falso dilema caso se apresentem duas hipóteses
alternativas como se estas esgotassem todas as possibilidades, quando na
verdade existem mais do que duas hipóteses.

Encontramos esta falácia no seguinte argumento:


205
Ou acreditas em Deus ou és ateu.
Não acreditas em Deus.
Logo, és ateu.

No exemplo apresentado, a falácia surge na primeira premissa. Esta


premissa sugere que existem apenas duas hipóteses: acreditar em Deus ou ser
ateu. Porém, isto é um falso dilema, já que existe pelo menos mais uma
possibilidade: ser agnóstico (aquele que nem afirma nem nega a existência de deus).

Vejamos outro exemplo de um argumento baseado neste tipo de premissas:

Ou votas no partido X ou será a desgraça do país!


Não votas no partido X.
Logo, será a desgraça do país.

Embora seja válido em termos dedutivos, este argumento exprime um falso


dilema: ignora-se a possibilidade de outros partidos poderem evitar a desgraça do
país.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Explicite/caracterize, sucintamente, a falácia do falso dilema.

1.1. Apresente um exemplo.

7. FALÁCIA DA CAUSA FALSA ou DA FALSA RELAÇÃO CAUSAL (post hoc,


ego propter hoc)

A expressão “post hoc, ergo propter hoc” significa “depois disto, logo, por causa
disto”. Neste sentido, a falácia da causa falsa surge sempre que se toma como
causa de algo aquilo que é apenas um antecedente ou uma qualquer circunstância
acidental.
No fundo, pressupõe-se a existência de uma relação/ligação entre uma
determinada causa ou antecedente e um determinado efeito ou consequente que
não existe.

206
Dois exemplos:
Fiquei com dores de cabeça no dia em que a minha avó fez um bolo. O bolo foi a
causa das minhas dores de cabeça.

Quando faço testes em dias de chuva tiro negativa.


Por isso, a chuva é a causa das negativas nos meus testes.

Mais precisamente, teremos aqui uma falácia da causa falsa (“post hoc, ergo
propter hoc”): infere-se (conclui-se) que A é causa de B simplesmente porque A
ocorreu antes de B.
De um modo mais geral, a falácia da causa falsa consiste em inferir (concluir)
precipitadamente a existência de uma relação causal (relação causa-efeito) a partir
dos dados que se têm disponíveis (e entre os quais não se verifica qualquer
correlação), ignorando (propositadamente ou não, depende da boa fé ou da má fé de
quem a comete) o facto de, efetivamente, não existir a conexão (ligação) que sugere
existir entre eles. Ora, ignorar esta esta ausência de conexão ou relação causal é
incorrer numa falácia da causa falsa.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Explicite/caracterize, sucintamente, a falácia da causa falsa ou da falsa


relação causal (post hoc, ego propter hoc).

1.1. Apresente um exemplo.

8. FALÁCIA DO ATAQUE PESSOAL (argumentum ad hominem)

Esta falácia comete-se quando alguém, em vez de tentar refutar o argumento


de uma outra pessoa, ataca não o argumento, mas sim a pessoa.
Em vez de uma contra-argumentação (oposição de um argumento a outro)
temos um ataque pessoal, ou seja, em vez se apresentar razões adequadas ou
pertinentes contra determinada opinião ou ideia, pretende-se refutar tal opinião ou
ideia censurando, desacreditando ou desvalorizando a pessoa que a defende.

Encontramos esta falácia nos seguintes exemplos:

207
“Tenho a certeza de que o povo português não vai votar no seu partido porque
sabem que não seria bom para o país ter como primeiro-ministro uma pessoa como
você, um homossexual assumido!”

“Você defende que as touradas devem acabar porque você não passa de um
intelectual da cidade, completamente desligado da vida rural. Portanto, as touradas não
devem acabar.”

Assim, as falácias ad hominem (do ataque ao homem) consistem em ataques


pessoais. Para mostrar que uma certa proposição é falsa, ataca-se e tenta-se
desacreditar a pessoa que defende que ela é verdadeira.

É evidente que partimos de um pressuposto errado ou pelo menos muito


discutível quando julgamos que o carácter de uma pessoa, a sua profissão, a sua
nacionalidade, a sua ideologia, a sua cultura, a sua religião, etc., são relevantes
para julgar a verdade ou a falsidade das suas opiniões.
As falácias ad hominem (do ataque ao homem) são muito frequentes nos mais
quentes debates, nas mais intensas controvérsias e nas mais acesas polémicas.
O estratagema do argumento ad hominem é este: reprova-se ou desacredita-
-se alguma ou algumas características (rotulando-as de negativas) da pessoa (o seu
temperamento, o seu modo de ser, o seu comportamento moral, a sua profissão, a
sua nacionalidade, a sua etnia, a sua ideologia, a sua religião ou ausência dela, a
sua honestidade, a sua competência, etc.) utilizando-as como meio da refutação
das suas opiniões.
Assim, se utilizássemos este tipo de argumentação, apenas baseada no ataque
pessoal, poderíamos dizer que os ecologistas não têm razão em criticar o
desenvolvimento industrial porque têm ideias demasiado pessimistas acerca do futuro
da humanidade; que quem critica a sociedade capitalista é um comunista e, logo, uma
pessoa a quem não se pode dar crédito; que o árbitro X não tem competência para
arbitrar um jogo porque é adepto de uma das equipas que vão disputar esse mesmo
jogo, etc.
Resumindo e concluindo, ataca-se a pessoa quando se devia refutar (de
acordo com as mais elementares regras da boa argumentação) aquilo que ela defende.

208
PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Explicite/caracterize, sucintamente, a falácia do ataque pessoal


(argumentum ad hominem).

1.1. Apresente um exemplo.

9. FALÁCIA DO APELO À “FORÇA” ou DA PRESSÃO PSICOLÓGICA


(argumentum ad baculum)

A falácia do apelo à “força” ou da pressão psicológica verifica-se quando


quem argumenta a favor de uma conclusão sugere ou afirma que algum mal ou
algum problema acontecerá a quem não a aceitar. Portanto, este tipo de
“argumentação” baseia-se em ameaças explícitas ou implícitas ao bem-estar físico
e psicológico daqueles que são alvo deste tipo apelo e de pressão, seja ele um
indivíduo apenas ou um grupo de indivíduos.

209
Sabemos que, por serem alvo deste tipo de ameaças, há muitas pessoas que não
fazem a defesa de certas ideias em público porque cedem, para sua própria segurança,
à pressão que certos grupos exercem sobre elas e ao medo relativamente a reações
violentas que possam afetar a sua integridade física e psicológica, a sua reputação, o
seu prestígio, o seu bom nome, etc. É o momento em que a intimidação e a
chantagem tomam o lugar da razão.
Sendo obviamente falaciosos, tais “argumentos” têm tido e terão um uso
quantitativamente assinalável em virtude da forte pressão psicológica que os
acompanha.
A história da humanidade oferece-nos muitos exemplos e estes métodos não
estão de modo algum ultrapassados…
Vejamos alguns:

Em 1968, depois de um navio de guerra americano ter sido capturado por


soldados inimigos norte-coreanos, o comandante viu-se obrigado a admitir que praticava
espionagem porque os seus captores lhe disseram: “Ou assinas esta confissão ou
começaremos a matar os tripulantes, um a um, na tua presença”. Esta ameaça
certamente deu ao comandante forte motivo para assinar a “confissão”, mas de modo
nenhum permite chegar à conclusão de que o comandante estava a admitir que era
espião, até porque, na verdade, não o era.

A “força” a que se faz apelo não é, pois, a violência física mas sim a pressão
psicológica.

Pensemos no advogado de acusação que diz aos jurados o seguinte: “Sentir-se-


-ão seguros nas ruas, de noite, se este homem violento e perigoso não for declarado
culpado e preso?”
E não pensemos que os advogados de defesa não seguem, por vezes, o mesmo
caminho (da pressão psicológica); no mesmo tribunal, podemos imaginar o defensor do
réu a “advertir” os jurados: “Se não ilibam este ser humano que nada de mal fez e que,
portanto, está inocente, não se admirem de um dia também poderem vir a ser
condenados por um crime que não cometeram!”

Propriamente falando, o argumento que se baseia no “apelo à força” não


merece o nome de argumento, mas sim falácia (pseudoargumento ou falso
argumento). Abandona-se o raciocínio, a justificação e a prova de uma conclusão

210
ou ideia para se recorrer a meios (pressão psicológica, chantagem emocional) que
nada têm a ver com a razão.

Outros exemplos do argumentum ad baculum:

“Meus amigos, o problema com que nos debatemos é muito simples e, portanto,
muito fácil de resolver: ou as minhas ideias são aceites ou então mandarei prender
quem discordar de mim!"

“Mereço um aumento de salário para o próximo ano. Além de mais, sabe como eu
sou amiga da sua mulher, chefe, e tenho a certeza de que você não gostaria que ela
viesse a saber das suas «reuniões de trabalho» com aquela rapariga que você
conheceu em Penafiel no ano passado…”

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Explicite/caracterize, sucintamente, a falácia do apelo à força (argumentum


ad baculum).

1.1. Apresente um exemplo.

FALÁCIA DO APELO AO POVO ou À EMOÇÃO (argumentum ad populum)

Esta forma de argumento falacioso verifica-se quando, por falta de razões


convincentes ou pertinentes, se manipulam e exploram sentimentos da audiência
para fazer adotar o ponto de vista de quem fala.
O “argumento” dirige-se a um conjunto de pessoas – “ao povo” (também se
dirige, embora com menor frequência, a este ou aquele indivíduo, focando algum aspeto
da relação deste com a multidão) – e tira partido de preconceitos, desejos e

211
emoções para tornar persuasiva uma ideia ou uma conclusão para a qual não se
encontram nem dados nem provas nem argumentos racionais.
O princípio que orienta quem recorre ao “apelo ao povo” é o de que aquilo que a
maioria das pessoas considera verdadeiro, valioso e agradável é, efetivamente,
verdadeiro, valioso e agradável – a opinião da maioria toma o lugar da verdade.
Exploram-se sentimentos muito humanos como o desejo de “ser como os outros”,
de “ser estimado”, de “ser aceite”, etc.
Com frequência, recorrem a este estratagema os políticos demagogos e
populistas e os publicitários:

Hitler era um mestre nesta técnica de manipulação dos sentimentos, desejos e


aspirações das multidões, mas os políticos atuais também o são. Basta simplesmente
recordar alguns dos discursos nas campanhas eleitorais a que assistimos:
“Querem a mudança, sempre arriscada e perigosa, ou a continuidade, tranquila e
segura?”
“Eles vão aumentar os impostos sobre os rendimentos do trabalho e os que
trabalham é que vão sustentar os que nada fazem, os que apenas vivem à custa dos
subsídios, os que só têm direitos e não têm deveres, os que só têm privilégios e não têm
obrigações! Portanto, vamos mostrar-lhes que não os queremos mais a dirigir os
destinos do nosso país!”
“Votem em mim, pois eu vou acabar com a miséria e a injustiça!”

No campo da publicidade os exemplos também abundam:


“Quem quer poupar compra no Modelo e Continente”;
“Quem quer dinheiro vai ao Santander! E você por que está à espera?”
“Com certeza que você quer comprar o dentífrico Colgate, 80% dos portugueses
usam-no!”
Usam-se muito estas falácias quando se alega que uma proposição é
verdadeira simplesmente porque muita gente acredita na sua verdade. Ora, mesmo
que a grande maioria das pessoas acredite numa proposição, essa maioria poderá estar
enganada…

Hoje em dia, a utilização de argumentos ad populum (apelo ao povo, à


emoção) atinge, no mundo das agências de publicidade, um grau de sofisticação
tão elevado que, em geral, assume requintes artísticos.

212
Os produtos publicitários são associados, explicitamente ou não, a coisas
que desejamos ou que nos impressionam favoravelmente.
Por exemplo, os iogurtes para o pequeno-almoço ou para o lanche são
associados a uma elegância invejável, a proezas atléticas e a uma saúde vibrante.
Associa-se a cerveja à alegria exuberante e a grandes aventuras ou a grandes
eventos desportivos ou festivais musicais.
O automóvel é geralmente associado ao prestígio, ao romance e à riqueza.
Os homens que anunciam os produtos são, na generalidade, de uma invejável
beleza, charme e distinção; as mulheres, sofisticadas, atraentes, lindas – e quase sem
roupa!

Quase todos os estratagemas são usados para orientar a nossa vontade, para
nos persuadir e convencer.
Somos manipulados por incessantes apelos de toda a espécie às nossas
emoções e aspirações mais profundas.
Pensemos nalguns salões de automóveis e nas jovens e sedutoras mulheres
que rodeiam e se exibem nos capôs de determinados modelos. A conclusão a que se
pretende que cheguemos é a de que aquele automóvel é um objeto de sedução, que
garantirá ao seu comprador sucesso na relação com os outros. Ou seja, é esta a
razão (premissa) que se apresenta para justificar a sua compra (conclusão). Ora,
que tal conclusão derive de tal premissa é obviamente falacioso.
Os automóveis não são sedutores, mas como a maioria das pessoas acredita que
os possuidores de certos modelos são sedutores bem-sucedidos, utiliza-se essa crença
para que uma determinada conclusão – você deve comprar este automóvel! – obtenha
aprovação.
Em última análise, os argumentos ad populum não são argumentos
propriamente ditos, mas estratagemas falaciosos para despertar e manipular os
desejos, as paixões e, consequentemente, as decisões da maioria das pessoas,
uma vez que, como se sabe, o apelo aos sentimentos e às emoções é, em muitos
casos, o caminho mais eficaz – e mais curto – para persuadir/convencer um
auditório.

213
PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Explicite/caracterize, sucintamente, a falácia do apelo ao povo (argumentum


ad populum).

1.1. Apresente um exemplo.

10. FALÁCIA DO APELO À PIEDADE (argumentum ad misericordiam)

A falácia do apelo à piedade acontece quando alguém argumenta


recorrendo a sentimentos de piedade e de compreensão por parte da audiência de
modo a que a conclusão ou afirmação defendida seja aprovada.
Ora, se pensarmos bem, “falar ao coração” não é um modo racional de
argumento.

214
Por exemplo, este tipo de argumento é com frequência utilizado nas escolas por
alguns estudantes, no sentido de convencerem os professores a lhes atribuírem
determinada classificação, tentando justificar a sua falta de estudo através de razões
que não são bem aquelas que correspondem à realidade. Também nos tribunais, por
alguns advogados de defesa, no sentido de obterem o perdão ou absolvição do réu,
apelam, dentro daquilo que as circunstâncias permitem, à piedade, compreensão e
compaixão dos jurados.

Exemplos:

“Mereço uma nota melhor neste teste, professor; porque obter notas baixas deixa-
me deprimido e com uma azia insuportável.”

“Antes de darem o vosso veredito, peço apenas que olhem para este homem que
está à vossa frente e que não olhem para ele como um criminoso, apesar do que foi
apurado no que respeita à sua conduta, mas como um desgraçado a quem a vida nunca
sorriu e que nunca soube o que é viver em condições de conforto material, bem-estar
espiritual e dignidade pessoal.”

No primeiro exemplo, temos, sem dúvida uma falácia do apelo à piedade. Já no


segundo exemplo, como não conhecemos a natureza do crime de que o réu é
acusado, mas que, pelas “entrelinhas” nos parece que cometeu, não podemos afirmar
com absoluta certeza se se trata de uma falácia do apelo à piedade ou não,
embora, de acordo com a definição que acima foi dada, possamos com grande dose
de probabilidade deduzir que estamos também perante uma falácia deste género.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Explicite/caracterize, sucintamente, a falácia do apelo à piedade


(argumentum ad misericordiam).

1.1. Apresente um exemplo.


11. FALÁCIA DO APELO À IGNORÂNCIA (argumentum ad ignorantiam)

Esta falácia ocorre quando se argumenta que a proposição é verdadeira


porque não foi provado que é falsa ou que é falsa porque não foi provado que é
verdadeira.
Exemplos:
215
Ninguém provou que Deus existe.
Logo, Deus não existe.

Ninguém provou que Deus não existe.


Logo, Deus existe.

Ninguém conseguiu provar que existe vida noutros planetas.


Logo, não existe vida noutros planetas.

Sempre que acerca de um determinado problema não temos nenhuma


evidência – ou então muito escassas – a favor ou contra, tirar uma conclusão
afirmativa ou negativa é falacioso.
Numa falácia de apelo à ignorância afirma-se nas premissas que não se
sabe que uma certa proposição é verdadeira, concluindo-se daí que ela é falsa. Ou
então declara-se que não se sabe que uma certa proposição é falsa, concluindo-se
daí que ela é verdadeira.
Ora, estas inferências (conclusões) são inválidas, pois do simples facto de
não se conhecer o valor de verdade de uma proposição não se segue que essa
proposição seja falsa ou seja verdadeira.
Se argumentamos que não há vida noutros planetas, porque ninguém ainda o
conseguiu provar, pretendemos ver aceite a conclusão, mas não a provamos. O
argumentum ad ignorantiam é inaceitável porque o facto de não haver prova
alguma de que Deus existe ou de que há vida noutros planetas não implica
necessariamente que Deus não exista ou que não haja vida noutros planetas. A
não existência de prova revela única e simplesmente que o nosso conhecimento é
limitado, que o método científico não é bem-sucedido na resolução de todo e
qualquer problema.
Por outro lado, se o que não está provado não existe, como compreender a
evolução de conhecimento científico?
Há um contexto muito especial no qual o apelo à ignorância (não à estupidez,
mas à ausência de evidências indubitáveis e suficientes) é comum e, em certa medida,
apropriado: é o caso dos tribunais criminais. Nesses julgamentos, até prova flagrante e
convincente, um réu é presumido inocente. Adota-se este princípio porque se reconhece
que o erro de inculpar o inocente é pior do que o erro de ilibar o culpado – e assim a
defesa pode legitimamente reclamar que se a acusação não encontrou provas
216
suficientemente convincentes para inculpar o réu, este deve ser declarado não culpado
(é o único veredito possível). Há, apesar de toda a razoabilidade, uma “generosa
confusão”: o facto de não se conseguir provar para lá de qualquer dúvida razoável
que o réu é culpado, não justifica a conclusão: “o réu está inocente”. A conclusão
logicamente válida e linguisticamente rigorosa seria: “Não se provou que o réu é
culpado.”

[Irwing M. Copi e Carl Cohen “Introduction to Logic”, Prentice-Hall p.118] (adaptado)

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Explicite/caracterize, sucintamente, a falácia do apelo à ignorância


(argumentum ad ignorantiam).

1.1. Apresente um exemplo.

12. FALÁCIA DO BONECO DE PALHA ou DO ESPANTALHO

A falácia do boneco de palha ou do espantalho consiste em distorcer a


posição do oponente de modo a atacá-la mais facilmente. Assim, em vez de se
refutar a verdadeira perspetiva que o oponente defende, apresenta-se uma mera
caricatura dessa perspetiva (metaforicamente, um mero boneco de palha ou um
espantalho).
217
Esta falácia é cometida sempre que o orador, em vez de refutar o verdadeiro
argumento do seu opositor/interlocutor, ataca ou refuta uma versão simplificada,
mais fraca e deturpada desse argumento, a fim de ser mais fácil de rebater a tese
oposta.
Além de não se focar realmente nas afirmações/assunto do adversário, o
orador tende a criticar uma posição diferente daquela que tinha sido originalmente
defendida pelo oponente.
Exemplo:

António defende que não devemos comer carne de animais cujo processo de
industrialização os tenha sujeitado a condições de vida e morte cruéis.
Manuel refuta a posição de António dizendo: “António quer apenas que comamos
alface!”

Note-se que em momento algum António defende que não devemos comer todo e
qualquer tipo de carne, não sugerindo, portanto, que sejamos vegetarianos radicais
(“comer alface”), mas apenas aquele tipo de carne sujeito às condições descritas (cujo
processo de industrialização os tenha sujeitado a condições de vida e morte cruéis). O
argumento é, assim, deturpado, simplificado e até mesmo ridicularizado.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Explicite/caracterize, sucintamente, a falácia do boneco de palha ou do


espantalho.

1.1. Apresente um exemplo.

13. FALÁCIA DA DERRAPAGEM, DA BOLA DE NEVE ou DO DECLIVE


ESCORREGADIO

Esta falácia é cometida sempre que alguém, para refutar (contrariar, combater)
uma tese, apresenta, pelo menos, uma premissa falsa ou duvidosa e uma série de
consequências progressivamente inaceitáveis. Por outras palavras, a pessoa usa

218
um exemplo e “estende-o” (“estica-o”) indefinidamente (“exageradamente”) para
mostrar que um determinado resultado indesejável inevitavelmente se seguirá.
A ideia subjacente (que está ligada) é a de que, se permitirmos uma exceção a
uma regra, então mais e mais exceções se seguirão, o que conduzirá
inevitavelmente ao ponto de a regra ser completamente subvertida
(desrespeitada/não cumprida) ou de haver consequências totalmente indesejáveis.
Podemos até dizer que há neste tipo de falácia uma certa propensão (tendência)
para o alarmismo e para o exagero, uma vez que se radicalizam as consequências
do facto de se abrir uma exceção à regra ou de um precedente, afirmando-se que
tal atitude constitui um risco e um perigo.

Comete-se esta falácia nos seguintes argumentos:

“É péssimo que jogues a dinheiro. Se o fizeres, vais viciar-te no jogo e, desse


modo, perderás tudo o que tens. Em consequência, se não quiseres morrer à fome,
terás de roubar.”

“O polícia não me multa se eu conduzir 1Km/hora acima do limite de velocidade


estabelecido, mas 1Km/hora acima do limite de velocidade equivale a excesso de
velocidade. Se abrir esta exceção (precedente), então o polícia também não vai multar-
me se eu conduzir a 2, 5, 10 Km/hora acima do limite de velocidade. Logo, ao fazer
estas exceções, o polícia não será capaz de multar qualquer que seja o excesso de
velocidade.”

“Se permitirmos o casamento homossexual, um dia as crianças poderão ser


adotadas por casais homossexuais.
Se as crianças vierem a ser adotadas por casais homossexuais, a família
tradicional desaparecerá.
Se a família tradicional desaparecer, assistiremos ao fim da sociedade civilizada.
Ora, devemos impedir o fim da sociedade civilizada.
Logo, não devemos permitir o casamento homossexual.”

Este argumento/falácia diz-nos, em suma, que devemos proibir o casamento


homossexual porque, se não o fizermos, iniciar-se-á um processo de “derrapagem” –
formar-se-á uma bola de neve, por assim dizer – que terminará em algo calamitoso: o
fim da civilização. No entanto, o argumento é falacioso porque as premissas afirmam
relações causais extremamente duvidosas: nada leva a crer que a possibilidade de

219
os casais homossexuais adotarem crianças leve ao fim da família tradicional, nem
que o fim deste modelo de família resulte no fim da sociedade civilizada.
Concluindo, comete-se a falácia da derrapagem, da bola de neve ou do
declive escorregadio quando, invocando uma cadeia causal implausível
(inadmissível, inaceitável), se defende que não devemos aceitar algo sob pena de,
se o fizermos, esse ser o primeiro passo em direção a algo terrível.
Existe, pois, neste tipo de falácia, uma espécie de manipulação do
pensamento no sentido de o paralisar para que este não possa desenvolver-se
livremente.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Explicite/caracterize, sucintamente, a falácia da derrapagem, da bola de


neve ou do declive escorregadio.

1.1. Apresente um exemplo.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/EXERCÍCIOS:

Verifique se os seguintes argumentos são ou não falaciosos e, caso sejam,


indique o tipo de falácia cometida:

220
1. “Não há dúvida de que Karl Marx se enganou ao afirmar que o capitalismo era
uma forma de organização social e política desumana. O que esperavam de um homem
que foi um falhado a um ponto tal que nunca ganhou dinheiro suficiente para sustentar a
família?!”

RESPOSTA:

2. “Quereis uma cidade segura, onde possais passear sem medo à noite? Quereis
pôr fim ao constante aumento dos impostos? Votai em mim!”

RESPOSTA:

3.“Imagina quantas vezes vais ter de copiar este texto se não o estudares para a
próxima aula...”

RESPOSTA:

4. “O deputado Martelinho diz que se está a gastar muito dinheiro com a defesa
da nação. Não me admira um tal disparate vindo de um desses pacifistas que advogam
o desmantelamento do nosso exército.”

RESPOSTA:

5.“Mereço uma nota melhor neste teste, professor; porque obter notas baixas
deixa-me deprimido e com uma azia insuportável.”

RESPOSTA:

6.“O governo ainda não se pronunciou sobre qualquer subida de impostos. Logo,
é falso que vão subir no próximo mês.”

RESPOSTA:

7. “A Bíblia nega que a Terra esteja em movimento. Logo, quem diz que a Terra
gira em torno do Sol está errado.”

RESPOSTA:

8. “Estou a sentir-me muito mal disposto, quase não consigo respirar, por isso
deve ajudar-me e levar-me ao hospital, por favor.”

RESPOSTA:

221
9. Podemos aceitar que existem extraterrestres porque até agora não se provou
que não existem.

10. Permitir a todos os indivíduos uma liberdade ilimitada é sempre vantajoso


para o Estado, pois é altamente propício aos interesses do Estado que cada indivíduo
desfrute de liberdade ilimitada.

RESPOSTA:

11. O teu ponto de vista não tem qualquer sentido porque passaste os últimos
cinco anos numa instituição psiquiátrica.

RESPOSTA:

12. No dia em que rejeitaram a minha candidatura para um emprego, usava


meias brancas. Creio que as meias brancas foram claramente o motivo que levou a que
não fosse selecionado para o emprego.

RESPOSTA:

13. Os meus pais castigam o meu irmão sempre que este chega tarde a casa.
Um dia, como se atrasou apenas cinco minutos, os meus pais foram condescendentes e
não o castigaram. Assim, o meu irmão nunca mais chegará a horas a casa e o seu
tempo de atraso será cada vez maior. Mais tarde, será igualmente condescendente com
os filhos dele e aí será o descalabro, pois, estará a criar seres irresponsáveis que nunca
chegarão a horas a lado nenhum, estando mesmo sujeitos a perder o emprego por
despedimento por justa causa: a impontualidade.

RESPOSTA:

14. Ou lutas ou te resignas!


Não lutas.
Logo, resignas-te.

RESPOSTA:

15. Acho bem que obtenhas boas notas, caso contrário vais varrer ruas!

RESPOSTA:

222
16. Fui eu quem cometeu esse crime, mas não mereço uma pena tão pesada,
pois tenho filhos para criar e, para além disso, o som das grades da prisão deixa-me
deprimido e acabará por me tornar psicótico.

RESPOSTA:

17. Dizem vocês que o assédio verbal é tão grave como a violência física?! Pelo
amor de Deus, vocês querem é criminalizar o piropo (graçola inconveniente e quase
sempre a apontar para a maldade)!

RESPOSTA:

18. O texto que se segue apresenta algumas falácias informais. Refira quais as
passagens falaciosas, identificando a falácia respetiva.

Quando chega o calor a esta terra, acontece o inevitável: os incêndios! É,


portanto, claro que os incêndios são causados pelo calor. Mas há quem afirme que não
é bem assim. Contam-se histórias de gente sem escrúpulos, empenhada em destruir o
que ainda nos sobra de floresta, porventura para alimentar interesses inconfessáveis.
Nada disto faz sentido: não é verdade que haja incendiários entre nós, já que nunca
ninguém foi capaz de provar que os há de facto. É certo que o velho Libório jura ter visto
uma criatura a atear fogo junto àquela fraga de onde se mira o rio. Só que o velho
Libório não tem qualquer razão ao dizer isso, até porque ele é um incorrigível libertino
que aproveita os domingos para se embebedar.
A verdade é que os incêndios ou são provocados por mão criminosa ou pelo calor
excessivo. Mão criminosa encontra-se fora de questão. Logo é o calor excessivo a
causa exclusiva dos incêndios. E, uma vez que o calor excessivo é a causa exclusiva
dos incêndios, então é evidente que o fogo tem sempre como causa a elevada
temperatura que se faz sentir.

RESOLUÇÃO DAS ATIVIDADES/EXERCÍCIOS PROPOSTOS:

Verifique se os seguintes argumentos são ou não falaciosos e, caso sejam,


indique o tipo de falácia cometida:

223
1. “Não há dúvida de que Karl Marx se enganou ao afirmar que o capitalismo era
uma forma de organização social e política desumana. O que esperavam de um homem
que foi um falhado a um ponto tal que nunca ganhou dinheiro suficiente para sustentar a
família?!”

RESPOSTA: FALÁCIA DO ATAQUE PESSOAL (argumentum ad hominem).

2. “Quereis uma cidade segura, onde possais passear sem medo à noite? Quereis
pôr fim ao constante aumento dos impostos? Votai em mim!”

RESPOSTA: FALÁCIA DO APELO AO POVO ou À EMOÇÃO (argumentum ad


populum).

3.“Imagina quantas vezes vais ter de copiar este texto se não o estudares para a
próxima aula...”

RESPOSTA: FALÁCIA DO APELO À FORÇA ou PRESSÃO PSICOLÓGICA


(argumentum ad baculum).

4. “O deputado Martelinho diz que se está a gastar muito dinheiro com a defesa
da nação. Não me admira um tal disparate vindo de um desses pacifistas que advogam
o desmantelamento do nosso exército.”

RESPOSTA: FALÁCIA DO ATAQUE PESSOAL (argumentum ad hominem).

5.“Mereço uma nota melhor neste teste, professor; porque obter notas baixas
deixa-me deprimido e com uma azia insuportável.”

RESPOSTA: FALÁCIA DO APELO À PIEDADE (argumentum ad


misericordiam).

6.“O governo ainda não se pronunciou sobre qualquer subida de impostos. Logo,
é falso que vão subir no próximo mês.”

RESPOSTA: FALÁCIA DO APELO À IGNORÂNCIA (argumentum ad


ignorantiam).

7. “A Bíblia nega que a Terra esteja em movimento. Logo, quem diz que a Terra
gira em torno do Sol está errado.”

224
RESPOSTA: FALÁCIA DO APELO À AUTORIDADE NÃO-QUALIFICADA
(argumentum ad verecundiam).

8. “Estou a sentir-me muito mal disposto, quase não consigo respirar, por isso
deve ajudar-me e levar-me ao hospital.”

RESPOSTA: NÃO É UMA FALÁCIA. TRATA-SE DE UM ARGUMENTO VÁLIDO.

9. Podemos aceitar que existem extraterrestres porque até agora não se provou
que não existem.

RESPOSTA: FALÁCIA DO APELO À IGNORÂNCIA (argumentum ad


ignorantiam).

10. Permitir a todos os indivíduos uma liberdade ilimitada é sempre vantajoso


para o Estado, pois é altamente propício aos interesses do Estado que cada indivíduo
desfrute de liberdade ilimitada.

RESPOSTA: FALÁCIA DA PETIÇÃO DE PRINCÍPIO ou ARGUMENTO


CIRCULAR.

11. O teu ponto de vista não tem qualquer sentido porque passaste os últimos
cinco anos numa instituição psiquiátrica.

RESPOSTA: FALÁCIA DO ATAQUE PESSOAL (argumentum ad hominem).

12. No dia em que rejeitaram a minha candidatura para um emprego, usava


meias brancas. Creio que as meias brancas foram claramente o motivo que levou a que
não fosse selecionado para o emprego.

RESPOSTA: FALÁCIA DA CAUSA FALSA ou FALSA RELAÇÃO CAUSAL.

13. Os meus pais castigam o meu irmão sempre que este chega tarde a casa.
Um dia, como se atrasou apenas cinco minutos, os meus pais foram condescendentes e
não o castigaram. Assim, o meu irmão nunca mais chegará a horas a casa e o seu
tempo de atraso será cada vez maior. Mais tarde, será igualmente condescendente com
os filhos dele e aí será o descalabro, pois, estará a criar seres irresponsáveis que nunca
chegarão a horas a lado nenhum, estando mesmo sujeitos a perder o emprego por
despedimento por justa causa: a impontualidade.

225
RESPOSTA: FALÁCIA DA DERRAPAGEM, BOLA DE NEVE ou DECLIVE
ESCORREGADIO.

14. Ou lutas ou te resignas!


Não lutas.
Logo, resignas-te.

RESPOSTA: FALÁCIA DO FALSO DILEMA ou FALSA DICOTOMIA.

15. Acho bem que obtenhas boas notas, caso contrário vais varrer ruas!

RESPOSTA: FALÁCIA DO APELO À FORÇA ou PRESSÃO PSICOLÓGICA


(argumentum ad baculum).

16. Fui eu quem cometeu este crime, mas não mereço uma pena tão pesada,
pois, tenho filhos para criar e, para além disso, o som das grades da prisão deixa-me
deprimido e acabará por me tornar psicótico.

RESPOSTA: FALÁCIA DO APELO À PIEDADE (argumentum ad


misericordiam).

17. Dizem vocês que o assédio verbal é tão grave como a violência física?! Pelo
amor de Deus, vocês querem é criminalizar o piropo (piadinhas der mau gosto)!

RESPOSTA: FALÁCIA DO ESPANTALHO ou do BONECO DE PALHA.

18. O texto que se segue apresenta algumas falácias informais. Refira quais as
passagens falaciosas, identificando a falácia respetiva.

Quando chega o calor a esta terra, acontece o inevitável: os incêndios! É,


portanto, claro que os incêndios são causados pelo calor. (FALÁCIA DA CAUSA
FALSA ou FALSA RELAÇÃO CAUSAL) Mas há quem afirme que não é bem assim.
Contam-se histórias de gente sem escrúpulos, empenhada em destruir o que ainda nos
sobra de floresta, porventura para alimentar interesses inconfessáveis. Nada disto faz
sentido: não é verdade que haja incendiários entre nós, já que nunca ninguém foi capaz
de provar que os há de facto. (FALÁCIA DO APELO À IGNORÂNCIA) É certo que o
velho Libório jura ter visto uma criatura a atear fogo junto àquela fraga de onde se mira o
rio. Só que o velho Libório não tem qualquer razão ao dizer isso, até porque ele é um
incorrigível libertino que aproveita os domingos para se embebedar. (FALÁCIA DO
ATAQUE PESSOAL).
226
A verdade é que os incêndios ou são provocados por mão criminosa ou pelo calor
excessivo. Mão criminosa encontra-se fora de questão. Logo é o calor excessivo a
causa exclusiva dos incêndios. (FALÁCIA DO FALSO DILEMA). E, uma vez que o calor
excessivo é a causa exclusiva dos incêndios, então é evidente que o fogo tem sempre
como causa a elevada temperatura que se faz sentir. (FALÁCIA DA PETIÇÃO DE
PRINCÍPIO).

A AÇÃO HUMANA E OS VALORES


ANÁLISE E COMPREENSÃO DO AGIR

227
O homem, ao longo da sua existência, tem criado e desenvolvido formas de ser e
de estar no mundo (as quais se resumem àquilo a que chamamos Cultura) que o
distinguem completamente das demais espécies que com ele partilham o planeta. Vive e
reflete sobre o que vive, interroga-se sobre a natureza e sobre si próprio; procura dar
uma resposta a essas interrogações; passa, enfim, para uma dimensão superior (que
ultrapassa, como vimos já, o nível do imediatamente vivido) em que procura adaptar-se
ao mundo através de múltiplas formas – não se limita apenas a sobreviver e perante
as experiências que vai tendo, diante de tudo o que o rodeia, procura, através da sua
capacidade reflexiva, interpretativa e discursiva, dar-lhes um significado e uma
ordem (sentido).
Nesta nossa disciplina (Filosofia – 10º ano) temos andado, então, a ver alguns
aspetos que se ligam de um modo muito específico e muito direto ao homem, dos quais
se destacam, em primeiríssima linha, o pensamento e a linguagem (capacidades que,
como sabemos, mais nenhum ser, para além daquele, manifestou), estando, estas
mesmas capacidades, exclusivamente humanas, ligadas a todas as formas de lidar
com a vida e com o mundo, as quais, por sua vez, existem graças àquilo que poderemos
designar por ação humana.
Aqui, há uma série de questões que se devem colocar, antes de mais, e que são
as seguintes:
O que é ação ou agir?
Que condições básicas são necessárias para que possamos falar de ação
ou agir?
Haverá alguma diferença entre fazer e agir?
Será a ação ou o agir uma capacidade exclusivamente humana?
O que vem a ser, afinal, a ação humana?

Estas são algumas das questões de que nos vamos ocupar para tentar
compreender porque é que a ação humana é, efetivamente, uma noção importante para
ajudar a definir o ser humano …

DISTINÇÃO ENTRE FAZER E AGIR

Dada a importância crucial (central) da ação na vida humana, propomos, desde


já, a leitura e a análise de um texto (bem como da conclusão que dele é apresentada) do
filósofo espanhol Fernando Savater, que nos dá que pensar e nos permite começar a

228
perceber o que é, afinal, a ação humana e em que medida esta se distingue do
comportamento animal:

Vou contar-te um caso dramático. Já ouviste, certamente, falar das térmitas,


essas formigas brancas que, em África, constroem formigueiros impressionantes, com
vários metros de altura e duros como pedra.
Uma vez que o corpo das térmitas é mole, por não ter a couraça de quitina que
protege o corpo dos outros insetos, o formigueiro que erguem serve-lhes de carapaça
coletiva contra certas formigas inimigas, melhor armadas do que elas. Por vezes, um
desses formigueiros é derrubado, por causa de uma cheia ou de um elefante (os
elefantes, que havemos de fazer, gostam de se coçar nas termiteiras) o que leva a que,
logo de seguida, certas térmitas – as “térmitas-operário” – comecem a trabalhar para
reconstruir a “fortaleza” afetada com toda a pressa, uma vez que as grandes formigas
inimigas não demoram a lançar-se ao assalto.
Outro grupo de térmitas – as “térmitas-soldado” – saiem em defesa da sua tribo e
tentam deter as invasoras. Como, nem no tamanho nem no armamento, podem competir
com as assaltantes, penduram-se nelas tentando travar o mais possível o seu avanço,
enquanto ferozes mandíbulas as vão despedaçando.
As “operárias” trabalham com toda a velocidade e esforçam-se por fechar de novo
a termiteira derrubada... Mas, ao fechá-la, deixam de fora as pobres heróicas “térmitas-
soldado” que sacrificam as suas vidas em prol das restantes formigas.
Não merecerão estas “formigas-soldado” pelo menos uma medalha? Não será
justo dizer que são valentes?
Mudemos agora de cenário, mas não de assunto.
Homero, na sua obra clássica A Ilíada, que relata a guerra de Tróia, conta a
história de Heitor, o melhor guerreiro de Tróia, que espera a pé firme, fora das muralhas
da sua cidade, Aquiles, o enfurecido campeão dos gregos, mesmo sabendo que este é
mais forte que ele e que vai, provavelmente, matá-lo…
Seja como for, fá-lo para cumprir aquilo que entende ser o seu dever, que
consiste em defender a família e os seus concidadãos do seu terrível inimigo.
Ninguém tem dúvidas: Heitor é um herói e valente como deve ser!
Mas será Heitor heróico e valente da mesma maneira que as “térmitas-
-soldado”, cuja “história trágica” nenhum escritor se deu ao trabalho de contar? Não faz
Heitor, afinal de contas, a mesma coisa que qualquer uma das “térmitas-soldado”?

229
Porque é que nos parece ser o seu valor mais autêntico e o seu gesto mais difícil de
executar que o das formigas? Qual será a diferença entre um e outro caso?

F. SAVATER, Ética para um jovem, Ed. Presença, pp. 21-22 (adaptado)

CONCLUSÃO:

A resposta à questão colocada no final do texto de Savater baseia-se no seguinte:


muito simplesmente, a diferença entre um e outro caso assenta no facto de as térmitas-
soldado lutarem e morrerem porque têm que o fazer, necessariamente, sem que
possam evitá-lo (como a aranha come a mosca, por exemplo). Heitor, por seu lado, sai
para enfrentar Aquiles porque quer e não porque tem de ser. As térmitas-soldado não
podem desertar, nem revoltar-se, nem fazer-se distraídas para que as outras vão em
seu lugar – estão programadas (pré-determidadas) pela natureza para cumprirem a sua
missão, ou seja, estão sujeitas e obedecem às leis biológicas.
O caso de Heitor é distinto. Podia dizer que estava doente ou que não tinha
vontade de se bater com alguém mais forte que ele… Talvez os seus concidadãos lhe
chamassem cobarde e o considerassem insensível ou talvez lhe perguntassem que
outro plano teria para deter Aquiles, mas, de qualquer modo, é indubitável que Heitor
tem a possibilidade (a liberdade) de se recusar a ser herói. Por muita pressão que os
restantes exercessem sobre ele, ele teria sempre maneira de escapar daquilo que se
propôs fazer. É que, ninguém está programado para ser herói (nem Heitor nem
nenhum outro homem). Só o será quem, de livre vontade, em determinadas condições,
decidir agir nesse sentido – é aqui que reside o valor de qualquer ação humana – daí
que o seu gesto (a sua ação) tenha mérito e Homero nos conte a sua história com
emoção. Ao contrário das formigas térmitas, dizemos que Heitor é livre (agiu livremente
e consciente das consequências da sua ação) – por isso, admiramos a sua coragem!

PROPOSTA DE ATIVIDADE/QUESTÃO:

1. Distinga ação (humana) de comportamento (animal).

AÇÃO HUMANA - CONCEITOS PRINCIPAIS


O PROJETO OU A INTENÇÃO; O MOTIVO; O AGENTE/SUJEITO DA AÇÃO

O que é, então, o agir humano?

230
Que atos são esses que nos são próprios, que reconhecemos como nossos e
pelos quais cada um se exprime e manifesta?
Esses atos, que ao longo da nossa vida, nos individualizam e nos distinguem de
todos os outros seres, são genericamente chamados os atos conscientes, voluntários
(que resultam da nossa própria vontade consciente) e intencionais.
A este propósito, diz-nos o pensador contemporâneo John Searle:
“Por ação entendo o comportamento humano voluntário e intencional. Entendo
coisas: como caminhar, correr, cozinhar, comer, votar nas eleições, casar-se, negociar,
ir de férias, trabalhar no emprego... Não entendo coisas: como digerir, envelhecer ou
ressonar.
Verdadeiramente excluído da ação voluntária ficará todo aquele conjunto de atos
que nos são impostos, ou por alguém ou pela natureza/biologia, e que escapam,
portanto, tanto ao nosso controlo como à nossa vontade.”
Assim sendo, como poderemos definir um ato voluntário? Como caracterizá-
-lo?
Vamos tentar fazer aquilo que os especialistas chamam a gramática da ação, ou
seja, vamos caracterizar a ação humana voluntária através dos seguintes conceitos
nucleares/fundamentais:

PROJETO ou INTENÇÃO – tal como está implícito na própria palavra, o projeto


é o propósito da ação; é aquilo que queremos realizar; é, portanto, o objetivo de uma
decisão.
Dito de outro modo: é porque visa um projeto que a ação voluntária tem um
objetivo – é intencional. E esta é, sem dúvida, uma característica indispensável dos
atos humanos: a noção nuclear na estrutura do comportamento é a noção de
intencionalidade; ter a intenção de..., ou tencionar fazer isto ou aquilo, atuar desta ou
daquela maneira.
A intenção é sempre intenção de fazer algo, é sempre ativa, implica uma
certa tensão em direção à realização de uma ação, à produção de um evento.
Enfim, as minhas intenções são as ideias que eu quero realizar/concretizar...
Não há ação humana sem intenção e as intenções são ideias.
Daqui derivam algumas consequências que importa, desde já, salientar:
– O projeto está orientado para o futuro, uma vez que as nossas intenções
são ideias nas quais antecipamos as nossas ações.

231
– A realização dessas intenções pressupõe um conjunto de
conhecimentos, capacidades, habilidades, atitudes, hábitos, etc., sem os quais não
serão realizáveis… por exemplo: posso ter um enorme desejo de ser um modelo
fotográfico, um campeão olímpico ou uma estrela de música, mas, se, à partida, eu não
possuir as diversas competências exigidas não poderei decidir orientar-me para uma tal
carreira; esse propósito ou projeto não está em meu poder, ultrapassa-me.
Por isso se afirma que a decisão é um juízo que designa categoricamente a
ação a realizar: é uma escolha ou opção (preferência), o que nos obriga a reconhecer
que todas as nossas decisões são sempre uma espécie de aposta ou
compromisso que exige a aceitação do risco e, como tal, a possibilidade do
fracasso (quem opta por uma possibilidade, entre outras, arrisca-se sempre a falhar).
Simultaneamente, é graças às nossas decisões que nós assumimos a direção e a
execução dos nossos atos e, como tal, escolhemo-nos e construímo-nos a nós
próprios. A decisão é, não o esqueçamos, uma característica exclusivamente
humana.

MOTIVOS – a análise que estamos a empreender revela-nos uma outra categoria


necessariamente implicada na ação; é que a ação não é realizada por acaso, não é
gratuita, antes obedece a razões, a motivos – devendo estes ser entendidos como
aquilo que explica a ação, a esclarece e a torna compreensível – o que distingue as
ações intencionais daquelas que não o são, são aquelas às quais pode aplicar-se alguns
dos sentidos da pergunta “porquê?”. E esta observação confirma, desde já, a extrema
proximidade entre as noções de motivo e intenção: elas são noções conexas, ligadas.
“Para quê fazer isto ou aquilo?”; serve, pois, para identificar, para nomear, para
encontrar a intenção da ação; o motivo responde à questão “porquê?”; tem, portanto,
uma função de explicação.

SUJEITO ou AGENTE DA AÇÃO – finalmente, um último conceito que é, enfim,


exigido por todos os outros: o sujeito ou agente da ação. Este é o autor do projeto e o
agente da ação porque a decidiu e a executa (ou realiza) e, portanto, dela se sente
responsável (por ela tem que responder).
A ação é do agente, depende dele e está no poder dele.
Quer isto dizer que, se a ação humana implica uma decisão em vista de um
propósito que obedece a determinados motivos, ela exige, necessariamente, a
presença de alguém – um sujeito que é, simultaneamente, o seu autor e agente; isto é,

232
aquele que tem o poder de a realizar, produzindo, por sua iniciativa, alterações no
decurso das coisas; o agente é quem pode responder: “Eu!” perante a pergunta:
“Quem fez isto?”
Tal como o ator no teatro, também cada um de nós, ao longo da vida,
desempenha o seu papel, isto é, realiza melhor ou pior os atos que lhe competem; a
diferença essencial está em que, no agir humano, o papel não é distribuído à partida, ele
vai sendo escolhido, decidido, criado por nós.
Como o sujeito da ação humana é verdadeiramente o autor e o agente dos atos
que pratica, nessa condição, ele terá sempre que responder por esses mesmos atos
(que lhe são imputados), entrando, então, aqui o incontornável compromisso da
responsabilidade, aliado ao exercício da liberdade, de tal forma que, sintetizando,
podemos afirmar que a prática de uma ação pressupõe sempre a liberdade e, esta,
por sua vez, implica sempre a assunção (o assumir) da responsabilidade, uma vez
que para que se possa praticar qualquer ato que seja digno desse nome e se
possa responder pelas suas consequências, esse mesmo ato tem que ter sido
praticado em plena liberdade – como vemos, apesar de parecer um argumento circular
como se de uma falácia se tratasse, estes três conceitos fazem sentido, estão
interligados e implicam-se mutuamente).

PROPOSTA DE ATIVIDADE/QUESTÃO:

1. Caracterize, sucintamente, ação humana através dos seus conceitos


nucleares/fundamentais.

DISTINÇÃO ENTRE AÇÃO E ACONTECIMENTO


ATOS VOLUNTÁRIOS vs. ATOS INVOLUNTÁRIOS

233
Todos distinguimos intuitivamente (sem esforço de raciocínio) as ações que nós
próprios praticamos (que dependem de nós) daquilo que nos acontece (que não
depende de nós).
Nas ações que praticamos, há uma certa causalidade ou iniciativa que parte
de nós no sentido de chegarmos a um determinado resultado. Naquilo que nos
acontece, limitamo-nos a ser receptores de efeitos que nós não causámos ou
iniciámos.
Por exemplo: jogar no Euromilhões é uma ação minha (depende da minha
vontade); sair-me o Euromilhões é algo que me acontece (já não depende da minha
vontade, por muito que eu o deseje…).
Levar a carteira para ir às compras é uma ação minha; perder a carteira é
algo que me acontece (embora também possa haver alguma responsabilidade na
ocorrência desse facto; desleixo, por exemplo…).
Quando o ladrão me rouba o dinheiro, o roubo do meu dinheiro é uma ação
que o ladrão realiza, executa ou pratica (é uma ação dele), mas, a mim, é algo que
me acontece. O autor da ação é o ladrão, não eu. Ele rouba-me (ação, para ele), eu
sou roubado (acontecimento, para mim).
Também não chamamos ações aos aspetos da nossa conduta de que nos damos
conta mas que não efetuamos intencionalmente – o que implica distinguir atos
voluntários de atos involuntários.
Entre as ações que praticamos, umas praticamo-las voluntariamente, porque
queremos realizá-las, enquanto outras praticamo-las involuntariamente, isto é, sem
querermos.
Fazemos voluntária ou intencionalmente as coisas que fazemos querendo fazê-
-las, conscientemente e propositadamente. Em tais casos, dizemos que temos a
intenção ou o propósito de fazer o que fazemos.
Todavia, também há coisas que fazemos sem querer fazê-las,
(involuntariamente), como ressonar, espirrar, tremer de frio ou transpirar de calor – são
todas elas ações que não está nas nossas mãos controlar. Cantamos porque queremos,
mas ressonamos (se for caso disso) ainda que não queiramos.
Assim, há coisas que fazemos conscientemente sem que, porém, a sua
realização corresponda a uma intenção nossa.
Damo-nos conta de alguns dos nossos tiques e de muitos dos nossos atos
reflexos, contudo realizamo-los involuntariamente, constatamo-los quase como

234
espetadores, não os efetuamos como agentes (com consciência, liberdade e
intencionalidade). Podemos, por exemplo, dar-nos conta, pelo que sentimos depois de
comer, de que estamos a fazer a digestão; mas fazer a digestão não constitui uma ação,
visto tratar-se de um ato espontâneo, involuntário, natural, orgânico.
Resumindo, não são os acontecimentos que distinguem e caracterizam os
atos do ser humano na medida em que um ato humano pressupõe sempre uma
vontade, propósito ou intenção, consciente e deliberada, por parte de quem o
pratica (o agente).
Assim, rigorosamente considerados, só os atos conscientes, voluntários e
intencionais poderão inscrever-se no âmbito da ação humana e, consequentemente,
ser considerados como tal.

PROPOSTADE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Distinga ação de acontecimento, ilustrando essa distinção através de um


exemplo.

2. Distinga atos voluntários de atos involuntários.

3. Baseando-se nas considerações do texto acima dado, explicite qual será a


diferença que existe, por exemplo, entre um homicídio considerado voluntário e um
homicídio considerado involuntário.

CONDICIONANTES DA AÇÃO HUMANA


CONDICIONANTES INDIVIDUAIS E CONDICIONANTES SOCIOCULTURAIS

235
Em termos gerais, condicionantes da ação humana são todos aqueles
aspetos, fatores ou circunstâncias da nossa vida aos quais não podemos fugir e
que influenciam/determinam, de modo decisivo, as nossas ações, a nossa
personalidade, enfim, a nossa vida…
Podemos considerar que existem dois grandes tipos de condicionantes da
ação humana – as condicionantes individuais e as condicionantes socioculturais:

1. CONDICIONANTES INDIVIDUAIS

As condicionantes individuais são condicionantes ou constrangimentos que


têm a ver diretamente com o indivíduo ou sujeito individual da ação. Deste tipo de
condicionantes fazem parte as condicionantes biológicas e as condicionantes
psicológicas:

a) Condicionantes biológicas – qualquer pessoa é, à partida, condicionada


(influenciada/constrangida) pela morfologia e fisiologia do seu próprio corpo –
possuir um corpo saudável e vigoroso permite desenvolver um certo número de
atividades ou realizar determinadas ações que um organismo frágil e debilitado é
incapaz de realizar (todos sabemos que, por exemplo, as nossas capacidades físicas e
até mesmo mentais diminuem quando nos encontramos doentes).
Assim, o corpo que possuímos, o bom funcionamento dos nossos órgãos internos
e externos, o equilíbrio do nosso sistema nervoso, etc., são
condicionantes/determinantes no modo como agimos e reagimos.
Diretamente ligadas à componente física e/ou biológica situam-se, pois, as
motivações primárias, que condicionam todo o comportamento humano. Na verdade,
comer, descansar, dormir, etc., são atos que temos obrigatoriamente de realizar para
preservarmos a nossa integridade (saúde) biológica.

b) Condicionantes psicológicas – é sabido que as pessoas agem, muitas


vezes, por razões de ordem afectiva/emocional. Os sentimentos nutridos relativamente a
alguém ou a alguma coisa são, por exemplo, em muitas ocasiões, o móbil (motor/motivo)
principal da ação, isto é, são eles que nos motivam para a realização de determinadas
ações.
Na verdade, há ocasiões em que, mesmo quando julgamos estar a proceder e
deliberar (escolher/optar/decidir) de um modo racional, a carga afetiva, emocional, não
deixa de estar presente em nós, acabando por condicionar de modo determinante os

236
nossos atos, sem que necessariamente tenhamos consciência disso; vejamos alguns
exemplos:
O amor que se dedica a alguém, o medo de ser assaltado, as desavenças com
um amigo, a derrota do nosso clube de futebol, a boa disposição que nos invade quando
abrimos a janela do quarto e nos deparamos com uma manhã cheia de sol ou a alegria
decorrente de um sucesso obtido num exame, criam em nós estados psicológicos que
nos predispõem a agir de uma forma especial ou específica.
Assim, sentimentos ou estados de alma (sentimentos e emoções) como a alegria,
a tristeza, o amor, o ódio, o desânimo, a angústia, a ansiedade, a inquietação, a euforia,
o receio, o medo, o pavor, etc., constituem exemplos de estados psicológicos pelos
quais muitas vezes passamos e que são capazes de nos motivar para concretizarmos
determinados tipos de ações que seriam totalmente diferentes se os estados
emocionais fossem outros.

2. CONDICIONANTES SOCIOCULTURAIS

As condicionantes socioculturais, consistem, essencialmente, na influência ou


constrangimento, muitas vezes decisivo, que o ambiente social e cultural exerce
sobre o indivíduo em muitos aspetos (caráter, personalidade, comportamento, ação,
valores, perspetivas e rumos de vida pessoal e profissional, etc.).
A construção do ser humano decorre sempre numa ambiência social que exige a
sujeição a um sistema de regras que regulam e orientam o relacionamento com os
seus semelhantes. Esta avaliação dos modos de agir e reagir do indivíduo de acordo
com normas sociais vai-se efetuando à medida que se desenrola o processo de
socialização (a palavra de socialização aplica-se para designar o modo como o
indivíduo se adapta aos diferentes grupos sociais nos quais vive integrado, sendo a
família e a escola os principais agentes de socialização, o que implica, obrigatoriamente,
a interiorização/aprendizagem de normas sociais específicas, próprias de cada um
desses grupos).
É, assim, inegável que o homem é reflexo das condições do meio físico,
social, histórico e cultural em que nasce e se desenvolve. O homem do século XXI
tem de ser necessariamente diferente do homem do século XVII e ambos são
diferentes do homem pré-histórico, pois, os contextos em que viveram são
completamente diferentes, ou seja, as dissemelhanças (diferenças) que apresentam
explicam-se pelos condicionalismos culturais das diferentes épocas. De uma época

237
para a outra, diferem não somente as relações sociais, como também as formas de
aproveitamento da natureza, os recursos técnicos e científicos, os sistemas de valores,
os conceitos de educação, de cultura, de sociedade, de liberdade, etc.
Por isso, quando queremos compreender, por exemplo, a personalidade e
atividade de um cientista, de um filósofo, de um político ou de um artista, há que fazer o
enquadramento histórico adequado, atendendo às condições temporais, espaciais e
culturais em que viveram ou vivem cada um deles.
De facto, também a cultura (com os seus padrões ou normas culturais) é capaz
de atuar sobre o indivíduo moldando-lhe o comportamento segundo formas que ele
próprio não escolheu.
Para além de serem condicionantes, a cultura e os padrões culturais possuem
um carácter constrangedor (limitativo) sobre as nossas formas de ser, estar e agir muito
forte (quase de “obrigatoriedade”), pelo que somos praticamente “obrigados” a seguí-los
(uma vez que a pressão social é algo que está sempre presente nas nossas vidas), sob
pena de sermos censurados e, consequentemente, rejeitados/marginalizados pelos
restantes membros da sociedade/cultura a que pertencemos.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. O que são, em termos gerais, condicionantes da ação humana?

2. Explicite, sucintamente, os tipos ou géneros, específicos, de condicionantes


da ação humana que são apresentados no texto?

“Todo aquele que conseguir viver isoladamente ou é um Deus ou uma besta, mas
não um ser humano.”
Aristóteles
3. Apresente um breve comentário crítico, pessoal, relativamente ao
conteúdo da frase supracitada.

4. Na sua opinião, o meio social e cultural condiciona (influencia) ou não as


ações dos seres humanos? Justifique a sua resposta.

“TODA A GENTE FAZ O MESMO...”


(PRINCÍPIOS E VALORES - SÓ PARA LER E REFLETIR)

238
Quando tinha seis anos de idade, João ia de carro com o pai e este foi apanhado
em excesso de velocidade. Então, o pai meteu uma nota de € 100 dentro da carta de
condução e entregou ao agente da guarda. “Não há problema, miúdo”, disse o pai,
“Toda a gente faz o mesmo”.
Quando tinha oito anos, João assistiu a uma reunião familiar em que se estudava
o modo mais eficaz de “aldrabar” a declaração do IRS. “Não há problema, miúdo”, disse
o tio, “Toda a gente faz o mesmo”.
Quando tinha dez anos, a mãe do João levou-o ao teatro. O empregado da
bilheteira dizia que já não tinha bilhetes, mas a mãe resolveu a situação com uma nota
de € 10. “Não há problema, miúdo”, disse a mãe, “Toda a gente faz o mesmo”.
Aos doze anos, quando ia para a escola, João partiu os óculos. A sua tia, que o
acompanhava, relatou à companhia de seguros que os óculos foram “roubados” e lá
receberam a respetiva compensação monetária. “Não há problema, miúdo”, disse a tia,
“Toda a gente faz o mesmo”.
Aos quinze anos, quando João jogava futebol na equipa do seu bairro, o treinador
ensinou-o a pressionar os adversários, agarrando-os pela camisola, sem que ninguém
visse. “Não há problema, miúdo”, disse o treinador, “Toda a gente faz o mesmo”.
Aos dezasseis anos, João foi trabalhar, nas férias de Verão, para um
supermercado. Aí foi avisado, pelo gerente, que tinha de colocar os morangos
demasiado maduros ou quase podres por baixo dos de melhor qualidade para que as
pessoas pensassem que estavam todos em bom estado. “Não há problema, miúdo”,
disse o gerente, “Toda a gente faz o mesmo”.
Aos dezassete anos, na escola, João foi abordado por um aluno mais velho que
lhe ofereceu a resolução de uma prova de Matemática por € 50. “Não há problema,
meu”, disse o colega, “Toda a gente faz o mesmo”.
As coisas, no entanto, correram mal. João foi apanhado a copiar, viu a prova
anulada e, com o consequente zero, reprovou na disciplina. A reação não se fez
esperar:
“Como é que pudeste fazer-nos passar por uma vergonha destas, a mim, à tua
mãe e aos teus irmãos?!” (gritava o pai) “Cá em casa NÃO TE ENSINAMOS coisas
destas!

EXEMPLO DE UM MODELO DE AÇÃO


(PRINCÍPIOS E VALORES - SÓ PARA LER E REFLETIR)

239
O apreço pela ordem social, o reconhecimento do papel das leis, o respeito pelos
outros, descobri-os através do meu pai. Era um homem de dever; um homem rigoroso.
Rigoroso no cumprimento dos regulamentos e das leis, em primeiro lugar! Irritavam-no
essas “manias portuguesas” que são o “desenrascanço”, a “arte de enganar” e de
“contornar a lei”. Quando íamos de carro, não me lembro de o ver a impedir os peões de
fazerem uso da sua prioridade para atravessar a rua nas passadeiras, nem a ultrapassar
a velocidade permitida. Nunca estacionava de modo a prejudicar os outros nem
conduzia de forma agressiva. Uma multa para ele era uma vergonha e uma desonra.
Não fugia aos impostos, que pagava sempre atempadamente, nem suportava dívidas.
Não alinhava em “esquemas” ou “negociatas”. Não subornava ninguém nem se deixava
corromper.
Em sociedade, evitava falar muito alto, impor à viva força a sua opinião ou pôr-
-se em destaque, pois, considerava esse tipo de comportamento ridículo! Gostava da
descrição e dispensava o protagonismo. Nunca se exaltava com um empregado que lhe
trazia uma água em vez do café que ele tinha pedido. Não se tratava nem de excesso de
humildade nem de falta de coragem, pois, vi-o, por várias vezes, não hesitar em
enfrentar com firmeza, e até mesmo com alguma “violência”, aqueles que, por desleixo,
não cumpriam os seus deveres ou aqueles que, com um ar superior, tratavam mal ou
rebaixavam os mais humildes. Horrorizavam-no a arrogância e a insolência. Detestava
as pessoas convencidas, dominadoras e excessivamente seguras de si. Desprezava a
vulgaridade, a futilidade e a superficialidade.
Mas, a par desta força de caráter, o meu pai tinha igualmente respeito pelas
pessoas, pelos outros... Não queria transtornar nem incomodar. Nunca tentava, em
situação alguma, passar antes da sua vez. Era pontual em todas as circunstâncias e
nunca fazia esperar ninguém.
Não fumava e dizia que, se fumasse, nunca incomodaria os outros com o fumo do
seu vício. Não cuspia nem deitava papéis para o chão.
Recusava-se a invadir o território do vizinho nem fazia barulho. Lembrava-se
sempre que, ao seu lado, moravam outras pessoas que, tal como ele, também tinham
direito ao seu sossego, ao seu descanso e à sua privacidade.
Em suma, reconhecia a cada um o seu direito à existência!

DETERMINISMO E LIBERDADE NA AÇÃO HUMANA

O PROBLEMA DO LIVRE-ARBÍTRIO
240
A expressão livre-arbítrio designa a capacidade para decidir ou arbitrar entre
as nossas ações e realizá-las, de modo livre.
A tese de que somos dotados de livre-arbítrio dirá, portanto, que algumas das
nossas ações são, pelo menos parcialmente, livres.

Mas terá o ser humano alguma liberdade genuína de decisão e de ação, ou


serão estas (a decisão e a ação) inteiramente determinadas por fatores que não
controla?

Esta é uma questão que nos remete para o problema do livre-arbítrio, um dos
mais importantes problemas filosóficos sobre a ação humana e um dos que mais
impacto têm sobre o modo como nos concebemos a nós próprios.
Por oposição a livre-arbítrio temos o determinismo, que defende que tanto os
acontecimentos naturais como as ações humanas são inteiramente determinados
por fatores que não controlamos.
É evidente que as nossas ações são quase sempre influenciadas ou
condicionadas, em diferentes graus, por fatores que limitam o nosso campo de
escolhas. Dadas as leis da física e a constituição do nosso corpo, não podemos
levantar voo como uma ave (condicionantes biológicas e morfológicas). Também é óbvio
que as nossas ações estão condicionadas por fatores histórico-culturais – ninguém
pode dizer que a história e a cultura da comunidade ou povo ao qual pertence não têm
influência nas suas formas de ser, de estar, de pensar, de agir, etc. (condicionantes
histórico-culturais).
Ainda assim, podemos opor-nos ao determinismo, afirmando que, pelo menos
parcialmente, algumas das nossas ações são livres.
À primeira vista, a tese de que temos livre-arbítrio é a mais facilmente aceite, até
porque é a que melhor se adapta às nossas crenças espontâneas, uma vez que nos
parece óbvio que algumas decisões e ações são determinadas pela nossa vontade,
ou exclusivamente ou, pelo menos, numa parte significativa e suficiente para as
considerarmos nossas. O facto de sermos responsabilizados por essas ações e
decisões também joga a favor do livre-arbítrio, pois só se é responsável por ações
cuja escolha é livre.

Mas será que nós, agentes humanos, temos mesmo uma vontade livre? O
livre-arbítrio não passará de uma ilusão, de um reflexo dos limites da nossa
compreensão do universo?

241
DETERMINISMO (FORMULAÇÃO CLÁSSICA DO PROBLEMA)

A favor do determinismo está um argumento poderoso: o da uniformidade com


as explicações das ciências. Estas explicações baseiam-se, desde o nascimento da
ciência moderna, numa ideia fundamental, a de causalidade necessária.

Segundo a causalidade necessária, causas iguais, em condições iguais, e


regidas por leis universais da natureza têm de gerar efeitos iguais.

Eis a mesma ideia numa fórmula pela negativa:

Não é possível que uma causa e certas condições se verifiquem, e que o


efeito dessa causa não se verifique (a menos que outras causas ou condições
intervenham no processo).

Uma formulação clássica do problema do determinismo deve-se ao Marquês


de Laplace (1749-1827).
Laplace convida-nos a imaginar um ser dotado de um conhecimento sobre-
humano (que se tornou conhecido como demónio de Laplace): tendo um
conhecimento total das leis da natureza e do estado do universo num momento, o
demónio de Laplace conseguiria prever com toda a exatidão o que aconteceria no
universo em qualquer momento futuro: aquilo que acontece em cada momento é
um resultado inevitável dos acontecimentos passados. O futuro, tal como o
passado, é inalterável.

Podemos, então, formular o determinismo, sublinhando a sua ligação ao


princípio da causalidade necessária, também do seguinte modo: qualquer estado do
universo é uma consequência necessária do estado imediatamente anterior,
conjugado com as leis da natureza. O conhecimento integral das leis da natureza e
do estado do universo num dado momento tornaria possível prever o seu estado
no momento seguinte.

É fácil aceitar o determinismo e o princípio da causalidade necessária como


verdadeiros para todo o mundo físico (natureza), pois acreditamos que este é
constituído por partículas regidas por leis da natureza que não deixam margem
para o acaso. Mais ou menos de 75 em 75 anos o cometa Halley passa muito perto da
Terra. A sua última passagem foi em 1986, a próxima será em 2061. Este
acontecimento está já determinado. Irá ocorrer inevitavelmente, dadas as condições
atuais do cosmos e as leis da natureza.

242
Claro que há muitos acontecimentos que não conseguimos prever. Sabemos
que o cometa Halley voltará a ser visível da Terra em 2061, mas não sabemos se irá
nevar em Bragança na manhã de Natal de 2030. Contudo, isso não quer dizer que
estes acontecimentos estejam determinados. Talvez já estejam determinados, mas
nós é que não conseguimos prevê-los porque não temos informação suficiente sobre as
condições e as leis da natureza que levarão à sua ocorrência. Talvez a indeterminação
do futuro seja apenas uma ilusão, um reflexo dos limites da nossa compreensão do
universo.

Sabemos também que os comportamentos dos seres vivos, incluindo os dos


humanos na sua dimensão animal, obedecem ao mesmo princípio sob a forma de
programação genética ou de instinto. O determinista estende este princípio ao
domínio restante: o da mente e o da ação humanas.

Se tudo o que ocorre no universo tem uma causa (ou várias), se nada pode
ocorrer sem que a sua causa ocorra primeiramente, então, como também os
nossos pensamentos e ações ocorrem no universo, também eles ocorrem porque
certas causas ocorreram antes.

Ora, se já verificámos que um mesmo princípio regula e explica a quase


totalidade da realidade, porquê supor que a pequena parcela restante (a mente
humana) escapa a esse princípio?
Esta pergunta reflete a posição-base do determinismo e, portanto, cabe ao
defensor do livre-arbítrio demonstrar que o pensamento e a ação humanas são
uma exceção no universo, que pode superar as leis e as cadeias de causas e
efeitos necessários que regulam todo o restante (é isso que significa ser livre).

Embora quase todos acreditemos que o agente humano, e não causas


externas, é a principal causa das suas ações, o determinista dirá que essa causa
especial, mental e aparentemente livre, tem de ser, por sua vez, efeito de uma ou
várias causas. Uma das principais causas é a nossa personalidade, o tipo de
pessoa que somos. Ora, ter uma personalidade é um facto, e os factos têm causas.
Logo, dada a genética e a história pessoal de cada um de nós, é plausível pensar que
o nosso mundo mental e as nossas ações sejam também efeitos necessários das
causas psicológicas, naturais e socioculturais que agem sobre nós (talvez mais
numerosas e complexas que as causas naturais).

INDETERMINISMO

243
A perspetiva indeterminista afirma o seguinte:

Alguns acontecimentos não são efeitos inevitáveis das condições anteriores


e das leis da natureza.

Segundo esta perspetiva, mesmo dadas as circunstâncias reunidas num


momento e a totalidade das leis naturais, por vezes, há alternativas genuinamente em
aberto, das quais uma se há-de realizar. Algumas serão mais prováveis do que
outras, mas nenhuma se realizará forçosamente, pois, as leis da natureza por
vezes deixam espaço para alternativas.

O indeterminista, caso queira incluir os eventos meteorológicos no conjunto dos


acontecimentos indeterminados, dirá que nem o demónio de Laplace, com toda a
informação sobre o estado atual do universo e as leis que o regem, conseguiria prever
agora se vai nevar em Bragança na manhã de natal de 2030. No máximo, poderia
apurar se uma possibilidade é mais provável do que outras. Neste momento, o estado
do tempo em 2030 encontra-se genuinamente indeterminado. Em alguns aspetos, a
história do universo pode desenrolar-se de várias formas diferentes. O futuro
depende, em parte, do acaso, ou seja, há acontecimentos aleatórios.

No século XX, o indeterminismo ganhou muita influência entre os cientistas. Na


física quântica, há leis probabilísticas segundo as quais não podemos prever, por
exemplo, se um certo átomo irá transformar-se noutro átomo nas próximas 24 horas.
Quando muito, apenas podemos indicar a probabilidade de isso acontecer.
Assim, segundo o indeterminista, as partículas que constituem o universo
não se comportam de acordo com o determinismo.
Isto sugere usar o indeterminismo como argumento a favor do livre-arbítrio e
contra o determinismo, uma vez que nega o funcionamento do universo segundo o
esquema determinista, mas esse uso esbarra no seguinte problema: é certo que há
acontecimentos que não são efeitos inevitáveis das condições anteriores
conjugadas com as leis naturais, mas isto não prova que as nossas ações sejam
livremente causadas por nós.
Se o indeterminismo for verdadeiro, tudo o que ocorre no universo tem
causas aleatórias (eventuais, casuais, incertas) e é, pelo menos em parte, fruto do
acaso, incluindo as ações humanas, o que nos obriga a concluir que, assim,
também não temos livre-arbítrio, pois não temos controlo real sobre as nossas
escolhas e ações.

244
PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Distinga livre-arbítrio de determinismo.

2. Explicite a perspetiva indeterminista no âmbito da problemática


determinismo e liberdade na ação humana.

COMPATIBILISMO E INCOMPATIBILISMO – O PROBLEMA DA RELAÇÃO


(CORRESPONDÊNCIA OU NÃO) ENTRE O DETERMINISMO E O LIVRE-ARBÍTRIO

245
A um nível mais geral, face ao problema da relação entre o determinismo e o
livre-arbítrio, há, naturalmente, duas posições:
a) O incompatibilismo (não correspondência entre determinismo e livre-arbítrio),
posição segundo a qual é impossível haver ações livres num universo determinista
(aqui, determinismo e livre-arbítrio excluem-se mutuamente);
b) O compatibilismo (correspondência entre determinismo e livre-arbítrio),
posição segundo a qual temos, de facto, livre-arbítrio, havendo ações livres, mesmo
que o determinismo seja verdadeiro num universo determinista (aqui, determinismo
e livre-arbítrio são compatíveis).

INCOMPATIBILISMO (não correspondência entre determinismo e livre-arbítrio)

Esta posição integra duas perspetivas contrastantes (opostas): o


determinismo radical – perspetiva segundo a qual o determinismo é verdadeiro e o
livre-arbítrio é uma ilusão (trata-se da versão do determinismo que já conhecemos); e
o libertismo – perspetiva segundo a qual há livre-arbítrio, logo, o determinismo é
falso, porque, pelo menos, alguns acontecimentos e ações não são determinados.

DETERMINISMO RADICAL – O DILEMA DO DETERMINISMO

Diferentemente do que defende o determinismo, muitos dos físicos de hoje


acreditam que habitamos um universo indeterminista.
Se o nosso conhecimento do cérebro humano é ainda tão imperfeito e não
temos justificação suficiente para vê-lo como uma máquina inteiramente sujeita a
leis deterministas nem as ações humanas como acontecimentos sempre
determinados, como pode o determinista radical estar tão certo de que o
determinismo é verdadeiro e o livre-arbítrio uma ilusão?
Contudo, pôr em dúvida o determinismo não basta para garantir o livre-
arbítrio. Poucos filósofos atuais se consideram deterministas radicais, mas, mesmo
assim, muitos negam o livre-arbítrio, afirmando que quer o mundo seja determinista,
quer seja indeterminista, não somos verdadeiramente agentes (autores de ações)
livres. Este argumento é conhecido por dilema do determinismo ou dilema de Hume,
inaugurado pelo filósofo, historiador, ensaísta e diplomata escocês, David Hume (1711-
1776), que consiste no seguinte:
1. Ou o mundo é determinista ou indeterminista.
2. Se o mundo é determinista, não temos livre arbítrio.
3. Mas, se o mundo é indeterminista, também não temos livre-arbítrio.
246
4. Logo, não temos livre-arbítrio.

Podemos suspeitar da premissa 3. (que diz: “Mas, se o mundo é indeterminista,


também não temos livre-arbítrio”) e fazer a pergunta: o indeterminismo impede
necessariamente que tenhamos livre-arbítrio? Aparentemente, os indeterministas
juntam apenas mais um fator ao conjunto de fatores que os deterministas excluem
do livre-arbítrio: o ACASO.
Se o indeterminismo for verdadeiro, as nossas ações resultam das leis da
natureza, das condições do universo e do acaso. Mas, como o que acontece por
acaso também está fora do nosso controlo, então, realizar uma ação em vez de
outra, por acaso, não nos torna responsáveis por ela, porque se trata de uma ação
que, seja ela qual for, não resultou de uma escolha nossa.

CONSEQUÊNCIAS DO DETERMINISMO RADICAL:


A DESRESPONSABILIZAÇÃO MORAL

Uma crítica ou objeção ao determinismo radical consiste em observar que este


implica que não há responsabilidade moral do sujeito relativamente às ações e
decisões que pratica, uma vez que, ao afirmar que tudo está determinado, conceitos
como os de mérito, culpa, coragem, e mesmo os de bem e mal, passam a não fazer
sentido – se ninguém age livremente, então ninguém é moralmente responsável
pelo que faz. Mas isto não é verdade: quando um homem mata outro a sangue frio, ou
seja, na plena posse das suas faculdades, ele é responsável pelo seu ato e merece ser
condenado. Negar isto contrariaria de modo frontal todas as nossas ideias mais
básicas acerca do ser humano e da forma como este deve viver em sociedade. No
lugar das regras e da responsabilidade governaria o caos (anarquia) e a
irresponsabilidade e, ao mesmo tempo, por mais paradoxal (contraditório) que pareça,
nem sequer faria sentido falar em liberdade de ação, pois, tudo o que se fizesse já
estaria determinado e, portanto, jamais seria reflexo dessas condições (liberdade e da
responsabilidade).

Assim, na ausência de livre-arbítrio o mérito ou demérito, a


responsabilidade ou irresponsabilidade pelos atos praticados deixariam de existir.

Mas basta o determinista radical afirmar que a responsabilidade moral, à


semelhança do livre arbítrio, não passa de uma mera ilusão para tornar esta crítica ou
objeção pouco convincente.

247
LIBERTISMO

O libertismo defende que o determinismo, como teoria sobre tudo o que


sucede no universo, é falso, pois, este (determinismo) só se aplica ao domínio
físico, e que os nossos pensamentos e ações escapam ao determinismo.
Os seres humanos têm, assim, uma capacidade muito especial: a de
desencadearem cadeias causais inteiramente novas. A grande dificuldade está,
claro, em explicar porque temos essa capacidade tão diferente relativamente ao
resto do universo. O libertista tem de evitar cair no dilema do determinismo (que
abordámos atrás, a propósito do determinismo radical, e que se designa também por
dilema de Hume), que o arrastaria para o indeterminismo com as suas causas
aleatórias (eventuais, casuais, incertas), como única alternativa para quem, como
ele, deseja negar o determinismo.

A defesa mais comum do libertismo recorre ao dualismo mente-corpo, que se


traduz na tese que defende que os seres humanos são compostos por duas partes:
um corpo (parte material), sujeito às leis da natureza, e uma mente (parte imaterial),
não sujeita a tais leis. Ora, é nesta parte imaterial, fora da natureza, que ocorrem
as intenções, crenças e decisões que nos levam a agir. No domínio da matéria
(corpo), reconhece o libertista, o determinismo verifica-se, é verdadeiro, mas no
domínio imaterial (da mente), o determinismo já não se verifica, não é verdadeiro,
pois, aqui temos livre-arbítrio.

OBJEÇÕES AO ARGUMENTO BASEADO NO DUALISMO

Uma crítica a esta tese do libertismo faz notar o seguinte problema: na ação
livre certos factos mentais autónomos (decisões) causam certos movimentos
físicos do nosso corpo. Ora, uma distinção radical entre a natureza mental e a
física torna incompreensível que aquela tenha efeito sobre esta. Seria natural o
mental só ter efeitos sobre o mental e o físico sobre o físico, e não o mental sobre
o físico.
Outra objeção observa que o dualismo mente-corpo significa apenas que há
duas naturezas (uma imaterial e outra material) e não que uma é determinista e a
outra indeterminista.
Assim, este dualismo (mente-corpo), segundo os seus críticos, também pode
ser combinado com o determinismo acerca da mente, o que permite extrair esta

248
conclusão: os efeitos mentais são a consequência necessária de factos mentais
anteriores, segundo as leis da natureza mental.

COMPATIBILISMO

O COMPATIBILISMO CLÁSSICO (OU DETERMINISMO MODERADO)

O compatibilismo aceita que há livre-arbítrio, mas rejeita o libertismo,


defendendo que embora as ações livres possam estar inteiramente determinadas,
o que as torna livres é o modo como estão determinadas. Daí chamar-se
compatibilismo a esta posição ou perspetiva, porque, justamente, procura
compatibilizar (conciliar, combinar) determinismo e livre-arbítrio.

O compatibilista enfrenta o seguinte argumento:

1. Se o determinismo é verdadeiro, nunca podemos agir de outra forma.


2. Se temos livre-arbítrio, por vezes, podemos agir de outra forma.
3. Logo, se o determinismo é verdadeiro, não temos livre arbítrio
(incompatibilismo).

O compatibilismo clássico afirma que a primeira premissa é falsa (aquela


que afirma: “se o determinismo é verdadeiro, nunca podemos agir de outra forma”),
considerando que o determinismo não implica a impossibilidade de agir de outra
forma, ou seja, não impede que exista livre-arbítrio.

David Hume, que já foi mencionado, a propósito do dilema do determinismo


(também conhecido por dilema de Hume), e que foi um dos primeiros compatibilistas
clássicos entende que a ação livre não é a que está desligada da mente do agente e
das circunstâncias, mas a que é realizada porque o agente o deseja.
A liberdade é, essencialmente, ausência de constrangimentos: se fazemos
algo porque queremos, e não porque nos obrigam, estamos a agir livremente.
Se António escolheu livremente comer uma maçã, poderia ter agido de outra
forma. Para o compatibilista clássico, “António poderia não ter comido a maçã”
significa: “António não teria comido a maçã se não tivesse desejado fazê-lo”. Se
António não estava sob coação (obrigado, pressionado, privado de liberdade), parece
ser verdade que poderia ter agido de outro modo (neste caso, não ter comido a
maçã), mesmo que o universo seja determinista e a escolha de António estivesse
determinada.
Visto assim, o determinismo não nega a possibilidade de agir de outra forma,
abrindo-se à possibilidade do livre-arbítrio. Esta forma de compatibilismo, que aceita
249
o determinismo, denomina-se determinismo moderado, não porque seja menos
determinista, mas porque admite que o determinismo não terá que se fechar na
versão radical de que não temos livre-arbítrio.

O NOVO COMPATIBILISMO

Para os defensores do chamado novo compatibilismo, como Harry Frankfurt


(n. 1929), Daniel Dennett (n. 1942) e Susan Wolf (n. 1952), não devemos preocupar-
nos com a premissa 1. do argumento incompatibilista (que diz o seguinte: “se o
determinismo é verdadeiro, nunca podemos agir de outra forma”), pois a premissa 2.
do mesmo argumento (que diz: “se temos livre-arbítrio, por vezes podemos agir de
outra forma”) é falsa, pois, não é verdade que, se temos livre-arbítrio, então por
vezes podemos agir de outra forma.
Esta premissa, conhecida por princípio das possibilidades alternativas, capta
uma ideia bastante plausível (pertinente, aceitável) de que não poderia haver livre-
arbítrio nem responsabilidade moral, se o agente não tivesse a possibilidade de
agir de outra forma.
Mas, segundo Frankfurt, a responsabilidade e o livre-arbítrio não implicam a
possibilidade de agir de outro modo, isto é, de uma maneira ou de outra –
voluntariamente, por iniciativa própria, ou involuntariamente, por obrigação imposta
por um agente ou força externa, o sujeito não deixaria de praticar a mesma ação.

Ora, se isto for verdade, o que é que será preciso para haver responsabilidade
e livre-arbítrio?
Esta questão está no centro do debate atual sobre o livre-arbítrio,
nomeadamente a propósito da problemática sobre a relação entre a existência de
Deus e a ação humana, a qual se traduz numa outra (questão): Se Deus existe e tudo
comanda (determina), onde reside, então, a liberdade (e a responsabilidade) do ser
humano enquanto agente/autor das ações que pratica?

O quadro-esquema que segue sintetiza as posições existentes face a esta


problemática sobre Determinismo e Liberdade na ação humana:

Porque o mundo é DETERMINISMO

250
determinista RADICAL

Quer o mundo seja


Não INCOMPATIBILISMO
determinista, quer
RADICAL
seja indeterminista
Os agentes
humanos têm livre
Porque o mundo
arbítrio? LIBERTISMO
não é determinista

Sim

Mesmo que o
mundo seja COMPATIBILISMO
determinista

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Esclareça as posições do compatibilismo e do incompatibilismo face ao


problema da relação entre o determinismo e o livre-arbítrio.

1.1 Explicite o argumento conhecido por dilema do determinismo ou dilema


de Hume, no âmbito do determinismo radical.

1.2 Qual a principal consequência do determinismo radical?

2. Em que consiste o libertismo?

3. Explicite a posição do compatibilismo de um modo geral.

3.1 Como concebe ou entende David Hume a ação livre?

4. Explicite a ideia principal pela qual se rege a posição/perspetiva defendida


pelo novo compatibilismo.

Mas será que nós, agentes humanos, temos mesmo uma vontade livre? O livre-arbítrio
não passará de uma ilusão, de um reflexo dos limites da nossa compreensão do universo?

5. Tendo em conta o conteúdo do excerto acima dado, elabore um comentário


pessoal acerca da problemática para a qual este remete (Determinismo ou Liberdade
na ação humana?), apresentando a sua posição relativamente à mesma.

251
252
A DIMENSÃO ÉTICO-POLÍTICA
ANÁLISE E COMPREENSÃO DA EXPERIÊNCIA CONVIVENCIAL
A DIMENSÃO PESSOAL E SOCIAL DA ÉTICA

ÉTICA E MORAL

Acabámos de refletir sobre a ação humana, definindo a sua especificidade


como atividade voluntária, consciente e intencionalmente dirigida para uma
finalidade que o agente escolheu realizar, constatando, ao mesmo tempo, que tudo
isto se concretiza num contexto ou numa dimensão pessoal e social.
O nosso agir é, assim, condicionado por todo um conjunto de princípios e de
valores que nos são transmitidos pela família (num sentido mais restrito) e pela
sociedade (num sentido mais amplo), sendo estes dois agentes de socialização (família
e sociedade), simultaneamente, produtores e produtos de cultura.
Assim, por exemplo, na véspera de um teste, posso optar por ficar em casa a
estudar ou posso optar por ir passear e não estudar… Neste exemplo, muito simples,
está patente uma atitude valorativa, isto é, uma ação que se realiza na sequência de
uma escolha que favorece certos valores ou preferências (valorização do estudo no
presente como forma de garantir um futuro “risonho”) em desfavor de outros (valorização
do passeio, da descontração e da diversão imediata, com todas as consequências boas
e más que daí possam surgir).
Tudo isto significa que a vida ou conduta humana pressupõe situações ou
circunstâncias perante as quais temos necessariamente de escolher, optar, preferir, em
função de determinados valores (algo que vale, ou seja, que é valorizado pela
sociedade/cultura em que vivemos inseridos) e em desfavor de outros, configurando,
muitas vezes, algumas dessas escolhas verdadeiros conflitos, como, por exemplo:
A mentira é sempre condenável ou, em certas circunstâncias, ela é preferível à
verdade?
Devo denunciar um amigo que roubou?
Devo satisfazer o pedido do doente incurável que me pede que o ajude a morrer?
Sou a favor ou contra o aborto?
Deverei fazer tudo aquilo que me apetece ou deverei travar em mim certos
impulsos?
A vida humana está, pois, envolta em permanentes interrogações como estas:
Que devo fazer? Como devo agir?
253
Para respondermos a estes problemas de ordem prática (ação moral), que
diariamente se nos colocam, recorremos a normas de conduta que consideramos ética
e moralmente corretas, de acordo com determinados juízos de valor que, por sua vez,
vão determinar as nossas decisões e, consequentemente, as nossas ações.
Podemos, então, dizer que qualquer preferência ou decisão não é cega; isto é,
não é tomada ao acaso nem por acaso, antes obedece a motivos e razões que, nas
mais variadas circunstâncias, nos aparecem como preferências ou, melhor dizendo,
como valores.
Ora, esta escolha, feita em função de determinados valores, exige que, antes de
mais, explicitemos o que é a Ética e o que é a Moral, visto que o ser humano é, por
excelência, um ser moral e as suas ações possuem quase sempre uma dimensão
ética.
A este propósito, atentemos no texto que se segue:

“A palavra ética designava, para os gregos, o conjunto dos comportamentos e


costumes cuja consolidação profunda dá ao Homem uma segunda natureza (espiritual).
Depois dos gregos, a palavra ética foi substituída no discurso filosófico pela palavra
latina equivalente: moral. Os gregos, filósofos da alma, deram ao termo um sentido de
uma reflexão profunda sobre os princípios fundamentais que orientam a ação humana.
Os latinos, mais preocupados com a jurisdição, isto é, com as normas jurídicas (leis),
deram à palavra moral esta conotação formal e imperativa (código de bem e de mal) que
foi acentuada no século XIX pelo desenvolvimento de uma moral do dever.
Esta diferença permite compreender melhor a distinção entre o ressurgimento de
preocupações de ordem ética e de um certo retorno à moral. De facto, assistimos
atualmente a este duplo fenómeno. Com efeito, uns desejam sobretudo uma renovação
moral perante o declínio de certos valores e pretendem apagar os abusos dos efeitos
perversos do sistema que nos domina. Outros apelam, de maneira mais fundamental, a
uma reflexão aprofundada sobre o sentido da ação humana, interrogando-se sobre os
valores em si e sobre o fundamento de certas práticas que daí resultam.”

Fréderic Lenoir, Les Temps de la Responsabilité, Fayard, 1991, Paris, pp. 12 e 13 (adaptado)

O texto anterior refere-se à dimensão ético-moral: a ação que visa a


construção do indivíduo como pessoa (ética), no respeito por normas de
convivência que definem os direitos e os deveres de cada indivíduo,
estabelecendo o que é permitido e o que não deve ser feito (moral).

254
ÉTICA - como se pode ler no texto, a ética (do grego êthos, caráter ou modo de
ser) é uma reflexão filosófica sobre como se deve viver, visando, como diz o autor,
definir princípios e fins para orientar a ação humana e estabelecer os requisitos
mínimos de uma moral comum.
A ética é a arte de viver humanamente e, como o viver humano é um conviver,
isto é, um viver com os outros seres humanos, exige o cumprimento de normas para
acautelar que cada membro da comunidade respeite os direitos dos outros.
Como a ética teoriza (reflete) sobre o modo como devemos viver e propõe
princípios devidamente justificados (por exemplo, “Os seres humanos são livres e
iguais.”), apelando ao seu reconhecimento, também podemos defini-la como a
disciplina filosófica ou área do saber filosófico que avalia/pondera/reflete sobre a
legitimidade das próprias normas morais.
A ética não cria a moral, mas reflete sobre ela, procurando justificá-la e
fundamentá-la, uma vez que busca os princípios que fundamentam as próprias
normas morais que devemos seguir. Trata-se, pois, de uma reflexão sobre os
nossos atos e costumes no sentido de averiguar se eles são os melhores, os mais
justos, os mais desejáveis…
A pergunta não é: “O que devo fazer?” Mas sim: “Porque devo eu atuar deste
ou daquele modo?” Ou então: “Será que esta norma moral deverá ser respeitada e
cumprida ou, pelo contrário, deve ser abandonada?” Por exemplo: muitas
sociedades que legalmente admitiram a tortura, a escravatura ou a pena de morte,
chegaram a um momento em que se interrogaram sobre a legitimidade desta atuação e
decidiram pela sua abolição.
Do mesmo modo, a qualquer um de nós acontece – e é desejável que aconteça –
questionarmos os nossos costumes, os nossos códigos de conduta bem como os
valores que os suportam, entrando aqui aquilo a que nós chamamos a reflexão ética –
passamos, assim, das razões dos nossos atos às razões das nossas razões, isto é,
não nos limitamos a agir de um modo qualquer, mas procuramos assegurar-nos
do caráter legítimo ou ilegítimo, bom ou mau, correto ou incorreto, justo ou injusto
dos nossos atos, ou seja, daquilo que fazemos.
Deste modo, a ética acaba por, com alguma frequência, modificar a moral.

MORAL – (do Latim, mos, mores, costume) responde à pergunta “Que devo
fazer?”, designando o conjunto de normas (os códigos de bem e de mal) que são
“impostos” a cada indivíduo para orientar o seu comportamento social.

255
Como a moral impõe um conjunto de preceitos (regras) para regular as
relações sociais de convivência (por exemplo, “Não deves recusar trabalho a uma
pessoa por razões étnicas, religiosas ou de género.”), também pode designar o
conjunto normas que regulam a conduta dos seres humanos, determinando o seu
modo de agir.
Moral significa, portanto, o código pelo qual um indivíduo ou uma
comunidade se regulam. Este código pode variar consoante o contexto a que está
ligado (segundo a época, a religião, a cultura, etc.), uma vez que resulta sempre de
todo um conjunto de princípios e valores que são preferidos e estimados ao ponto
de serem elevados ao estatuto de norma de ação (daí falarmos em moral cristã,
moral muçulmana, etc.). Neste sentido, o mesmo comportamento pode ser
considerado moral ou imoral em função do código moral e da lei em que o
inserirmos; por exemplo: a poligamia para alguns povos (islâmicos, por exemplo) é
considerada legítima e moralmente correta (à luz do Corão), enquanto noutros países
(católicos, por exemplo) é ilegítima e moralmente reprovável (à luz da Bíblia).

Já as normas são padrões de comportamento que pautam/regulam o nosso


relacionamento com os outros. É a partir da interiorização, adoção e eleição de
princípios éticos e normas morais que o indivíduo, com base nos quais projeta a
sua existência para se realizar como ser humano, se transforma num ser ético-
moral, ou seja, nalguém que reconhece nesses princípios éticos e normas morais a
base da sua ação, que faz da sua existência um projeto de aperfeiçoamento
humano, que só age depois de examinar as situações, bem como as
consequências das suas decisões, e depois de ponderar imparcialmente os
interesses de todos os que serão afetadas por ela.
Poderemos, então, concluir que ética e moral, apesar de extremamente ligadas,
representam dois níveis diferentes que habitam a consciência humana – a ética é
pensada (teórica); a moral é praticada (prática).

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÃO:

1. Distinga Ética de Moral.

JUÍZOS DE VALOR E JUÍZOS DE FACTO

256
Para o que é importante neste tema, um juízo é uma proposição, isto é, o
conteúdo que exprimimos nas nossas frases declarativas, como “O céu é azul”.
Assim, os juízos de facto são juízos puramente descritivos, pois, enunciam factos ou
estados de coisas, ou seja, são propostas de descrição da realidade que podem
coincidir com ela, sendo nesse caso verdadeiras, ou não, sendo nesse caso
falsas. Supostamente, não exprimem qualquer preferência por parte de quem os
enuncia ou aceita, visto que se limitam a constatar coisas ou estados de coisas. Por
exemplo, “A disciplina de Filosofia integra a componente de Formação Geral de todos os
cursos do Ensino Secundário regular em Portugal”, “Na Revolução Francesa, a Bastilha
foi atacada” e “Coimbra fica a meio do caminho entre Lisboa e o Porto” são juízos de
facto, tal como são “A disciplina de Filosofia integra o conjunto das disciplinas
lecionadas no primeiro ciclo do Ensino Básico”, “A Revolução Francesa ignorou os
prisioneiros da Bastilha” e “Coimbra fica a meio do caminho entre Lisboa e Évora”,
sendo uns verdadeiros e outros falsos.
Já os juízos de valor são aqueles que exprimem a atribuição de algum valor,
positivo ou negativo, moral, estético ou outro, podendo, assim, exprimir também uma
preferência de quem o enuncia, relativamente a uma coisa, seja ela de que natureza
for, ou a um estado de coisas. Por exemplo, “Eduardo não deveria ter feito o que fez” e
“Paris é mais bonita do que Lisboa”.

DEFINIÇÃO DE VALOR E DE JUÍZO DE VALOR SEGUNDO DIFERENTES


TEORIAS (SUBJETIVISMO/RELATIVISMO E OBJETIVISMO)

As diferentes conceções de valor assentam, essencialmente, nas seguintes


teorias:
1. As teorias do subjetivismo axiológico (relativo aos valores morais e éticos,
uma vez que a axiologia é a filosofia ou estudo teórico dos valores) e do relativismo
cultural defendem que os valores são subjetivos e relativos, no sentido de não
poderem ser considerados objetivamente e universalmente verdadeiros.
2. A teoria do objetivismo axiológico afirma que os valores podem ser
objetivamente e universalmente verdadeiros, ainda que desconheçamos a verdade
sobre eles (tal como desconhecemos se há vida extraterrestre, sem que isso se deva a
não haver verdade objetiva e universal sobre extraterrestres).

Do ponto de vista do subjetivismo/relativismo, “Eduardo agiu mal” é um juízo


de valor que exprime uma avaliação da ação, podendo haver quem faça a mesma

257
avaliação e quem avalie de modo diferente. Mas do ponto de vista do objetivismo ou é
um facto que a maldade é uma propriedade da ação do Eduardo ou não é, e isso não
depende de preferências ou avaliações humanas, mas sim das características da
ação, das suas circunstâncias, do seu autor, etc., que são factos sobre o mundo,
tanto quanto o peso de uma rocha ou a circularidade de uma roda.

Assim, para o objetivismo, os juízos de valor não estão à parte relativamente aos
de facto, porque os valores são factos ou propriedades da realidade, ainda que
especiais, e os juízos de valor visam descrever esses factos, tal como qualquer juízo de
facto. Os juízos de valor são um subconjunto dos juízos de facto, e os valores,
sendo propriedades reais do mundo, são um subconjunto do total das
propriedades do mesmo.

Ora, dadas as duas perspetivas opostas sobre os valores, a definição de


valor não pode ser consensual.
Para o objetivismo, os valores são qualidades objetivas do mundo, para o
subjetivismo/relativismo, os valores são apenas o resultado de uma projeção
subjetiva (que reside e varia de sujeito para sujeito) das preferências, ideias ou
emoções humanas no mundo.

Assim, para nos ficarmos por uma definição que seja neutra e consensual,
poderemos apenas dizer que os valores são aquilo que nos leva a ter preferência e
interesse por algumas coisas, pessoas, ações, situações, etc., e não por outras, e
por isso, a avaliá-las positiva ou negativamente.
A fidelidade, a beleza e a justiça são exemplos de valores entre muitos outros de
diferentes tipos. Os filósofos têm-se interessado particularmente pelos valores éticos ou
morais (bondade, justiça, lealdade, etc.) e os estéticos (beleza, graciosidade,
expressividade, etc.).

O PONTO DE VISTA FILOSÓFICO SOBRE OS JUÍZOS DE VALOR

Todos sabemos que sempre houve bastante desacordo nos juízos de valor de
diferentes épocas e culturas e, dentro destas, de diferentes indivíduos, e até em cada
um deles ao longo da vida.
Nem o subjectivismo/relativismo defende que há esse desacordo, nem o
objetivismo defende que ele não existe. O que o objetivista defende é que só uma
de duas atribuições de valor opostas pode ser verdadeira, o que é contestado pelos
seus adversários (subjetivistas e relativistas), seja porque, para estes, todos os
258
juízos de valor podem ser verdadeiros ou porque não há verdade nem falsidade
em matéria de valores.

O objetivismo e o subjetivismo/relativismo não são ideias sobre que coisas


são boas, que ações são bondosas, que obras são belas. Estes são juízos de valor que
todos fazem com frequência, mesmo sem fazer ideia do que é ser subjetivista ou
objetivista. O desafio filosófico é determinar qual é a perspetiva mais pertinente
sobre a natureza dos valores e a objetividade dos juízos de valor no sentido de,
num nível mais geral, compreender o ato de avaliar.

TEORIAS SOBRE OS VALORES E OS JUÍZOS DE VALOR

O subjetivismo axiológico e o relativismo cultural, que expressam


determinadas filosofias ou teorias acerca dos valores, basicamente, defendem que os
valores não são propriedades objetivas do mundo, sendo antes projetados neste
mesmo mundo pelos diferentes sujeitos como expressão das suas preferências
(no caso do subjetivismo) ou aceites pelas diferentes culturas (no caso do
relativismo cultural).
Se quisermos falar em verdade ou falsidade neste contexto, podemos dizer que
os juízos de valor são verdadeiros ou falsos apenas em função da sua avaliação e
aprovação por esses indivíduos ou culturas (certas versões afirmam que tais juízos
não são nem verdadeiros nem falsos porque não exprimem factos, são apenas juízos
de valor, não são sequer juízos de facto).

O objetivismo axiológico, que também expressa uma filosofia ou teoria acerca


dos valores, defende que estes são propriedades objetivas do mundo,
independentes das valorações produzidas por indivíduos e culturas. Há, portanto,
juízos de valor objetivamente verdadeiros e objetivamente falsos – os quais são, na
verdade, juízos de facto.

Os erros e confusões mais comuns na definição destas teorias derivam de


afirmações como as que se seguem:

1. Segundo o subjetivismo axiológico/relativismo cultural, os juízos de valor


variam consoante o indivíduo e/ou a cultura e sociedade.

2. Segundo o objetivismo axiológico, há uma verdade objetiva sobre os


valores, e sabemos (ou podemos saber) qual é ela.

259
1. É um erro porque o que se diz que o subjetivista/relativista defende existir
– o desacordo entre indivíduos e comunidades – não é uma teoria filosófica, nem
sequer uma teoria. O correto será afirmar que o subjetivismo e o relativismo
defendem que não há factos objetivos acerca de valores que possam confirmar
qualquer juízo de valor, e usam o facto de haver desacordo entre indivíduos e
comunidades para construir um argumento a seu favor.
Já o objetivista explica esse desacordo sem defender que não há factos
sobre valores, mas apenas que não os conhecemos bem.

2. Também é um erro pela cláusula “sabemos (ou podemos saber) qual é ela”
(a verdade objetiva sobre os valores), uma vez que o objetivista só tem que
defender que há uma verdade objetiva acerca dos valores, isto é, sobre se cada
entidade possui ou não o valor que lhe pode ser atribuído em juízos, e não que
alguém a conhece aqui e agora (ou mesmo nalgum tempo). Uma analogia
(comparação) seria: “Os astrónomos acreditam que há uma verdade objetiva sobre se
existem extraterrestres, e por isso sabemos (ou podemos saber) se existem ou não.”

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Defina juízo e dê um exemplo concreto.

2. Defina juízo de facto e dê um exemplo concreto.

3. O que defende o subjetivismo axiológico?

4. O que defende o objetivismo axiológico?

5. Por que razão a definição de valor não é consensual, segundo estas duas
perspetivas opostas sobre os valores?

6. O que são os valores segundo uma definição neutra e consensual?

6.1 Dê exemplos de valores.

7. Qual é o desafio filosófico que se coloca, num nível mais geral, no caso dos
valores éticos?

8. No que respeita às teorias sobre os valores e os juízos de valor, o que


defendem, basicamente, o subjetivismo axiológico e o relativismo cultural?

260
9. Em termos de verdade ou falsidade, neste contexto, o que podemos dizer
que são os juízos de valor?

10. Em termos de filosofia ou teoria acerca dos valores, o que defende o


objetivismo axiológico?

11. Quais são os erros mais comuns que ocorrem na definição destas teorias
(do subjetivismo axiológico/relativismo cultural e do objetivismo axiológico)?

11.1 Explicite (explique) porque são considerados erros.

261
ARGUMENTOS A FAVOR DO SUBJETIVISMO E DO RELATIVISMO DOS
VALORES
(SUBJETIVISMO AXIOLÓGICO E RELATIVISMO CULTURAL)

O problema discutido pelas teorias sobre os valores em estudo é central na


filosofia dos valores (axiologia). Dos vários argumentos em torno deste problema,
podemos apenas sintetizar os principais:

1. ARGUMENTO DA DIVERSIDADE OU DO DESACORDO

Trata-se do argumento mais simples e imediato, que torna o


subjetivismo/relativismo uma teoria muito natural e sedutora. Consiste apenas em
chamar a atenção para o facto conhecido de que os juízos de valor, sobre o que quer
que seja, variam enormemente de indivíduo para indivíduo e de cultura para
cultura, através do tempo e da geografia, e mesmo até ao longo da vida de um
mesmo indivíduo. O subjetivismo/relativismo defende que isso é tudo o que há
para constatar acerca dos valores, pois, afirma que não há qualquer realidade mais
profunda sobre eles (valores) que precisemos de conhecer para decidir que juízos
de valor são verdadeiros. Não há verdade objetiva sobre os valores ou, o que
acaba por ser o mesmo, todos os juízos de valor são “verdades” relativas ou
subjetivas para as comunidades e indivíduos que neles acreditam.
A resposta do objetivista será notar que a diversidade e a divergência não
são suficientes para provar que não há factos sobre a matéria e que ninguém está
correto nem enganado sobre ela: por exemplo, do facto de diferentes pessoas
defenderem diferentes ideias sobre se existe um Deus ou se há extraterrestres não se
segue que todas essas ideias sejam igualmente “verdadeiras” nem que não há nem
deixa de haver Deus ou extraterrestres, mas apenas que não o sabemos (ainda).

2. ARGUMENTO DA ESTRANHEZA DOS VALORES

Este argumento ataca a ideia da existência de valores como propriedades


das entidades que compõem o mundo. Para que seja objetivamente verdade que
uma mesa seja constituída por átomos; para que a lei seja objetivamente verdadeira, é
necessária a existência de matéria e de gravidade. Assim, para que seja objetivamente
verdade que uma ação é boa ou que um quadro é belo, seria necessária a
existência autónoma (independente) desses valores (o bem e a beleza) e a sua
presença nessa ação ou nesse quadro. O problema é que ninguém tem indícios de
que eles existem de facto no mundo, e não apenas nas nossas mentes, nem
262
sequer uma ideia razoável acerca de que tipo de entidades (seres, substâncias)
independentes seriam os valores. Estes parecem entidades bizarras (estranhas,
incomuns), completamente diferentes daquelas que geralmente acreditamos que
existem, e, por isso, são suspeitas.

Face a este argumento, o objetivista pode contestar (contrariar) de que isto


não é suficiente para provar que tais entidades não existem, por mais estranhas que
sejam. Pode fazer também uma analogia com as propriedades secundárias, como as
cores. Estas para “aparecerem” precisam de alguém que entre numa relação com elas –
o sujeito. Mas isso não significa que são uma mera projeção dele, pois seja ele quem
for, vê essas cores (desde que as condições sejam normais). Tal como elas, os valores
podem não ter uma existência completamente independente do sujeito que as
percepciona, sem isso significar que pura e simplesmente não existem.

3. ARGUMENTO DA TOLERÂNCIA

Um último argumento aplica-se com maior propriedade aos valores éticos e/ou
morais. Consiste em afirmar que, como estamos em dúvida sobre se temos ou não
razões sólidas para acreditar numa das teorias em confronto, uma delas, o
subjetivismo/relativismo, tem uma vantagem objetiva que nos deve levar, na
dúvida, a optar por ela: promover a tolerância entre indivíduos e comunidades. Se
admitirmos, como afirma o subjetivista/relativista, que ninguém está objetivamente
certo nem errado acerca dos valores, não teremos tendência a impor aos outros
os nossos valores, ou os da nossa comunidade, promovendo assim uma saudável
convivência baseada na tolerância.
Uma objeção a este argumento é notar que há nele um círculo vicioso, que é
o de se basear, sem dar por isso, na ideia de que a tolerância é um bem objetivo,
acima de todas as outras considerações. Mas a tolerância é um valor, pelo que
deveríamos admitir que o juízo de valor “SER TOLERANTE É BOM” é apenas
verdadeiro em sentido relativo, o que implica aceitar o juízo contrário. Isto mostra
que não podemos escolher o subjetivismo/relativismo pela vantagem da tolerância
e ao mesmo tempo querer escapar à conclusão de que, segundo o próprio
subjetivismo/relativismo, ser tolerante não é uma vantagem nem uma
desvantagem (ou é uma vantagem meramente relativa).
Para além disso, se, mesmo aceitando uma contradição flagrante, formos
relativistas e acreditarmos que a tolerância não é relativa – que é um valor objetivo
e universal – expor-nos-emos ao grave problema de não prestarmos um bom
263
serviço à tolerância em que cremos. É que, desta forma, teremos que ser tolerantes
para com todos os juízos de valor, incluindo os de intolerantes que pensem, por
exemplo, “É BOM E JUSTO MATAR QUEM NÃO CONCORDA CONNOSCO”.

ARGUMENTOS A FAVOR DO OBJETIVISMO DOS VALORES

Os argumentos aqui apresentados a favor do objetivismo são críticas ao


subjetivismo/relativismo e, em geral, podem ser usados contra o subjetivismo
axiológico (acerca dos valores) propriamente dito ou contra o relativismo cultural. A
exceção é o argumento do discordante (daquele que discorda, que se demarca, que
assume posição diferente e até mesmo oposta), contra o relativismo, mas não contra o
subjetivismo.

1. ARGUMENTO DAS CONSEQUÊNCIAS MORALMENTE INDESEJÁVEIS

O argumento mais evidente contra o subjetivismo/relativismo apela às


consequências morais de o adotarmos. Se formos relativistas, teremos que aceitar
que nenhum juízo de valor pode ser rejeitado por não corresponder à verdade dos
factos, porque não há nenhuma “verdade dos factos” sobre os valores. Isso implica
aceitar que as perspetivas morais dos antigos acerca dos escravos e das mulheres, as
dos medievais acerca das bruxas e alquimistas, ou as do racismo violento acerca de
como tratar as “raças inferiores”, não estão nem mais nem menos corretas do ponto de
vista moral do que as perspetivas das modernas sociedades democráticas.

A resposta relativista é igualmente evidente: essa pode ser uma


consequência de facto indesejável, mas se tal for o caso, de nada adianta reclamar
só porque nos desagrada; será simplesmente uma “verdade amarga” que temos
que aceitar.

2. ARGUMENTO DA CAPACIDADE EXPLICATIVA FACE AOS VALORES

Se adotarmos o subjetivismo ou o relativismo, um juízo de valor não será


nem mais nem menos objetivamente correto que qualquer outro. Isto vai contra
ideias fortemente enraizadas na maioria de nós. Por um lado, estamos convencidos de
que quando duas pessoas divergem acerca do valor de um objeto, ação, etc., há
maneiras melhores e piores de discutir. Por exemplo, se se aprecia um quadro,
chamar a atenção de outra pessoa para características importantes do estilo do pintor e
da sua época é relevante, mas afirmar que o quadro foi comprado por um valor elevado,

264
só por si, não o é (poderia até soar a um certo exibicionismo despropositado e até
mesmo ridículo). Se se discute o carácter moral de uma ação, falar da intenção, dos
fins ou do grau de consciência com que foi realizada é mais importante do que
invocar, por exemplo, que uma pessoa célebre apoia essa ação (aliás, se o
fizéssemos estaríamos a cometer uma falácia – a do apelo à autoridade).
Do mesmo modo, quando desejamos apreciar melhor a arte, tentamos informar-
nos e educar-nos nos conhecimentos e capacidades relevantes para essa apreciação,
para além de consultarmos especialistas ou inscrevermo-nos em cursos artísticos, caso
queiramos tornar-nos profissionais/entendidos nessa área.
Mas do ponto de vista subjetivista/relativista, todos estes esforços e razões
são inúteis, e todas as pessoas, incluindo especialistas, estão enganadas e
perdem o seu tempo sob a ilusão de estarem a educar ou a discutir. O objetivismo
oferece uma explicação mais simples: há razões e esforços mais e menos importantes
para a qualidade dos nossos juízos de valor porque os valores fazem de facto parte do
mundo, ainda que seja especialmente difícil encontrar o acordo e a verdade sobre eles.

3. ARGUMENTO DA COINCIDÊNCIA FACE AOS VALORES

Este argumento vira o argumento da divergência contra o próprio


subjetivismo/relativismo. O argumento baseava-se na observação do desacordo entre
pessoas e entre comunidades quanto aos valores morais, éticos, estéticos e outros. O
objetivista pode fazer o contrário dizendo que dada a dificuldade natural em
descobrir os valores e a enorme diversidade de pessoas, experiências, culturas e
tempos, o que é de surpreender é que haja tão grande coincidência em algumas
crenças fundamentais acerca de valores – mesmo que haja exceções – atribuíveis
a erros ou falta de formação.
Por exemplo, o homicídio e o incesto são considerados moralmente errados, e
obras de arte como as de Homero, da Vinci, Shakespeare ou Mozart são consideradas
belas, por praticamente todas as pessoas e culturas. Uma maneira simples de explicar
isso é defender que eles são, respetivamente, maus e belos de facto.

4. ARGUMENTO DA DISCORDÂNCIA FACE AOS VALORES

Este argumento contraria a posição do relativismo cultural em particular.


Segundo essa teoria, o facto de alguns juízos de valor serem considerados verdadeiros
e outros falsos é simplesmente um reflexo das crenças de cada cultura ou comunidade.
Assim, as ações que o Egito antigo considerava moralmente corretas e os objetos que

265
considerava belos são diferentes dos que a sociedade portuguesa atual assim
considera, o que, para o subjetivismo/relativismo, é tudo o que precisamos para
explicar a diferença existente entre a moralidade e os gostos de um faraó e os
meus (e não que haja alguma “verdade dos factos” sobre moral e beleza).

Mas esta descrição tem o problema de tornar incompreensível o fenómeno da


discordância (divergência, dissidência), que consiste em um membro de uma cultura
ou comunidade ir contra os valores tradicionalmente aceites por essa comunidade
e nos quais foi educado. Ora, que há tal dissidência de valores é uma evidência. É
precisamente devido a ela que há mudanças de cultura nas comunidades (embora
de forma lenta). Se o Egito, ao longo dos tempos acabou por banir a escravatura, foi
necessariamente porque algumas pessoas formadas nessa cultura originalmente
esclavagista (“escravista”) que acolhia o juízo “A ESCRAVATURA É MORALMENTE
ACEITÁVEL” como verdadeiro, chegaram à conclusão de que esse juízo era, afinal,
falso. Mas como poderiam fazê-lo se os juízos de valor, como propõe o relativismo
cultural, fossem sempre um espelho do que a cultura aceita?

Atentemos, agora no quadro-síntese:

Os valores são projeções de preferências,


ideias ou emoções dos diferentes sujeitos Subjetivismo/Relativismo
VALORES (subjetivismo) e/ou culturas (relativismo.

Os valores são propriedades ou


Objetivismo
qualidades objetivas do mundo.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Apresente, de forma sintética, os principais argumentos a favor do


subjetivismo axiológico e do relativismo cultural.

2. Apresente, de forma sintética, os principais argumentos a favor do


objetivismo dos juízos de valor/valores morais.

266
OS VALORES E O MULTICULTURALISMO

VALORES, RELATIVISMO E DIVERSIDADE CULTURAL

Vimos já que o relativismo cultural é uma teoria que defende que os juízos de
valor só são verdadeiros no sentido em que o são relativamente a certa cultura,
mas não necessariamente para outras. Abordaremos agora mais em particular
algumas questões que se colocam acerca dos valores no plano das culturas e da
referência a culturas – as expressões “relativismo cultural”, “diversidade cultural” ou
“diálogo de culturas” situam-se nesse plano. A questão cultural sobre os valores
coloca-se ao nível coletivo, precisamente aquele em que se situa o relativismo
cultural. Os pontos de referência são as comunidades realmente existentes.

Nem todos os elementos da cultura interessam igualmente para a discussão da


diversidade cultural. O modo tradicional como certa cultura produz poemas e os lê ou
ouve, ou como dispõe os membros da família à mesa no jantar podem ser elementos
culturais importantes, mas não para o debate acerca da coexistência e do choque
entre culturas. Os fatores culturais mais relevantes são: a nacionalidade, a religião
e a língua. A discussão sobre estes temas tem vindo recentemente a ser conhecida
como debate acerca do multiculturalismo ou pluralismo cultural.

A expressão “multiculturalismo” tem um sentido neutro, descritivo, que refere


um facto demográfico: muitas sociedades atuais não são culturalmente homogéneas,
sendo antes constituídas por pessoas de diferentes comunidades culturais. São,
portanto, sociedades multiculturais, culturalmente diversas. O debate filosófico sobre a
diversidade cultural usa “multiculturalismo” em dois outros sentidos (que são os que
mais nos interessam):

▶ Um refere a área da filosofia política que se questiona sobre qual será a


maneira correta de lidar com a diversidade cultural numa sociedade democrática atual.

▶ Outro refere a tese de que a diversidade cultural deve ser vista como algo
positivo, de que devemos cuidar.

As questões centrais que interessa discutir no problema do multiculturalismo


colocam-se no contexto de sociedades democráticas multiculturais que prezam a
liberdade, toleram a diversidade e pretendem tratar de maneira justa os membros
das minorias culturais.
Eis dois exemplos:

267
a) Será que a simples aceitação de comunidades com culturas diferentes da
cultura maioritária é suficiente para assegurar o tratamento justo e correto dos seus
membros?

b) Deve o Estado tratar de modo rigorosamente igual a cultura maioritária e as


minoritárias ou intervir ativamente em favor destas para diminuir as suas desvantagens?

Como vimos, o multiculturalismo como tese filosófica propõe a aceitação e a


defesa da diversidade cultural como algo positivo, definindo-se pelas respostas que
dá a essas questões. Assim, o multiculturalismo é a perspetiva filosófica que
defende o seguinte raciocínio: num Estado, os membros da cultura maioritária, pelos
simples facto de esta ser maioritária, têm à partida privilégios económicos, políticos e
sociais face aos membros das culturas minoritárias. Uma sociedade que se limita a
tolerar a existência de culturas minoritárias dentro de si, embora pareça tratar os
membros destas de modo igual aos da cultura maioritária, não o consegue realmente,
permitindo que elas sejam marginalizadas, mesmo que involuntariamente. Logo, é
necessário que o Estado favoreça essas minorias, de modo a compensá-las pelas
suas desvantagens económicas, políticas e sociais, e, desse modo, equilibrar a
condição destas minorias face à da cultura maioritária.

TIPOS DE MINORIA E SUAS REIVINDICAÇÕES (EXIGÊNCIAS)

Os temas que preocupam os defensores da perspetiva multiculturalista são as


condições das comunidades minoritárias em sociedades que promovem a
igualdade em termos de estatuto social e acesso à riqueza, à educação, à
representação, ao poder político, etc.

Os tipos de minoria cultural mais discutidos neste contexto são:

 Povos nativos, que viviam originalmente em territórios que vieram a ser


colonizados por outros povos, agora dominantes (exemplo: índios americanos).

 Nações minoritárias (exemplo, catalães e bascos em Espanha distribuídos


por regiões autónomas).

 Imigrantes de uma mesma etnia (exemplo: imigrantes da Europa de leste em


Portugal).

No caso das nações minoritárias, o que é realmente reivindicado (exigido,


reclamado) e objeto de debate é a possibilidade de estas, em certa medida, se
“governarem a si próprias”, ou seja, a autodeterminação. A questão pode ser a mesma

268
no caso dos povos indígenas, embora não necessariamente. No caso dos imigrantes,
discute-se sobretudo a possibilidade de estes manterem a sua língua e a sua religião.

MULTICULTURALISMO E DIREITOS DIFERENCIADOS

Em termos gerais, a perspetiva multiculturalista propõe que a mera tolerância


em relação às diferenças culturais não é suficiente, devendo haver medidas que
combatam o desequilíbrio, atribuindo às minorias certos direitos. O filósofo
canadiano Will Kymlika (1962) chamou-lhes direitos diferenciados em função de
grupos, que se traduzem em proteções externas que garantem que os membros da
minoria têm a mesma oportunidade de viver e trabalhar de acordo coma sua
própria cultura que os membros da cultura maioritária. São exceções que dão às
minorias o direito de agir de acordo comos seus hábitos e compromissos culturais.

Os direitos diferenciados em função de grupos são medidas políticas que


favorecem a desigualdade (“discriminação positiva”) para atingir a igualdade, ou seja,
para acabar com a “discriminação negativa” por parte da maioria.

EXEMPLOS DE DIREITOS DIFERENCIADOS:

- Isenção da aplicação de leis ou regras gerais por motivos religiosos.

- Direito a autonomia política limitada.

- Representação de minorias nas instituições políticas (percentagens


mínimas obrigatórias – designadas por “quotas”) em listas partidárias e em
lugares de governo.

- Reconhecimento de códigos tradicionais pelo sistema legal geral (um


exemplo polémico é a atribuição da competência de julgar casos de direito de
família – como situações de abuso de menores, violência doméstica, divórcios,
atribuição de poderes paternais, etc. – interiores ou internos às minorias,
nomeadamente, tribunais religiosos).

- Direitos ao uso da língua da sua minoria nas escolas.

- Apoios especiais não concedidos a membros da maioria cultural (tais


como o apoio financeiro a escolas que ensinam na língua das minorias e de
associações que promovem a sua cultura e a disponibilidade de ajuda na língua
materna em votações e outras ocasiões institucionais).

269
O multiculturalismo procura também levar a maioria a superar mentalidades e
modos de encarar as minorias que as desvalorizam (por exemplo, o modo como o
estado desvaloriza a identidade cultural das minorias ao representar o país através de
símbolos da maioria, como se esta fosse a cultura única).
Evidentemente, os direitos diferenciados em função de grupos, muitas vezes,
impõem limitações da liberdade (de parte a parte), as quais se traduzem por:

- Restrições da liberdade dos membros da maioria cultural, de modo a


proteger as minorias do desaparecimento da sua cultura (por exemplo, no Québec –
Canadá – as limitações ao uso do inglês como língua oficial de modo a dar lugar
também ao francês).

- Restrições da liberdade dos membros da própria minoria, quando a sua


cultura e tradição promove tais restrições (por exemplo, nas comunidades índias
Pueblo, do sudoeste americano, a exclusão dos membros – mulheres – que casam fora
da comunidade).

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Defina relativismo cultural.

2. Identifique os fatores mais relevantes para o debate acerca da


coexistência e do choque entre culturas.
2.1 Como é conhecida a discussão sobre estes temas?

3. Explicite os diversos sentidos da expressão “multiculturalismo”.

3.1 Refira os dois exemplos, dados no texto a este propósito, das questões
centrais que interessa discutir no problema do multiculturalismo.
4. Defina o multiculturalismo como tese ou perspetiva filosófica.

5. Identifique os temas que preocupam os defensores da perspetiva da


perspetiva multiculturalista.
5.1 Indique os tipos de minoria cultural mais discutidos neste contexto.

6. O que propõe, em termos gerais, a perspetiva multiculturalista?

7. O que são direitos diferenciados em função dos grupos?

7.1 Apresente três exemplos de direitos diferenciados.

8. Em que se traduzem as limitações da liberdade impostas pelos direitos


diferenciados em função de grupos?

270
ARGUMENTOS EM TORNO DO MULTICULTURALISMO

São vários os argumentos (a favor e contra) que integram a discussão da


perspetiva multiculturalista como resposta à diversidade cultural nas sociedades
democráticas atuais.

ARGUMENTOS A FAVOR DO MULTICULTURALISMO

1. ARGUMENTO DO PÓS-COLONIALISMO

Muitos povos colonizados pelas potências ocidentais (caso dos nativos africanos
e dos nativos americanos) foram submetidos à perda da sua terra e da sua soberania
(poder, autonomia), sendo sujeitos ao sofrimento, à escravatura e ao quase
esmagamento da sua cultura – atualmente são minorias em comunidades cuja maioria
é constituída pelos descendentes dos colonizadores. Este passado de profunda
injustiça e desigualdade pode pôr em causa a legitimidade (legalidade) da autoridade
do Estado atual (herdeiro da cultura colonizadora) sobre a comunidade colonizada.
Assim, poder-se-ia dizer que a comunidade colonizadora acaba por ter uma “dívida
histórica” para com a comunidade colonizada, que só pode ser saldada (compensada)
no presente. O multiculturalismo defende esse pagamento ou compensação e a
proteção do que resta dessas culturas.

RESPOSTA OU OBJEÇÃO A ESTE ARGUMENTO:

Este argumento dos multiculturalistas, que acabámos de ler, pressupõe, pois,


premissas que podem ser contestadas (a de que existe no presente uma “dívida
histórica e cultural” dos povos colonizadores relativamente aos colonizados, e a de que,
tal dívida, independentemente de remeter para ações e acontecimentos que ocorreram
num passado longínquo, tem que ser saldada, uma vez que há alguém atualmente a
quem a retribuição é devida), uma vez que, apesar de muitos, talvez até a maioria, dos
descentes dos colonizadores pensarem que a colonização levada a cabo pelos seus
antepassados foi um mal que não devia ter acontecido e até que, caso dependesse de si
tratar daquela maneira outras “raças” e culturas, não o fariam, acabam, contudo, por
atribuir essa responsabilidade para os antigos colonizadores. Afinal, defendem, eles são
apenas descendentes dos colonizadores e os membros da cultura minoritária são
descendentes dos colonizados, mas nada fizeram de errado para com estes. Logo,
mesmo que haja uma dívida, ela é de alguém no passado para com outrem
também no passado.

271
2. ARGUMENTO LIBERAL (LIBERALISMO)

O liberalismo é uma perspetiva que valoriza a liberdade individual e


igualdade entre indivíduos nessa liberdade relativamente à sociedade. Nesta
perspetiva, o valor de cada indivíduo é superior ao da sua comunidade. Uma das
implicações é a ideia de que os bens e os valores comunitários que uma sociedade gera
– como a união e a solidariedade entre os seus membros – e a cultura (incluindo a
língua e a religião), só terão valor se contribuírem para bens e valores que beneficiem os
seus membros.
No entanto, apesar de o multiculturalismo promover valores e bens culturais,
comunitários, um liberal individualista pode defendê-lo porque a cultura e os bens ou
valores sociais a que ele conduz promovem valores individuais fundamentais. Logo, o
valor da cultura é elevado, não em si só, mas pela importância dos valores
individuais que promove, tais como:

 Autonomia – a liberdade individual exerce-se nas escolhas que fazemos. A


existência de várias culturas, em vez de uma única, alarga o nosso campo de
possibilidades e favorece a liberdade, mostrando-nos mais opções de modos de viver e
pensar de entre as quais podemos escolher.

 Autoestima – há uma ligação entre a autoestima do indivíduo e o respeito


concedido à sua comunidade, e é difícil e penoso para ele ter que abandonar a cultura
em que nasceu e segundo a qual foi educado.

O multiculturalismo liberal defende também que as desvantagens a que os


membros de culturas minoritárias estão sujeitos diminuem a sua liberdade e contrariam
a igualdade e que essas desvantagens resultam do acaso: terem nascido em culturas
minoritárias, pelo que não são individualmente responsáveis por elas. Como tal, é
a sociedade, como um todo, que tem a responsabilidade coletiva de reduzir essas
desvantagens, recorrendo, para isso, à integração, à discriminação positiva e à
concessão de direitos diferenciados.

Porém, esta posição faz notar uma distinção entre graus de responsabilidade:
ela é totalmente inexistente no caso de povos colonizados contra a sua vontade – por
isso estes devem ter direito ao grau mais elevado de direitos diferenciados. Já no
caso dos imigrantes que chegam em busca de melhores condições económicas, a sua
situação é parcialmente escolhida – assim, eles devem ser integrados através de

272
medidas de favorecimento, embora temporárias, até que alcancem um estatuto
semelhante ao dos membros da maioria (exemplos: ensino da língua do país para o qual
imigraram, incentivos fiscais para poderem abrir o próprio negócio, etc.).

RESPOSTA OU OBJEÇÃO A ESTE ARGUMENTO:

Há quem pense que as desigualdades entre os membros de culturas


maioritárias e minoritárias não são assim tão grandes nas sociedades democráticas,
e que discorda da necessidade do tratamento privilegiado, afirmando que, em vez
disso, tudo o que é necessário é uma boa legislação (conjunto de leis) contra a
discriminação e garantir que ela é cumprida.
No entanto, os liberais multiculturalistas podem contradizer que não basta ao
Estado tratar todos de modo igual para assegurar uma igualdade real aos
membros de culturas minoritárias. A razão é que simplesmente não é possível a um
Estado ser culturalmente neutro (imparcial). Por exemplo, basta uma comunidade
linguística ser favorecida no ensino, no emprego e nas muitas relações com o Estado
para que todas as restantes fiquem em posição bastante desvantajosa.

Outro nível em que não é possível a neutralidade dos Estados é o nível simbólico
presente na representação do Estado através de símbolos da cultura maioritária (por
exemplo, o hino nacional ou a bandeira nacional) e das ocasiões que foram escolhidas
para serem celebradas como datas importantes (por exemplo, no caso português, a
celebração da Revolução no 25 de abril de 1974, de carácter político, e o domingo de
Páscoa, de carácter religioso).

3. ARGUMENTO COMUNITÁRIO

Este argumento parte de uma crítica à perspetiva liberal. Para esta, como
vimos, o valor do bem-estar individual sobrepõe-se ao dos bens sociais, como a
identidade cultural ou a união de uma sociedade – estes só terão valor se contribuírem
para o valor do bem-estar individual, ou seja, o seu valor reduz-se ao valor do bem-
estar individual que eles (bens sociais) possam trazer.

A perspetiva comunitarista critica a posição liberal e sublinha o valor da


comunidade entre outras coisas, por ela ser responsável por muito daquilo que
cada indivíduo é. Como tal, os bens sociais têm valor intrínseco (em si mesmos),
independentemente das vantagens que tragam para os indivíduos. Logo, devem
ser procurados por si mesmos e protegidos como valores que são.

273
Ora, um dos conjuntos mais importantes de valores sociais é formado pela cultura
de cada comunidade, incluindo a sua língua. Uma forma de realizar isso é adotar o
multiculturalismo e a política dos direitos diferenciados para grupos minoritários.
Isto contrasta com o liberalismo, se este defender que o Estado deve assegurar
liberdades e oportunidades iguais para cada indivíduo apenas através da atribuição de
direitos rigorosamente iguais (sem compensação pelas desvantagens com que partem
os membros de culturas minoritárias).
Para além disso, outra ideia comunitarista é a de que o valor intrínseco dos bens
sociais, segundo o qual cada um deles vale por si, significa que todos eles devem ser
valorizados de forma igual. Logo, dirá um defensor desta perspetiva, todas as
culturas, como bens sociais, têm igual direito a existirem e a se desenvolverem,
não devendo nenhuma sobrepor-se a outra e muito menos eliminá-la.

Assim, a própria existência de diferentes culturas é um outro bem social.


Trata-se de um raciocínio paralelo à defesa da diversidade das espécies naturais e
ao combate à extinção de algumas, por se acreditar que a própria diversidade
(associada ao facto de existirem muitas espécies em vez de menos ou de uma só) é, em
si mesma, um bem. Assim, novamente, segundo a perspetiva comunitarista, o
multiculturalismo é o melhor mecanismo para alcançar esta igualdade real entre
culturas no caso de sociedades onde há diversidade cultural e onde uma cultura
tem vantagens sobre as restantes.

RESPOSTAS OU OBJEÇÕES A ESTE ARGUMENTO:

Uma objeção ou contestação óbvia que é feita ao argumento comunitário é a


de que este só vale para quem concorde com a perspetiva comunitarista.
Outra contestação coloca ou põe em causa a ideia de que a mera existência de
diversidade de culturas seja necessariamente um bem, contra-argumentando que é
perfeitamente possível que a existência de uma cultura única seja preferível a
duas, três ou mais culturas diferentes, sobretudo se aquela for justa e se a maioria
destas não o forem.
Uma última contestação, de natureza mais complexa, está relacionada com a
questão da tolerância e baseia-se no seguinte: segundo a perspetiva multiculturalista,
todas as culturas têm igual valor, o que equivale a dizer que os valores e princípios
de qualquer cultura têm direito a existir e a serem assumidos pelos membros

274
dessa cultura. Mas, outras culturas, contrariamente à tese do multiculturalismo
(defendida pela cultura ocidental democrática e liberal), não o defendem, tendo,
inclusive, muitas delas fortes princípios e regras contra a igualdade entre os seus
membros e os de outras culturas. Então, o multiculturalismo contradiz-se de certo
modo, na medida em que, havendo culturas minoritárias não multiculturalistas, ou seja,
não tolerantes relativamente a outras, no seio de uma cultura democrática e liberal que
respeita os princípios e os valores das outras culturas, esta terá de as forçar a seguir
princípios e valores que não são os delas, mas sim os da tese multiculturalista, o que
acaba por constituir uma contradição ou um paradoxo (ser intolerante face à
intolerância).

ARGUMENTOS CONTRA O MULTICULTURALISMO

As respostas aos argumentos a favor do multiculturalismo constituem de certa


forma objeções ou críticas a quem o defende. Eis, pois, algumas objeções diretas à
perspetiva multiculturalista:

ARGUMENTO DA DISCRIMINAÇÃO DENTRO DAS MINORIAS (INTRA-


MINORIAS)

Esta objeção ao multiculturalismo, uma das mais importantes, relaciona-se com a


questão da tolerância e com o paradoxo (contradição) que acabámos de abordar na
crítica ao argumento comunitário.

Há culturas cujos princípios concedem menos direitos e liberdades a certos


grupos dentro delas. Comunidades com tais culturas são, por vezes, acolhidas por
países que não só rejeitam a discriminação como defendem o multiculturalismo. Ora,
segundo o multiculturalismo, toda a cultura merece proteção (pois nenhuma cultura
tem mais direito a existir do que outra). Logo, essas culturas minoritárias discriminatórias
também devem ser protegidas, o que pode mesmo passar pela aceitação de algumas
das suas regras na legislação do Estado. E isso significa que o multiculturalismo estará
a proteger e a defender a discriminação dentro das minorias, e, assim, a permitir que ela
continue.

Se para o multiculturalismo, todas as culturas têm o direito a existir, então isso


também se aplica às culturas minoritárias que não tratam os seus membros de modo
igualitário. Estará o multiculturalista a contradizer-se?
275
Um exemplo muito claro deste problema é a contradição gerada pela defesa
simultânea do multiculturalismo e do feminismo. Há comunidades minoritárias que vivem
em democracias modernas, mas cujas culturas são contrárias à igualdade entre sexos.
O tratamento injusto das mulheres pode impor que elas tenham um acesso mais difícil
(ou até nulo) à educação, ao mundo do trabalho, ao poder, à independência e à
autonomia, sendo muitas vezes sujeitas a regras que mostram abertamente que elas
são subjugadas (caso da poligamia ou do assassinato por desonra).

Deste modo, quem defende a igualdade de direitos entre sexos (feminismo) e, ao


mesmo tempo, a proteção para todas as culturas (multiculturalismo) pode ser
confrontado com uma incoerência face a uma cultura minoritária cujos valores
impliquem a discriminação das mulheres. Enquanto feminista, essa pessoa defende que
tal prática deve ser combatida. Mas, enquanto multiculturalista, defende que essa cultura
deve ser protegida.

RESPOSTA A ESTE ARGUMENTO (DA DISCRIMINAÇÃO DENTRO DAS


MINORIAS):

Uma resposta seria alterar a tese multiculturalista para algo como “devemos
proteger as culturas minoritárias, etc., a menos que elas tratem algum grupo seu de
modo injusto”. Contudo, isso levanta problemas. Se podemos escolher quais os valores
de uma cultura minoritária que devem ou não ser protegidos, arriscamo-nos a abandonar
o multiculturalismo, porque reprimimos valores, práticas ou juízos morais por serem
contrários a valores, juízos e direitos que a cultura maioritária adotou e considera que
deviam ser universais.
A saída que promete maior êxito tem sido a que apela ao diálogo entre a
cultura maioritária e as comunidades minoritárias, no sentido de conseguir que
estas alterem os seus valores e práticas por ficarem convencidas de que, apesar
de tradicionais, esses valores e essas práticas são injustos. Note-se que esta saída
não está livre de problemas, uma vez que envolve admitir que uma cultura tem o
direito de tentar influenciar e modificar outra, para além de ir contra os ideais
multiculturalistas.

O ARGUMENTO DA INDIFERENÇA IGUALITÁRIA

Este argumento defende que, para muitos de nós, os direitos são algo que os
indivíduos têm e não os grupos ou comunidades, cabendo ao Estado a função de

276
garantir a cada pessoa direitos e liberdades iguais. Para quem concordar com esta
ideia, o Estado deve conceder um tratamento igual e imparcial a todos,
independentemente dos grupos a que possam pertencer. Ora, o multiculturalismo
introduz direitos diferenciados para grupos, que, desta perspetiva, não são direitos
genuínos (são “direitos sociais”), e que alteram artificialmente a sociedade, conferindo a
alguns, para além dos direitos iguais que todos têm, direitos especiais por pertencerem
a grupos ou culturas minoritárias.

Note-se que as desvantagens físicas, como a deficiência e a doença, limitam


as oportunidades e a liberdade de quem delas sofre, não sendo sua escolha nem
responsabilidade. Por isso, é justo pedir à sociedade um esforço em benefício delas
(o uso dos impostos a favor delas, é um exemplo de um direito diferenciado), de modo a
equilibrar a sua situação face aos restantes. Mas, no âmbito deste argumento,
afirma-se que uma cultura não é uma fatalidade e que, geralmente, podemos rejeitar
uma cultura se ela nos parecer injusta ou simplesmente não gostarmos dela. Assim,
nesta linha de pensamento, o facto de pertencermos a uma cultura minoritária e tal
circunstância poder constituir um limite às nossas escolhas e às nossas oportunidades,
em função dos valores e das práticas dessa cultura, não quer dizer que não tenhamos
outras possibilidades, ou seja, só as aceitamos (esses valores e essas práticas) se
quisermos…

Ora, contra este ponto, talvez haja uma simplificação excessiva, uma vez que se
é certo que as culturas não limitam fisicamente as oportunidades, também não há
dúvida de que há limitações culturais que são muito fortes e difíceis de contrariar
pela força de vontade do indivíduo que nasceu nessa cultura, especialmente as
limitações que provêm da educação numa cultura, algo que praticamente nunca é
escolhido pelo próprio.
Assim, se o Estado quer garantir a justiça e a igualdade de oportunidades,
não pode ignorar tais desvantagens e, portanto, deve compensá-las
(equilibradamente).

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Identifique e caracterize cada um dos argumentos a favor do


multiculturalismo bem como as respetivas respostas que são apresentadas
relativamente a cada um desses argumentos.

277
2. Identifique e caracterize cada um dos argumentos contra o
multiculturalismo bem como as respetivas respostas que são apresentadas
relativamente a cada um desses argumentos.
RELATIVISMO MORAL

Os valores que respeitamos na nossa sociedade, as normas morais que regem


o nosso comportamento e os princípios éticos que fixam o horizonte de sentido da
existência humana são as mesmas em todo o mundo? São as mesmas do passado?
Sabemos que a moral nos diz o que devemos fazer e que a ética propõe
ideais de realização humana e que há valores básicos que ocupam o topo da tábua
(lista) de valores de grande parte da humanidade, como os valores da vida, da
liberdade, da propriedade, da privacidade, da paz, etc.
A vida é um valor universal?
Há sociedades em que a pena de morte é legal e moralmente justificada, outras
que reconhecem o aborto e a eutanásia como práticas legítimas.
Há sociedades em que se legitima (valida, justifica) a discriminação das culturas
minoritárias e outras em que se considera a multiculturalidade (coexistência de várias
culturas de diversos países ou regiões num só país ou região) e a tolerância como
avanços civilizacionais e morais.
Por isso, algumas teorias respondem que não há valores morais absolutos e
defendem que os valores morais, do mesmo modo que todos os valores, são
convenções que se vão reproduzindo em cada nova geração através dos
processos de socialização e de aprendizagem social e se vão transformando
graças à dinâmica social – a esta conceção chama-se RELATIVISMO MORAL.
Assim, do ponto de vista do relativismo moral, afirmar que os conceitos de
racismo ou xenofobia definem um conjunto de atitudes e de comportamentos
moralmente reprováveis significa apenas que, desse ponto de vista, o racismo é
moralmente condenável, embora haja pontos de vista que consideram o racismo
uma prática moralmente aceitável.
Se o relativismo moral for uma teoria ética verdadeira, que fundamento
podemos invocar para defender a Declaração dos Direitos do Homem? Que
justificações se podem usar em defesa das mulheres vítimas de discriminação? Há
justificação para a mutilação genital? Há justificação para o trabalho infantil? Como
intervir para impedir a mutilação genital ou o trabalho infantil?

278
Combater ou legitimar (validar, justificar) tais práticas exige um padrão
universal que é precisamente o que o relativismo afirma não existir. Por exemplo,
perguntar se a excisão genital é benéfica ou prejudicial, se promove ou é um
obstáculo ao bem-estar das crianças vítimas dessa prática é, segundo alguns autores, o
critério para determinar a legitimidade da intervenção.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Defina Relativismo Moral.


2. Quais as consequências decorrentes do Relativismo Moral (críticas).

279
A NECESSIDADE DE FUNDAMENTAÇÃO DA MORAL
O PROBLEMA DO CRITÉRIO ÉTICO DA MORALIDADE DE UMA AÇÃO
ANÁLISE COMPARATIVA DE DUAS TEORIAS ÉTICAS
(OU DUAS PERSPETIVAS FILOSÓFICAS DA MORAL)

AS TEORIAS ÉTICAS DEONTOLÓGICA E CONSEQUENCIALISTA

Acabámos de fazer uma abordagem introdutória aos problemas relativos ao


domínio ético-moral da ação, distinguindo ética de moral, caraterizando o juízo
moral e enunciando os diferentes critérios das diferentes conceções ou teorias
para definir a moralidade, determinando o valor moral das ações, enunciando os
princípios básicos exigidos pela moral e, finalmente, definindo o relativismo moral
bem como as consequências do seu reconhecimento.
Agora vamos estudar duas perspetivas filosóficas da moral (ou teorias éticas),
a saber, a teoria ética deontológica ou do dever (de Immanuel Kant, 1724-1804) e a
teoria ética consequencialista ou utilitarista (de John Stuart Mill, 1806-1873), que
respondem de maneiras diferentes, no âmbito do problema do critério ético da
moralidade de uma ação e da necessidade de fundamentação da moral, às
seguintes questões:

O que devo fazer e porquê?


O que faz com que uma ação seja moral?
O que legitima a opção pela moralidade?
As normas morais exigem respeito absoluto ou há circunstâncias em que se
justifica desrespeitá-las?
Como não é possível comparar o que ainda não conhecemos, vamos começar
por estudar cada uma destas teorias éticas (a deontológica e a consequencialista)
para, em seguida, podermos comparar as soluções que cada uma apresenta para as
questões enunciadas. Porém, antes de o fazermos, debrucemo-nos sobre o texto que se
segue, o qual define (e distingue), numa primeira análise, a teoria deontológica (de
Kant) e a teoria consequencialista (de Mill):
“As teorias éticas baseadas no dever sublinham que cada um de nós tem certos
deveres – ações que devemos executar ou não – e que agir moralmente é equivalente a

280
cumprir o nosso dever sejam quais forem as consequências que daqui surgirem. É esta
ideia – a de que algumas ações são absolutamente boas ou más independentemente
dos resultados a que derem origem – que distingue as teorias éticas baseadas nos
deveres (também conhecidas por deontológicas), como por exemplo, a ética cristã e a
ética kantiana, das teorias éticas utilitaristas (também conhecidas por
consequencialistas).
O termo “consequencialismo” é usado para descrever as teorias éticas que
ajuízam da retidão ou não de uma ação, não através das intenções do autor da ação
como as deontológicas (que se baseiam no dever), mas antes através das
consequências das suas ações. Enquanto Kant afirmaria que dizer uma mentira é
sempre errado, sejam quais forem os possíveis benefícios que daí possam resultar, um
consequencialista julgaria o ato através dos seus resultados efetivos ou previstos, o que
nos remete, precisamente para uma conceção utilitarista da moral. Ora, o utilitarismo é a
vertente mais conhecida da teoria ética consequencialista e o seu mais famoso
representante foi John Stuart Mill”.

Nigel Warburton, Elementos Básicos da Filosofia, Gradiva, 2007, Lisboa, pp. 72-74

Assim, numa primeira abordagem, podemos definir e distinguir as duas teorias


ou perspetivas filosóficas da moral da seguinte maneira:

a) Teoria ética deontológica (aqui representada por Immanuel Kant): baseia-se


no dever e afirma que é moral toda a ação que cumpre o dever, ou seja, é no
cumprimento do dever que reside o critério de moralidade de uma ação,
independentemente de tudo o resto.
b) Teoria ética consequencialista ou utilitarista (aqui representada por Stuart
Mill): baseia-se nas consequências e considera ser estas (consequências) que
definem ou classificam as ações morais. Dizendo o mesmo, mas de outra maneira, o
critério de moralidade de uma ação reside nas suas consequências.

PROPOSTA DE ATIVIDADE/QUESTÃO:

1. Distinga, numa primeira abordagem, a teoria ética deontológica (ou ética do


dever) da teoria ética consequencialista (ou ética utilitarista).

281
A TEORIA ÉTICA DEONTOLÓGICA DE KANT
(uma teoria do dever)

“Duas coisas enchem o meu coração de admiração:


o céu estrelado por cima de mim e a lei moral em mim.”

Immanuel Kant, Crítica da Razão Pura

Vamos começar pela teoria ética deontológica, desenvolvida por um dos mais
importantes vultos da história da filosofia ocidental, Immanuel Kant (1724-1804), nas
suas obras Fundamentação da Metafísica dos Costumes (obra que nos vai servir de
referência) e Crítica da Razão Prática (referência para a maior parte das teorias éticas
posteriores).
A ética kantiana (de Kant) é uma ética do dever (do grego deon, de que derivou
o termo deontologia), tal como refere o autor do texto que se segue:

“Kant provoca uma mudança espetacular na forma de encarar a moral. De súbito,


a palavra dever converte-se no centro da ética. Kant fala de deveres que, enquanto
pessoas livres, podemos cumprir ou não. Se os cumprirmos seremos dignos de ser
felizes.
Nem toda a gente estará de acordo com Kant. Quando se trata de compor um
quadro acerca da moral temos sempre de considerar duas tendências: uma, iniciada
por Aristóteles, que se preocupa substancialmente com o bem – se a ação é boa deve
realizar-se; outra, a de Kant, que se centra de forma especial no dever – o bom é o
que temos o dever de realizar.
Em qualquer caso, a ética terá de reconhecer que a universalidade, isto é, a
igualdade entre todos os seres humanos, é que é a sua própria essência.”

Javier Sádaba, Filosofia para um jovem, Editorial Presença, 2005, Lisboa, pp. 86-87

DEVER E VONTADE BOA

O autor afirma que a ética de Kant está centrada no dever e que o bom é o
que o dever ordena à vontade.
Mas, por que razão estamos sujeitos ao dever?
Por que razão só o que o dever ordena é bom?

282
Para responder precisamos de conhecer qual a conceção de ser humano que
Kant defende, sendo que este distingue três tipos de disposições:
- Animalidade – o homem tem uma natureza biológica e, por isso, tem
necessidades sensíveis, nomeadamente desejos e impulsos, as quais designamos por
inclinações/tendências/fraquezas;
- Humanidade – é a natureza biológica do homem transformada pela socialização
e pela cultura, tornando-o num ser social e cultural, completamente distinto dos
restantes animais;
- Personalidade – é a natureza racional do homem que pressupõe ou exige
autonomia, isto é, que seja a razão (de cada um) a orientar a ação.

Ora, todas estas disposições (animalidade, humanidade e personalidade),


comuns a todo o género humano, procuram satisfação e, por isso, a vontade sofre a
sua influência.
Mas, o que é a vontade?
Diz-nos Kant:
“A vontade é a faculdade de escolher só aquilo que a razão, independentemente
da inclinação (desejos, impulsos, interesses, tendências…), reconhece como
praticamente necessário, quer dizer, como bom.”

Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Edições 70, 2005, Lisboa, p. 47.

Segundo Kant, a vontade faz parte da razão e é a razão, no seu uso prático, que
decide como agir. Por isso, a razão deve recusar motivos exteriores, vindos das outras
disposições do ser humano.
Aqui coloca-se a questão: então, a razão não pode escolher agir por interesse,
por exemplo?
A resposta é: pode, porque tem livre arbítrio; mas, atenção, diz-nos Kant: “uma
coisa é poder optar, outra coisa é a opção correta e esta (opção correta) é escolher
só aquilo que a razão, independentemente da inclinação (desejos, impulsos,
interesses, tendências,…), reconhece como bom.”
Por conseguinte:
- O dever é a necessidade (ou a obrigação) de uma ação por respeito à lei
moral;
- O facto de não termos uma vontade sempre boa é que justifica que o
cumprimento da lei moral nos seja imposto como dever;

283
- Só é moral a ação cujo motivo é o respeito pelo dever;
- O ideal que Kant nos propõe é transformar a vontade dividida e imperfeita numa
vontade boa, que é a que escolhe o dever como motivo e intenção da ação.

MORALIDADE E LEGALIDADE

Podemos perguntar: se a ação moral só tem como único motivo o dever, se


eu ajudar os outros por serem meus amigos ou participar em programas de ajuda
a crianças desprotegidas por ficar triste ao vê-las abandonadas e famintas, não
estou a fazer o que devo, ou seja, não estou a fazer o bem? Não estou a realizar
ações morais?
Kant responde que ações que são motivadas por inclinações, interesses,
tendências ou sentimentos não têm o mesmo valor que as ações praticadas por
dever.
Kant distingue as ações que estão de acordo com a lei moral, a que chama
ações boas ou legais, das ações morais, que, não só cumprem a lei moral, mas
fazem-no unicamente por respeito à lei moral, ou seja, por dever.
A este propósito, Kant afirma:
“É na verdade conforme ao dever que o merceeiro não suba os preços ao
comprador inexperiente. Mantém um preço fixo geral para toda a gente de forma que até
uma criança pode comprar na sua mercearia tão bem como qualquer outra pessoa. É-
-se, pois, servido honradamente: mas isso ainda não é bastante para acreditar que o
comerciante tenha assim procedido por dever e princípios de honradez; o seu interesse
assim o exigia. A ação não foi, portanto, praticada por dever, mas somente com intenção
egoísta.”

Immanuel Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Edições 70, 2005, Lisboa, pp. 27-28.

O motivo que levou o merceeiro a optar pela honestidade, estabelecendo um


preço fixo e não enganando os seus clientes, foi o interesse em ganhar os seus
clientes e não o dever de ser honesto. Por conseguinte, a sua ação é boa ou legal
porque está de acordo com a norma (que é exterior à vontade do sujeito da ação, já
que se trata de uma imposição social e legal, ou seja, convencional), mas não é uma
ação moral porque o motivo foi o interesse e não o dever de ser honesto (que
deveria ter resultado da vontade do sujeito, sem qualquer interesse ou inclinação). Por
conseguinte, a sua ação é boa ou legal porque está de acordo com a norma (social e

284
legal), mas não é ação moral porque o motivo foi o interesse e não o dever de ser
honesto.
Assim, podemos distinguir moralidade de legalidade da seguinte forma: a
moralidade tem a ver com o cumprimento do dever, resultante da vontade do
sujeito, sem ser imposta exteriormente e sem visar qualquer outro interesse que
não o bem honesto. Já a legalidade tem a ver com o cumprimento de normas
legais e sociais, exteriores à vontade do sujeito (porque são impostas de fora),
motivado por interesses (e inclinações) que vão muito para além do dever de ser
honesto.
A moralidade está, pois, associada ao cumprimento voluntário do dever
(resultante da vontade livre, interna, do sujeito) e a legalidade tem a ver com o
cumprimento da lei por obrigação e por interesse (resultante da imposição legal,
externa, que recai sobre o sujeito).
Para ajudar a compreender melhor os motivos da ação e do valor moral da
ação, imaginemos as seguintes situações/exemplos:
1. X vê alguém a afogar-se. Não conhece o náufrago, mas não hesita em salvá-lo.
2. Y é amigo do náufrago e salva-o porque é seu amigo.
3. Z conhece o náufrago mas está zangado com ele mas, apesar disso, vai salvá-
-lo.
Na situação 1. o Motivo da ação é: o Dever; e o Valor Moral da ação é: a Ação
Moral.
Na situação 2. o Motivo da ação é: a Amizade; e o Valor Moral da ação é: a
Ação boa ou legal.
Na situação 3. o Motivo da ação é: o Dever; e o Valor Moral da ação é: a Ação
Moral.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. O excerto do livro Filosofia para um Jovem, de Javier Sádaba (que figura na


página 281 dos presentes apontamentos), menciona duas tendências (distintas) de
conceber a moral. Diga quais são e de quem.

2. A conceção de ser humano que Kant defende, implica a distinção de três


tipos de disposições. Quais são?

3. Defina vontade (segundo Kant).

4. Distinga moralidade de legalidade.


285
A LEI MORAL – IMPERATIVO CATEGÓRICO DA MORALIDADE

“A representação de um princípio objetivo, enquanto obrigante para uma vontade,


chama-se um mandamento (da razão), e a fórmula do mandamento chama-se
Imperativo (categórico).”
Immanuel Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Edições 70, 2005, Lisboa, p. 48 (adaptado)

Kant apresenta a seguinte formulação da lei moral: “Age apenas segundo uma
máxima (norma ou regra geral) de tal forma que queiras que essa máxima (do teu agir)
se torne lei universal.”
A lei moral expressa-se sob a forma de um imperativo categórico (algo que se
impõe decisivamente, indiscutivelmente). Ao contrário do imperativo hipotético (regras
que ordenam uma ação como meio para alcançar qualquer fim, o que lhe dá um
caráter condicional), o imperativo categórico (ordem incondicional que impõe a
ação como absolutamente necessária, ou seja, como um fim em si mesma; por
exemplo: o dever), ordena, manda, determina de forma universal (para todos os seres
humanos) e necessária (imperiosa, impreterível, categórica, que não pode deixar de ser
como é).
Ao afirmar que a forma da lei moral é um imperativo categórico, Kant está a
dizer-nos que este (imperativo categórico) exige respeito absoluto, isto é, que o seu
cumprimento não depende de nenhuma condição, não admite exceções, valendo
para todos, independentemente das circunstâncias (universalidade da lei).
A lei moral é formal, ou seja, puramente racional (baseia-se em princípios
universais tirados da razão e não na experiência particular, subjetiva, de cada um), pois,
como podemos verificar pela fórmula do imperativo categórico, não refere nenhum
conteúdo concreto, singular, ou seja, nenhuma norma ou dever particulares. O
imperativo categórico da moralidade é expressão formal universal, não entra em
“particularidades” ou “singularidades”, porque é comum a todos os seres humanos,
ações e situações, e é incondicional (porque é independente de toda e qualquer
circunstância particular) da lei moral, e o dever traduz a obrigação absoluta do seu
cumprimento.
O que o imperativo categórico determina é o princípio segundo o qual a
máxima (aquilo que orienta, que norteia) da minha ação possa tornar-se lei
universal: que o sujeito possa querer que a máxima da sua ação se torne uma

286
norma universal, isto é, que todos os seres racionais possam adotá-la como norma
para si próprios.
Deste modo, o critério para saber se uma ação é moral passa por perguntar
se a regra particular (a que Kant chama máxima, isto é, o princípio subjetivo da ação),
segundo a qual o sujeito age, pode tornar-se uma lei universal, válida para todos os
seres humanos. É pelo imperativo categórico (formulado pela própria razão) que a
máxima (subjetiva e particular) se vê obrigada a estar de acordo com a lei moral
(objetiva e universal). “Devo, logo posso.”
Exemplo: a lei moral não me diz que é imoral mentir; se quero saber se posso
mentir, devo perguntar se todos podem mentir; se não quero que todos possam mentir,
então também não devo mentir.

MORALIDADE, AUTONOMIA E DIGNIDADE HUMANA

“Ora, a moralidade é a única condição que pode fazer de uma ação racional um
fim em si mesmo. Portanto, a moralidade, e a humanidade, enquanto capaz de
moralidade, são as únicas coisas que têm dignidade.
Não é nem o medo nem a inclinação (interesses pessoais, caprichos,
conveniências,…) mas tão-somente o respeito à lei, que constitui o motivo que pode dar
à ação um valor moral.
A dignidade da humanidade consiste precisamente nesta capacidade de ser
legislador universal, se bem que com a condição de estar ao mesmo tempo submetido a
essa mesma legislação.”
Immanuel Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Edições 70, 2005, Lisboa, p. 48 (adaptado)

Kant relaciona moralidade, autonomia e dignidade humana. A vontade que


escolhe a moralidade torna-se vontade boa e autónoma. O homem torna-se ser
moral, um ser com dignidade, por obedecer à lei que criou para si mesmo. A
liberdade não equivale a poder escolher só o que nos convém, mas sim a fazer a
opção adequada: escolher a racionalidade como motivo do agir.
Somente esta escolha liberta o ser humano de todos os motivos externos à
lei criada e imposta pela razão a si mesma, sendo a matriz ou a questão-chave do
pensamento de Kant a seguinte: o ser humano submete-se às leis que ele próprio cria.
É, por isso, e só enquanto capazes de fazer esta opção, que os seres humanos são
seres especiais, seres com dignidade, isto é, pessoas.

287
A ética kantiana diz-se deontológica, pois faz do dever o princípio absoluto
da moralidade. O critério da moralidade assenta numa dupla exigência: cumprir a
lei moral e, simultaneamente, fazê-lo tomando o dever como motivo e intenção do
agir. Portanto, só é moral a ação que cumpre a lei moral por dever.
Em jeito de conclusão, podemos dizer que:
- a ética kantiana está centrada no conceito do DEVER, razão pela qual
dizemos que é uma ÉTICA DEONTOLÓGICA;
- o DEVER expressa a necessidade de uma ação por respeito pela LEI MORAL;
- a LEI MORAL é racional (tem origem na razão), formal e universal e
formulada num IMPERATIVO CATEGÓRICO;
- um IMPERATIVO CATEGÓRICO é uma NORMA OBJETIVA, UNIVERSAL,
ABSOLUTA e INCONDICIONAL;
- a opção pelo DEVER equivale a escolher a AUTONOMIA ou a LIBERDADE e
a adquirir um estatuto de pessoa;
- o fundamento (o suporte ou a justificação) da moralidade das ações é a
RACIONALIDADE, ou seja, a AUTONOMIA DA VONTADE;
- O CRITÉRIO (princípio ou norma de referência) de moralidade das ações é
que a MÁXIMA que as rege seja UNIVERSALIZÁVEL (comum a toda a humanidade) e
que as ações sejam realizadas por DEVER.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

GRUPO I

1. Como apresenta Kant a formulação da lei moral?

2. Sob que forma se expressa lei moral?

3. Distinga imperativo hipotético de imperativo categórico.

4. Ao afirmar que “a forma da lei moral é um imperativo categórico”, Kant


está a dizer o quê?

5. Que princípio determina o imperativo categórico?

6. Qual o critério para se saber se uma ação é moral?

7. O que é, para Kant, ser livre?

8. Porque é que a ética kantiana é uma ética deontológica?

288
9. Em que exigências assenta o critério da moralidade?

GRUPO II

1. Escolha as opções corretas:

1. 1 Segundo a ética kantiana, uma ação é moralmente boa quando:


a) A vontade escolheu realizá-la por dever.
b) É realizada por solidariedade para com os outros.
c) Está em conformidade com a lei moral.
d) É útil.

1. 2 O fundamento da moralidade, segundo Kant, é:


a) Ser feliz.
b) A obrigação de amar o próximo.
c) O respeito pelos outros seres humanos.
d) A racionalidade humana.

1. 3 A vontade boa é:
a) A vontade que escolhe a felicidade.
b) A vontade humana dotada de livre arbítrio.
c) A vontade que escolhe agir por dever.
d) A vontade que escolhe em função das consequências da ação.

1. 4 A ética kantiana é deontológica porque define como moral:


a) A ação que tem as melhores consequências.
b) A ação cujo motivo e intenção é o dever.
c) A ação que respeita a norma moral.
d) A ação motivada pelo interesse.

RESOLUÇÃO DAS QUESTÕES DE ESCOLHA MÚLTIPLA (pág. 157)

289
GRUPO II

(as opções corretas encontram-se assinaladas a negrito)

1. 1 Segundo a ética kantiana, uma ação é moralmente boa quando:


a) A vontade escolheu realizá-la por dever.
b) É realizada por solidariedade para com os outros.
c) Está em conformidade com a lei moral.
d) É útil.

1. 2 O fundamento da moralidade, segundo Kant, é:


a) Ser feliz.
b) A obrigação de amar o próximo.
c) O respeito pelos outros seres humanos.
d) A racionalidade humana.

1. 3 A vontade boa é:
a) A vontade que escolhe a felicidade.
b) A vontade humana dotada de livre arbítrio.
c) A vontade que escolhe agir por dever.
d) A vontade que escolhe em função das consequências da ação.

1. 4 A ética kantiana é deontológica porque define como moral:


a) A ação que tem as melhores consequências.
b) A ação cujo motivo e intenção é o dever.
c) A ação que respeita a norma moral.
d) A ação motivada pelo interesse.

AS DUAS FÓRMULAS DO IMPERATIVO CATEGÓRICO


(LEI UNIVERSAL E HUMANIDADE)
290
Para definirmos autonomia e heteronomia de forma clara, convém lembrar que
Kant formula o princípio do Imperativo Categórico de dois modos, ou melhor, através
de duas fórmulas:

a) A FÓRMULA DA LEI UNIVERSAL diz: “age de tal modo que possas desejar
que a máxima da tua ação se torne lei universal.” Esta formulação ordena-nos que,
ao deliberarmos (ponderarmos) sobre se devemos praticar uma ação, pensemos na
máxima que orienta essa ação. Isto significa extrair um princípio do tipo “Age do modo
X”, em que X é o tipo de ação sobre o qual estamos a refletir se devemos praticar. O
próximo passo é pensar se desejaríamos que todas as pessoas tivessem para si uma tal
máxima de ação, ou seja, se concordaríamos com uma situação em que todos
considerassem bom agir desse modo uns para com os outros, e, naturalmente, para
connosco, e assim agissem. Se a resposta é positiva, a máxima (o tal princípio de
ação em forma de lei geral, para todos) é universalizável, e a ação que a segue é boa;
se é negativa, a máxima não é universalizável e a ação é imoral.
Considere-se, por exemplo, a ação de roubar porque se deseja algo que não
se pode ter. A máxima que orienta tal ação será algo como: “Rouba, caso desejes
algo que não podes ter.” Tentando universalizar essa máxima, teremos uma situação
em que todos pensam que devem roubar o que não puderem ter (incluindo roubar-
me a mim). Ora, tal situação não é desejável por um ser racional e sensato. Logo, a
máxima não é universalizável (um ladrão quereria que só ele pudesse segui-la e não
todas as pessoas, de contrário, estaria a admitir que também deveria ser roubado, o que
é um contrassenso). Assim, a ação que segue tal máxima (já de si problemática por
corresponder a um imperativo hipotético) não é moralmente correta. Agir de uma forma
imoral é semelhante a fazer batota: é jogar segundo regras que não se pode querer
que os outros sigam.
Os resultados da aplicação do Imperativo Categórico condizem geralmente com
as nossas intuições básicas acerca do que é moralmente bom (mas não sem
exceções, como veremos mais à frente, quando abordarmos as críticas à ética
kantiana). Eis um outro exemplo disso: a máxima “Faz promessas enganadoras para
te livrares de situações incómodas”, aplicando-lhe a Fórmula da Lei Universal,
interrogamo-nos se poderíamos querer que todos a seguissem. Ora, parece que nunca
poderíamos querer tal coisa. Se as pessoas começassem a fazer promessas
enganadoras sem a intenção de as cumprirem sempre que lhes apetecesse, depressa
deixariam de confiar umas nas outras. Ninguém acreditaria na palavra de ninguém e a
291
própria prática de fazer promessas desapareceria. Portanto, não podemos querer a
universalização dessa máxima e temos o dever de só fazer promessas se tencionarmos
cumpri-las.

b) A Fórmula da Humanidade diz: “trata sempre as pessoas como fins em si,


e nunca como meros meios”.
Esta formulação alerta-nos para o facto de se tratarmos uma pessoa como um
mero meio e a usarmos como um mero objeto ou coisa que tem valor para nós
apenas na medida em que nos permite alcançar através dela aquilo que
verdadeiramente queremos, é um ato imoral. Um exemplo típico de tratar alguém
como um meio é fazermo-nos “amigos” de alguém só pelas vantagens que essa
“amizade” nos possa trazer.
Já tratar alguém como um fim em si mesmo e relacionar-se com ele
reconhecendo que se trata de uma pessoa livre, com ideias, sentimentos,
emoções, desejos e projetos próprios, é um ato pleno de moralidade. É tomar essa
relação como “terminando” na pessoa (ela é um fim), e não como “passando” por ela
com o intuito de chegar a algo (como se ela fosse apenas um meio descartável para
chegar a um determinado fim). A amizade genuína e autêntica, que pensa na
individualidade e na liberdade das pessoas envolvidas, respeitando-as como seres
humanos em toda a sua plenitude, são exemplos de tratamentos de pessoas como
fins.
Kant pensa que este princípio leva às mesmas conclusões práticas que a
Fórmula da Lei Universal. Lembremos o exemplo da máxima: “Faz promessas
enganadoras para te livrares de situações incómodas”, que vimos já não ser
universalizável. Aquele que faz uma promessa enganadora está também a tratar
uma pessoa como um mero meio. Está a usá-la como se fosse um instrumento,
enganando-a de modo a atingir os seus objetivos. Por isso, a Fórmula da
Humanidade também conduz ao dever de não enganar com promessas que não
pretendemos cumprir.

AUTONOMIA E HETERONOMIA (DA VONTADE)

O Imperativo Categórico é a lei moral fundamental. Mas quem será o


legislador dessa lei? Será Deus, por exemplo? Kant defende que não. A lei moral não
nos é imposta de fora, por uma autoridade exterior que constranja (force, obrigue) a
nossa vontade. Na verdade, os legisladores da lei moral somos nós mesmos,

292
agentes racionais. O Imperativo Categórico é, assim, uma lei que deriva da nossa
própria vontade. Kant exprime esta ideia dizendo que a lei moral resulta da nossa
autonomia, isto é, da nossa capacidade de nos determinarmos a nós mesmos.
A autonomia (auto = por si mesmo) opõe-se à heteronomia (hétero = por outro).
Quando agimos moralmente, não estamos a ser obrigados, estamos a agir
autonomamente, isto é, em função de uma lei que damos a nós mesmos. A
verdadeira liberdade consiste nisso. A autonomia da vontade é a racionalidade de
cada um de nós, refletindo sobre ações e intenções morais e determinando como
devemos agir. Se, pelo contrário, a vontade é guiada pelas leis ou mandamentos
de outros, seja por imposição de um poder, por preguiça ou desinteresse do
próprio, temos a heteronomia da vontade, que se afasta da vontade autêntica, da
vontade propriamente dita, pois guiarmo-nos por uma vontade heterónoma
(exterior a nós próprios) é não ter verdadeiramente vontade própria.
Assim, quem concebe a lei moral como heterónoma comete o erro, segundo
Kant, de julgar que os deveres morais são imposições exteriores à nossa própria
racionalidade.
Para concluir, consideremos, por exemplo, o dever de não enganar os outros.
Não temos este dever porque Deus ou a sociedade determinem que é errado enganar
os outros. O fundamento deste dever, e de todas as nossas outras obrigações, reside
no Imperativo Categórico, que é um princípio que vamos buscar à nossa própria
razão (que é autónoma).

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Distinga Fórmula da Lei Universal da Fórmula da Humanidade.

1.1 Apresente um exemplo para cada uma destas Fórmulas do Imperativo


Categórico.

2. Distinga Autonomia de Heteronomia (da vontade).

293
CRÍTICAS À ÉTICA DE KANT

A ÉTICA KANTIANA NÃO RESOLVE CONFLITOS ENTRE DEVERES


Entre as críticas que podem ser feitas à filosofia da ação moral de Kant (ou
teoria ética kantiana), uma das mais importantes é a que observa que ela não nos
permite decidir em caso de o dever, na figura do Imperativo Categórico, nos obrigar
tanto a uma ação quanto a outra e incompatível com ela (senão mesmo oposta). Por
exemplo, suponha-se que vivemos numa ditadura feroz, e que abrigamos um fugitivo
político prestes a ser apanhado e torturado até à morte, e que a polícia política do
regime nos bate à porta e pergunta-nos se abrigamos o fugitivo. Diz-nos a teoria
kantiana que, dado que seria desejável que todos agíssemos segundo a máxima
“Protege os inocentes da tortura”, esta máxima será moralmente boa, pelo que
devemos obedecer-lhe. O problema é que a máxima “Diz sempre a verdade” também
o é e, por isso, o Imperativo Categórico diz-nos igualmente que devemos entregar o
fugitivo.
Uma solução conveniente seria afirmar que pelo menos um dos deveres em
conflito devia ser relativizado (posto de lado para dar lugar ao outro) em função das
situações ou dos graus de gravidade. O mais evidente é pensar que a máxima sobre
dizer sempre a verdade deve ser entendida como “Diz sempre a verdade se...” ou “…
a menos que…”. No entanto, isso parece ser impedido pelo Imperativo Categórico
(que não dá margem para escolhas, mesmo que seja em favor de um bem, maior, sobre
outro bem, menor, ou seja, o Imperativo Categórico não se compadece com fins ou
situações particulares – se é um dever não mentir, é absolutamente errado mentir
seja em que circunstâncias for (e “ponto final”).
Na verdade, esta faceta absoluta, rígida, categórica da ética kantiana parece
também colidir com o entendimento comum da moral, que deve ter em atenção as
particularidades de cada caso e de cada pessoa envolvida, e não ditar regras
apenas em abstrato (como quem corta a direito, cegamente, sem olhar a nada nem a
ninguém).

A ÉTICA KANTIANA DESCULPA A NEGLIGÊNCIA BEM-INTENCIONADA


Outra objeção critica o facto da ética kantiana ignorar as consequências das
ações. Isto torna-se problemático quando consideramos ações cujo agente, apesar de
ter uma intenção boa, a do cumprimento do dever, é, no entanto, tão descuidado que
origina consequências desastrosas devidas à sua incompetência e ignorância. Por
294
exemplo, um empregado de um aeroporto limpa uma sala de controlo, e, numa situação
que ele interpreta como sendo de emergência e em que o controlador aéreo está
ocupado, tenta salvar o avião dando nos transmissores ordens para a aterragem, e
causando um enorme desastre com inúmeras vítimas. Se bem que a intenção nos
pareça boa, e seja tomada como uma atenuante forte para o mal que causou, não
costumamos ignorar a falta de sensatez e prevenção em casos de tal gravidade, que
são mesmo considerados pelo Direito crimes por negligência. Segundo esta crítica, as
consequências devem ter um papel nos nossos juízos éticos, ao contrário do que
defende Kant, cujo critério de moralidade da ação se centra nos princípios e nas
intenções, relevando (subestimando, desvalorizando) as consequências da mesma.

A ÉTICA KANTIANA IGNORA O PAPEL DAS EMOÇÕES NA MORALIDADE


Esta objeção à ética Kantiana nota que ela considera moralmente irrelevantes
os aspetos emocionais das nossas ações, como a piedade ou a generosidade.
Mesmo quando somos motivados por essas emoções (piedade, generosidade, etc.) a
praticar o bem, isso, segundo Kant, não é correto, pois, de acordo com a sua linha de
pensamento, devemos praticá-lo apenas por dever, e não porque uma situação ou
pessoa nos despertam tais emoções. Mas para alguns, a piedade e a generosidade
são, precisamente, exemplos de sentimentos profundamente morais e que podem
desencadear boas ações.
Contudo, Kant poderia facilmente replicar (responder, contra-atacar), dizendo que
os sentimentos não são critérios fiáveis de moralidade, nem podem constituir base
para uma teoria ética universal, pois variam ao sabor das disposições, inclinações e
interesses pessoais, psicológicos, sociais, culturais, etc., além de que nos podem levar a
ações profundamente más e injustas. Daí que, segundo Kant, só a razão pode ter o
papel de juiz moral.

A ÉTICA KANTIANA DESCONSIDERA OS SERES NÃO RACIONAIS

A Fórmula da Humanidade, de Kant, exige respeito pelas pessoas,


concebidas como agentes racionais e morais, dotados de autonomia de
pensamento. Ora, nestes termos, parece que muitos seres humanos não são pessoas.
Por exemplo, as crianças com dois anos de idade, os deficientes mentais profundos e os
adultos que padecem de demência grave não têm a capacidade de fazer escolhas
racionais e autónomas, e, no entanto, é evidente que todos eles devem ser tratados com

295
respeito e não como meros meios. É verdade que, como não são agentes morais, não
têm deveres, mas nós somos e temos deveres para com eles. A Fórmula da
Humanidade, defendida por Kant, parece, pois, incapaz de justificar esses deveres,
dado que ela diz apenas como devemos tratar as pessoas enquanto agentes
racionais, morais e com autonomia, deixando de fora aqueles seres humanos em
relação aos quais parece que não temos deveres (o dever de cuidar, o dever de
respeitar, etc.), como se eles não merecessem qualquer importância nem
possuíssem quaisquer direitos…

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÃO:

1. Apresente, sucintamente, as críticas à ética kantiana, apresentadas no texto


acima dado.

296
A ÉTICA UTILITARISTA DE STUART MILL
(UMA TEORIA CONSEQUENCIALISTA)

Ao contrário das teorias éticas deontológicas, como a kantiana, as teorias éticas


consequencialistas, como o próprio nome indica, consideram que são as
consequências (resultados) da ação que determinam o carácter ou valor moral
dessa mesma ação.
Um dos exemplos concretos das teorias éticas consequencialistas é o
utilitarismo.
Embora as primeiras formas de utilitarismo tenham surgido na Antiguidade, a
teoria ética do utilitarismo moderno data dos finais do século XVIII. Fundado por Jeremy
Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill (1806-1873), ambos ingleses, o primeiro
filósofo e jurista e o segundo filósofo e economista, foi um movimento teórico com
grande influência prática. Bentham chegou mesmo a afirmar que o utilitarismo visava a
reforma liberal e democrática da estrutura política e dos costumes.
Vejamos as ideias centrais desta teoria:

O PRINCÍPIO DA UTILIDADE OU DA MAIOR FELICIDADE

O utilitarismo é uma teoria ética consequencialista porque faz depender o


valor de uma ação das suas consequências, definindo a ação boa como a que tem
as melhores consequências para o maior número de pessoas. De acordo com esta
perspetiva, a felicidade ou bem-estar é a única coisa intrinsecamente valiosa (que
vale por si mesma e mais do que tudo o resto). Mais precisamente, aquilo que importa
não é a felicidade do próprio agente, mas a felicidade geral. Na escolha entre a
própria felicidade e a felicidade dos outros, declara Stuart Mill, o utilitarismo exige que
se seja tão imparcial como um espectador desinteressado. Além disso, um utilitarista
não pensa que a distribuição do bem-estar por cada um, individualmente
considerado, seja intrinsecamente importante, ou seja, defende a perspetiva do
bem-estar total.
Stuart Mill apresenta o princípio central da sua teoria ética, o PRINCÍPIO DA
MAIOR FELICIDADE, também conhecido como Princípio da Utilidade, do seguinte
modo:
- Um ato é moralmente correto ou permissível apenas no caso de não haver
um ato alternativo que resulte numa maior felicidade geral.
Diz Stuart Mill:

297
“A crença que aceita a utilidade ou o princípio da maior felicidade como
fundamento da moral sustenta que as ações são justas na proporção com que tendem a
promover a felicidade, e injustas enquanto tendem a produzir o contrário da felicidade.
Entende-se por felicidade o prazer e a ausência de dor; por infelicidade a dor e a
ausência do prazer. O prazer e a ausência de dor são as únicas coisas desejáveis como
fins; e todas as coisas desejáveis são-no pelo prazer inerente a elas mesmas ou como
meios para a promoção do prazer e a prevenção da dor.”

John Stuart Mill, O Utilitarismo, Areal Editores, 2005, Porto, p. 47 (adaptado)

Nesta passagem da sua obra, O Utilitarismo, Stuart Mill apresenta o princípio


moral fundamental adotado pelo utilitarismo e, simultaneamente, a finalidade última
(resultado final, conclusão) que todos os seres humanos pretendem alcançar.
Todos os seres humanos pretendem ser felizes, isto é, ter mais prazer do
que dor, por isso é obrigação de todos os elementos da comunidade agir para
maximizar a felicidade do maior número de pessoas possível. É este o princípio
moral do utilitarismo, designado por princípio da utilidade ou da maior felicidade,
e que pode ser enunciado do seguinte modo:
“Age sempre de modo a produzir a maior felicidade para o maior número de
pessoas.”
Assim, as ações são boas na medida em que promovem a maior felicidade
para o maior número de pessoas.

O utilitarismo, nas suas linhas gerais, é:

- Uma conceção teleológica (palavra de origem grega “telos”, que quer dizer fim
último, resultado final) da ética, pois concebe um fim último e define o bem em
função desse fim;
- Uma teoria eudemonista (teoria moral fundada na ideia da felicidade concebida
como bem supremo), porque concebe a felicidade como o objetivo da vida humana;
- Uma teoria hedonista, pois identifica a felicidade como um estado de bem-
estar ou de prazer;
- Uma teoria consequencialista, porque as consequências da ação (a
utilidade) são o critério de moralidade, isto é, o padrão usado para saber se a ação é
moralmente boa ou má.

298
O CONCEITO DE FELICIDADE
(A DIFERENÇA ENTRE QUALIDADE E QUANTIDADE)

Uma das dificuldades do utilitarismo resulta de o conceito de felicidade ser:

- Demasiado abrangente (pois pode designar experiências tão diferentes como a


contemplação de um quadro, assistir a um jogo de futebol ou ouvir uma música);
- Difícil de quantificar (como medir com objetividade estados afetivos que só o
próprio sujeito sente?).
A teoria de Bentham propunha um cálculo em termos quantitativos: medir a
intensidade e a duração e somar os resultados para calcular se a ação produziria mais
felicidade ou mais sofrimento.
Stuart Mill, respondendo às objeções dos críticos, destaca as diferenças
qualitativas, e não quantitativas, entre os prazeres:

“Os seres humanos têm faculdades mais elevadas do que os apetites/instintos


animais e, uma vez que se tenham tornado conscientes delas, não consideram como
felicidade nada que não inclua a sua satisfação. Um ser de faculdades mais elevadas
necessita de mais para ser feliz. É melhor ser um homem insatisfeito do que um
porco satisfeito; é melhor ser Sócrates insatisfeito do que um louco satisfeito. Por
debilidade de carácter, os Homens decidem-se muitas vezes pelo bem mais próximo,
ainda que sabendo que é menos valioso; e isto tanto quando a escolha se faz entre dois
prazeres corporais, como quando se faz entre o corporal e o intelectual. Procuram a
gratificação dos sentidos que prejudica a saúde, ainda que sabendo perfeitamente que a
saúde é um bem maior.”

John Stuart Mill, O Utilitarismo, Areal Editores, 2005, Porto, pp. 47 – 49 (adaptado)

Stuart Mill defende que:

- Inteligência, instrução, conhecimento, sentimentos, consciência são


capacidades superiores dos seres humanos;

- As capacidades superiores são mais importantes do que os instintos;

- Satisfazer os instintos é próprio dos animais;

- Os seres humanos são mais exigentes e são poucos os que se sentem


felizes só com o prazer próprio dos animais;

299
- Somente a satisfação dos prazeres intelectuais e espirituais proporciona
felicidade aos seres humanos.

Baseado nestas premissas, Mill conclui que os prazeres espirituais são mais
valiosos do que os prazeres sensíveis, de tal modo que muito poucas pessoas
consentiriam que as convertessem em alguns dos animais inferiores em troca de um
gozo total de todos os prazeres bestiais (animais).
O ser humano não concebe a felicidade em termos puramente físicos e é de
tal modo exigente que nunca se sente completamente satisfeito. Porém, é preferível
esta insatisfação do que bastar-se com uma satisfação puramente física.

O PRINCÍPIO DA IMPARCIALIDADE

Stuart Mill, em resposta aos críticos, salienta a exigência de imparcialidade do


ideal utilitarista:
“Devo advertir uma vez mais que os críticos do utilitarismo não lhe fazem a justiça
de reconhecer que a felicidade em que se cifra a conceção utilitarista de uma conduta
justa não é a própria felicidade do que age, mas a de todos. Porque o utilitarismo
exige a cada um que, entre a sua própria felicidade e a dos outros, seja um espectador
tão estritamente artificial como desinteressado e benevolente.”

John Stuart Mill, O Utilitarismo, Areal Editores, 2005, Porto, p. 55 (adaptado)

No texto, o autor afirma:

- Que o utilitarismo não visa a felicidade do agente/indivíduo (não se centra


no prazer ou no bem-estar de quem age);

- A exigência de uma ponderação imparcial, isto é, que se dê igual


importância aos seus interesses e aos de todos os outros que serão afetados pela
sua ação;

- A dimensão da reciprocidade (fazer aos outros o que queremos que nos


façam a nós).

Como se pode constatar, o projeto ético apresentado pelo utilitarismo é


progressista e reformista, pois a ação boa é a que promove não a felicidade do
indivíduo, mas do maior número possível de pessoas.
Podemos considerar a teoria ética preconizada pelo utilitarismo como uma forma
de altruísmo ético (porque o sujeito não pensa em si mas em todos) com preocupações

300
reformistas de carácter social e político, visando tornar os seres humanos mais
solidários e empenhados na construção de uma sociedade mais feliz.

HEDONISMO (A FELICIDADE CONSISTE NO PRAZER E AUSÊNCIA DE DOR)


QUALITATIVO

Sobre a natureza da felicidade, Mill defende a teoria do hedonismo: a


felicidade consiste no prazer e ausência de dor. Mas, ao mesmo tempo, propõe uma
forma original desta teoria, afirmando que nem todos os prazeres têm o mesmo valor,
sendo alguns melhores do que outros, tal como as experiências de dor, uma vez
que algumas são piores do que outras. Mas porquê?
Jeremy Bentham respondeu a esta questão sugerindo que, como, aliás, já
vimos, o valor intrínseco de um prazer depende apenas da sua duração e
intensidade (o mesmo acontecendo com as experiências de dor, visto que quanto mais
prolongadas e intensas forem, piores serão). Como a duração e a intensidade são, em
princípio, fatores quantificáveis, a perspetiva de Bentham tornou-se conhecida por
HEDONISMO QUANTITATIVO.
De acordo com esta posição, a vida mais feliz será simplesmente aquela que
incluir uma maior QUANTIDADE de prazer, descontada a dor. Por exemplo, o prazer
da embriaguez (estado de alienação produzida pelo efeito do álcool) não será
intrinsecamente melhor nem pior do que o prazer de ouvir música. Contudo, o primeiro
prazer (embriaguez) deverá ser evitado, pois conduzirá à doença e assim a experiências
dolorosas. Já o prazer de ouvir música, pelo contrário, é fecundo e produtivo: ao
apurarmos a nossa sensibilidade musical, teremos ainda mais satisfação.
Stuart Mill, opondo-se a Bentham (apesar de partilhar muitas das ideias do
consequencialismo com este), argumenta que um prazer como ouvir música não é
melhor que o prazer da embriaguez simplesmente por ser fecundo, mas sim
porque tem mais valor intrínseco e é melhor devido à sua própria natureza –
contrariamente à embriaguez, é um prazer de QUALIDADE superior. A qualidade
dos prazeres, aliás, é muito mais importante do que a sua quantidade.
Chegamos, assim, através destas ideias de Mill, a um HEDONISMO
QUALITATIVO, uma vez que o valor intrínseco de um prazer depende sobretudo da
sua QUALIDADE.

301
Uma vida feliz será preenchida por prazeres de qualidade superior, já que são
aqueles que resultam do exercício das capacidades intelectuais e emocionais típicas dos
seres humanos.
Os prazeres da apreciação da beleza e da busca de conhecimento são
superiores.
Os prazeres inferiores, como os de comer e dormir, por exemplo, são aqueles
que também são acessíveis a muitos outros animais.
Sabemos que os prazeres intelectuais são superiores aos prazeres
sensoriais (ou físicos) porque, segundo Mill, quem experimentou ambos os tipos de
prazer (sendo, por isso, um juiz competente na matéria) prefere os primeiros aos
segundos.
Em resumo:

PRAZERES SUPERIORES PRAZERES INFERIORES

Os prazeres espirituais ligados a Os prazeres sensoriais ligados às


necessidades intelectuais, sociais, morais, necessidades físicas, como beber, comer,
estéticas, entre outras. etc.
São: São:
- Mais valiosos; - Menos valiosos;
- Mais importantes do que os instintos; - Menos importantes do que os espirituais;
- A felicidade exige satisfação dos prazeres - A felicidade exige satisfação dos prazeres
intelectuais e espirituais. instintivos e sensitivos.

A PROVA DO UTILITARISMO

Para justificar o Princípio da Maior Felicidade, Stuart Mill sugere que devemos
apresentar uma prova da seguinte proposição: “A felicidade em geral é o único fim
último que é desejável.” Provar que isto é verdade exige, portanto, justificar que não
existem outros fins últimos para além do da felicidade geral.
Segundo Stuart Mill, devemos atribuir à virtude um valor intrínseco (que vale
por si mesma) e não um valor meramente instrumental (como se de um mero meio se
tratasse), ou seja, desejam a virtude e desejam ter um carácter virtuoso como um fim
em si mesmo (coincidente com a boa vontade, defendida por Kant) e não apenas
como um meio para a felicidade. Deste modo, admite Mill, a virtude é, seguramente,

302
um fim último da ação. No entanto, não é um fim último separado da felicidade –
uma vida feliz envolve vários elementos, sendo um deles o desenvolvimento de
um carácter virtuoso. Assim, o facto de a virtude ser desejada por si mesma, como
um fim último, não quer dizer que esta seja um fim último independente da
felicidade – virtude é sinónima de felicidade e não um meio (separado dela) para a
alcançar. Podemos, então, dizer que, de acordo com Mill, a felicidade é
intrinsecamente valiosa, ou seja, vale em si mesma e por si mesma.

PRINCÍPIOS SECUNDÁRIOS

Será que um utilitarista tem de fazer todas as escolhas a pensar


constantemente no Princípio da Maior Felicidade, em aumentar a felicidade geral,
sem se guiar por outros princípios? Seria muito difícil, senão mesmo impossível,
alguém viver assim… Por um lado, não conseguimos estar sempre motivados para
promover imparcialmente o bem-estar, já que temos uma tendência natural muito forte
para dar mais importância à nossa própria felicidade e à dos que nos são mais próximos
do que às restantes pessoas; por outro lado, não conseguimos prever muitas das
consequências dos nossos atos, já que a nossa capacidade para saber o que, em cada
caso particular, resultaria efetivamente na maior felicidade geral é muito limitada.
Tendo consciência destas limitações/dificuldades, Mill argumenta que um
utilitarista deverá guiar-se por princípios, a que chama princípios secundários, tais
como:

- Devemos respeitar os compromissos que assumimos.

- Não devemos maltratar os inocentes.

- Devemos compensar as pessoas em função do mérito.

- Não devemos tirar aos outros aquilo que lhes pertence.

Estes princípios (princípios secundários) são bastante fáceis de aplicar (pelo


menos em teoria), e a experiência mostra que conduzem, geralmente, a boas
consequências. Contribuiremos mais para a felicidade geral se seguirmos estes
princípios.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

303
1. Leia a seguinte afirmação e responda às questões que se lhe seguem:

“O prazer e a ausência de dor são as únicas coisas desejáveis como fins.”

John Stuart Mill, O Utilitarismo, Areal Editores, 2005, Porto, p. 47.

1. 1 Segundo Stuart Mill, de que depende a moralidade das ações (qual o


critério de moralidade)?
1. 2 Identifique e caraterize o princípio moral fundamental adotado pelo
utilitarismo.

1. 3 Identifique e enuncie as dificuldades do utilitarismo apresentadas no


texto.

2. Selecione as opções corretas.

2.1 A teoria de Stuart Mill esclarece que o utilitarismo:


(A) Não é uma teoria racional.
(B) É uma forma de egoísmo.
(C) É um altruísmo ético.
(D) É um projeto ético que promove a felicidade do indivíduo.

2.2 O princípio da imparcialidade defende que:


(A) O sujeito moral seja imparcial na consideração dos interesses do processo de
deliberação.
(B) O sujeito moral esqueça completamente os seus interesses.
(C) A pessoa faça a opção em função dos seus interesses.
(D) A pessoa faça a opção apenas em função dos interesses dos outros.

2.3 Segundo o princípio da reciprocidade, devemos:


(A) Fazer aos outros o que gostaríamos que nos fizessem a nós.
(B) Não agir em função dos outros.
(C) Fazer bem a quem nos faz mal.
(D) Fazer aos outros o que não gostaríamos que nos fizessem a nós.

RESOLUÇÃO DAS QUESTÕES DE ESCOLHA MÚLTIPLA:

304
As opções corretas encontram-se assinaladas a negrito:

2. Selecione as opções corretas.


2. 1 A teoria de Stuart Mill esclarece que o utilitarismo:
(A) Não é uma teoria racional.
(B) É uma forma de egoísmo.
(C) É um altruísmo ético.
(D) É um projeto ético que promove a felicidade do indivíduo.

2. 2 O princípio da imparcialidade defende que:


(A) O sujeito moral seja imparcial na consideração dos interesses do
processo de deliberação.
(B) O sujeito moral esqueça completamente os seus interesses.
(C) A pessoa faça a opção em função dos seus interesses.
(D) A pessoa faça a opção apenas em função dos interesses dos outros.

2. 3 Segundo o princípio da reciprocidade, devemos:


(A) Fazer aos outros o que gostaríamos que nos fizessem a nós.
(B) Não agir em função dos outros.
(C) Fazer bem a quem nos faz mal.
(D) Fazer aos outros o que não gostaríamos que nos fizessem a nós.

CRÍTICAS AO UTILITARISMO DE STUART MILL


305
Embora o utilitarismo de Mill defenda uma tese bastante intuitiva e fácil de aceitar
acerca do caráter moral das ações, tem algumas ideias que entram em conflito com o
nosso sentido moral mais comum.
As críticas ou objeções que se seguem são exemplo dos problemas que se
colocaram à ética utilitarista que resultam do facto de a sua teoria de base ser
consequencialista, em que, como o próprio nome indica, apenas as consequências
contam para a moralidade da ação:

1. Objeção/crítica à ideia de que existe sempre uma correspondência entre a


intenção de uma ação e as suas consequências (exemplo do criminoso azarento e do
bem-intencionado impulsivo/herói por acaso):
Se aceitarmos a teoria ética utilitarista, teremos de aceitar que alguém
claramente mal-intencionado possa ter agido corretamente, mas sem querer, ao ter o
azar de uma ação sua lhe correr mal (uma vez que a intenção ou o objetivo da sua
ação seria precisamente o contrário daquilo que produziu) e provocar
consequências benéficas que não foram por si desejadas. Isto acontece, por exemplo,
se um assassino contratado para matar uma pessoa boa falha o tiro e com isso fere um
terrorista que também naquele momento se preparava para matar dezenas de pessoas
inocentes através da detonação de uma bomba.
Inversamente, temos o caso de alguém bem-intencionado que, ao tentar ajudar
mais de duzentas pessoas que ficaram reféns de um grupo de terroristas num comboio,
que estes colocaram em andamento em modo de piloto automático a uma velocidade tal
que o descarrilamento inevitavelmente iria acontecer tragicamente a qualquer momento,
resolve impulsivamente entrar na cabine de comandos deste mesmo comboio para fazer
alguma coisa no sentido de as salvar, mas que, por azar seu e contra o previsto, ao
puxar a alavanca para acionar a travagem manual (para fazer parar o comboio), fez com
que este explodisse violentamente, pois os terroristas tinham armadilhado todo o
sistema de condução manual daquela composição.
Uma resposta típica do utilitarista é fazer notar que há uma distinção entre
afirmar que alguém é bom ou mau e dizer o mesmo de uma ação sua. Assim, na
ótica do utilitarista, o assassino fez algo de bom em si, enquanto ação, mas não foi ele
próprio bom, sucedendo o inverso no caso da pessoa bem-intencionada que acabou por
fazer algo de mal em si, enquanto ação, mas não foi ele próprio mau. Ora, esta resposta
(justificação), por parte do utilitarista, não está, contudo, isenta de problemas, dada a

306
identidade (correspondência) que este defende que existe entre bem e o que quer
que produza prazer e evite sofrimento que o utilitarismo defende.
Isto significa que nem sempre a moralidade de uma ação se pode verificar
pelas suas consequências (ou resultados práticos), já que a intenção pode ser
(moralmente) boa e as consequências (práticas) más, bem como o inverso.

2. Objeção/crítica à isenção (desculpa) dos males sem prejuízo:


Segundo o utilitarismo, se uma ação não tem más consequências não deverá
ser considerada má. Isso está, contudo, às avessas (ao contrário) do que pensamos
sobre alguns dos nossos deveres, nomeadamente, os deveres de honestidade e de
honrarmos os nossos compromissos. Mesmo que as pessoas que são visadas pelo
nosso eventual não cumprimento desses deveres não possam, por várias razões, sentir
os efeitos – consequências – desse incumprimento, não se sentindo, portanto,
prejudicadas por isso, tal não nos dispensa do dever, e, logo, de termos feito algo de
errado ao não o cumprir. Como exemplos temos o de uma calúnia que não prejudique
efetivamente (factualmente) o visado, ou o de uma promessa não cumprida para com
alguém que se esqueceu dela e que não necessita dos benefícios do seu cumprimento.

3. Objeção/crítica aos benefícios de sacrificar:


Segundo o utilitarismo, seria moralmente correto provocar-se muito sofrimento a
uma pessoa se daí resultasse poupar-se mais do que uma a igual sofrimento, pois o
cálculo da utilidade de tal ação teria saldo positivo. A ilustração (exemplo) típica seria o
caso de aceitarmos matar alguém numa situação em que, se não o fizéssemos,
morreriam muitos. No entanto, muitas pessoas pensam que tal poupança nunca é boa,
ainda que seja um mal menor (morrer uma pessoa em vez de muitas), pois, as pessoas
não são coisas que nós possamos contabilizar, quantificar e descartar como se
fossem objetos (cada pessoa é uma pessoa e não podemos colocar a questão nestes
termos: o que vale mais? Uma pessoa ou dez pessoas? Trata-se de uma questão que
trata os seres humanos, não de forma qualitativa, mas de forma quantitativa, o que é um
erro.
Outros, seguindo uma ética de tipo kantiano, por exemplo, diriam que,
especialmente no caso de grandes sofrimentos, não temos o direito de sacrificar alguém,
usando-o como mero meio, para benefício de outros (até porque não quereríamos que
fizessem isso connosco) e que, portanto, isso é sempre um mal.

307
4. Objeção/crítica à identificação forçada (artificial) entre felicidade e prazer
(“máquina do prazer”):

Outro caso problemático para o utilitarismo deriva da identificação entre


felicidade e prazer (seja superior ou inferior). Dada essa identificação, teríamos de
concordar que alguém a quem possibilitam ter continuamente experiências de prazer
somente artificialmente criadas, está a ter uma vida feliz e boa. Ora, para muitos de nós,
isso parece ser uma vida que não vale realmente a pena ser vivida, e, sobretudo, parece
ser uma vida claramente pior do que uma vida feliz no sentido vulgar (habitual) do termo:
uma vida recheada de momentos de prazer, ainda que temperados por outros
momentos de algum sofrimento inerente à condição humana, sem perder o contacto
com a realidade que todos valorizamos. Isso é o caso especialmente no que toca ao
sabor que os nossos triunfos têm por serem fruto do nosso esforço e qualidades, e não
produtos ilusórios de uma realidade aparente, superficial (quase virtual, poderíamos
afirmar). É, portanto, necessário analisar com profundidade a noção que temos de
felicidade (autêntica) e desvendar qual a relação que existe exatamente entre esta e
o prazer, para perceber se existe, realmente, uma identidade entre uma e outro.

5. Objeção/crítica aos problemas do cálculo da utilidade:

Esta objeção aponta a dificuldade de realizar o cálculo das consequências


favoráveis e desfavoráveis de uma ação que, segundo o utilitarismo, é necessário
fazer para determinar se ela é moralmente correta ou não. Os problemas residem
essencialmente em dois aspetos:
a) Por um lado, fazer um tal cálculo pressupõe que todos os prazeres e dores de
tipos imensamente variáveis, e sentidos de modos igualmente diversos por pessoas
diversas, podem ser reduzidos a alguma escala puramente numérica, para que seja
possível verificar se o saldo é positivo ou negativo, ou se se anulam uns aos outros.
Mas isso é altamente improvável – pense-se, por exemplo, na comparação entre o
prazer que têm cem pessoas em comer o seu prato favorito e o sofrimento psíquico de
um escritor preso a quem se proíbe o acesso à leitura.

b) Por outro lado, mesmo que o problema da qualidade e da quantidade dos


prazeres e dores fosse ultrapassado, o cálculo também pressupõe que podemos saber
quais serão as consequências prováveis das ações. Ora, a prática mostra que há muitos
casos em que essas consequências se estendem muito para lá do que prevíamos. Isto é
particularmente agudo no caso das consequências a longo prazo, as quais, muitas

308
vezes não são, de modo algum, antecipáveis, mas que são tanto consequências como
as de curto e médio prazo, pelo que temos de as levar em conta segundo a teoria
utilitarista.

6. Objeções/críticas à prova do utilitarismo:

Não é fácil interpretar a prova do utilitarismo que Mill propõe, mas aceitemos
que o início do seu raciocínio se resume do seguinte modo:
Partindo da premissa factual verdadeira:
(2) Cada pessoa deseja a sua própria felicidade.
Segue-se que:
(3) A felicidade de cada pessoa é desejável ou boa para ela mesma.
E desta (2) segue-se que:
(4) A felicidade geral é desejável ou boa para o conjunto das pessoas.

Uma das críticas põe em causa a transição de (1) – Cada pessoa deseja a sua
própria felicidade, para (2) – A felicidade de cada pessoa é desejável ou boa para ela
mesma. “Desejável” não significa apenas “aquilo que pode ser desejado”, mas algo
como “aquilo que merece ou deve ser desejado”. Ora, do facto de alguém desejar uma
coisa segue-se que esta pode ser desejada, mas não se segue que esta mereça ou
deva ser desejada.
Assim, é precipitado concluir que a felicidade é desejável apenas com base
em (1), Cada pessoa deseja a sua própria felicidade.
Outra crítica incide na transição de (2), A felicidade de cada pessoa é desejável
ou boa para ela mesma, para (3), A felicidade geral é desejável ou boa para o conjunto
das pessoas, o que parece que estamos perante um caso da falácia da composição
(concluir que aquilo que é verdadeiro de cada uma das partes de algo é verdadeiro da
totalidade desse algo, como acontece, por exemplo, com esta afirmação: “Cada um dos
átomos que compõem esta mesa é invisível. Logo, esta mesa – no seu todo – é
invisível”).
Mill pode ter cometido um erro semelhante: mesmo que a felicidade de cada
pessoa seja desejável para ela mesma, daí não se segue que a felicidade geral seja
desejável para todas as pessoas.

7. Objeções/críticas a exigências excessivas:

309
Uma crítica frequente diz-nos que o utilitarismo é absurdamente exigente, e
que resume toda a ética à beneficência, à nossa obrigação de fazer tudo o que
estiver ao nosso alcance para promover a felicidade geral. Cumprir esta obrigação
implicaria dedicar quase todo o nosso tempo e recursos a ajudar os mais necessitados.
Teremos mesmo a obrigação de viver quase exclusivamente em função dos
interesses dos outros? É perfeitamente aceitável dedicarmo-nos a outras atividades –
viajar com os amigos, ler jornais, estudar história egípcia, etc. – que não contribuem
para o maior bem-estar geral.

PROPOSTA DE ATIVIDADE/QUESTÃO:

1. Identifique e explicite, resumidamente, cada uma das objeções/críticas


dirigidas ao utilitarismo de Stuart Mill.

310
ANÁLISE COMPARATIVA DAS DUAS TEORIAS ÉTICAS
A DEONTOLÓGICA (IMMANUEL KANT) E A UTILITARISTA (STUART MILL)

A teoria deontológica de Kant e a teoria utilitarista de Stuart Mill, são teorias


éticas, por isso, refletem ambas sobre o modo como devemos viver e propõem
princípios e ideais em função dos quais o ser humano deve agir.
Porém, encontramos respostas diferentes quando perguntamos:
– Quais são os princípios que nos propõem?
– Qual o critério de moralidade das ações?
– O que define o ato moral?
– Por que razão devemos escolher a moralidade, fazer o bem e evitar o mal?

Podemos assim considerar que a ética deontológica de Immanuel Kant e o


consequencialismo utilitarista de Stuart Mill, apresentam:
– Diferentes princípios morais;
– Critérios diferentes para definir a ação moral;
– Diferentes modos de justificar a moralidade.

A) Diferentes princípios morais

TEORIA ÉTICA DEONTOLÓGICA TEORIA ÉTICA UTILITARISTA


(IMMANUEL KANT) (STUART MILL)

- A lei moral é o imperativo categórico da - O princípio moral do utilitarismo é o princípio


moralidade: “age segundo uma máxima tal da utilidade ou da maior felicidade:
que possas ao mesmo tempo querer que “Age sempre de modo a produzir a maior
ela se torne lei universal.” felicidade para o maior número de

- O imperativo categórico não admite pessoas.”


qualquer exceção, mesmo em - Uma ação é tanto melhor, em termos morais,
circunstâncias limite, como, por exemplo, quanto mais e melhores forem as
mentir para evitar que seja preso um consequências para o maior número de
indivíduo que sabemos estar inocente. pessoas.
- A ação boa é a que promove não a
- Só uma vontade libertada dos impulsos da
felicidade do indivíduo, mas a do maior
sensibilidade pode ser livre.
número possível de pessoas.

311
B) Critérios diferentes para definir a ação moral

TEORIA ÉTICA DEONTOLÓGICA TEORIA ÉTICA UTILITARISTA


(IMMANUEL KANT) (STUART MILL)

Para que uma ação possa ser considerada A distinção entre ação boa e ação moral não
moral tem que satisfazer duas condições: tem significado, pois ação moral é a que
- cumprir a lei moral (ação boa); contribui para maximizar a felicidade para o

- ter como único motivo o respeito pelo maior número possível de pessoas,

dever. independentemente dos motivos e das


intenções que determinaram a decisão e a
ação.

C) Diferentes modos de justificar a moralidade

TEORIA ÉTICA DEONTOLÓGICA TEORIA ÉTICA UTILITARISTA


(IMMANUEL KANT) (STUART MILL)

Fundamenta a moralidade na racionalidade Defende que todos os seres humanos


humana, pois só a autonomia da vontade procuram a felicidade, justificando a
permite que o ser humano se liberte da moralidade das ações em função do
influência das inclinações contributo que elas podem dar para que esse
(interesses/tendências/conveniências) e ideal de felicidade se concretize, abrangendo
assuma a sua natureza racional e moral. o maior número possível de pessoas.
Como diz Kant: “Só uma vontade libertada dos
impulsos da sensibilidade confere ao ser
racional um valor intrínseco (um valor em si
mesmo).”

OBJEÇÕES ÀS DUAS TEORIAS (SÍNTESE)

Ambas as teorias (a teoria ética deontológica, de Kant, e a teoria ética


utilitarista, de Mill, foram e continuam a ser muito valorizadas, mas, ao mesmo tempo,
não deixaram de ser objeto de inúmeras críticas, que foram sendo comentadas e
esclarecidas pelos respetivos autores e seguidores.

312
Apesar de já terem sido apresentadas, em detalhe, as objeções ou críticas feitas
a cada uma das teorias, vamos apenas enunciar as mais importantes.

OBJEÇÕES À TEORIA DEONTOLÓGICA DE KANT

As principais objeções à ética deontológica de Kant incidem sobre:

a) O caráter absoluto da lei moral – os críticos argumentam que há situações


(por exemplo, mentir para impedir um ser humano de ser preso pela polícia) em que
poderá haver justificação para a mentira.
Porém, Kant não admite a possibilidade de mentir, tendo até escrito um pequeno
opúsculo (breve apontamento) intitulado: “Sobre um pretenso direito de mentir por amor
à humanidade”, no qual responde a esse tipo de objeções:

“Ser verídico (honesto) em todas as declarações é, portanto, um mandamento


sagrado da razão que ordena incondicionalmente e não admite limitação por quaisquer
conveniências.”

Immanuel Kant, Sobre um suposto direito de mentir por amor à humanidade,


in A Paz Perpétua e outros opúsculos, Edições 70, 2004, Lisboa, p. 176.

Além disso, a existência de princípios morais absolutos não dá resposta a


situações em que há conflito de deveres, como, por exemplo, quando estão em
confronto o dever de não mentir e o dever de preservar a justiça relativamente a
algo ou a alguém numa dada situação.

b) O excesso de rigor e o nível demasiado elevado de exigência na definição


da ação moral – é outra das principais objeções feitas à ética kantiana, pois, por
exemplo, segundo as palavras críticas de Stuart Mill, quem salva outra pessoa que se
afoga, faz o que é moralmente justo, seja o seu motivo o dever ou a esperança de ser
pago pelo seu esforço; e o que trai um amigo que confia nele, ao denunciá-lo por uma
ilegalidade cometida, por exemplo, merece ser censurado, ainda que o seu objetivo seja
servir algo ou alguém com o qual ou com quem entende que tem obrigações maiores.

OBJEÇÕES AO UTILITARISMO DE STUART MILL

O utilitarismo foi alvo de críticas desde o início. Alguns autores consideram que
muitas delas são reações aos aspetos mais inovadores e progressistas desta teoria
consequencialista da ética, que se constituiu, ao mesmo tempo, num movimento político,

313
tais como: ser independente da religião, defender direitos de minorias, nomeadamente
os direitos das mulheres, por exemplo (algo demasiado avançado para a época).
Porém, um dos aspetos mais controversos (polémicos), e que, de resto, é alvo de
contestação por parte de vários críticos, é o de saber até que ponto “os fins justificam
os meios”, isto é, se os direitos fundamentais do indivíduo, como, por exemplo, o
direito à vida ou à liberdade (mesmo o direito a ter projetos individuais de realização
pessoal), devem ser sacrificados em nome da maximização do bem-estar de muitos
(anulação do indivíduo em prol da comunidade).

PRINCIPAIS IDEIAS A RETER SOBRE AS DUAS TEORIAS ÉTICAS


A DEONTOLÓGICA (KANT) E A UTILITARISTA (MILL)

1 - As teorias deontológicas, como a de Kant, defendem que uma ação é moral


quando é realizada por respeito ao dever ou aos princípios.

2 - Segundo Kant, dotado de uma vontade dividida entre a racionalidade e as


inclinações (interesses, conveniências), o ser humano tem possibilidade de optar por
ações contrárias à lei moral. Chama-se livre-arbítrio ou liberdade em sentido
negativo a esta possibilidade; quando os seres humanos escolhem o dever como
motivo da ação e, portanto, obedecem à própria lei moral, adquirem valor intrínseco e
dignidade, tornam-se pessoas e seres morais e fim em si mesmos.

3 - Para Kant, a lei moral é um princípio moral racional e formal, expresso


sob a forma de imperativo categórico da moralidade, e constitui-se como princípio
moral absoluto, isto é, não tolera exceções.

4 - Em contrapartida, o utilitarismo define a moralidade de uma ação em


função da quantidade de felicidade que pode proporcionar. Assim sendo, ser
honesto será um ato moral se fizer muitas pessoas felizes, independentemente da
intenção do agente.

5 - Enquanto na ética kantiana o fundamento do valor moral da ação reside


no sujeito, na intenção da ação, na ética utilitarista, o fundamento reside na
utilidade da ação para a felicidade global – a felicidade humana é concebida como
o estado de prazer ou de bem-estar proporcionado pela satisfação de prazeres
superiores.
6 - O utilitarismo situa a obrigação moral em sentimentos sociais de ligação aos
outros (altruísmo).
314
ESQUEMA-SÍNTESE – COMPARAÇÃO ENTRE AS DUAS TEORIAS ÉTICAS
DE IMMANUEL KANT E DE JOHN STUART MILL

MORAL
UMA TEORIA DEONTOLÓGICA UMA TEORIA CONSEQUENCIALISTA
- Ética racional de Kant. - Utilitarismo de Stuart Mill.

FUNDAMENTO DA MORALIDADE
RACIONALIDADE UTILIDADE
- A lei moral e o dever como fim em si mesmo. - Utilidade ou a maior felicidade.

FINALIDADE DA MORALIDADE
AUTONOMIA COMUNIDADE
- A opção pela lei racional. - Maximizar a felicidade do maior número de
- O exercício da boa vontade. pessoas.

CRITÉRIO DA MORALIDADE DAS AÇÕES


CUMPRIMENTO DO DEVER POR DEVER CONSEQUÊNCIAS DA AÇÃO
- O respeito absoluto pela lei moral. - A felicidade ou infelicidade que possa
proporcionar ao maior número de pessoas.

LEI MORAL
IMPERATIVO DA MORALIDADE PRINCÍPIO DA UTILIDADE OU
- Age apenas segundo uma máxima tal que DA MAIOR FELICIDADE
possas ao mesmo tempo querer que ela se - Age sempre de modo a produzir a maior
torne lei universal. felicidade para o maior número de pessoas.

OUTRAS CARATERÍSTICAS DIVERGENTES


- Valoriza os princípios morais. - Defende a imparcialidade e o altruísmo.
- Não faz depender a moralidade de - Prescreve a felicidade global como ideal
circunstâncias particulares. moral e político.
- Valoriza a pessoa, opondo-se à sua - Sublinha os efeitos práticos das ações.
instrumentalização.

OBJEÇÕES
- Prescrevendo o respeito absoluto pela lei - Subordinando a moralidade ao critério da
moral, pode legitimar ações com utilidade, pode pôr em causa os direitos
consequências negativas para o indivíduo. individuais e legitimar a instrumentalização dos
- Não consegue dar resposta a dilemas indivíduos.
resultantes de conflito entre normas morais.

315
PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Selecione as opções corretas.

1.1 A dimensão ética da ação é o domínio da ação:


(A) Orientada por interesses individuais.
(B) Orientada por normas impostas externamente.
(C) Orientada por princípios de dignificação do ser humano.
(D) Orientada por leis que regulam direitos e deveres.

1.2 Segundo a perspetiva kantiana, a moralidade resulta:


(A) Da conformidade da ação com uma norma moral.
(B) De uma decisão íntima ou da intenção de cumprir o dever.
(C) Do tipo de fins que ela pretende atingir.
(D) Dos resultados da ação praticada.

1.3 Um juízo moral:


(A) Expressa a influência dos nossos desejos e preconceitos.
(B) Não precisa de justificação.
(C) Envolve um conjunto de princípios éticos e é imparcial na consideração dos
interesses.
(D) Determina a ação do sujeito nas suas relações com os outros.

1.4 Para Kant, somente a autonomia da vontade:


(A) Permite agir.
(B) Justifica a instrumentalização dos seres humanos.
(C) Confere moralidade às ações.
(D) Justifica a liberdade.

1.5 O utilitarismo é uma teoria ética consequencialista porque:


(A) Faz depender a moralidade ou a imoralidade de uma ação dos seus
resultados.
(B) Conduz a um relativismo ético.
(C) A moralidade ou imoralidade de uma ação depende do respeito pelos
princípios éticos.
(D) Assenta no dever.

316
RESOLUÇÃO DAS QUESTÕES DE ESCOLHA MÚLTIPLA:

(as opções corretas encontram-se assinaladas em itálico e sublinhadas)

1. Selecione as opções corretas.

1. 1 A dimensão ética da ação é o domínio da ação:


(A) Orientada por interesses individuais.
(B) Orientada por normas impostas externamente.
(C) Orientada por princípios de dignificação do ser humano.
(D) Orientada por leis que regulam direitos e deveres.

1. 2 Segundo a perspetiva kantiana, a moralidade resulta:


(A) Da conformidade da ação com uma norma moral.
(B) De uma decisão íntima ou da intenção de cumprir o dever.
(C) Do tipo de fins que ela pretende atingir.
(E) Dos resultados da ação praticada.

1. 3 Um juízo moral:
(A) Expressa a influência dos nossos desejos e preconceitos.
(B) Não precisa de justificação.
(C) Envolve um conjunto de princípios éticos e é imparcial na
consideração dos interesses.
(D) Determina a ação do sujeito nas suas relações com os outros.

1. 4 Para Kant, somente a autonomia da vontade:


(A) Permite agir.
(B) Justifica a instrumentalização dos seres humanos.
(C) Confere moralidade às ações.
(D) Justifica a liberdade.

1. 5 O utilitarismo é uma teoria ética consequencialista porque:


(A) Faz depender a moralidade ou a imoralidade de uma ação dos seus
resultados.
(B) Conduz a um relativismo ético.
(C) A moralidade ou imoralidade de uma ação depende do respeito pelos
princípios éticos.
(D) Assenta no dever.
317
ÉTICA, DIREITO E POLÍTICA
LIBERDADE E JUSTIÇA SOCIAL; IGUALDADE E DIFERENÇAS; JUSTIÇA E EQUIDADE

O PROBLEMA DA ORGANIZAÇÃO DE UMA SOCIEDADE JUSTA

Acabámos de estudar a dimensão ético-moral da ação humana e concluímos


que a ética e a moral são áreas da filosofia que respondem às questões: “O que
devo fazer?” e “Como devo viver?”, respetivamente, dirigindo-se ao indivíduo para
orientar o seu modo de se comportar. Mas a ação humana tem também uma
dimensão social, pois os seres humanos vivem em comunidade.
Importa, portanto, organizar as sociedades, tendo em consideração que
somente o seu bom funcionamento permite gerir conflitos, compatibilizar interesses e
garantir os direitos individuais, criando as condições para que cada um dos seus
membros possa tornar-se verdadeiramente humano.
Organizar os grupos humanos (países e grupos de países) da melhor
maneira é o objetivo da política, que conta com o direito para levar a cabo a sua
atividade. Quem deseja a vida boa para si próprio deve desejá-la também para a
sua comunidade política.
Ora, neste capítulo da Filosofia Política, a primeira abordagem incidirá,
precisamente, sobre o problema da organização de uma sociedade justa, tomando
como referência a reflexão desenvolvida pelo filósofo norte-americano John Rawls
(1921-2002), um dos principais pensadores políticos do nosso tempo, que no seu livro
Uma Teoria da Justiça (1971), propôs uma conceção de sociedade justa (ou justiça
social) que viria a ser muito influente.
Antes, porém, de nos debruçarmos sobre essa conceção (de sociedade justa ou
justiça social), convirá que respondamos a algumas questões, tais como:
- O que é a política?
- Quais as relações entre a política e a ética?
- O que é o Direito?
- Qual a origem do Estado?
- O que é um Estado de Direito?

A POLÍTICA E O ESTADO
318
O termo “política” derivou da palavra grega politikós, que designava todas as
atividades relativas à vida da cidade – a polis, também palavra grega – que em latim se
designava por civitas, da qual derivou o termo “cidade”.
A pólis ou cidade-estado grega era uma comunidade organizada, formada pelos
cidadãos, nascidos na cidade, a quem era reconhecido o estatuto de igualdade e o
direito de expor e discutir em público opiniões sobre os assuntos públicos, leis, impostos,
etc.
Assim, podemos fazer a seguinte distinção:

- Política como atividade – que decide as formas e a estrutura do governo de


uma região ou de um país bem como as condições do exercício da liberdade individual;

- Filosofia política – que estuda os métodos, os conceitos usados e relaciona a


política com outras atividades e avalia os fins propostos pelas diferentes formas de
organização política.

O DIREITO

Os seres humanos não vivem isoladamente, mas em sociedade (numa teia de


relações e interações pessoais – relações interpessoais); daí que viver seja,
essencialmente, conviver. Ora, dada essa condição, o homem, através da reflexão sobre
o modo como ia vivendo em comunidade, foi gradualmente percebendo que seria
preciso criar normas que regulassem, precisamente, as relações entre todos os
cidadãos, visto que, constantemente, a violência, a injustiça, o mau estar eram, quase
sempre, a única forma de resolver os mais variados tipos de conflito…
Assim, para impedir que fosse apenas a “lei dos mais fortes” a imperar (a lei da
força bruta), as sociedades elaboraram, ainda que lentamente, normas ou leis tendentes
a resolver, pacífica e o mais justamente possível, as tais situações de conflito,
diminuindo, assim, a atmosfera de caos, de desordem, de violência e de anarquia –
desta vontade de organização surge o Direito.
A palavra Direito significa conjunto de princípios, instituídos numa
determinada comunidade, que todos deverão respeitar e seguir ou, mais
simplesmente, conjunto de normas de carácter obrigatório que possibilitam
conduzir a vida social retamente (justamente).
Enquanto as normas morais (que se referem ao interior do indivíduo, às suas
intenções ou decisões pessoais de realizar determinadas ações de acordo com certos

319
princípios – consciência moral) e as normas religiosas (que resultam de mandamentos
sagrados aceites pelos crentes) não são, em absoluto, de carácter obrigatório (se o
indivíduo não as cumprir não é, por isso, nem condenado, nem preso à luz do
Direito/Código Penal), as normas jurídicas possuem um carácter obrigatório, isto é,
quem não as cumprir será punido por lei – estas normas impõem-se, portanto, a todos
os membros de uma qualquer sociedade, quer eles queiram quer não.
O Direito determina o que, numa comunidade, é permitido fazer e o que não
é permitido fazer; assume, portanto, uma função reguladora das relações dos
indivíduos entre si, ou seja, impõe normas ou regras a toda a comunidade. O
Direito pretende ser, assim, um verdadeiro instrumento de paz e harmonia social,
orientado para a realização da máxima justiça na máxima segurança.
– Que seria da sociedade se não houvesse normas ou regras de convivência e,
consequentemente, o Direito (para fazer justiça)?
– Que seria da sociedade se os criminosos recebessem o mesmo tratamento
dos cidadãos honestos e, constantemente, prevaricassem (não cumprissem a lei) sem
serem punidos?
Se tantas vezes apelamos ao Direito e à sua intervenção (contra as mais variadas
injustiças/ilegalidades) é porque sabemos/acreditamos que este, ainda que, nalguns
casos nos pareça que não faz justiça, existe para estabelecer uma igualdade (equidade)
possível entre todos, regulando a vida social ou interpessoal.
Em última análise, o Direito impõe, obrigatoriamente, o que tem de ser feito para
que haja uma certa harmonia entre os interesses privados ou pessoais e os
interesses públicos ou sociais, isto é, procura estabelecer relações pacíficas entre
todos aqueles que vivem em comunidade (para que todos gozem/usufruam de
direitos e cumpram/obedeçam a deveres).
Ora, precisamente pelo facto de o Direito remeter para leis que são criadas
pelos homens, e não por uma qualquer entidade divina ou sobrenatural, é que aparece
sempre ligado a uma autoridade política da qual, em certa medida, depende (uma vez
que é esta que estabelece qual o regime de orientação a seguir – poder legislativo).
Assim, resumindo e concluindo, o Direito é o conjunto de normas (jurídicas)
que regulam as relações entre os cidadãos, estabelecendo também as formas de
punição para quem viola essas normas.
Como já foi dito, ao contrário das normas morais (auto impostas e auto
sancionadas, pela consciência moral de cada um), as normas jurídicas, isto é, as leis

320
que constituem os códigos que regulam o funcionamento de um país ou de um grupo de
países, são impostas por uma autoridade externa com poder para julgar e castigar os
membros de uma comunidade que as violem.
As normas jurídicas, diferentemente das normas morais, definem o padrão do
que, social, política e juridicamente, é permitido e proibido.
Em síntese, podemos distinguir normas jurídicas de normas morais, através do
quadro que se segue:

NORMAS JURÍDICAS NORMAS MORAIS

- Apresentam-se sob as formas de códigos, - Não estão necessariamente codificadas


leis ou outras formas oficiais. (escritas).

- A aceitação e o cumprimento são impostos - A aceitação e o cumprimento resultam da


pelo Estado e têm caráter de obrigatoriedade. vontade e da decisão individuais e íntimas
(consciência moral).
- As pessoas têm de cumprir as normas,
mesmo que não lhes pareçam justas. - A transgressão é punida com o remorso e a
culpa, com a reprovação social e com a
- A transgressão é punida com multa, prisão
marginalização do indivíduo.
ou, até mesmo, com pena de morte (nalguns
Estados).

O Estado é quem assume o exercício da política, isto é, a função de governar.


Tem capacidade (autoridade) para tomar decisões e meios para concretizar os ideais
políticos definidos e deve gerir a república (“coisa pública”) para proporcionar aos seus
membros qualidade de vida, proteção dos seus direitos e liberdades básicas, condições
para o seu aperfeiçoamento ético e moral, entre outros aspetos. O Estado deve
esforçar-se por criar instituições justas e exercer o poder de forma democrática. O
Estado que garante os direitos dos indivíduos é designado Estado de Direito.

ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Defina Direito.
2. Justifique a necessidade da existência do Direito.
3. Distinga normas jurídicas de normas morais.
DISTINÇÃO ENTRE ESTADO DE DIREITO E ESTADO DE NÃO-DIREITO

321
ESTADO DE NÃO-DIREITO
ESTADO DE DIREITO

- Reconhece os limites da lei e que ninguém, - Considera-se acima da lei e não respeita os
nem mesmo o Estado, está acima da lei. direitos básicos dos cidadãos.

- Organiza o poder segundo o princípio da - Aprova leis arbitrárias (que convêm só a


divisão de poderes: executivo, legislativo e alguns), cruéis ou desumanas e usa a força
judicial. para as fazer cumprir.

- Garante tribunais independentes e - Governa em função do capricho de um chefe


julgamento imparcial. ou dos interesses de um grupo ou classe.

- Respeita os direitos, liberdades e garantias - Usa dois pesos e duas medidas (não usa os
dos cidadãos. mesmos critérios para julgar tudo e todos) na
aplicação das normas jurídicas (leis)
- Reconhece o pluralismo político (nos
consoante as pessoas em causa: o mesmo ato
regimes, a liberdade e a igualdade entre todos
é julgado de forma diferente conforme tenha
os cidadãos.
sido praticado por um colaborador, por um
- Proíbe a discriminação de indivíduos e de inimigo político ou por alguém empenhado na
grupos. luta pelo reconhecimento dos direitos.

- Responsabiliza os titulares de cargos


públicos.

Como podemos constatar, o Estado de Direito limita o poder dos seus


diferentes órgãos, atribuindo-lhe obrigações para com aqueles que governa,
responsabilizando-os politicamente pelas suas decisões.

- Como nos relacionamos com o Estado?


- Quais as obrigações do cidadão e do Estado?
- Há limites à autoridade do Estado?
- De onde lhe vem a legitimidade?

É precisamente a questões como estas que vamos tentar responder no capítulo


seguinte (Origem do Estado).

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

322
Classifique as afirmações seguintes como Verdadeiras (V) ou Falsas (F):
(A RESOLUÇÃO DESTAS ATIVIDADES SERÃO FORNECIDAS AOS ALUNOS NA PRÓXIMA PÁGINA)

AFIRMAÇÕES V/F

1. Um Estado cujos tribunais não são imparciais, usando dois pesos e duas
medidas para julgar, é um Estado de Direito.
2. Se o Estado não respeita as leis que ele próprio aprovou, não é um
estado de direito.
3. A política existe somente para garantir a sobrevivência dos seres
humanos.
4. Quem exerce a atividade política é o Estado.
5. O Direito e a Política são domínios do saber independentes.
6. O Direito é o conjunto das normas (normas jurídicas) que regulam as
relações entre os cidadãos.
7. Ao contrário das normas morais, as normas jurídicas são impostas pelo
Estado e o seu incumprimento é sujeito ao julgamento dos tribunais e a
eventuais sanções.
8. Os grupos humanos não precisam do Estado nem de governo para
viverem em comunidade.

RESOLUÇÃO DAS ATIVIDADES PROPOSTAS (pág. 190)

323
AFIRMAÇÕES V/F

1. Um Estado cujos tribunais não são imparciais, usando dois pesos e duas F
medidas para julgar, é um Estado de Direito.
2. Se o Estado não respeita as leis que ele próprio aprovou, não é um
estado de direito. V

3. A política existe somente para garantir a sobrevivência dos seres


F
humanos.
4. Quem exerce a atividade política é o Estado. V

5. O Direito e a Política são domínios do saber independentes. F

6. O Direito é o conjunto das normas (normas jurídicas) que regulam as


V
relações entre os cidadãos.
7. Ao contrário das normas morais, as normas jurídicas são impostas pelo
Estado e o seu incumprimento é sujeito ao julgamento dos tribunais e a V
eventuais sanções.
8. Os grupos humanos não precisam do Estado nem de governo para
F
viverem em comunidade.

A ORIGEM DO ESTADO

324
Datam da época moderna as respostas às questões que acabámos de levantar
na página 190. Filósofos como Thomas Hobbes (1588-1679), John Locke (1631-1704),
Jean-Jacques Rosseau (1712-1778), Immanuel Kant (1724-1804) dedicaram parte da
sua reflexão aos problemas políticos, nomeadamente à origem do Estado e a
legitimidade do seu poder.

DO ESTADO DE NATUREZA À SOCIEDADE CIVIL: O CONTRATO SOCIAL

Imaginar como seria a vida num estado de natureza é o ponto de partida das
teorias contratualistas de Thomas Hobbes e de John Locke, assim chamadas porque
explicam a passagem do estado da natureza para a sociedade civil como resultado
da celebração de um contrato social.
Na obra Leviatã, publicada em 1651, Thomas Hobbes descreve o estado de
natureza como um estado de guerra e de anarquia (sem regras) onde apenas existem
leis naturais.
Já John Locke, filósofo empirista inglês, um dos primeiros teóricos do
liberalismo e do contratualismo, concebe um estado de natureza menos pessimista.
Segundo este, o termo “estado de natureza” designa a situação hipotética onde os
seres humanos viveriam sem leis impostas por um governo e sem submissão a
ninguém, regendo-se apenas pela “lei natural”, que é o “conjunto de leis estabelecidas
por Deus que todos os seres humanos encontram inscritas na sua consciência”.
Ora, se no estado de natureza os indivíduos são livres, por que razões decidem
abdicar dessa liberdade e constituir uma sociedade civil e o Estado (com leis, com
regras)?
Porque, diz-nos Locke:
“Não existe ninguém com autoridade que faça cumprir a lei natural, e os
Homens, que julgam os crimes contra si próprios, não conseguem ser imparciais.”

John Locke, Ensaio sobre a verdadeira Origem, Extensão e Fim do Governo Civil,
cap. VIII, p. 95, Portal da História

A criação da sociedade civil responde a uma necessidade de segurança e é


por isso que os seres humanos trocam a liberdade que possuíam no estado de
natureza pela proteção do estado civil.
E por que razão precisariam de proteção, se são livres e iguais?

325
Porque são iguais mas não destituídos de sentimentos egoístas, desejo de
afirmação, mau génio, paixão e vingança; e não havia ninguém com poder para
fazer cumprir a lei natural a não ser o indivíduo que era afetado e este não
conseguia ser imparcial.

O CONTRATO SOCIAL

Através do Contrato Social, os indivíduos por mútuo consentimento cedem o


seu poder ao Estado, incumbindo-o de fazer executar as leis necessárias à
preservação dos direitos de todos, constituindo assim a sociedade civil e o Estado.

“Portanto, todo o homem pelo ato de conviver com outros para formar um corpo
político subordinado a um governo, se obriga para com cada dos dessa sociedade a se
submeter à determinação da maioria, e de ser governado por ela. Por conseguinte, todo
aquele que sair do estado natural para se unir em sociedade civil cede todo o poder que
for necessário aos fins para que ele se uniu à maioria da sociedade, salvo se eles
acordarem expressamente em algum número maior do que a maioria.
Portanto, aquilo que dá princípio e com efeito constitui uma sociedade política,
não é outra coisa mais do que o consentimento de qualquer número de homens livres,
que têm o uso da razão para se unirem e incorporarem uma sociedade tal. E é isto o
que, e somente isto o que deu ou podia dar princípio a todo e qualquer governo
legítimo.”

John Locke, Ensaio sobre a verdadeira Origem, Extensão e Fim do Governo Civil,
cap. VIII, p. 99, Portal da História

A base da legitimidade da autoridade do Estado é o consentimento mútuo


dos cidadãos. O contrato social estabelece as obrigações do Estado e dos
cidadãos, organizados em sociedade civil.
Em resumo:

OBRIGAÇÕES DO ESTADO OBRIGAÇÕES DOS CIDADÃOS

- Assegurar o respeito pela lei natural. - Reconhecer ao Estado o direito de exercer


- Repor a ordem infringida, punindo os sobre eles a sua autoridade, aceitando a
infratores. correlativa obrigação de obediência.
- Fazer as leis necessárias para garantir o bem - Cumprir as leis.
comum.

326
- Impor o cumprimento das leis.
- Proteger os direitos individuais.
- Governar segundo as leis estabelecidas.
- Julgar e fazer reinar a justiça.
- Defender a paz, a segurança e o bem
comum.
- Respeitar a finalidade para que foi instituído,
não exercendo o poder de modo absoluto e
discricionário (autoritário, ditador) nem sendo
mais poderoso do que os indivíduos que
serve.

ESTADO NATURAL SOCIEDADE CIVIL/ESTADO DE DIREITO

VANTAGENS LIMITAÇÕES VANTAGENS LIMITAÇÕES

- Liberdade individual - Não existe um juiz - Existência de um - Limitação da


(cada indivíduo é imparcial com poder com liberdade individual.
senhor de si, sem autoridade para julgar legitimidade
sujeição a ninguém). os transgressores da reconhecida para - Abuso do poder por
lei natural. assegurar a proteção parte do Estado e uso
- Propriedade privada dos direitos naturais. da autoridade para
(fundada no trabalho - Falta uma além dos limites
e no direito de usufruir autoridade para punir - Possibilidade de previstos no contrato
dos seus frutos). e repor a ordem. fazer leis consensuais social (contra a
para garantir o bem vontade da maioria).
comum.

ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Distinga Estado Natural de Sociedade Civil/Estado de Direito, quanto às


obrigações, vantagens e limitações.

2. Leia primeiramente o texto seguinte e depois selecione as opções corretas.

327
“A teoria de John Locke descreve a passagem do estado de natureza ao estado
de sociedade civil. No estado de natureza, o poder executivo da lei natural residia em
cada indivíduo; posteriormente, os seres humanos consentiram viver em sociedade
comum, regulada pelo poder executivo comum da lei natural. O consentimento entre
indivíduos cria a sociedade e o consentimento dentro da sociedade cria o governo. É
nesta origem e finalidade do governo civil que assenta a célebre divisão do poder
comum em executivo, legislativo e federativo – modelo do constitucionalismo.”

Mendo de Castro Henriques, Portal da História

2.1 No estado de natureza:


(A) Os seres humanos eram livres e iguais.
(B) Os seres humanos viviam sob o controlo de um chefe tribal.
(C) Havia necessidade de normas morais e jurídicas.
(D) Vivia-se num regime democrático.

2.2 Os seres humanos constituíram a sociedade civil e o Estado:


(A) Por estarem cansados de viver no estado de natureza.
(B) Para assegurar proteção e garantir os seus direitos básicos (liberdade,
direito à vida e à propriedade).
(C) Porque faz parte da natureza humana criar novos modos de viver.
(D) Porque já tinham a noção de que a sociedade tinha que evoluir para outro
modelo de convivência.

2.3 No estado de natureza todos os seres humanos são livres e iguais, por
isso:
(A) Ninguém manda em ninguém, não havendo controlo sobre os que violam a
lei natural.
(B) Não há necessidade de normas como no estado civil.
(C) Vivem felizes.
(D) Vivem revoltados.

2.4 A teoria de John Locke é contratualista porque:


(A) A política é um conjunto de ações para organizar a sociedade.
(B) Os seres humanos precisam de proteção.
(C) O Estado e a sociedade civil são criados através de um contrato social.
(D) Os indivíduos não são capazes de se organizar naturalmente.

328
RESOLUÇÃO DAS QUESTÕES DE ESCOLHA MÚLTIPLA (pág. 217)
(as opções corretas encontram-se assinaladas em itálico e a negrito)

2.1 No estado de natureza:


(A) Os seres humanos eram livres e iguais.
(B) Os seres humanos viviam sob o controlo de um chefe tribal.
(C) Havia necessidade de normas morais e jurídicas.
(D) Vivia-se num regime democrático.

2.2 Os seres humanos constituíram a sociedade civil e o Estado:


(A) Por estarem cansados de viver no estado de natureza.
(B) Para assegurar proteção e garantir os seus direitos básicos (liberdade,
direito à vida e à propriedade).
(C) Porque faz parte da natureza humana criar novos modos de viver.
(D) Porque já tinham a noção de que a sociedade tinha que evoluir para outro
modelo de convivência.

2.3 No estado de natureza todos os seres humanos são livres e iguais, por
isso:
(A) Ninguém manda em ninguém, não havendo controlo sobre os que
violam a lei natural.
(B) Não há necessidade de normas como no estado civil.
(C) Vivem felizes.
(D) Vivem revoltados.

2.4 A teoria de John Locke é contratualista porque:


(A) A política é um conjunto de ações para organizar a sociedade.
(B) Os seres humanos precisam de proteção.
(C) O Estado e a sociedade civil são criados através de um contrato social.
(D) Os indivíduos não são capazes de se organizar naturalmente.

329
ESQUEMA-SÍNTESE SOBRE A ORIGEM E LEGITIMIDADE DO PODER DO ESTADO
A PERSPETIVA DE JOHN LOCKE

ESTADO DE NATUREZA
(anterior à constituição da sociedade civil)

REGULADO PELA LEI MORAL

Os seres humanos têm os Os seres humanos têm direito Não existe uma autoridade
mesmos direitos – ninguém à vida, à liberdade e à que garanta a proteção da
manda em ninguém. propriedade. vida, da liberdade e da
propriedade.

JUSTIFICAÇÃO DO ESTADO

Necessidade de constituir um poder que imponha o cumprimento da lei natural.


Celebração de um Contrato Social (por mútuo consentimento, os indivíduos entregam a
autoridade ao Estado).

FINALIDADES DO ESTADO

- Assegurar o - Repor a ordem - Fazer as leis - Julgar e fazer - Defender a paz,


respeito pela Lei e castigar os necessárias para reinar a justiça. a segurança e o
natural. infratores. garantir a bem comum.
harmonia social e
impor o seu
cumprimento.

LEGITIMIDADE DA AUTORIDADE

AUTORIDADE LEGÍTIMA AUTORIDADE ILEGÍTIMA

- A que decorre dos termos do Contrato Social. - Abuso de poder, que foi atribuído na base da

- Exige o consentimento dos indivíduos que vai confiança.

governar.

330
A TEORIA DA JUSTIÇA DE JOHN RAWLS: A JUSTIÇA COMO EQUIDADE

Em que consiste uma sociedade realmente


justa e de que modo será possível realizá-la?

John Rawls

A sociedade constituída nos termos do Contrato Social pressupõe obrigações


mútuas do Estado e dos cidadãos e admite a possibilidade de desobediência em
relação ao Estado quando este não cumpre as obrigações estipuladas no contrato.
- Mas será que o Estado garante a todos igual liberdade, iguais oportunidades a
homens e mulheres, a minorias, etc.?
- Distribui equitativamente bens, riqueza e oportunidades?
- É uma sociedade justa?
- O que é uma sociedade justa?
O filósofo político Michael Sandel aponta para três abordagens do conceito de
justiça:
“Saber se uma sociedade é justa, equivale a perguntar como distribui as coisas
que apreciamos – renda e riqueza, deveres e direitos, poderes e oportunidades, cargos
e mordomias. Uma sociedade justa distribui estes bens de maneira correta: ela dá a
cada indivíduo o que lhe é devido. As perguntas difíceis começam quando indagamos o
que é devido às pessoas e porquê?
Identificamos três maneiras de abordar a distribuição de bens: a que leva em
consideração o bem-estar, a que aborda a questão pela perspetiva da liberdade e a
que se baseia no conceito de virtude. Cada um destes ideais sugere uma forma
diferente de pensar sobre a justiça.”

Michael Sandel, Justiça, qual a coisa certa a fazer? Delbolsillo, 2012, Barcelona, p. 29

A primeira abordagem enunciada pelo autor corresponde à conceção


utilitarista; a segunda defende que uma sociedade justa é a que garante direitos
individuais básicos.
Segundo o autor, as disputas mais atuais registam-se entre:

“Os que acreditam que a justiça consiste em respeitar e preservar as escolhas


feitas por adultos conscientes e os teóricos de tendência mais igualitária. Eles (os de
331
tendência mais igualitária) argumentam que mercados sem restrições não são justos
nem livres. De acordo com o seu ponto de vista, a justiça requer diretrizes (orientações,
normas) que corrijam as desvantagens sociais e económicas e que deem oportunidades
justas de sucesso a todos.”

Michael Sandel, Justiça, qual a coisa certa a fazer? Delbolsillo, 2012, Barcelona, p. 30

O filósofo norte-americano John Rawls, a quem já fizemos referência na


introdução deste capítulo, autor do livro Uma Teoria da Justiça, obra à qual também já
fizemos referência e que renovou o debate sobre a justiça nas sociedades atuais, é um
dos autores da tendência mais igualitária referida no pequeno texto, acima dado, de
Michael Sandel.
A teoria da justiça de Rawls, considerada por alguns autores a mais importante
teoria política do século XX, tem pontos de contacto com a filosofia moral de Kant e com
as teorias contratualistas e propõe-se como uma alternativa ao utilitarismo.
Rawls diz-nos que uma sociedade justa estará organizada segundo certos
princípios sobre a distribuição de determinados bens. A sua ideia central é a de que
a justiça consiste na igualdade ou equidade. Como outros filósofos antes dele, Rawls
defende que a equidade resulta da ideia de que todos os seres humanos devem ter,
à partida, os mesmos direitos e liberdades porque, se forem considerados apenas
enquanto seres humanos, são moralmente iguais – têm o mesmo valor moral, como
indivíduos. Assim, uma sociedade justa será aquela que garante a equidade, ou
seja, um tratamento igual para todos.

A TEORIA DA JUSTIÇA E O UTILITARISMO


(OU O CONTRATUALISMO E A REJEIÇÃO DO UTILITARISMO)

Rawls, tal como Kant, considera a pessoa humana como sendo um ser
simultaneamente livre, igual e fim em si mesmo, recusando a sua
instrumentalização, ou seja, como mero meio.
Partindo deste pressuposto, Rawls não poderia concordar com o utilitarismo,
criticando, nomeadamente:

- A falta de um princípio absoluto que servisse de critério universal para


decidir o que é justo ou injusto;

- A subordinação (sujeição, submissão) do indivíduo a interesses sociais,


não lhe reconhecendo direitos fundamentais individuais invioláveis;
332
- Que a subordinação da política à felicidade global não tivesse em
consideração a forma justa ou injusta como o bem-estar é distribuído.

Como podemos constatar pelo que já foi descrito, Rawls opõe-se, em certa
medida, ao utilitarismo, dado que este (utilitarismo) se importa fundamentalmente
com o resultado global das nossas ações em termos de bem-estar ou prazer.
Tomando o exemplo da distribuição de bens de riqueza, o utilitarismo pode legitimar
(validar, justificar) situações em que há grandes diferenças entre as pessoas a este
nível, desde que o cômputo (cálculo) geral de felicidade seja positivo e elevado.
No entanto, esta não é a verdadeira questão para Rawls. Para o utilitarismo, a
equidade pode ter valor como instrumento quando permite alcançar aquilo que é
intrinsecamente valioso segundo essa teoria: um aumento da felicidade geral. Para
Rawls, por outro lado, não é esta (felicidade geral) que tem valor intrínseco, mas sim
a equidade (igualdade).
Sendo este o ponto de partida da sua conceção acerca de uma sociedade
justa, Rawls pensa que ele pode e deve ser fundamentado em argumentos. Nessa
fundamentação ele recupera uma tradição que remonta a filósofos do século XVII e XVIII
como Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rosseau, que é a da ideia de
Contrato Social, a qual já abordámos, no que ela tem de essencial. Segundo esta ideia,
a organização política dos seres humanos justifica-se por ser uma espécie de
acordo entre todos em obedecer a um poder político em troca de certos benefícios
(segurança, justiça, apoio, direitos e liberdades, etc.).
Esta é uma maneira de justificar a existência do Estado, mas Rawls, usa-a
também para identificar quais são os princípios mais elementares que devem servir
de base a uma sociedade justa. Se, para determinarmos esses princípios, partirmos
das nossas situações reais na sociedade, com os nossos diferentes interesses, talentos,
qualidades, defeitos e vantagens, nunca conseguiremos chegar a um acordo justo, e
provavelmente, a nenhum acordo, porque a nossa visão do que é justo e tem mérito
(ou pelo menos a de alguns) será sempre corrompida (deformada) pelo desejo de
valorizar aquilo que temos e de manter as nossas vantagens, elegendo princípios
de justiça política que nos favoreçam – por exemplo, os ricos quererão poucos
impostos sobre a riqueza, os pobres quererão muitos, etc.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

333
1. Segundo, John Rawls, o que é uma sociedade justa?

2. Enuncie as críticas dirigidas por Rawls ao utilitarismo.

3. Explicite a ideia que está subjacente à noção de Contrato Social.

334
A POSIÇÃO ORIGINAL E O VÉU DE IGNORÃNCIA

O ser humano é um ser social; a vida em sociedade permite-lhe obter vantagens


mútuas. Porém, a existência de conflitos de interesses exige um conjunto de
princípios que:

- Sirva de critério para a atribuição de direitos e deveres;

- Defina a distribuição adequada dos encargos e dos benefícios da cooperação


social.

E dado que Rawls pretende descobrir os princípios mais adequados para


uma organização político-social justa, formula a seguinte pergunta:

Como chegar a um acordo unânime sobre os princípios que devem


organizar as sociedades e acabar com o conflito de interesses, garantindo uma
distribuição equitativa das riquezas?

Que tipos de princípios serão estes?


Como chegar à sua formulação, de modo a garantir a sua imparcialidade e
universalidade, uma vez que há interesses muito diferentes e os seres humanos são
naturalmente egoístas?
Rawls responde: são os princípios que seriam aceites por pessoas livres e
racionais, colocadas numa situação hipotética inicial de igualdade. Chamou a isto a
posição original.
A posição original (inicial) é uma situação imaginária em que os parceiros são
sujeitos racionais, morais, livres e iguais (é, portanto, uma situação hipotética inicial de
igualdade), colocados sob o efeito de um espesso véu de ignorância (construção
mental ou conceptual, imaginária, para designar uma situação de desconhecimento
acerca da sua posição na sociedade e restantes pontos particulares acerca de si
mesmos, desconhecendo até qual é a sua raça, sexo ou nacionalidade e quais vão ser
as suas ideias filosóficas, políticas e religiosas), que, ao estarem nessa situação, fariam
escolhas imparciais (isentas, neutras, equitativas).
E porque é que os parceiros nessa situação imaginária fariam escolhas
imparciais?

335
Rawls responde que seria por estarem sob o efeito do tal véu de ignorância,
isto é, por não conhecerem nem as suas caraterísticas pessoais, nem os seus
interesses, nem o seu estatuto social.
É por isto que, para Rawls, os verdadeiros princípios da justiça são aqueles
que seriam escolhidos nesta posição (original). Estaríamos, assim, na posição de
jogadores de cartas entrando em acordo quanto às regras antes de sabermos o jogo
que nos iria calhar em particular, estando em aberto a possibilidade de nos sair, neste
jogo (espécie de lotaria) a pior sorte. Trata-se, pois, de um modo de garantir a
máxima imparcialidade e isenção no acordo entre todos quanto aos princípios da
justiça. Assim, não teríamos motivos para favorecer uma posição que poderia não vir a
ser a nossa nem desfavorecer outra que nos poderia calhar.
Imaginemos a seguinte situação:
A Margarida faz anos e quer fazer uma festa. Nessa festa, a mãe pede-lhe para
partir o bolo, dizendo-lhe que as fatias serão sorteadas e que cada um dos convidados
comerá somente a fatia que lhe couber no sorteio. Suponhamos, ainda, que a Margarida
é muito gulosa e, por isso, não quer correr o risco de lhe sair no sorteio a fatia mais
pequena. Como deverá ela partir o bolo?
É óbvio que a melhor estratégia é partir o bolo em fatias iguais, pois isso
garante-lhe que não comerá a fatia mais pequena. Esta é uma decisão racional e
imparcial.

Na posição original, os sujeitos adotariam uma estratégia semelhante.


Assim:

- O acordo seria estabelecido em condições ideais de igualdade (pois cada


indivíduo, por não saber se será favorecido ou desfavorecido pelas contingências
naturais e sociais e por estar preocupado em promover os seus interesses, escolheria
para todos o que pretenderia para si próprio);

- As circunstâncias em que o acordo ou contrato seria celebrado – numa posição


original, a coberto do véu de ignorância – garantiram a imparcialidade (dado que
ninguém está em condições de escolher de forma a beneficiar os seus interesses) e a
universalidade (dado que é aceite e reconhecido por todos como sendo a escolha que
melhor serve os seus interesses);

- A conceção de justiça como equidade (ideal de uma sociedade justa que visa a
igualdade), defendida por Rawls, ficaria justificada.

336
PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Explicite e articule as noções de posição original e véu de Ignorância.


OS PRINCÍPIOS DA JUSTIÇA

Colocados numa posição original, situação hipotética, os seres humanos


escolheriam os seguintes princípios:

1. Princípio da Liberdade (direitos iguais e liberdades básicas iguais): cada


pessoa tem um direito igual ao mais vasto sistema de liberdades básicas iguais
que seja compatível com um sistema semelhante de liberdade para todos os
outros (direito este que só pode ser limitado pelo direito dos outros a igual liberdade).

Este princípio afirma que se deve permitir a cada um a máxima liberdade


compatível com uma liberdade igual para todos os outros. Não só corresponde à ideia
muito difundida de que a nossa liberdade termina onde começa a liberdade dos outros,
como à ideia também muito difundida, pelo menos nas atuais democracias liberais, de
que não é justo limitar a liberdade de alguém para decidir a sua vida (a menos, claro,
que esteja em jogo semelhante direitos dos outros). É, portanto, injusto permitir que
certas pessoas tenham mais liberdade do que outras, sendo desejável obter, numa
sociedade justa, o grau de igualdade mais elevado permitido pela consideração de
que, esse mesmo grau de igualdade, deve ser o mesmo para todos.
Segundo Rawls, este princípio, respeitante às liberdades fundamentais (por
exemplo, liberdade política, liberdade de religião, liberdade de reunião, liberdade de
pensamento e de opinião, liberdade de expressão, etc.; direito à integridade pessoal,
direito à propriedade, direito à proteção face à detenção e à prisão abusivas, etc.), tem
prioridade sobre os dois outros princípios (que se seguem), que dizem respeito ao
estatuto social e ao bem-estar material. Isto significa que ninguém pode abdicar das
liberdades concedidas por este princípio, mesmo que isso lhe trouxesse uma
melhoria das suas condições económicas (por exemplo, aceitar a escravatura a troco de
um maior rendimento). É importante sublinhar que esta prioridade se aplica a
sociedades em que já está garantido o mínimo de bem-estar aos mais desfavorecidos.

2. Princípio da Igualdade de Oportunidades: as desigualdades económicas


e sociais devem ser distribuídas de forma que sejam a consequência do exercício

337
de cargos e funções abertos ou acessíveis a todos em circunstâncias de
igualdade equitativa de oportunidades.

Segundo este princípio, é permissível, numa sociedade justa, que haja


alguma desigualdade em termos de riqueza. Isso é inevitável, pois mesmo partindo
de uma igualdade de base, diferentes pessoas têm diferentes prioridades, preferências,
qualidades e níveis de empenho em tarefas lucrativas, e isso ditará que uns
enriquecerão e, outros, não.
Tal situação, para Rawls, não é injusta, pois os fatores de desigualdade estão
dentro da esfera de controlo e escolha do indivíduo. O que é necessário é garantir que
todos partem efetivamente de uma base igual. Isso consegue-se com políticas sociais
(por exemplo, bolsas de estudo, no caso da educação) que permitem compensar
aqueles que, por motivos exteriores a si, têm menos recursos ou são socialmente
descriminados de forma negativa. Assim, segundo palavras de Rawls, “uma sociedade
que se considera justa deve dar maior atenção ao que nasceram em posições ou
situações sociais menos favorecidas.”
Este princípio, como já foi afirmado acima, perde prioridade para o anterior (é
menos importante), mas tem prioridade (é mais importante) sobre o seguinte.

3. Princípio da Diferença: as desigualdades económicas e sociais serão


dispostas de forma a beneficiarem os mais desfavorecidos, ou seja, deverão ser
distribuídas de forma que resultem nos maiores benefícios para os menos
beneficiados.

John Rawls, considera que uma sociedade justa pode admitir a desigualdade
desde que isso traga benefícios para a essa mesma sociedade e, nomeadamente, para
os mais desfavorecidos, o que leva a que os mais aptos não devam ter mais
rendimentos do que os outros, a não ser que isso beneficie os mais desfavorecidos
(princípio da diferença). Este princípio diz, assim, respeito à distribuição justa da
riqueza e tem como pressuposto que essa distribuição deve ser equitativa (justa,
igualitária).
A única razão para aceitar que alguns tenham mais é que isso possa funcionar
como compensação para os mais pobres.
No princípio anterior, notámos que as diferenças em riqueza são admissíveis se
forem consequência de fatores como o mérito, o empenho, a ambição (que é diferente

338
de ganância, note-se) e as escolhas pessoais. No entanto, há outros fatores que
geralmente consideramos que produzem desigualdades económicas de forma legítima
(válida), mas que não são controlados pelo indivíduo, como os talentos pessoais e
capacidades naturais (por exemplo, grande talento criativo e artístico, força e beleza
físicas, etc.). Segundo Rawls, estas benesses (benefícios, vantagens) da sorte saem
aos humanos como prémios da lotaria, mas o contrário também acontece com pessoas
a quem a sorte distribuiu caraterísticas desvantajosas, o que, ponderadas as duas
circunstâncias (apesar de distintas no seu resultado, mas comuns quanto à sua origem,
uma vez que, tanto para o melhor como para o pior, assentam em fatores que não
derivam da vontade do indivíduo), nos deve levar à posição de princípio de que
ninguém deverá ser beneficiado ou prejudicado por causa desses fatores.
Ainda que não seja possível anular essas diferenças entre as pessoas, devemos
reduzi-las ao mínimo, recorrendo para isso à redistribuição da riqueza, segundo duas
ideias contidas no princípio de que todos devem ter o mesmo – salvo as diferenças
legítimas – e a de que os menos favorecidos, física e intelectualmente, devem ver
compensadas essas suas condições desfavoráveis. É claro que isto implica coagir
– forçar – os mais abastados a pagar mais impostos para o proveito dos menos
afortunados (mais pobres).
Mas isto só é admissível numa teoria como a de Rawls, que reconhece que o
direito à propriedade existe, mas não é absoluto.

4. O princípio da maximização do mínimo (mínimo elevado ao máximo – a


regra maximin).
Recuperando um ponto que foi abordado acima no confronto com utilitarismo, a
teoria de Rawls encara o nível de vida dos elementos mais pobres de uma sociedade
como o verdadeiro sinal da justiça e da equidade dessa sociedade. É esse nível de vida
dos menos abastados que, segundo o princípio da maximização do mínimo, também
conhecido pela regra maximin, convém elevar ao máximo compatível com a
liberdade dos restantes elementos e com o direito destes a procurar uma vida boa.
Assim, pensando em sociedades em que todos têm o mínimo para viver, uma
sociedade na qual os mais pobres têm um determinado nível de vida é sempre
mais justa do que uma sociedade em que muitos têm níveis superiores a esse,
mas os mais pobres têm um nível inferior, ainda que a soma total de riqueza nesta
última sociedade seja superior à da primeira.

339
A justificação para isto não é simplesmente Rawls pensar que isso é o mais
justo. Ele pensa que, na posição original, sob o véu da ignorância, os indivíduos
escolheriam princípios como o da diferença, que garantem a máxima proteção
para os mais desafortunados (desgraçados, miseráveis), por ter em atenção que tal
má sorte também lhes poderia suceder, e, nesse caso, na pior das hipóteses,
teriam estes princípios a seu favor. Isso deverá levá-los a aplicar o princípio da
maximização do mínimo (do mínimo elevado ao máximo), ou, simplificando, o princípio
maximin, deste modo:
1. Identificar o pior resultado possível de cada alternativa.
2. Escolher a alternativa cujo pior resultado possível seja melhor.

Suponha-se que, como as partes contratantes de Rawls, estamos a escolher os


princípios que regularão a sociedade em que havemos de viver. Desconhecemos o lugar
que iremos ocupar nessa sociedade, pois estamos sob um véu de ignorância. E
queremos liberdades, oportunidades e riqueza, para que assim possamos realizar os
nossos planos de vida. Nesse caso, pela regra maximin, devemos supor que nos vai
acontecer o pior, isto é, que ficaremos entre os mais desfavorecidos. Portanto, devemos
escolher como princípios da justiça aqueles que, quando implementados na sociedade,
deixem os mais desfavorecidos numa melhor posição. Na posição original, as partes
deverão jogar pelo seguro, imaginando que o pior lhes irá acontecer. Por isso, sendo
racionais, irão escolher os princípios que garantam a melhor situação àqueles que, na
sociedade, ficarem entre os mais desfavorecidos. A sua regra de escolha será, então, o
maximin: a regra de maximizar (elevar ao máximo) o mínimo.
Admitamos que estes princípios seriam escolhidos por todos na posição original.
Mas por que razão isso os torna corretos? Como vimos, a posição original é uma
situação de equidade sob o véu de ignorância, as diferenças individuais
desaparecem, pelo que os princípios escolhidos pelos agentes terão o mérito de
não favorecer nenhum indivíduo em detrimento (desfavor) de outros.
É por esta razão que John Rawls considera a sua conceção de justiça como
sinónimo de equidade, uma vez que se baseia num ideal de sociedade (justa) que visa
a igualdade através da distribuição desigual da riqueza (igualdade na diferença).

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

340
1. Enuncie os Princípios da Justiça, de John Rawls.
2. Complete a frase que se segue:
“John Rawls considera a sua conceção de justiça como sinónimo de _____________.”

AS CRÍTICAS A JOHN RAWLS


COMUNITARISTA E LIBERTARISTA

CRÍTICA COMUNITARISTA – MICHAEL SANDEL

Uma das críticas movidas a Rawls é o projeto proposto pelo filósofo


contemporâneo norte-americano Michael Sandel (1953). Segundo ele, o que Rawls
refere como pessoas na posição original são seres humanos isolados, desprovidos de
família, comunidade, género, nacionalidade, situação histórica, cultura, valores,
tradições, compromissos, sem uma história pessoal e um processo individual de
crescimento e educação.
Com efeito, na proposta de Rawls de um acordo hipotético sob o véu de
ignorância, podemos notar que a definição da situação e, sobretudo, dos intervenientes,
é tão mínima e escassa em detalhes concretos que talvez não seja possível imaginar
com algum grau de clareza e verosimilhança o que esses indivíduos pensariam e
decidiriam quanto aos princípios básicos de justiça. Trata-se, portanto, de puras
abstrações. Ora, os seres humanos reais são tudo menos isso. Somos animais sociais a
um grau muito elevado, de tal maneira que nem conseguimos, em muitos casos,
identificar que “parte” de identidade, do nosso “eu”, não é um produto de todas estas
circunstâncias e contextos. Se todos esses elementos em nós fossem diferentes do
que são, poder-se-ia dizer que seríamos outras pessoas, e se nos retirassem tudo
isso, não é óbvio se seríamos realmente pessoas. Até a nossa própria consciência
de quem somos, o nosso autoconhecimento, é, em parte, determinado por esses
fatores.
Mesmo sabendo nós que a posição original e o véu de ignorância são
artifícios hipotéticos que servem de ponto de partida para se pensar em que
princípios de justiça se devem basear, o estado a que Rawls leva tal ignorância
implica, segundo Sandel, que se perca o contacto com a realidade, de modo que as

341
especulações e conclusões baseadas nesses mesmos princípios não conseguem
ser transferíveis para a realidade social e política.
Sandel coloca-se numa perspetiva que defende a importância da
comunidade, das tradições e de outros fatores sociais no processo de construção
de cada pessoa, contra as conceções individualistas como as de Rawls. Por esse
motivo, ele (Michael Sandel) enquadra-se numa tendência da filosofia política atual
denominada comunitarismo, sendo a de John Rawls classificada como liberal
(individualista). Para os comunitaristas, a aplicação de princípios liberais
individualistas como os de Rawls podem contribuir para o isolamento de cada um
e para a desagregação da sociedade, se esta deixar de poder contar com os laços
comunitários que a constituem.

CRÍTICAS LIBERTARISTAS – ROBERT NOZICK

Robert Nozick (1938-2002), proeminente filósofo norte-americano, apontou as


suas críticas ao Princípio da Diferença, defendido por John Rawls. Nozick foi um
defensor do libertarismo. De acordo com esta perspetiva política, o Estado deve ter
um papel muitíssimo limitado. Deve servir essencialmente para garantir a segurança
das pessoas (através das forças policiais) e para resolver conflitos (através dos
tribunais). O Estado não deve, por exemplo, providenciar educação ou cuidados de
saúde aos cidadãos. De acordo com os libertaristas, cobrar impostos para
providenciar estes serviços é interferir indevidamente na liberdade das pessoas.
O libertarismo (de Nozick) está em conflito com o Princípio da Diferença (de
Rawls). Este princípio, diz-nos Nozick, é um exemplo de uma conceção padronizada
da justiça, pois afirma que a riqueza deve estar distribuída de um certo modo, isto
é, de acordo com um determinado padrão: as desigualdades de riqueza só se
justificam se melhorarem a situação dos mais desfavorecidos. Uma sociedade será
injusta, segundo Rawls, se a distribuição da riqueza não obedecer a este padrão, que é
o que acontecerá se existirem desigualdades que não beneficiam os mais
desfavorecidos.
Mas como será possível realizar o padrão proposto? Segundo Nozick, para
implementar o princípio da diferença, o Estado terá de redistribuir constantemente a
riqueza. Terá de forçar algumas pessoas a pagar impostos, retirando-lhes parte do que
ganharam legitimamente, para que outras pessoas sejam beneficiadas. Nozick,
baseando-se no pensamento de Kant, considera que isso é eticamente inaceitável.

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Sugere que proceder assim é tratar as pessoas como meros meios, violando os
seus direitos de propriedade.
Para esclarecer esta objeção, imaginemos que, num certo momento, a
distribuição da riqueza numa dada sociedade obedece ao Princípio da Diferença.
Porém, essa situação nunca será estável. Algumas pessoas usarão a sua riqueza para
criar negócios lucrativos, outras trabalharão mais para ganhar mais, outras ainda
esbanjarão os seus rendimentos e, assim, passado algum tempo, a distribuição da
riqueza já não obedecerá ao padrão do Princípio da Diferença. Para repor esse
padrão, o Estado terá de intervir constantemente, obrigando-os a dar uma parte do
que adquiriram legitimamente para providenciar bens e serviços aos menos
afortunados. Para Nozick, esta interferência do Estado será sempre injusta. Por
isso, o Princípio da Diferença deve ser rejeitado.

PROPOSTA DE ATIVIDADES/QUESTÕES:

1. Explicite a crítica comunitarista, de Michael Sandel.

2. Explicite a crítica libertarista, de Robert Nozick.

FIM

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